quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O Animal Simbólico

Há uns dois anos encontrei um antigo conhecido e atual psquiatra estrelado e frequentador das páginas da Veja em um Congresso de Psiquiatria. Ele me saudou de forma entusiástica (o que não é muito comum no seu caso, por ser uma pessoa contida) e perguntou, nos corredores do evento, de bate pronto: " E aí, Spinelli, continua Junguiano?". Anos dedicados ao ofício me deram um certo treino para a resposta rápida. A primeira que me ocorreu foi: "E você, continua um Papagaio de Pirata da Indústria Farmacêutica?". Felizmente o treino inclue deter algumas respostas antes que elas sejam cuspidas boca à fora. Limitei-me a sorrir e a falar que estava para montar uma clínica de Psiquiatria Junguiana, se é que isso existe. Seguimos nosso caminho nos corredores, coincidentemente em direções opostas. No hard feelings. O interessante da pergunta é a questão implícita de que ser junguiano para a soberana Psiquiatria é algo como escrever em máquinas Olivetti, chupar balas Juquinha ou imprimir em impressoras matriciais esperando efeitos em 3D. Vou dar um exemplo das visões díspares, óbvio que puxando a brasa para a sardinha da Psiquiatria que eu gosto. Mas vou manter alguma imparcialidade, já que sou Psiquiatra Clínico também. Isso também me coloca em posição interessante: para os psicoterapeutas, eu sou um clínico. Para os clínicos, eu sou psicoterapeuta. Isso é um duplo exílio, mas felizmente eu o aceito com algum bom humor (e algum sofrimento, também).
Voltando à uma Psiquiatria Junguiana: imaginemos um vovozinho passando por um monte de dificuldades. Uso o exemplo porque o colega em questão é Psicogeriatra. Imaginemos um vovozinho que perdeu recentemente a sua companheira. Para piorar, uma Arritmia Cardíaca causou uma internação de sete dias em uma UTI. Após alguns poucos dias, ele começa a ter novas palpitações, mas o Eletrocardiograma não indica nova arritmia. Ele está triste e depois de algum tempo de entrevista começa a chorar. O Psicogeriatra é chamado, diagnostica uma depressão e dá o antidepressivo mais recomendado pela Literatura Médica. O vovozinho chega em meu consultório algumas semanas mais tarde. O antidepressivo da moda está lhe causando sintomas de pânico. O psicogeriatra da moda pede para ele aguente firme, que os sintomas iriam começar a melhorar. Ele não está melhorando e dá a impressão quase palpável de ter uma pedra no sapato de sua alma. Temos uma longa conversa sobre a velhice, a perda e a morte (temas normalmente muito agradáveis à nossa cultura, não é mesmo?). Ele chora e pede desculpas por isso. Vem pensando em suicídio. Coversamos sobre o suicídio e como ele é um risco real em situações em que a pessoa não vê perspectivas de futuro. Ele sai aliviado. Troco a medicação, uso um remédio fora de moda. Naquela noite, ele volta a dormir. Alguns dias depois, tem fome. Na semana seguinte, vai a um almoço de família e conta piadas. O psiquiatra biológico diria que eu acertei melhor os neurotransmissores do vovozinho. Eu diria que o homem é um animal simbólico. A morte, a perda, a velhice, são fatos biológicos e simbólicos que fazem parte da vida. Compreendê-los em profundidade dá a pessoa que está passando por esse momento uma sensação de conforto e, quem sabe, de aceitação dessa transformação. É isso que eu diria ao colega: continuo junguiano. Mais ortodoxo do que ficha telefônica, ou filme fotográfico.
Um ótima e simbólica passagem de ano a todos.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Magnificat

Fiquei reconfortado com uma notícia da Folha de São Paulo, no suplemento Folha Teen, dando conta de um movimento de repúdio ao consumismo, o movimento dos Sem Compras, pessoas que estão boicotando o corre corre e a loucura consumista que transforma um dos mais belos mitos cristãos em um festival de pacotes de presentes que lamentamos receber todos os anos. Tem sempre um presente mala que abrimos entre sorrisos amarelos e alegria de plástico, não é mesmo?
O aniversário de Jesus foi arbitrariamente colocado no dia 25 de Dezembro para coincidir com o Solstício de Inverno no Hemisfério Norte. A história do nascimento do menino Jesus é a história de um percurso problemático. Começando pelo momento da Anunciação, o Magnificat, quando surge o anjo do Senhor para uma menina recém saída da adolescência, dizendo que o Espírito Santo seria manifesto em seu ser, na forma de um filho. Bendita és tu entre as mulheres, disse o anjo. A menina estremece diante da visão e da Revelação do Mistério, como estremecemos diante do novo e do não conhecido. Com a coragem instintiva de uma mulher ela aceita, incondicionalmente, a tarefa. Para as pessoas da época, o que inclue o seu futuro marido, a menina que aceitava o Mistério incompreensível era uma adúltera, crime punido na época (e ainda hoje no Irã) com a morte por apedrejamento. Ela aceitou a tarefa, mesmo que isso custasse a sua vida, como muitas mulheres no decorrer da história arriscaram e arriscam a própria vida por seus bebês. A Concepção Imaculada representa o nascimento do menino-Deus sem que o mesmo passe pela corrupção de nossa vida encarnada. Apesar da concepção feita na perfeição, o nascimento do menino Jesus será problemático, mostrando as feridas da condição humana. Maria tem medo, José tem dúvidas, Herodes ouve falar do menino-Luz e quer matá-lo. Como as nossas jornadas, nossos processos de transformação, aquela gravidez vai enfrentar o medo, a dúvida, o cansaço impedindo nossa chegada a Belém.
Na Mitologia Grega, o deus Eros é filho da Artimanha e da Pobreza. O menino Jesus na manjedoura representa o nascimento na pobreza, no improviso, no meio dos perigos que atravessamos e da Graça necessária para que as coisas corram bem. Nessas semanas eu tentava explicar para um cliente cujo filho estava para nascer o significado desse nascimento conturbado. Nos meses que antecederam o nascimento de seu filho, aconteceu um pouco de tudo em sua vida: mudança de emprego, internação e cirurgia de urgência, crises de ansiedade e medo de não dar conta daquele pequeno milagre envolvido pelos lençóis hospitalares. O bebê nasceu, mesmo depois de um percurso tão cheio de sustos. Os recursos para criá-lo também vão surgir. O caminho se faz ao caminhar, disse o poeta.
Ficamos vendo os Papais Noéis sorridentes, as famílias felizes em torno dos perús Sadias nas propagandas, tudo parece tão bom e fácil em tempos de Natal, não é ? O que esquecemos é que por trás daquelas luzinhas e pacotes de presentes, celebramos uma menina que há mais de vinte séculos falou um gigantesco Sim, Seja feito segundo a Tua vontade.

domingo, 19 de dezembro de 2010

O Mal que entra pela boca

Há alguns dias a Folha publicou um estudo dando conta do aumento de consumo pelas famílias recém ingressadas na classe média pelos Anos Lula. Existem evidências de que o aumento de capacidade de compra leva esse grupo a consumir mais açúcares de absorção rápida, também conhecidos como carbohidratos e menos arroz e feijão, peça fundamental de nossa alimentação brazuca há décadas. Parece que vamos passar rapidamente do Fome Zero para o Diabetes Zero como grande programa de segurança alimentar. Outro estudo que eu li recentemente já documenta crianças nascendo com frequência cada vez maior de uma chave genética de propensão à Obesidade. O princípio é fácil de entender: gestantes com uma dieta pobre em fibras e vitaminas e uma dieta cheia de farinha e açúcares, as chamadas calorias vazias, transmitem ao feto a informação de que está faltando comida aqui do lado de fora, o bebê já nasce com um mecanismo poupador de gordura. As mamães que trocam o arroz e feijão pelas bolachas, chocolates e batatinhas fritas mandam uma mensagem falsa aos seus bebês. É como se fosse ativada uma chave genética que diz, cuidado pessoal, está um inverno brabo lá fora e está faltando comida. Vamos juntar gordura. A Medicina, com a sua esperteza habitual, já começa a dosar colesterol de bebês e recomenda a suspensão do uso de leite após os dois anos de idade. Oferecendo menos comida talvez vamos aumentar a obesidade, porque o organismo ainda recebe a informação de que está faltando comida. A Medicina Chinesa trata a maior parte das doenças com orientações dietéticas, o que a nossa Medicina ocidental acha hilariante ou coisa de uma mentalidade pré científica.
Temos então no período pós industrial uma alimentação altamente inflamatória, com alto índice de sal e gorduras e baixo índice de vitaminas e fibras. O aumento das doenças ligadas ao sobrepeso e à Obesidade encontra tratamentos com resultados pífios e cirurgias bariátricas criando talvez mais fome celular. Será que é estranho ler sobre isso num blog de um psiquiatra?
Há décadas que a Psiquiatria e a Medicina colecionam fracassos no tratamentos das Doenças de Adicção. Alcoolismo, Dependências Químicas e agora os Transtornos Alimentares são fronteiras ainda pouco conhecidas com resultados pouco animadores. Em um outro post levantei se estamos numa época de obsessivos, mas podemos estar realmente numa época de compulsões e dependências. Dependemos de açúcares, de guloseimas, de diversão, de trabalho, dependemos mesmo da sensação de que precisamos de algo para ontem. Nossos pools genéticos tentam acompanhar esta correria, o que se traduz por doenças crônicas, oncológicas, autoimunes. Não dá para pisar no freio de uma vez, podemos concordar. Há uma música do Renato Teixeira, linda na voz de Maria Bethânia, que diz: "Penso que viver a vida seja simplesmente/Descobrir o ritmo e ir tocando em frente/Como um velho boiadeiro levando a boiada/Vou levando a vida pela longa estrada eu vou...". Talvez um bom pedaço do trabalho de um bom psiquiatra seja ajudar o paciente descobrir o ritmo para ir tocando em frente, à moda dos boiadeiros levando boiadas. Poruqe não há a menor dúvida de que a correria precisa mudar. Para ontem.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Expectativas, de novo.

Já vou me desculpando com as meninas, maioria entre os leitores desse blog, mas vou falar de futebol de novo. Mas por uma boa causa.
Tenho alguns clientes gaúchos, todos umas figuras, portadores daquele senso de humor tão devastador quanto engraçado e característico de seu povo. A maioria aqui é colorada, apelido dado à camisa vermelhíssima do Internacional de Porto Alegre. Com certeza, as cores e a rivalidade trazem ecos de Ximangos e Maragatos peleando nas paisagens gaúchas. Pois nessa semana o Colorado foi para o mundo árabe jogar o Campeonato Mundial de Clubes. Fizeram uma grande festa, jogadores pegaram nos microfones cercados de foguetório para prometer raça e suor na busca da vitória e de mais uma estrela encima de seu glorioso escudo. Com meu ouvido seletivo de psicoterapeuta eu separei duas frases proferidas antes do jogo semifinal (é um campeonato que o time sulamericano já entra na semifinal). O jogo era contra um time africano, do Congo, chamado Mazembe. Um jogador do Mazembe falava que quando o time entrava em campo alegre e unido ele tinha a sensação de que nada de ruim poderia acontecer com eles. Já o técnico do Colorado, Celso Roth, trovejava a importância de se respeitar os africanos (cujo time que teria muita dificuldade de jogar a série B no Brasil). Celso Roth vaticinava: "É um jogo que precisamos atingir o erro zero". Ai, ai, aquilo me doeu nos ouvidos. Não existe erro zero, em nenhuma esfera de atividade humana. No dia seguinte, o Mazembe fez o primeiro gol quando seu atacante dominou a bola, ajeitou o corpo e bateu no ângulo do goleiro Renan apenas observado por uma zaga catatônica. Ninguém se moveu para pelo menos ficar na frente, dificultar o chute. Pareciam pregados no chão. Quando o time brasileiro tentou reagir, deu de cara com um goleiro francamente presepeiro, que pula de frente em algumas bolas e comemora os gols dando pulinhos encima da própria bunda. O cara parecia se agigantar diante dos atacantes. No final do jogo, o segundo gol dos africanos, o golpe de misericórdia. Mais pulinhos para o goleiro. Impressionante como a história sempre se repete e não tem nenhum manual de Psicologia Esportiva que ensine isso: quando você cria uma expectativa de perfeição, do tem que ganhar, todas as engrenagens do Inconsciente trazem a dúvida, o será? Temos falado muito disso nos quadros obsessivos amorosos. Quando o outro vira a razão de ser de alguém, o "tem que dar certo" desencadeia uma comédia de erros e desencontros, frequentemente terminando em lágrimas e caixas de bomboms na frente da TV a cabo. Não há situação que queremos que dê certo que não possa dar errado. Isso tem que estar na nossa consciência, ou volta como um fantasma, na pior hora.
Tem uma história zen que eu adoro, que ilustra bem o nosso assunto: Havia no mosteiro um grande mestre, admirado e amado pelos monges. Esse homem tido como iluminado pediu a seus discípulos que deixassem a sala de meditação "perfeita" para a sua volta. Durante alguns dias, os jovens aprendizes se esmeraram em limpar cada milímetro da sala, buscando durante esse processo a perfeição da limpeza, harmonia, equilíbrio no recinto de suas meditações. Quando o mestre chegou de viagem, pôde ver que a sala estava fechada há algum tempo, para que nada perturbasse a sua perfeição. Entrou no recinto, observou os detalhes e, subitamente, saiu. Voltou com um punhado de terra, de folhas e de sujeira que os homens trazem para dentro de suas casas, e espalhou-as pela sala. Alguns monges correram para impedí-lo, ele sorriu e falou: "Agora ela está perfeita".
As vidas, as relações, as dietas e os times de fiutebol são cheios de defeitos, de erros, de imperfeições. As nossas tentativas de diminuir, cuidar, observar os erros são legítimas. Mas o melhor método não é buscar o "Erro Zero", mas antes estarmos atentos a eles, prontos para corrigí-los, em vez de ocultá-los. Os jogadores africanos cometeram vários erros, alguns quase infantis. Mas, na sua alegria, acreditavam que nada de ruim poderia acontecer com eles.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

A Rede Social

Não é incomum as pessoas diagnosticadas com algum Transtorno Ansioso ou Depressivo levantarem a questão: "O que está acontecendo? Por que o meu pai e meu avô não tinham depressão e hoje todo mundo tem? Isso é invenção da Psiquiatria, da Indústria Farmacêutica ou está todo mundo louco, mesmo?". A resposta a essa pergunta pode levar alguns tratados em tamanho de Bíblia. Talvez vivamos numa das épocas mais insalubres ao nosso Sistema Nervoso de todos os tempos. A alimentação da Era Industrial, cada vez mais vazia de nutrientes, uma alimentação inflamatória, ou seja, que aumenta a atividade inflamatória de nosso organismo, o que favorece as doenças mais letais, cuja letalidade aumenta com o tempo a despeito dos bilhões gastos em remédios e prevenção. A falta de atividade física e de exposição ao sol. Se a camada de Ozônio do planeta continuar diminuindo, a exposição ao sol vai ser um luxo, uma possibilidade remota. As atividades noturnas invertem o ciclo vigília-sono, deixam o sono cada vez menos regido pela luz solar, criando insônias e fusos horários bagunçados. Mas um fator tão falado quanto misterioso é o stress, ou estresse. Somos criados para ele. Medo, antecipação de futuro, expectativas, dores, tudo isso vem sendo amplamente debatido nesse blog. E são estressores permanentes para mim e para todos.
Fui assistir no final de semana o Harry Potter, mas dei de cara com salas lotadas (mais um estresssor) e acabei vendo esse filme sobre o Facebook, " A Rede Social". O filme é chato e dá um foco quase exclusivo na disputa em torno da paternidade desse site, da idéia que o gerou para divisão dos bilhões de dólares que ele rende em todo o mundo. O personagem Mark, criador do site,é interpretado de uma forma convincente e para mim impressionante. Logo no primeiro diálogo ele conversa com uma moça bonita, com quem está saindo. Ela tem dificuldade em acompanhar o que ele fala, porque costuma alternar dois ou três assuntos simultaneamente. Consegue em uma conversa fazer alusão à origem modesta da moça e à faculdade igualmente modesta que cursa, levando um merecido pé na bunda ao final da mesma. Mark não consegue conversar um assunto por vez, não consegue se conectar afetivamente com humanos se não for por uma tela de computador, é o mais jovem bilionário do planeta e não consegue ser adicionado no Facebook da mulher que ama. Não consegue nem articular um pedido de desculpas pelas incontáveis grossuras que dirigiu à essa pessoa. Talvez essa seja uma fonte de estresse inteiramente nova em nossa jornada humana: depois de anos tentando concorrer com a máquina, agora tentamos pensar e processar informação em ritmo digital. A humanidade pode estar se dividindo em humanos que funcionam analógica ou digitalmente. Não se trata de ficar à beira da estrada criticando a caravana, ou latindo para ela. Uma das tarefas da Psiquiatria e da Psicoterapia vai ser mais do que recolher e restabelecer os neurotransmissores feridos e os receptores em pandarecos dessas pessoas. Vamos precisar adaptar as pessoas a seguir esse ritmo do planeta sem que se tornem como o rapaz do filme, um verdadeiro Midas moderno: tudo o que ele toca vira ouro, mas isso pode acabar matando-o de fome.
O desafio é fazer as pessoas ficarem ágeis, espertas, rápidas, sem perder a ternura.
A tecnologia é ótima, traz benefícios incontáveis. Mas os homens estão ficando cada vez mais vazios, como a comida que devoram nos fast foods.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Vivendo e Aprendendo a Jogar

Antes de mais nada, gostaria de me desculpar com meus poucos e fiéis leitores pela semana de silêncio. O final de ano costuma ser difícil para psiquiatras. Assim que as primeiras imagens de Papai Noel e de famílias risonhas em torno de Panettones Bauducco ou perús Sadia começam a bater nas telas de nossas TVs,e as pessoas começam a enlouquecer, tentando resolver tudo até o dia 15, para depois começarem os lutos de Natais da aurora de nossas vidas, que o tempo não volta mais. Mas não é sobre o Natal que vou falar. Não hoje. O fato é que os posts vão ficar mais raros nessa época, mas espero não bater nenhum recorde negativo de postagens em Dezembro.
Estava respondendo um e-mail há pouco, falando justamente sobre um tema recorrente em Natais e finais de ano: expectativas frustradas. Parece que uma dimensão do drama humano deriva quase sempre dessas expectativas. Uma medida obbjetiva da maturidade de uma pessoa é justamente a capacidade de dimensionar as expectativas dentro do Real e tolerar a frustração quando as mesmas não dão certo. Isso parece muito chato e é mesmo. Durante meus anos como psiquiatra e psicoterapeuta lembro de ter deixado muitos poucos casos. Eu saí de um caso de uma moça que se agarrava com todas as forças ao próprio sofrimento. Dizia que não faria nada para melhorar a própria vida, já que Deus era o grande culpado por sua dor. Ele a colocara numa família disfuncional, Ele colocara homens desprovidos de afeto e de humanidade em sua vida, portanto, Ele tinha feito a sujeira, deveria também fazer a faxina. Algumas vezes em terapia, o terapeuta sair do caso é a única manobra que resta para a pessoas notar o que ela mesmo está falando ou fazendo. Não tenho muita esperança que essa moça tenha recebido, diretamente dos céus, um homem maravilhoso que finalmente redimiu a sua infância difícil e a sua vida solitária. Conheço muito pouco a respeito de Deus, mas imagino que, se jogamos poquer com ele, a nossa aposta Sempre vem antes. Ficar esperando que a Graça venha antes de nossa aposta, é sempre uma bobagem. Apostamos muito, perdemos outras tantas vezes, para viver e aprender a jogar, como dizia a música antiga.
Eu estava teclando exatamente sobre isso no e-mail: como é difícil dar alguns sonhos como perdidos e seguir em frente. Como é difícil agradecer pelo o que já fizemos e temos, em vez de lamentar nas ceias de fim de ano o que não conseguimos fazer. Devemos sacrificar todos os sonhos? Como viver, então? Mas abrir mão, em alguns momentos, nos deixa numa suave e profunda leveza. Quem sabe?

domingo, 5 de dezembro de 2010

A Paz Invadindo Meu Coração

Esse título me ocorreu junto com a música belíssima de Gilberto Gil: "Vim parar na beira do cais/ Onde a estrada chegou ao fim/ Onde o fim da tarde é lilás/ Onde o sol arrebenta em mim/ O lamento de tantos ais". A música descreve o poeta se refugiando no final de uma tarde de briga, de sofrimento amoroso, do "Só a guerra faz nosso amor em paz". Pessoas sofrem pela presença e pela ausência de parceiro e de parceria. Não é incomum que a paz venha acompanhada da tristeza das batalhas, amorosas ou não. O fato é que somos sempre compelidos à guerra. Somos soldados do BOPE invadindo as favelas de nossas dificuldades, tentando vencer as batalhas que não vencemos: batalhas para perder peso, batalhas para encontrar o verdadeiro amor, batalhas para encontrar o conforto econômico e o futuro protegido, batalhas que nos consomem no dia a dia deixando sempre um gosto de que algo ainda não está bom no final da tarde lilás.
Uma das minhas birras com os livros de AutoAjuda (os terapeutas costumam torcer o nariz com esses livros que são como locutores de FM berrando aos nossos ouvidos que devemos ser felizes, magros, animados, positivos) é justamente essa coisa de jogar sempre para o amanhã o que poderia ser vivido hoje. Pense positivo e conquiste o carro, o namorado, a mansão de seus sonhos. Outro dia estava lendo um jornal e fiquei emocionado com uma matéria sobre a religião no dia a dia das pessoas; o repórter colheu um depoimento de uma senhora muito simples que havia se convertido ao Budismo e descobrira que poderia ser útil e feliz sendo uma boa empregada doméstica. Desde este insight imenso, ela cultivava uma atitude alegre e caprichosa em tudo o que fazia, tornando-se uma ótima profissional, além de realizada. Muita gente torceria o nariz diante desse texto dizendo que isso é estimular a alienação e o conformismo, as pessoas precisam querer crescer, a senhora deveria voltar a escola, ser empreendedorista e virar diarista, montar uma empresa de faxinas, fazer MBA e depois, sim, após o terceiro infarto do miocárdio, gozar da alegria da meta alcançada. Esses são nossos valores, ou a ausência deles, que nos tornam alienados de algumas verdades simples, que costumam ser as maiores verdades: não temos como antever e muito menos controlar o futuro. Gastamos muita energia com ele. Devemos ser imprevidentes, viver o limite, desprezar os planejamentos? Muito pelo contrário. Podemos planejar, cuidar e expandir as fronteiras de nosso futuro, é uma das vantagens de nosso Neocortex recém conquistado em nossa jornada evolutiva. Mas a serenidade da senhora, que transforma cada pequeno ato de limpeza e arrumação com algo transcendente é um exemplo do estado neurofisiológico que devemos praticar. Todo dia. Um estado que me lembra a paz, inavadindo meu coração.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Harry Potter e o Herói Ferido

Quando Sidarta Gautama atingiu a iluminação sob a árvore Bodhi, teve alguns momentos de dúvida, mesmo sendo o Iluminado: como transmitir ao mundo das pessoas perdidas na roda infinita de nascimentos e morte a Verdade que encontrara? Com certeza, as Quatro Nobres Verdades foram um método compacto e didático de ensinar o caminho da Libertação. Vamos nos concentrar na primeira Nobre Verdade: a natureza de nossa vida é o Sofrimento. A boa notícia é que podemos cuidar do sofrimento, alcançando através dele a nossa transformação.
Freud redescobriu essa Nobre Verdade quando descreveu a sensação de Falta, de insatisfação na base de todo ato ou pensamento humano. É como uma coceira que nunca termina, como uma sensação permanente de incompletude que impulsiona nossos melhores e piores atos.
Harry Potter tem uma cicatriz bem no topo de sua testa. Ela é o resultado do pior momento de sua vida, do qual nem se recorda: o arquivilão, Voldemort, tentou matá-lo quando era bebê, a sua mãe se colocou na sua frente e esse ato levou à morte de seus pais e à dissolução do corpo de Voldemort, que levou bem uns quatro livros para ir se materializando de novo. No último livro da saga, dividido em duas partes nos últimos filmes da série, J.K. Rowling vai descortinar a ferida de um grande personagem, Alvo Dumbledore. Aparece também as dores de um vilão que não era tão vilão assim, Severo Snape. Dumbledore, na sua fúria de bruxo brilhante e sedento de poder, causou não intencionalmente a morte de sua irmã. Snape perdeu a mulher de sua vida, a única que verdadeiramente amou, a mãe de Harry. Tom Ridle, que viria a ser o Lorde das Trevas, passou a sua infância em orfanatos. J.K. Rowling maneja com elegância a saga desses heróis, trágicos e feridos. Durante toda a saga, vemos os medos, as dores e a busca inconsciente de redenção de todos eles. Sucesso, poder, reconhecimento, reparação, tudo isso desfila na tela e nas páginas como parte intrínseca do drama humano. O futuro ameaçador, o medo desse futuro, perpassa também todos os episódios e todos os anos da vida desse personagem Harry Potter que, como nós, vai ter que tolerar a frustração e o medo de não cumprir a sua missão, falhar diante de seus amigos e diante de si mesmo. No momento de seu confronto final, Harry vai oferecer um sacrifício. Voldemort, que representa nosso Ego prepotente, tentando impor a sua vontade ao mundo, não cosegue entender o amor, sobretudo o amor de quem pode oferecer a própria vida para salvar a vida de quem nem conhecemos. Nesse momento, Harry ultrapassa a própria ferida e a transforma em via de transformação. Talvez este seja o caminho menos percorrido: o caminho de se encontrar, finalmente, a paz de espírito, depois de uma longa jornada.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Harry Potter e a Jornada Arquetípica

Há alguns anos atrás eu mandei um comentário para um site, o Sorria.com.br, na época muito assistido, sobre o primeiro filme da saga Harry Potter, a Pedra Filosofal. Choveram e-mails furibundos na minha Caixa de Entrada, sobretudo da população fundamentalista cristã amaldiçoando as minhas próximas gerações pelo que julgaram que fosse uma apologia à bruxaria, ao demoníaco, à tentativa de uma horrível autora inglesa de colonizar a cabeça de nossas crianças com mensagens maliciosas, etc, etc, etc. Na época eu não quis entrar em nenhuma polêmica de cunho religioso-fundamentalista, então li alguns e-mails, respondi alguns com uma ironia pouco acessível e toquei a vida, que tinha assuntos mais importantes no dia seguinte.
Estamos assistindo, após uma década, a saga finalmente se encerrando. Eu li apenas três livros da mesma, mas não perdi nenhum dos filmes. Os meus filhos cresceram assistindo a essa saga e não me consta que a mesma tenha despertado interesse por antigas bruxarias ou artes das trevas, como temiam alguns. Deve ser por isso que os não-bruxos são carinhosamente alcunhados de trouxas pela comunidade bruxa.
Harry Potter representa uma jornada de formação e transformação de um ser humano, da adolescência psíquica até a maturidade. Como muitas sagas de herói, esta começa com um Harry orfão e sofrendo abandonos e abusos de seus tios que detestam a sua origem e não cansam de tentar reprimí-la. Uma versão masculina da Gata Borralheira ou do Rei Arthur, criado como filho adotivo sem conhecer a sua linhagem nobre. Quando as suas capacidades de jovem bruxo começam a se manifestar, Harry é levado para Hogwarts, numa guinada completa de sua trajetória. Lá, ele descobre que seus pais não morreram em um acidente automobilístico, que ele é um bruxo famoso por razões completamente alheias à sua vontade e, o que é pior, traz a marca de ser ou não, o Escolhido, aquele que vai enfrentar o arquivilão Voldemort, que vai literalmente encarnando depois de um período dissolvido como um espírito mal.
A saga mostra o caminho de linhas tortas que uma psique deve tomar para entender a sua verdadeira natureza. Harry é modesto, incrivelmente corajoso e, vamos saber depois, é um joguete no embate de dois grandes e imbatíveis bruxos, Dumbledore e Lord Voldemort.
Harry vai descobrir ao final da saga que a sua busca, muito cara à psique masculina, de encontrar o seu Pai Simbólico e finalmente serví-lo, que ele projeta inteiramente em Dumbledore, vai terminar em um confronto final, um confronto em que ele estará só. Em nossa vida, esperamos que os pais, os mestres, as figuras de autoridade estejam lá para nos ajudar e dizer o que fazer na hora H. Como Harry, descobrimos que na hora do vamos ver, só contamos com a nossa voz interior e a nossa fé para prosseguir, mesmo na hora mais escura.
Vou voltar a esse tema em outros posts.

sábado, 27 de novembro de 2010

Sistemas de Aprendizagem (Amorosa)

Tem alguns livros que você encontra onde uma peça de um grande quebra cabeça finalmente se encaixa e algo se clareia. "O Cérebro Quântico", de J. Saltinover teve esse efeito para mim. Uma das pequenas e saborosas histórias que ele usa para ilustrar o aprendizado vem da vida de um grande físico, Richard Feyiman, que deu um livro de Astronomia de nível universitário para a sua irmã, na época no colégio. Ela gostou, mas fora criada numa família onde se acreditava que as meninas não tinham a mesma capacidade dos meninos em dominar disciplinas lógico-matemáticas. Uma variante sutil do "lugar de mulher é na cozinha". Como eu conseguiria ler esse livro? - perguntou. A resposta do irmão mudou a sua vida. Ele a aconselhou a ler o livro com atenção até a parte em que ficasse totalmente perdida. Desse ponto era só voltar e procurar o ponto onde estava parada, até conseguir superá-lo. Devia fazer isso tantas vezes quanto necessário, até dominar o livro. Alguns anos depois, a sua irmã terminava o doutorado em Fisica, contrariando as crenças familiares.
Acho essa pequena história mágica sob vários recortes diferentes. O primeiro, mais óbvio, é como alguém consegue, às custas de aprendizado, se afastar desses sistemas de crença que família, grupo social ou consciência coletiva dizem ser a verdade absoluta e, hoje em dia, "científica". As psicoterapias trabalham, em diferentes registros, com esses sistemas de crença e como modificá-los, mas não vai ser o tema desse post. A parte que me interessa é como ele descreve à perfeição os sistemas de aprendizagem. Repetição, repetição, tentativa, erro, retomada, revisão. Nossa pedagogia passou décadas abominando essa repetição, priorizando a capacidade de raciocínio e pesquisa. A má notícia é que o aprendizado continua precisando de repetição e exposição ao erro. Décadas de cultivo à Autoestima também vem criando gerações e gerações de pessoas com uma evitação quase fóbica ao erro. Errar compromete a minha autoestima. Portanto, isso é uma evitação à aprendizagem. O que isso tem a ver com a aprendizagem amorosa? Tudo a ver. As nossas meninas são educadas pelos desenhos e Barbies a serem boas meninas que o príncipe aparecerá para levá-la em seu cavalo branco, ou em sua Ferrari vermelha. Quando esse conto começa a se chocar com os muros da realidade e dos príncipes meia boca, nossas candidatas à princesa ficam perdidas no país das Maravilhas. Os sistemas de crença não resistem aos sites de encontro e aos amores expressos. Mas o aprendizado é mais difícil para quem persevera no conto de fadas. Se eu fizer tudo direito, vai dar tudo certo. Não é assim que funciona. Para criar sistemas de aprendizagem é preciso coragem, teimosia, repetição, tolerância à frustração. Conhecer pessoas, acreditar, desacreditar. Tentar de novo. Não adiante beijar o sapo em diversos ângulos, ele não vai mudar a sua pele gosmenta. É preciso repetir, aprender sobre si e sobre o outro, perder o medo do erro e do pior, a rejeição, real ou imaginária. Esse é um jeito de criar sistemas de aprendizagem, onde o erro faz parte, como na própria vida.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A Barreira de Silêncio

A Mitologia Grega tem vários temas muito caros aos terapeutas, desde o mais famoso, o de Édipo, secundado pelo de Narciso. Vários personagens da mesma emprestam o nome para síndromes e doenças. Um mito que me deixa um tanto quanto desconfortável é o de Tântalo, cozinheiro dos deuses do Olimpo. Tântalo, como muitos mortais, cobiçava o poder e a glória de atingir o panteão dos deuses e tentou fazê-lo de mais sórdida maneira que a Mitologia ousou contar: ele matou o próprio filho, cortou-o em pedaços e o serviu no banquete, almejando com isso ser elevado à condição de semi-deus pela participação na carne de sua própria carne. Os Deuses perceberam enojados o ardil e não comeram daquela comida, com uma exceção, se não me engano de Héstia, que era muito distraída e ensimesmada. Tântalo foi condenado a uma eternidade de fome e sede, no calor dos infernos, ao lado de uma árvore frutífera repleta de frutos e ao alcance de suas mãos, mas toda hora em que ele estica a mão para fartar a sua fome e sede, a árvore se movimenta, longe de seu alcance.
Eu me lembrei desse mito terrível para falar do sentimento de uma pessoa em pleno quadro de obsessão amorosa na época da Internet e das Redes Sociais. De todas as ilusões que nos castigam nesses tempos bicudos e apressados, a ilusão de que o Outro está ao alcance da mão nos colocam sempre na posição de Tântalo, sobretudo no caso dos Obsessivos Amorosos.
Já dissemos em outros posts que para o homem pós moderno, o silêncio virou uma barreira profunda, insondável para evitar o que mais teme, o vínculo. Circula entre a molecada uma camiseta com a imagem de um noivo e uma noiva com o sigelo título : Game Over. Em Fortaleza encontrei uma variante nordestina da camiseta, com o título mais simpático de "Lascou-se". Casamento significa estar fora do jogo, ser solteiro é estar dentro do jogo de colecionar mais um e outro caso, para não usar outro termo. Uma técnica para manter o jogo é sumir ou impor o silêncio. A mulher fica congelada dentro do silêncio, tentando interpretar cada sinal de fumaça, cada foto na rede social, cada pequena notícia do ser desejado que indique que ele vai voltar, vai romper o silêncio e o final feliz dos contos de fada vai se cumprir, com algum atraso. Como na árvore de Tântalo, o desejo arde e parece ao alcance da mão, ou ao alcance de um click. Mas é o silêncio que está por lá, sempre com alguns disfarces de "estou na correria", "já ia te ligar" ou um "que bom que você está aqui".
Tântalo, na sua ânsia de lograr os deuses para virar um semi-deus de forma ilegítima me lembra da nossa condição humana de fugir da própria dor, do sentimento de falta e abandono que nos acompanha. Acho que ele não sabe que, se parar de estender a mão em desespero, talvez o fruto caia em suas mãos, naturalmente. Mas há sempre aquela esperança de que, se eu usar a técnica da mão trocada, ou aparecer por acaso, ou tiver mais paciência, dessa vez, a árvore não vai se afastar.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Caminho

Vou começar esse post sem saber se vou mandá-lo ao blog. Vou pensar alto sobre um filme que eu assisti meio sem saber o que esperar, desses que se perdem nas prateleiras ou atingem um público específico. O filme é espanhol e chama-se "Camino", com o título sempre oportuno em Português de "Caminho de Luz", que dá um tom algo espírita para um filme ao mesmo tempo católico e anticatólico, ou anticlerical, no mínimo. É incrível como o diretor e o roteirista conseguiram manter esse olhar imparcial para uma história que traz uma mensagem profundamente espiritual ao mesmo tempo que lança um olhar implacável ao moralismo dos fiéis e padres retratados. Estou pensando alto e o leitor que não assistiu o filme não vai entender.
Camino é uma menina de onze anos, às portas da adolescência. Em diálogo hilário, a sua colega conta que está indo ao psicoterapeuta. Mas o que você tem? - pergunta Camino. "Tenho Pré Adolescência, mas quem sofre com essa doença é a minha mãe". Camino, como a sua amiguinha desbocada, sente as mudanças desse período, sob o olhar de sua mãe, retratada como uma carola intrusiva, empurrando livros de santos e de fé cristâ. Ela está se apaixonando por um colega de escola, chamado Jesus, apelidado Cuco. A sua irmã já está numa escola Opus Dei e seu pai, um personagem muito impressionante, fica amassado entre o amor que sente por essas mulheres e o sentimento de ser um estranho no ninho no meio de sua mulher, cunhada e filha falando de Jesus e santidade. Logo Camino começa a sentir os sintomas de dores no pescoço, que se revelam uma fratura de vértebra, depois surge um tumor agressivo, os esforços inúteis dos médicos até a morte da menina, como numa Via Crucis moderna. Sabemos ao final que a menina chamava-se Alexia e morreu em 1985. Está em processo de beatificação e a ela o filme é dedicado. No momento de sua passagem, um forte odor de rosas encheu o quarto. A equipe hospitalar emocionada, aplaudiu sua morte, como se percebesse a grandeza da passagem e da garota.
Ao contrário do que parece não recomendo o filme, não. Assistí-lo é uma experiência de angústia e impotência. O tempo todo esperamos que a menina fique boa, namore o moleque e mande às favas aquela cascata de terços. A mãe da menina, então, não sabemos se é uma mulher além do limite da santidade ou uma obsessiva grave, levando inconscientemente os filhos para morte, simplesmente pela vaidade do martírio.
O fato é que nessa época de livros de Autoajuda e busca permanente de satisfação imediata, de fantasias onipotentes de nossa tecnologia, Camino mostra o paradoxo, o mistério, as coisas que, mesmo desejando ardentemente, nos são negadas pela vida. Procuramos pelo final feliz, como já postei em outro texto. Não sabemos, entretanto, que o final feliz é um Mistério.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Chico Xavier

Bert Hellinger, criador da terapia das Constelações Familiares escreveu em tom de quase brincadeira que o Budismo nasceu do complexo materno de Sidarta Gautama, já que a sua mãe morreu após o parto. O Cristianismo teria nascido do complexo paterno de Jesus, rejeitado e quase abandonado pelo seu pai terreno, começando aí a sua busca pelo Pai verdadeiro.
Ontem assisti mais uma vez o filme "Chico Xavier" cuja vida também foi profundamente marcada pelas figuras femininas e sua ausência, também em tragédias prematuras. A família numerosa de Chico Xavier foi pulverizada pela morte de sua mãe. Algumas das cenas mais belas do filme saem justamente dos encontros entre o menino Chico e a sua mãe que aparecia em espírito para ele. As suas capacidades de medium eram prontamente punidas pela sua tia espancadora, uma carola aterrorizada pelo próprio medo e maldade.
Sem entrar no mérito dos fenômenos mediúnicos, embora seja de se notar que a vida e a trajetória de medium de Chico Xavier tenha se iniciado quando outro homem de capacidade impressionante brotava na mesma Minas Gerais, Eurípedes Barsanulfo. O que será que acontece naquela região do Brasil? Será que a energia cósmica tem grandes portais naquelas paisagens?
Chico, como muitos iluminados, teve a experiência da perda da mãe e da referência familiar. É claro que é muito mais comum que esse tipo de perda conduza ao esfacelamento de uma vida, não de iluminação. Chico começa a viver, desde o início de sua vida, o que os budistas chamam de bodhichitta, a experiência do amor absoluto pelo outro e a percepção do profundo sofrimento inerente à própria condição humana. Essa é a parte mais importante de sua vida, a epifania que ajudou-o a encontrar sua identidade espiritual. Não é incomum sabermos das trajetórias de pessoas que passaram por profundas e dolorosas perdas para encontrar o seu caminho. É como se essa perda criasse dois efeitos profundos: primeiro, a desconfiança saudável da própria vida. Não há nada que tenho que não possa perder, portanto não há sentido em buscar a perfeita defesa ou proteção. A nossa única defesa é saber que não temos defesa, então precisamos da graça. Mas isso é assunto para outros textos. O segundo efeito é o de procurar refúgio em outros estados de consciência ou de Ser. A neurociência vem demonstrando a ativação de áreas do Cérebro onde se percebem o Estado Unitivo, onde o que chamamos de Ego se encontra com um campo amplo de Consciência. Deus, Atman, estado de Buda, todas as religiões descrevem essa experiência de união, onde se apagam as diferenças entre Eu e Outro.
Uma coisa que muito me conforta vendo o filme mais uma vez é a percepção da conduta de Chico Xavier diante da infinita estupidez humana, a capacidade de entender e tolerar a capacidade impressionante de tolerar a incompreensão e o lixo que as pessoas são capazes de pensar e verbalizar, inclusive pessoas da sua própria família. O meu filho fez um paralelo com Gandhi ao ver o filme, com o que concordei. Chico desposou a pobreza e o não-revide como via de ação. Isso requer muuiita prática.

domingo, 14 de novembro de 2010

Perto de um Final Feliz

Estava lembrando de um filme antigo durante uma sessão. O filme é "O Fio da Navalha", com Bill Murray, acho que do final dos anos 70, começo dos 80, baseado no livro de Somerseth Maughan (não sei se a grafia está correta). O livro é sobre uma jornada espiritual de um homem, criado em meio à aristocracia inglesa que vai para a Índia, trabalha em condições de extrema pobreza enquanto lê os Upanishads, espécie de Bíblia hinduísta. Duas cenas desse filme me ficaram, embora já tenha visto há anos: numa delas, um homem simples e com traços claramente hindús tenta explicar para o personagem inglês como ele vivencia a sua relação com Deus. Ele está lavando pratos em um bote e ilustra que para ele, lavar aqueles pratos é como falar com a própria divindade. Em outra cena, ele volta para a Inglaterra do começo do século passado e se apaixona por uma antiga conhecida, que também passara por poucas e boas. Essa moça perdera o marido e filho em acidente e virou uma prostituta, tentava reiniciar a sua vida através desse amor reencontrado. Ela acaba assassinada por alguém de seu passado, no auge de sua felicidade. O personagem principal, crispado pela perda mas com uma profunda serenidade, afirma antes de partir que, depois de tudo o que passara e virado o mundo de ponta cabeça, pensou que aquele amor era uma recompensa. Agora ele sabia que não havia recompensa. E seguiu am frente, liberto do amanhã.
Essas cenas vieram ao caso por conta de uma vivência dolorosa de uma pessoa, que, depois de anos atribulados, finalmente encontrou um amor que parecia vivo, finalmente tudo o que esperava, imaginou e lutou tomava forma nesse amor que, depois de um período de explosão e outro de dúvida, acabou por desmanchar-se no ar, com muita dor, é claro. Não é difícil de pensar o quanto somos assombrados pelo Futuro, tanto ou mais do que o Passado. Sempre somos acalentados pela esperança de que vamos encontrar a recompensa, seja ela representada por um Príncipe Encantado ou pelo Reconhecimento ou Sucesso. Sempre esperamos que o Amanhã será pleno. Será que isso está errado? Certamente que não. Pobre de quem não tem planos, ou esperança. Mas as cenas de "O Fio da Navalha" me oferecem uma visão alternativa. Na primeira cena, o sábio hindú sente a Presença de Deus nos pratos que está lavando. Nossas máquinas de lavar pratos nos impedem de um encontro místico? Acho que não. A nossa mente presa ao futuro, sim. Lavar os pratos como um encontro profundo é estar em estado de Presença, no estado de Aqui Agora tão difícil para a nossa mente tagarela. Mais difícil ainda é entender as linhas tortas que a vida usa para escrever o nosso destino. O personagem de Maughan segue em frente, repetindo para si mesmo que esperar por uma recompensa é uma forma de prisão, uma forma de nos mantermos fixados em apenas um objetivo possível. Como no caso desse personagem, esta pessoa a quem me refiro seguiu em frente, sem ficar presa ao medo de novas decepções, ou lamentando que "as coisas não dão certo para mim". Ela segue porque a vida é feita do momento presente e da fruição do tempo.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A Dama do Lotação

Estava arrumando as prateleiras de livros em casa quando caiu um livreto com pequenas histórias de Nelson Rodrigues, dentre elas um pequeno conto chamado "A Dama do Lotação". Acho que Nelson foi nosso primeiro blogueiro, criando personagens imortais em pequenos textos e historietas como essa. A personagem principal é uma mulher de classe média carioca, casada e respeitável que começa a ter uma estranha compulsão sexual, a fantasia de todo usuário de transporte coletvivo: o ônibus lotado, a proximidade dos corpos, ela começa a se insinuar para um desses suarentos passageiros, a coisa vai num crescendo até que descem do ônibus e se fartavam da própria lascívia nos motéis da época, as "garçonieres", pequenos quartos e apartamentos para as escapulidas dos vetustos pais de família. Dia após dia essa mulher multiplicava as suas aventuras para depois voltar para casa, com o sonolento e desinteressado marido que a tudo ignorava em seu orgulho de machão.
Após um tempo, esse homem acaba descobrindo que sua mulher tem essa vida dupla e, ao contrário do homem da época, não decide lavar a própria honra em sangue. Não mata a mulher e nem chega a ser verbalmente agressivo, apenas resolve retirar-se da própria vida. O marido opta por ser um vivo-morto, abandona o emprego e fica prostrado, em casa, deitado sobre a mesa como um cadáver, com a vela nas mãos. A esposa, extremada, passa os dias com as suas aventuras sexuais mas à noite vela o corpo do marido-cadáver-vivo, rezando por ele de forma incansável madrugada adentro.
Nessas útimas semanas temos falado das obsessões amorosas, a distância amorosa como uma forma de dominação, a espera de um companheiro como um sofrimento e quase desespero. Há quase 50 anos o gênio de Nelson Rodrigues já captara essa tendência, vinda com a revolução sexual que na época só se insinuava: a mulher tentando encontrar e manter o homem através da sexualização prematura, as compulsões sexuais e a distância ressentida do homem, cada vez mais despido de seu desejo e virilidade, como o vivo-morto desse conto. A mulher espera e vela por esse homem, esperando por seu despertar.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Freguês

Já está circulando a piada de corintiano chegando para o freguês sãopaulino : "CPF na nota?". Impressionante o bloqueio emocional que se abateu sobre o time tricolor ontem. Parecia que o time estava triste, apático diante da expectativa de "Hoje termina o tabú", 3 anos e 11 jogos depois. No outro jogo em que o São Paulo levou um vareio de bola do Corinthians, no primeiro turno, o drama foi parecido: um time xôxo, com um buraco no meio de campo, vendo os adversários se multiplicando na frente da área. Sem mencionar o Elias, sempre ele, que já deve entrar rindo em campo quando o jogo é contra o São Paulo.
Não deixa de haver uma justiça poética nessa freguesia, que começou exatamente no pior ano da história do Corinthians, em 2007. Houve naquela época o impedimento da antiga diretoria contiana e assumiu Andrés Sanchez, que não acerta duas concordâncias na mesma frase mas cercou-se de gente muito boa e qualificada para botar ordem na casa, o que foi fazendo no decorrer dos anos. O São Paulo ganhou três Campeonatos Brasileiros no mesmo período e começou a sentir-se no paraíso. De lá para cá, as coisas começaram a se inverter, basta ver a quantidade de revézes que o São Paulo colecionou em relação à diretoria corintiana. Andrés Sanchez vocifera que a sua única derrota política para o inacreditável Juvenal Juvêncio foi a eleição do Clube dos Treze (que lhe valeu até um estádio, êta derrota maravilhosa). A derrota mais dolorosa, sem dúvida, foi a da Copa do Mundo. Juvenal, o hábil, o visionário, acreditou na palavra dos políticos paulistas,jurando fidelidade eterna ao Morumbi. Foi só o assunto chegar no horário eleitoral que todos acorreram ao Andrez proclamando o Itaquerão, a salvação da lavoura. Resta ao tricolor transformar o Morumbi em casa de shows. Quem lê essa postagem pela primeira vez deve pensar que eu sou corintiano, não é mesmo? Não sou não. Mas acho que há uma certa ironia de Juvenal Juvêncio terminar seu melancólico segundo mandato encastelado, com acessores pífios e esvaziados por seus arroubos e interferências, colecionando derrotas no campo e fora dele para o arquirrival. Lembra José Serra tentando ganhar a eleição sozinho, no peito e na raça, enquanto Aécio já costurava os acordos pós derrota. Eu sou o mais qualificado, gritava Serra. Somos o clube com melhor estrutura, balbucia Juvenal. O mundo está mudando rápido, gente, sobretudo para quem não consegue se debruçar sobre os própios erros e refletir. Quem sabe, até corrigir a rota que está errada.

sábado, 6 de novembro de 2010

Transfusão de Serenidade

O termo do título é de autoria de um teólogo e psicoterapeuta de quem eu gosto muito, Jean Yves Leloup. Ele a descreve em um momento particularmente dramático, quando estava à beira do leito de um paciente terminal, que sentia a proximidade da morte e se angustiava profundamente com o momento da passagem. Jean Yves descreve em um livro sobre os Terapeutas do Deserto que o paciente vai se acalmando na medida que o terapeuta faz uma transfusão de serenidade, tocando psiquicamente a alma turbada pelo vazio, até que o paciente começa a descrever uma paz interior, ausente de medo.
Lembrei desse trecho na apresntação de Flávio Kechanski, já citada na última postagem, no Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em Fortaleza. Para quem não me conhece, sou psiquiatra e psicoterapeuta de orientação junguiana. No congresso não há portanto nenhuma palestra que eu não sofra uma alfinetada. Entro na apresentação da Sociedade de Psicoterapia e o palestrante fala de um caso onde a paciente tinha um quadro depressivo que respondia mal aos psiquiatras biológicos desalmados, interessados em diagnosticá-la e entupí-la de medicamentos, sem perceber que a paciente estava presa numa simbiose familiar, os pais inteiramente dependentes dela, por isso os remédios não faziam efeito. O terapeuta atento e arguto começa a trabalhar na simbiose, a paciente melhora da depressão. O terapeuta mantém os medicamentos estabilizadores do humor, mas fala disso com um tom de quase displicência. Na outra sala, outro colega descreve como seu paciente estava perdido na selva de psicoterapeutas inoperantes e autorreferentes, até finalmente ser salvo pela medicação potente e heróica que seu psiquiatra introduziu, dando finalmente ao paciente a estabilidade de humor que necessitava. Percebe, caro leitor? É pancada de cá, pancada de lá.
Há alguns anos a Folha de domingo fez uma matéria de capa: Dr Freud ou Dr Prozac? A resposta é muito simples: Dr Freud E Dr Prozac. Todas as evidências mostram há muitos anos a eficácia maior do trabalho combinado, mas os xiitas de lado a lado continuam trocando suas farpas, suas acusações.
Na palestra de Flávio Kechanski, ele rechaçou com elegância a eficácia das terapias de base analítica em pacientes dependentes de crack nas fases iniciais de tratamento. Isso faz todo o sentido, pois o foco inicial é a desintoxicação e recontrução gradativa de uma psique despedaçada por uma das drogas mais potentes à disposição dos dependentes, o crack. Flávio destacou também a importância do uso de tratamentos baseados em evidências no tratamento desses casos graves. A psicoterapia de base analítica, subentende-se, baseia-se em sistemas teóricos nem sempre baseados em evidências. Podemos discutir isso em outra ocasião, mas também posso aceitar a colocação. Só que durante a sua apresentação, que, o leitor pode notar, gostei muito, Flávio descreveu uma enfermeira de sua equipe que consegue reverter quadros de agitação psicomotora jogando cartas com o paciente, até que ele consiga novamente centrar-se. Aí o raciocínio vai todo para as cucuias, para não usar outro termo. A enfermeira tranquilizando um paciente agitado apenas na base do carteado não está usando uma Terapia Cognitiva baseada em evidências. Está fazendo, isso sim, uma transfusão de serenidade, como fazem os bons psicoterapeutas. Seja por transmissão eletromagnética de afeto, seja por informação não local, seja pelo mecanismo metafísico pouco baseado em evidências e muito em vidências que caracteriza uma boa relação terapêutica.
Coloco isso apenas para abrirmos mais o leque de possibilidades quando um ser humano se debruça sobre o sofrimento de outro ser para tentar ajudar, tentar transfundir a serenidade que pode mesmo faltar para si. Se vai se usar mais ou menos a técnica, seja ou não a técnica baseada em evidências, o fato é que as transmissões não locais de alma para alma ampliam muito a nossa capacidade de ajuda. E de entendimento.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

I Miss the Drama

Uma coisa que é um tanto tradicional nas mesas e convescotes de um Congresso de Psiquiatria (isto deve acontecer nos outros também) é aquela ar blasé de todos os colegas sempre dizendo que foi tudo uma porcaria. Uma coisa do tipo: eu já sabia de tudo, não me trouxe nenhuma novidade. Bem, queridos colegas, depois que inventaram a Internet, não há como termos grandes revelações e lançamentos nos Congressos. Não é o Salão do Automóvel, onde lançamos remédios ou tratamentos de última geração. O chique mesmo é achar tudo uma bosta. Eu prefiro caçar coisas boas. Como sou um psiquiatra generalista, que trata de adolescentes até queridos velhinhos, acabo me interessando por um monte de assuntos diferentes, enquanto os colegas vão lá, apresentam o seu trabalho, atualizam as fofocas e vão para a praia.
Uma apresentação emocionante foi de um colega do Sul, Flávio Kechanski (espero que a grafia esteja correta) que fez uma apresentação do tipo "Como Eu Trato", no caso, como ele trata o usuário de Crack. A novidade foi a platéia, de quase 700 pessoas. Isto significa que, após décadas, o crack está chegando à classe média e aos consultórios, daí o grande interesse. Nesta apresentação havia duas novidades, pelo menos para mim. Todo mundo sabe, uma dificuldade que todo dependente químico tem é a hora da retirada da substância. No caso da cocaína, o day after é particularmente difícil, com a sensação do Crash (o som da palavra em Inglês já mostra o barulho das coisas desabando). Flávio mostrou um trabalho com resultados robustos de uma terapia de troca por medicamento estimulantes, como os usados para Sonolência Diurna. Na hora do Crash, ou da Fissura, esses medicamentos estimulantes diminuem os sintomas de retirada e dão mais gás para o paciente passar por esse vale da sombras. Isso tem implicações importantes. Uma coisa que a maioria dos dependentes, os dependentes de relacionamentos inclusive, é a sensação pervasiva de vazio, de falta de sentido que favorece a fissura, a busca incessante de algo que traga a sensação de se estar centrado, ou de que as coisas fazem algum sentido. Isso é uma coisa que nos constitue como humanos. A sensação maior ou menor de vazio, de ânsia, de busca por algo que nos aplaque, que nos traga sentido. No caso dos dependentes, essa ânsia está no miolo de todas as dificuldades de tratamento e recuperação. A sensação de que a Realidade é de um vazio opressivo que necessita de escape, de dissociação para que a dor não aumente demais. Achar um medicamento que diminua essa sensação abre muitas possibilidades de ajuda. Outro trabalho com dependentes de cocaína mostrava o Cérebro de um Dependente quando se falava no uso da substância. As áreas do Cérebro relacionadas aos pensamentos e aos desejos se acendiam como uma árvore de Natal. Como uma criança esperando pela festa,ou na fila da Montanha Russa. Foi como enxergar dentro do Cérebro os circuitos da fisssura, o que se acende quando desejamos desesperadamente algo. Muito viemos escrevendo sobre as Obsessões Amorosas neste blog, sobre os pensamentos circulares e as compulsões de busca do objeto desse amor. Será a dependência amorosa um tipo de cocaína? Ou pior: será que a compulsão de Busca\Frustração\Luto não é uma repetição compulsiva que busca a repetição da dor? No filme "O Casamento de Rachel", a história gira em torno da irmã dependente química que sai da internação para passar o final de semana no casamento de sua irmã, Rachel. Além de toda roupa suja que vai ser lavada nessa família, há uma cena em que Kimi, a irmã problema, vai até uma reunião de AA, e um dos caras fala que sente falta de uma coisa das bebedeiras: o drama. "Sinto falta do drama", dizia, das emoções que vem à tona nas bebedeiras, nos vômitos de ódio e rancor que sempre aparecem, além de dor e arrependimento depois. Será que uma das coisas que alimentam o ciclo de frustração e compulsão amorosa não é o Drama, não é chance de sofrer muito, chorar muito e sentir acolhimento (ou endorfinas) após a decepção?
Como o leitor pode ver, sempre tem coisas muito boas a se pescar em um Congresso.

sábado, 30 de outubro de 2010

Par Imperfeito

Ontem tive uma manhã psicoterapêutica no Congresso. Mas você é psicoterapeuta também, Marco Antonio. Para quem não sabe, a Psicoterapia é um bicho em extinção no ecossistema cada ver mais pobre da Psiquiatria, mas não vamos falar disso agora. Na primeira apresentação, um tiozinho do setor de Psicoterapia da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Ele falava da fantasia totalizante da Psicologia dos séculos anteriores, da necessidade de se construir um sentido para tudo, tudo participa do Todo. Não há como construir um saber totalizante, disse o Desconstrutivista da aula das 8 e meia, para todos os gatos pingados presentes, como eu. A apresentação de Ana Lia, da Sociedade Junguiana (SBPA) invoca a Física Quântica para dizer que somos todos conectados e interrelacionados no Todo. Jung estava certo, então. Já adianto aos caros leitores que essa pendenga será eterna, sempre haverá o defensor de que a evolução humana se dá às cegas e os outros que encontrarão um sentido nos movimentos caóticos da vida. Isso também não será nosso assunto. Qual será o nosso assunto, então, cara pálida? Obsessões Amorosas, é claro, só que agora com uma base filosófica (e neurobiológica) muito mais bacana.
Os homens tem uma grande vantagem atual nas relações amorosas: a vantagem de poder perder. Neurobiologicamente, o macho da espécie tem a obrigação de espalhar o seu semen pelo maior número de fêmeas possíveis. Quando uma relação não dá certo, ele se pergunta: qual será a próxima? Quantas fêmeas vou conseguir colecionar? Neurobiologicamente, a fêmea primata precisa encontrar o macho mais viável, com o melhor patrimônio genético. Quantos filmes e revistas femininas ganham fortunas com isso: como conseguir O Cara, como manter O Cara, como dispensar o Cara que não é O Cara. A mulher busca pela Totalidade, a sensação do encontro amoroso absoluto. Isso gera uma técnica de xaveco masculino quase infalível: você encontra uma mulher num site de encontro (já pensou nos nomes - "Par Perfeito", "Almas Gêmeas"? Parecem feitas por mulheres ou homens explorando essa fome de encontro absuluto), retomando, você encontra na balada ou no site uma mulher, qual o xaveco perfeito? Falar que o encontro é absoluto, claro. Você é maravilhosa. Você é a Mulher que eu estava procurando.Vamos fazer planos. Eu sou o cara que te conhece de outras vidas. Quando essa promessa desmorona na primeira dificuldade, e, acredite, dificuldade é o segundo nome de relação a dois, todo aquele amor totalizante desmorona como uma torre de papel sob a chuva. Restam lágrimas, decepção e um apego obsessivo ao que foi dito, ao que foi prometido. Como alguém pode falar tantas coisas, pode prometer tanto e daqui a dois dias, ou daqui a meia briga ou meia troca de farpas, simplesmente deixa de sentir? Um amor total que não aguenta meia hora de sereno? Cuidado, meninas. Cuidado com a fantasia de Pares Perfeitos, pois os pares são sempre imperfeitos, portanto, humanos. Sobretudo, cuidado com homens que prometem demais, ou não sustentam o que prometeram.Fujam deles e de seu bláblablá. Um homem se faz de atitude, não de palavras.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

De Fortaleza, com amor

O título é uma paráfrase de um título de filme que eu adoro. Do título, o filme eu não vi. Estou em Fortaleza na vigésima oitava edição do Congresso Brasileiro de Psiquiatria. Hoje dei sorte e assisti a boas mesas e debates. Por aqui todo mundo é Dilma, como já sabíamos que era. O chofer de taxi que me trouxe falou que o Lula iria dar as diretrizes para ela. Pensei nisso durante uma aula que eu entrei por engano, quando uma colega demonstrava a dificuldade de processamento auditivo de crianças vítimas de violência doméstica. Será que o Bolsa Família, originalmente um programa de incentivo à aderência escolar, transformado pelo governo Lula em programa de renda mínima e curral eleitoral, não vai ser um programa de estímulo à natalidade, aumentando a mesma nas camadas da população menos habilitadas a fazê-lo? Do que eu estou falando? Estou correlacionando pobreza, miséria e violência doméstica, que vão gerar crianças com várias e importantes dificuldades emocionais e intelectuais? Sim, é exatamente disso que estou falando. Ou melhor, os estudos sobre famílias disfuncionais falaram. Existem famílias disfuncionais fora das favelas e dos bolsões de pobreza? Claro que sim. Diariamente recebemos da mídia reportagens sobre Suzanes, Nardonis e outras monstruosidades construídas dentro dos lares, enquanto nosso Congresso (o Nacional, não o de Psiquiatria) tenta aprovar leis que proíbem as palmadas. Palmada no bumbum não pode, mas as crianças que chegam com politraumas nos hospitais de periferia não tem a proteção da lei.
Eu não compartilho do horror que a classe média costuma dedicar ao Lula e sua entourage. Tenho temores muito mais profundos, que na verdade todo o projeto petista seja catastrófico para construir um bem estar social num país que começa a ter força nas pernas. Tenho medo do simplismo que acredita que dar esmolas é um projeto factível para o país crescer e cuidar bem de suas crianças.

domingo, 24 de outubro de 2010

Somos todos Obsessivos?

Nas últimas décadas as pesquisas em Neurociência decifraram os circuitos que são ativados em nosso Cérebro Emocional quando estamos preocupados com alguma coisa e essa preocupação vai ganhando peso até virar um curto circuito obsessivo. Já falamos sobre isso nos Transtornos Dismórficos Corporais, quando uma idéia sai de nosso Córtex e passa por vias que vão fazer uma alça nas vias motoras e voltam por um sistema de relê para realimentarem a mesma idéia, geralmente no Córtex Frontal, onde tudo tinha começado. É quase como se pudéssemos observar a idéia, ou a preocupação, ou a obsessão indo e voltando do Cérebro Racional até o Cérebro Emocional sem nunca encontrar uma saída. Um labirinto neurofisiológico. Dessa forma, uma preocupação vira uma idéia fixa, uma idéia fixa vira um sistema obsessivo, um sistema obsessivo pode virar uma paranóia.
Hoje quase tudo nos cobra algum grau de obsessão. Vivemos na época do pensamento intencional, quase tudo o que fazemos tem um objetivo e um plano de ação. Pensamos, pensamos, normalmente no que nos falta, no que não temos, ou não realizamos, nossos objetivos não cumpridos. Hoje dei uma passada na região do Mercadão, região central da cidade de São Paulo, quando passamos pela rua e víamos deitados no meio fio os mendigos das ruas adjacentes a 25 de Março. O cheiro de urina, as frutas esmagadas no chão e os cachorros de rua deitados perto de seus donos, que cena. Pensamos e somos estimulados a pensar, no carro novo, nos projetos a realizar, nas dificuldades das relações e o cachorro de rua com o corpo encostado em seu dono, indiferente à miséria, confiante que a comida virá e o abrigo é lá mesmo.
Todos temos um nó na vida que não conseguimos desatar e nos ocupa muito tempo em preocupação, suor e lágrimas. Uma lacuna profunda na alma da mulher pós moderna é a ausência estudada do homem, que se subtrae dos relacionamentos como um pássaro que abandona o ninho para dominar a fêmea ou o jogo do encontro e desencontro amoroso. O homem sofre de seu medo e solidão, mas recua diante da expectativa feroz e da cobrança de uma mulher que quer a forra de séculos de opressão e desatenção.
Penso no cachorro do mendigo, na sua presença amorosa, na gratuidade da sua presença. Ele nunca vai padecer de uma obsessão amorosa ou profissional. Talvez porque ele não tenha objetivos que lhe tirem o sono sob as marquises.

sábado, 23 de outubro de 2010

Perto do Coração de Fogo

Tem uma passagem de um filme que adoro, "Melhor é Impossível" (mais um título bobo em Português, para um título em Inglês que seria "O melhor que fica", ou um slogan invertido do Tiririca, "Melhor que está não fica"), quando a personagem de Helen Hunt está dando uns amassos num cara, de repente ouve o seu filho doente chamando, vai acudí-lo, ele está passando mal e vomita. Quando ela volta para o rapaz, para continuar o que tinham parado, ele se suja de vômito. Ela limpa a sua manga, sem graça, o clima se desfaz, a transa para, o rapaz vai embora dizendo: "Too much reality", ou "realidade demais para mim". Lembro dessa cena quando ouvi um amigo me contando de um encontro agendado pela internet, através desses sites de encontros. Depois de alguns minutos de conversa agradável, a moça revela que aquele encontro era o primeiro depois de um longo tempo, após um longo e doloroso tratamento de uma doença grave que lhe custou os cabelos. Acabou o relato mostrando a pele sob a peruca. Quando ele passou a evitá-la, percebeu frases e twittadas relatando a decepção que os homens sempre acabam sendo. Melhor continuar sozinha, ela concluía. Ele acabou de contar, constrangido mas não culpado, como era desconcertante receber uma carga daquelas no primeiro encontro, sem ter chegado ao terceiro chopp. Too much reality. Qual a moral da história? Os homens são seres fantasticamente egoístas, que não são capazes de aguentar meia hora de sereno, recuando diante de uma criança doente ou de uma mulher que sobreviveu corajosamente a uma doença grave? Ou será que existe nesse "causos" uma trapaça que acaba caracterizando as obsessões amorosas? Se os relacionamentos são como um processo orgânico, uma pequena planta a ser cultivada, nada melhor do que um pisão atabalhoado para destruí-la. Qual o pisão dado pelos obsessivos amorosos? Despejar logo no início da relação, logo no começo da dança sutil de interesses e sedução um caminhão, uma betoneira de expectativas. Olha só, estou saindo pela primeira vez após dois anos de sofrimento e solidão, estou dividindo o meu segredo com você, se você me abandonar será o mais cruel e covarde dos homens, não vai conseguir sequer olhar para o seus olhos culpados no espelho. Quando o cara vai embora, seja porque está assustado seja porque percebeu a pegadinha e não vai morder a isca, as mensagens reiteram o imprinting maldito: "Os homens me decepcionam". Um dos aforismas do Tao te King lembra que se você se decepcionou é porque havia um Ego orgulhoso que se decepcionasse. Eu sei que a pessoa assolada pela obsessão amorosa não consegue conter o coração queimando de ansiedade para finalmente poder entregar todo o amor, todo o desejo represado por meses, anos. Mas esse discurso: "Estou só a tantos anos e você pode me resgatar, Príncipe do Cavalo Branco" faz os machos da espécie voarem para a rua ultrapassando rapidamente na corrida o carro de Rubens Barrichelo. Há um aforisma da Psicologia da Gestalt: "Eu não vim ao mundo para corresponder às suas expectativas. Você não veio ao mundo para corresponder às minhas", que deveria ser a verdadeiras jura de casamento, antes do pedaço da alegria e tristeza, saúde e doença,até que a morte (ou as expectativas) os separem.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Transtorno Obsessivo Amoroso - O Imprinting

Foi com muito pouco alarde que a Neurociência desvendou o Inconsciente Freudiano. Há mais de um século o neurologista de Viena descreveu quadros onde conteúdos gravados no Inconsciente emergiam, com sofrimento, na forma de sintomas. Freud dedicou toda a sua vida, carreira e credibilidade àquela idéia original: fragmentos de memória emocional podem ficar offline em sua Consciência para emergir de forma geralmente inesperada ou gradativa, mas quase sempre, fazendo estrago.
Os mecanismos de Memória, notadamente a Memória Emocional, começaram a ser progressivamente esmiuçados desde a década de noventa, chamada pelo presidente Bush (o pai) de Década do Cérebro. Uma região do tamanho de uma ervilha, a Amígdala, situada na região de contato e relê de todos os nossos circuitos emocionais, foi a principal suspeita pela potencialização de nossa Memória do Medo. Foi descoberto um circuito nas profundezas de nosso Cérebro Emocional, onde a Memória é gravada sem a participação da consciência do proprietário. Bingo. Olha aí o Inconsciente descrito por Freud. Uma lembrança traumática de um cachorro avançando em sua infância podem virar um Imprinting em seus sistemas de Memória, gerando medos irracionais no adulto. Algumas frases, também.
Estou dando esse esboço teórico para que possamos entender a importância das frases e das imagens deflagradoras em nossa Memória Emocional. Como os circuitos são profundos, eles podem reverberar e determinar muitos comportamentos antes que a pessoa se dê conta. No caso desse quadro, que em tom de brincadeira (mas que não é tão brincadeira assim) chamamos de Transtorno Obsessivo Amoroso, isso também vai ocorrer, algumas vezes de forma traumática. Muito do comportamento obsessivo e até perseguidor de suas portadoras derivam de uma fantasia profunda, gravada nesses circuitos emocionais: a idéia que, se não for perfeita, o interesse do homem pode se desvanecer rapidamente. Procurando mais no fundo do Sistema de Crenças podemos encontrar um Imprinting, uma frase gravada profundamente nesse banco de memória, que diz assim: "Com esse seu gênio, nenhum homem vai querer ficar com você"; "Desse jeito, você vai acabar sozinha"; " Quando você casar, vai ver o que é bom para a tosse". Quando o menor sinal de desinteresse e abandono surge, todos os alarmes, todos os dez núcleos da Amígdala disparam simultaneamente: "Perigo! Estou sendo abandonada!", gerando um comportamento inicialmente furtivo para depois alcaçar graus cada vez maiores de desespero e de luta para evitar o abandono temido e claro, já antevisto pela frase deflagradora: "Eu não valho a pena" ou até pior "Os homens não valem nada". Tudo isso terminando em outra manifestação freudiana de neurose: a repetição. De um jeito ou de outro, se não trabalhado, esse curto circuito emocional vai se repetindo de tentativa em tentativa de relacionamento. E haja caixa de lenços de papel e de chocolates.
Os imprintings são profundos e sua transformação, lenta. Há muito as psicoterapias procuram por formas de acelerar a cicatrização dessas feridas emocionais e a construção de sistemas de crença menos carregados de dor. Vamos falar um pouco sobre isso nas próximas postagens.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O (Quase Amargo) Regresso

O assunto da semana no consultório foi o resgate dos trinta e três mineiros da mina de San Jose, no Chile. A vida virou um reality show, e o processo todo de descida ao ventre da terra para trazer os renascidos trabalhadores, o choro do filho e a patriotada brega de bandeiras e gritos futebolísticos de Chi-chi-chi/Le-le-le forneceu a todos uma imagem de esperança no ser humano e sua capacidade de reagir a situações extremas. Hoje já começam a circular os podres dos mineiros e o delicado tecido social que se formou sob a terra, onde, como sempre, o melhor e o pior da natureza humana se manifestam nessas situações.
Uma cliente ficou particularmente tocada pelo episódio, que só ao ser mencionado já mareja os seus olhos. Ela me trouxe um belo artigo publicado na Folha de ontem, de autoria da psicanalista Marion Minerbo, um primor de lucidez e pegada analítica. Entre outras coisas, Marion destacou o duro caminho de volta à vida comum que esses homens experimentarão quando o clima de Big Brother arrefecer e o episódio for caindo no esqueciemnto dos quinze finitos minutos de fama que terão direito.
A cliente em questão também passou nesse ano por um experiência extrema: o diagnóstico e tratamento de uma doença oncológica, um Câncer de Ovário, recidivado após quatro anos. Como os mineiros chilenos, ela ficou sequestrada de sua vida normal, com cirurgia extensa e quimioterapias em seguidos e dolorosos ciclos. Ela compreende muito bem como é difícil o caminho de volta, como é angustiante rever as pessoas que vão solicitá-la da mesma forma, pedir as mesmas coisas, reclamar das mesmas mesquinharias que compõe o nosso dia a dia. Ela não vai ter a imprensa à sua volta destacando o heroísmo das pessoas que passam por essa experiência, assim como a equipe de resgate, a incrível equipe de terapia oncológica, não vai entrar e sair de cápsulas subterrâneas sobre os aplausos e as orações de todos nós. Eles vão continuar lutando pela vida, que foi um dos pontos de emoção profunda no resgate da mina de San Jose. Ela vem voltando para o dia a dia e, como os mineiros, vai sentir falta dos dias de angústia onde lutava pela própria vida. Pois, como destacou o artigo de Marion, as experiências extremas nos colocam diante das coisas que valem (e não valem) a pena nessa vida.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Perder por medo de perder

Tem um livro de que gosto muito e às vezes tento imitar, que é o "Superfreaknomics'. No seu último capítulo os autores descrevem experimentos de microeconomia feitos com pequenos micos capuchinhos, onde um gaiato resolveu pesquisar o que aconteceria se introduzisse na comunidade dos macacos o uso de moedas. Os nossos pequenos primatas, portadores de cérebros pequenos e interesses restritos ao sexo e a comer (um bom modelo experimental para estudar o Cérebro dos Homens, então) recebem moedas que podem trocar por guloseimas. Uma parte do experimento serve para nossa discussão sobre Transtorno Obsesssivo Afetivo: a evitação da perda. Os micos tinham acesso aos balcões de dois pesquisadores. No primeiro, ganhavam uma uva. O pesquisador fazia um pequeno sorteio de cara ou coroa. Se desse cara, por exemplo, o mico recebia outra uva. É um modelo de ganho. Em outro balcão, outro pesquisador dava duas uvas e procedia ao mesmo sorteio. Em caso de coroa, o macaco perdia uma das uvas. É um modelo de perda. Qualquer macaco com noções básicas de estatística sabe que a tendência era de fornecer o mesmo número de uvas nos dois balcões, sem precisar pagar mico. Mas é óbvio que os pequenos primatas preferiram o modelo de ganho. A explicação vem de um traço profundo em nossa neurobiologia: a aversão pela perda.
As queridas portadoras do recém nomeado Transtorno Obsessivo Amoroso sofrem primordialmente dessa falha: a aversão pelo abandono. Quando o nosso candidato a Romeu começa a usar a tática do sumiço, prima irmã da tática do silêncio, todos os mecanismos de alarme são acionados para evitar a perda, normalmente com resultados opostos aos desejados. Pedir atenção, discutir a relação, surtar, questionar, tudo isso deriva do sistema de evitação de perda, o que vai deixando o macho da espécie progressivamente arredio. Nossos machos jogam com um modelo difícil de se lidar, que é o "posso ter, mas posso procurar em outra freguesia". Nossas candidatas precisam aprender a jogar o "vamos ver se você tem boas moedas, garotão".
Essa, meninas, é a lição 1: joguem como se o único perdedor possível fosse o pretendente. Não é fácil, mas está na hora de parar de chorar na frente de uma caixa de chocolates, esperando pelo telefonema que não vem.

sábado, 9 de outubro de 2010

Transtorno Obsessivo Amoroso

O roteiro é o mesmo, repetido em diferentes personagens. Menina encontra menino, o menino gosta da menina, eles se apaixonam, trocam juras, fazem planos. A menina entende que a longa jornada em busca do Mr Right (também conhecido como Príncipe Encantado e Encantador) finalmente chegou ao fim. O clima de idílio dura um tempo, o rapaz continua fazendo planos: casamento, filhos, companheirismo. De repente, diria o poeta- de repente não mais que de repente - alguma pequena rachadura aparece na moldura: uma briga, um desencontro, um malentendido. Uma técnica muito simples que os meninos utilizam: sumiços sem nenhum contato. Dois, três dias sem ligar. A menina fica em dúvida: devo ligar? Isso vai parecer uma cobrança? Desculpas não faltam: estou estressado, meu chefe está me matando, minha décima segunda ex esposa está tentando me prender. Silêncio. O que está acontecendo? Respostas evasivas. A menina se cerca de justificativas. Sente cheiro de fumaça, mas pode ser o vizinho queimando o churrasco outra vez. Ele está perdendo o interesse? Quanto tempo eu devo esperar? Mas não dá para esperar. A menina vai atrás, quer saber, quer ouvir: mas você me prometeu tanta coisa, mas você disse que me amava. O menino usa uma arma de destruição em massa de meninas: a dúvida. Estou em crise, minha ex me procurou (a décima terceira), está indo muito depressa, preciso de um tempo. A menina é tomada de fúria. Liga quinze vezes, aparece na casa, arremessa o celular na parede, tenta recuperar o contato a qualquer custo, tenta transar no elevador, aparece no trabalho. O menino, constrangido, já a classifica: ela é surtada. O que aconteceu? Eu não prometi nada. Lágrimas. Luto. Vergonha. E o que é pior, a menina fica pensando que a culpa é dela. Eu que surtei. Pus tudo a perder.
Vamos dedicar algumas postagens a esse quadro clínico que vem tomando proporções epidêmicas: os Transtornos Obsessivos Amoros, doença que afeta principalmente as meninas que se envolvem com meninos com Deficiência Congênita de Testosterona. Não percam.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

O Homem e sua alma

Na última postagem eu citei o rapper Mano Brown, que sugeriu à candidata Dilma, antes de iniciar a campanha, que ela "falasse com a alma". Os marqueteiros de campanha devem ter rido muito da sugestão. Tantos e tantos estudos de comunicação eficaz e persuasão e vem esses poetas com a tal "linguagem da alma". A alma cabe numa embalagem colorida de sabão em pó. Muita gente entretanto identificou na candidata Marina Silva uma fala proveniente da alma, daí a sua arrancada final, que se deu de forma quase inesperada. Agora estão os marqueteiros de Serra e Dilma num corre corre frenético, tentando mapear o eleitorado de Marina e como cativá-lo. Procurem pela alma, rapazes. Está bem aí, perto da embalagem de Omo. Procurem que vocês vão achar.
Quando eu era moleque, lia quase tudo o que me caía às mãos, de revistas femininas a livros do Sidney Sheldon que a minha mãe lia escondido. Trago essa mania de fuçador até hoje e fico fuçando em tudo, de Scientology até Terapia de Vidas Passadas. Leio até Psiquiatria de vez em quando, embora isso ainda me desperte umas sensações intestinais diante de alguns autores. Os livros de Auto Ajuda eu escondo na escrivaninha, que aí já é demais para um psiquiatra respeitável. Bom, estava eu lendo um livro sobre Terapia de Vidas Passadas, que usam técnicas de visualização que o psiquiatra suiço Carl Jung chamava de Imaginação Ativa (técnicas de relaxamento e a indução de imagens espontâneas da psique do paciente). O autor do livro descreveu uma Regressão onde o paciente transportou-se para vinte séculos atrás, no exato momento em que um rabino da Galiléia chamado Jesus estava sendo crucificado. O paciente notou horrorizado que naquela suposta vida passada ele era um dos centuriões romanos que disputavam nos dados quem iria ficar com as roupas e os poucos pertences daquele rabino metido a messias. Quando foi trazido de volta da vivência, o paciente, que era um bem sucedido médico, começou a chorar e a elaborar que estava realmente crucificando o Cristo em sua vida, na medida em que rendera a sua capacidade de curador a ter dinheiro e fama, apenas. Ele era o centurião comercializando a própria alma. Peço desculpas aos terapeutas de vidas passadas, sobretudo aos mais sérios que navegam no mundo interno das pessoas, mas essa vivência não foi de nenhuma vida anterior. A psique do paciente produziu uma imagem suficientemente forte para chamar a sua atenção. Ele sofria de insônias e dores inexplicáveis, já passara por vários profissionais e devia estar realmente muito desesperado para submeter-se a uma regressão. Ele buscava uma forma de se reconectar com o núcleo de seus sentimentos e de quebra com uma verdade essencial da Medicina, que são os pacientes. Parece estranho, mas o médico acaba coisificando a relação com o paciente para se proteger das cobranças e das expectativas supra humanas nele projetadas. Isso pode ir secando a sua alma e a sua prática até virar um processo lento e implacável de adoecimento.
É por isso que recomendo aos candidatos que tranquem os marqueteiros em alguma sala de reunião e busquem um discurso que venha mais de dentro da alma. Mesmo que alma seja uma palavra usada para vender iogurte, em nossos tempos apressados.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Personas Eleitorais

A palavra "Persona", assim como a sua derivada, personagem, derivam das máscaras usadas no teatro grego (o que deveria ser uma economia para os produtores, na hora de escalar o elenco). Como no filme "O Máscara", bastava vestir a nova máscara para incorporar um novo elemento cênico e personagem. Todos nós temos Personas. Elas nos garantem os papéis sociais e as funções que desempenhamos na vida. Lembro de um amigo, ótimo terapeuta mas que gostava de se vestir de um jeito assim meio bicho grilóide. Uma paciente que lhe foi encaminhada nunca mais voltou porque ele estava vestindo "um mocassim sem meias", ou seja, ela esperava uma Persona um pouco mais séria, um barbudinho com cavanhaque e terno. Acho que o encaminhamento não foi bem feito, ainda bem que não fui quem o fez. O fato é que compomos uma Persona que facilita nossas trocas com o mundo. Algumas vezes a identificação com a Persona é tão maciça que, ao vê-la removida,não resta nada em seu lugar. Por exemplo, um grande executivo que da noite para o dia perde o emprego e todo o seu aparato de poder e se entrega ao alcoolismo, como alguém que se desconectou da própria vida ao ver retirada a sua Persona.
A política, desde a Ágora dos gregos, é sem dúvida um jogo de Personas. Quando o Lula e Dona Marisa requebram no Arraiá da Granja do Torto, estão desempenhando seus papéis de casal "gente como a gente" que aproxima o Poder do cidadão comum.
Vou falar nessa postagem da Persona da Sra Dilma Roussef. Logo na Pré-Campanha, lembro de uma entrevista de um rapper, se não me engano Mano Brown dos Racionais MCs, que dizia que seu voto seria dela, mas que Dilma deveria "falar com a alma". Acho que ele mudou o seu voto. Dilma parecia aquelas alunas gordinhas declamando nervosamente um jogral no grupo escolar. Fala ensaiada e decorada, riso de plástico. As manchetes hoje dizem que ela saiu incólume do debate. Não saiu não. A sua estratégia de chamar Marina Silva para a conversa o tempo todo (já é uma aproximação pensada para um possível segundo turno?) colocou em evidência a diferença entre ambas de uma forma que meus filhos adolescentes puderam notar: uma com o discurso ensaiado, vazio, sem conteúdo emocional e a outra convicta, com a autoridade moral da sua pele lanhada no trabalho dos seringais. Eu voto na Marina? Não. Voto no Serra, mesmo com a sua Persona igualmente lamentável de mestre escola dando aula na primeira turma do Mobral: falinha doce, didática, infantilizadora do eleitorado.
Dilma deve melhorar com o tempo. Mas sempre que eu a vejo falando, ouço uma musiquinha da minha infância: sou a Mônica, sou a Mõnica, dentucinha e sabichona/ Sou a Mônica, sou a Mônica, tão teimosa e tão mandona...

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Neymar e a Hybris

Vamos fazer uma pequena pausa de nossos textos mais "psiquiátricos" para meter o bedelho no futebol (aliás, esse deveria ser o nome do blog: "Metendo o Bedelho"). Vamos voltar um pouco no tempo, quando o gorducho presidente do Santos, Luís Álvaro, do alto de uma empáfia marqueteira anunciou triunfalisticamente que o menino prodígio Neymar não iria ao Chelsea, mas que basicamente ganharia a mesma coisa no Santos, através de um engenharia marqueteira semelhante à usada para trazer Robinho. Lembro da frase cuidadosa e bregamente preparada para a ocasião: "Desaparece o craque, surge o Mito". Mesmo sãopaulino, senti um profundo arrepio na base da espinha. Transformar um moleque que mal se firmou como um bom jogador em um Mito? Isso, com certeza, é uma Hybris. Mas o que significa esse palavrão?
Na Mitologia Grega, a Hybris é uma espécie de ruptura entre homens e deuses, causadas pela suprema vaidade dos primeiros, sempre invejosos dos poderes dos habitantes do Olimpo. Podemos lembrar do destino de Prometeu, um titã que se julgou capaz de ludibriar o próprio Zeus, o mais poderoso dos deuses do Monte Olimpo. Prometeu fez a oferenda de um touro magnífico aos deuses, mas subtraiu toda a parte da carne e deixou aos seres divinos apenas montes de pele e gordura. Logo depois roubou o fogo dos deuses para dar aos homens, sendo condenado a uma eternidade de sofrimento, amarrado a uma rocha com um corvo devorando o seu Fígado.
Quando um dirigente joga nas costas de um adolescente o peso de ser um Mito, com certeza está cometendo uma Hybris, isto é, uma desmesura, um ato que necessariamente vai chamar por uma correção. O técnico do Atlético Goianiense, René Simões, deu o brado: "Estamos criando um monstro". De Mito a Monstro, essa é a trajetória de quem é equiparado aos deuses. Hoje o twitter está repleto de ofensas e os jornais estampam o título: "Perdeu, Playboy". Mano Menezes deixou de chamá-lo. Juca Kfoury, nosso maior jornalista esportivo (o que não o impede de escrever as suas asneiras) discordou, achou que Mano estava sendo solidário com o colega demitido pelo Santos, Dorival Júnior. Não, senhor Juca. Na Mitologia Grega, toda vez em que o mortal tenta ultrapassar as suas limitações humanas e equipara-se aos deuses, aparece a deusa Nemesis para devolvê-lo à sua miserável e falível condição humana. Mano está devolvendo Neymar à sua condição primeira: não é um deus, não é um mito, é apenas um bom e promissor jogador de futebol. Vai doer um pouco no Fígado, mas não vai ser uma punição tão dura como a de Prometeu.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Transtorno Dismórfico Corporal - Abordagem

Vou parar de incomodar os meus poucos seguidores desse blog com esse assunto. Foi ótimo escrever sobre o tema, me ajudou a organizar as idéias para a aula no Projeto Open, voltada para jovens cirurgiões plásticos, amanhã. Para finalizar essa série, vou voltar aos parâmetros de atividade e psique humana que emprestei da Cientologia no início desses textos: Doingness, Havingness e Beingness. Para que voltarmos a isso?
Agora pouco eu conversava com uma cliente, ex modelo que, de cabeça me citou meia dúzia de colegas com diversos graus de Transtornos Dismórficos Corporais. Uau. Realmente podemos estar diante de uma epidemia ( no caso das modelos, uma doença ocupacional?) A obsessão com a imagem, com O Havingness - quem tem o melhor corpo, quem é mais jovem, espelho, espelho meu, vai criando esse circuitos reverberantes de Preocupação-Ruminação-Obsessão que provocam tragédias de procedimentos desnecessários, depressões e afastamentos de pessoas bonitas, bem sucedidas, no auge da carreira, simplesmente pelo medo da feiúra, medo do ridículo, medo da exclusão. Bem sabemos que vivemos em uma sociedade onde o medo da exclusão é a moeda de troca para escravização de todos. Como abordar esses diferentes estágios de medo?
O médico precisa zelar pelo Beingness. Sabemos que a ênfase é no Doingness: "Eu vi os seios que você fez na minha amiga, ficaram lindos"; "Ouvi falar que o senhor é um verdadeiro artista". O paciente procura aparentemente por um Doingness,a destreza técnica do profissional, os resultados obtidos, o Fazer e o Ter do médico: qual o resultado, quantas pessoas conhecem, ele é famoso? Na hora do "vamo´ver", entretanto, o que vai estar em jogo é o Beigness: quem é o profissional, quanta tranquilidade vai conseguir passar, ele será um capitão do barco que vai zarpar no Pré Operatório e vai concluir a jornada na alta? O paciente quer Ser alguém, quer um médico que lhe transmita um Beingness. Quando ocorrem acidentes de percurso, como sintomas afetivos, ansiosos ou dismorfofóbicos, podemos resumir a abordagem nas "Quatro Nobres Verdades" a serem transmitidas ao paciente:
1a Nobre Verdade: "Há uma área do seu Cérebro que está hiperativa". Viu que legal? Substituimos o "É psicológico" ou o pior: "Isto é coisa da sua cabeça" por uma frase que dá ao paciente uma base orgâncica e não "imaginária" para o seu sofrimento. Já cansei de ver o paciente sair muito melhor do consultório só pela sensação de alguém sabe o que ele tem e o que fazer com aquilo;
2a Nobre Verdade : "A sua condição tem tratamento". Melhor ainda. A mensagem é mais clara ainda. Além do quadro ter uma base orgânica, ela é abordável clinicamente e o seu médico de referência pode ajudar, ou chamar alguém que ajude.
3a Nobre Verdade : "O Tratamento de sua condição consiste em reduzir o Hiperestímulo do seu Cérebro Emocional". Refinamos ainda mais a mensagem. Vamos frisar a estratégia dessas três mensagens:
A Olhe o problema de fora. Não é você que está pensando, é alguma coisa dentro de você que está te deixando hiperestimulado(a);
B Esses pensamentos são um sistema que se retroalimenta de si mesmo, precisamos cuidar disso para lidar com esses sintomas;
C Estamos (eu e você) capacitados para lidar com isso.
Genial, heim? O Beingness do médico e do paciente estão valorizados e prontos para debelar a crise. Finalmente:
4a Nobre Verdade: não é a Senda Óctupla do Budismo, mas a Senda Trina, a saber:
A Atenção Correta: preste atenção aos pensamentos até que eles vão diminuindo. NÃO BRIGUE COM OS PENSAMENTOS, NEM TENTE CONTROLÁ-LOS. Apenas preste atenção, até que eles vão encolhendo, aos poucos.
B Ação Correta; use medicamentos que diminuam o estado de hiperexcitação, como tranquilizantes que vão da Passiflora aos Benzodiazepínicos, além dos Inibidores da Recaptação da Serotonina.
C Esforço Correto: mude o foco de seus pensamento. É proibido ir ao espelho,cobrir o rosto, cutucar a ferida ou manipular a região objeto de preocupação. Faça coisa que lhe agradem, refocalize os pensamento, após praticar os passos anteriores da nossa Senda Trina.
Ufa, é isso. Uma boa aula para nós, então.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

A Idéia Inoculada

Nas primeiras cenas do filme de Christopher Nolan, "Inception" ( em Português - " A Origem "), Leo Di Caprio está apresentando uma idéia para um grande executivo,explicando para ele que o "microorganismo" mais resiliente e que nada consegue eliminar é uma idéia. A idéia inoculada na mente de uma pessoa é como um parasita que passa a crescer e a se multiplicar, gerando um sistema que pode ganhar vida própria. No decorrer do filme percebemos o quanto aquele personagem descobriu de forma trágica a verdade dessa afirmação. Inocular uma idéia pode ser mais perigoso do que um vírus ou um parasira letal. Nas últimas postagens estamos delineando esse processo em que uma idéia pode virar um sistema, o sistema uma doença, a doença uma perda de contato com a realidade.
Uma olhada no espelho pode plantar uma idéia: " o meu nariz está torto"; "A minha boca é desproporcional"; "Algo está diferente comigo". Uma idéia assim pode crescer e se multiplicar ou ficar latente, presa entre as nossas redes neurais. Vou dar um exemplo: uma impressão vaga que gravada como idéia, do tipo: " Esse filho não é meu, mas se parece com fulano". O homem passa a ter um comportamento reticente com relação ao bebê. Dias depois, se mostra irritado com o choro do mesmo. A esposa começa a notar que ele chega mais tarde em casa e pouco quer conversar. Esse processo, indo num crescendo pode bem terminar em tragédia, mas o mais comum é que essa idéia venenosa fique anos dentro da psique de seu propietário, gerando mágoa, distância, doenças. Parece estranho, mas uma das tarefas de uma boa psicoterapia é ir pescando essas idéias venenosas e colocando em perspectiva o sistema de dor que se acumula em torno dela.
No caso dos Transtornos de Imagem Corporal, esse processo pode ser tão difícil como controlar uma infecção resistente. A menina com Anorexia fica muito ofendida quando lhe pedem para comer, afinal de contas, já está imensa de gorda em seus quarenta quilos. O paciente com Transtorno Dismorfofóbico pode sair chorando de uma consulta onde o m´dico pede uma avaliação psiquiátrica antes da cirurgia, só porque é a quinta vez que se apresenta para uma Cirurgia de Nariz. As famílias olham impotentes para aquele sistema de Crenças que se multiplica como um Câncer na vida do ente querido, que se recusa a ouvir qualquer coisa que contradiga a sua visão do mundo. Imagine um cirurgião plástico, que sempre achou as aulas de Psiquiatria da faculdade um bom período para dar um pulo na Atlética. O que fazer com um caso desse? Não tem jeito é ele muitas vezes que vai ter que explicar ao paciente esse processo: uma idéia foi inoculada lá, ela passou a ser uma preocupação, depois foi virando um incômodo para em seguida começar a invadir a imaginação da pessoa em momentos que nada tinha a ver com a idéia em si. Depois de um tempo já não dá para dormir sem pensar por uma hora naquela idéia, com mil e um planos de como lidar com aquele problema, que estratégias assumir para equacioná-lo. Após alguns meses, a pessoa experimenta uma crise de ansiedade quando tem que olhar no espelho. Antes que os colegas fujam desesperado: podemos lidar com essas idéias. podemos cuidar delas. Aguardem nossos próximos capítulos para ver como.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Anorexia, Vigorexia, Transtorno Dismórfico: Patologias de Imagem?

Há um livro de que gosto muito, "Superfreakonomics", onde os autores descrevem várias curiosidades do mundo dos Economistas e como eles tentam entender o mundo através de estatísticas e algoritmos matemáticos/computacionais. Em dois capítulos diferentes eles discutem os malefícios e os benefícios da Televisão na sociedade humana. Primeiramente, um dado estarrecedor: a chegada da TV em diferentes pontos do país, no caso, Os Estados Unidos, a partir dos anos 50, fez disparar os índices de violência e criminalidade nos estados onde os programas de TV e a venda de aparelhos foi mais significativa. Isso numa época em que as crianças podiam ligar os aparelhos sem dezenas de opções de tiros, corpos mutilados e zumbis sanguinários devorando gente. Esse aumento da criminalidade muito provavelmente não se deu pela força sugestiva das imagens, mas pelo aguçamento do desejo de consumo gerado pelas imagens da propaganda e do merchandasing nascentes. Compre, compre, compre. Queira, queira, queira. No auge da Crise Mundial de 2009 Lula pedia à classe média para continuar comprando. Essa é a nova utopia humana: comprem, consumam, devorem.
Voltando ao início de nossas postagens sobre o Transtorno Dismórfico Corporal, você tem um Ser definido pelo o seu Fazer e o seu Ter. Eu Tenho, logo Existo. A sociedade de Hipermídia passa a tornar vital a todos um bom lustro em nossas Personas: qual a nossa aparência, que carro dirigimos, em que revistas aparecemos. Temos uma fração de eleitos sorrindo na Revista Caras, definindo um padrão: Seja Rico e Bonito ou Pereça Socialmente. O Inferno é o Exclusão.
As meninas chegando à adolescência passam a serem pressionadas por padrões de beleza inatingível, sobretudo pela magreza e a perfeição de formas. É nessa fase, aliás em idades cada vez mais tenras, que os consultórios começam a atender pré adolescentes aterrorizados com a própria Imagem. Mas as patologias de Imagem não se restringem a essas faixas etárias. Transtornos Alimentares, como Anorexia e Bulimia, dependem quase exclusivamente da preocupação obsessiva coma própria imagem e da aceitação pelo grupo. Atendi recentemente uma moça que ficou bem perto de um ato suicida bem planejado pelo nível de assédio e perseguição que sofria na escola por ser gorda e feia, em suas próprias palavras. A escolha de sua carreira e de vida pessoal foi profundamente afetada por essa vivência. Observamos também outras patologias de Imagem, nos casos de Vigorexia, ainda uma doenças não classificada pela Psiquiatria, mas cujo número de casos vai se tornando cada vez mais frequente gerando outro abuso, o de medicamentos anabolizantes. O quadro pode começar de forma tão branda quanto o de uma menina que começa a noter o seu nariz um pouco torto, até isso virar uma preocupação torturante e pervasiva em todo o seu dia. Uma inocente busca de melhor forma física em nossas academias pode deflagrar uma mudança profunda no comportamento dos Vigoréticos, que passam a ser parte de uma tribo de marombados, sempre preocupados com suplementos e massa magra para exibir os músculos e forma física em nosso mercado de Personas até começarem as lesões por estresse ou por supersolicitação de músculos entre halteres e aparelhos sofisticados.
Não visamos abolir a Televisão nem a Internet, o que só seria possível em uma comunidade Amish americana ou em algum lugar no interior do Sudão, mas criar um foco de consciência nas pessoas. Nem vamos negar os profundos benefícios de se cultivar a beleza e a autoestima para todos. Vamos democratizar a beleza e o bem estar, claro. A nossa questão é que os filhos e os pais estão sendo continuamente pressionados a serem cada vez mais compulsivos. Para o cirurgião plástico e o psiquiatra, isso é bom motivo para manter a independência e o espírito crítico na hora de diagnosticar e indicar tratamentos. A virtude, como nos tempos dos gregos, continua na justa medida, o que é bom e previne compulsões.

sábado, 4 de setembro de 2010

Cirurgia Plástica e Imagem Corporal

Para você que chegou agora, olhe as últimas 3 postagens, que falam sobre o tema de uma aula, ok? Obrigado. Do que falávamos mesmo? Ah, Imagem Corporal. Vamos nessa.
Na esquina de minha rua tinha um barbeiro, daqueles que cortavam cabelo com a navalha, o Ranulfo, carinhosamente alcunhado por nós de Pomba, pelo o que fazia em nossas cabeças. Quando o simpático mas algo tosco Pomba acabava os seus cortes de cabelo e finalmente mostrava a sua "obra" para a minha mãe, eu e meu irmão saudávamos o sucesso de seu corte com uma crise de choro. Evitávamos olhar para o espelho por algumas semanas, sem mencionar as gargalhadas que nos esperavam na escola. Escapamos por pouco de um Transtorno Dismórfico Corporal, pois todos os elementos da doença lá estavam à nossa disposição: mudança da imagem corporal, prejuízo da autoestima, medo do olhar crítico e do ridículo público. Quando um cirurgião mexe na aparência de uma pessoa, notadamente no nariz que é o ponto de equilíbrio ou de desequilíbrio de uma fisionomia, os primeiros contatos com o espelho são particularmente dramáticos, pois haverá uma fase inicial onde a imagem desse rosto vai ser reorganizada nas redes neurais do paciente. Nesse momento pode haver uma espécie de curto circuito ansioso, onde a pessoa não consegue se reconhecer naquela que está refletida no espelho. Esse "não sou eu" deve fazer o médico se sentir como o Pomba vendo as crianças aplaudindo o seu corte militar com choro e palavrões.
A Neurociência vem descrevendo nos últimos 20 anos a capacidade do Cérebro mudar os seus mapas e imagens mentais diante de mudanças na entrada e saída de informação, num fenômeno chamado Neuroplasticidade. Este processo permite ao paciente criar para si uma nova imagem, sem a experiência do sábio chinês Chuang Tzu, que sonhou que era uma borboleta e acordou sem saber se era um sábio sonhando ser uma borboleta ou se era uma borboleta sonhando ser Chuang Tzu. Apesar da estranheza inicial, o nosso Cérebro tem a capacidade de reorganizar a sua Imagem Corporal quase imediatamente quando a nova imagem aparece, sem imaginar -se uma borboleta, ou uma lagarta.
A cena do médico tirando as bandagens de um paciente, no momento de mostrar o resultado de uma cirurgia já foi bastante explorada pelo cinema e televisão, sempre como suspense se o paciente vai ou não aceitar o resultado, a nova face refletida no espelho. Esse é o momento crucial,onde a imagem que o paciente guardava de si vai ser modificada, remapeada em suas redes neurais. Uma reação catastrófica pode gerar um período de não reconhecimento da própria imagem, com todos os outros sintomas do Transtorno Dismórfico Corporal, como olhar obsessivamente para o espelho várias vezes ao dia, a preocupação obsessiva com o orgão operado até a tentativa de esconder a nova imagem com bonés, cabelo e barba ou até máscaras semelhantes às usadas por Michael Jackson. O trabalho de recuperação consiste em diminuir, com o uso de medicamentos e psicoterapia, essa reação catastrófica de não reconhecimento para o paciente poder fazer a sua reorganização de imagem corporal da melhor forma possível. Esse deve ser o pesadelo de um cirurgião plástico, o mesmo do barbeiro da esquina de minha rua. Mas é bom saber e orientar o paciente que se trata de uma doença que pode ser adequadamente tratada.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Transtorno Dismórfico Corporal

Para quem está pegando o bonde andando, essa é a terceira postagem a respeito de uma aula que vou dar em uma Jornada de Cirurgia Plástica daqui a uma quinzena. O tema principal da aula está no título acima. Apesar de ser um Transtorno relativamente raro de se ver no consultório de um psiquiatra, não é tão difícil de cair nas mãos de cirurgiões plásticos, podendo representar de 6 a 15% dos casos que vão procurar avaliação. O quadro se caracteriza pela preocupação excessiva com um defeito, real ou no mais das vezes imaginado da aparência que causa um desconforto significativo na vida do paciente e mais ainda no coitado do cirurgião plástico que tropeçar num caso desses. O fato é que mesmo que o defeito realmente ocorra, o paciente se apresenta com uma preocupação desproporcional em relação ao mesmo. Esse transtorno, portanto, não tende a diminuir, mas, pelo contrário, tende a aumentar em uma sociedade pautada pelo culto à aparência como forma de aceitação e inserção social (quando escrevo isso, lembro de uma propaganda de roupas masculinas que tinha o slogan: "O mundo trata melhor quem se veste bem", com várias mulheres cercando um nerd bem vestido. Veja que tudo é uma questão de marketing. Se você nascer em um país islâmico, o slogan será "Seja um homem bomba e receba 27 virgens no paraíso"; ou, em um país ocidental: "Tenha boa aparência e amplie suas oportunidades de acasalamento"). O termo antigamente utilizado para este transtorno era Dismorfofobia. O nome está errado porque situa essa doença em uma Fobia da feiúra, ou medo exagerado de se ter uma aparência ruim ou repulsiva. As Fobias são quadros de medos irracionais e exagerados de coisas que normalmente não representam ameaça à média das pessoas. Lembro de um paciente de um metro e noventa, de causar medo na tropa de choque da Mancha Verde que se encolhia de medo ao cruzar com uma lagartixa em seu caminho. Ele sabia perfeitamente que seu medo nada tinha de racional, mas, mesmo assim, evitava situações ou lugares onde houvesse uma lagartixa. O Transtorno Dismórfico Corporal se insere no Espectro dos Transtornos Obsessivos Compulsivos, onde uma preocupação vai virando uma idéia recorrente, uma idéia recorrente vira uma idéia sobrevalorizada, que vira uma idéia obsessiva até que toda a experiência de uma pessoa se organiza em torno dessa idéia. Isso não é, apenas, uma fobia de lagartixa ou de ficar com o cabelo oleoso. É um quadro em que a idéia sobrevalorizada pode adquirir uma tal monta que a pessoa termine atentando contra a própria vida pela sensação de estar sendo observada e ridicularizada por todos. Apesar dessa gravidade, há vários recursos a se utilizar antes do quadro ficar muito grave. Vamos falar mais sobre isso nas próximas postagens.