quarta-feira, 31 de março de 2010

House e o Inconsciente

Estava eu papeando animadamente com a esposa de um paciente, pois ele está melhorando, daí podemos nos dedicar a amenidades, sobre nossa paixão compartilhada pelos episódios do seriado "House", com o impagável Hugh Laurie. Bem sei que os distintos colegas da Associação Médica Americana protestaram contra a rocambolesca e francamente delirante forma como o personagem chega aos seus diagnósticos. É óbvio para qualquer espectador medianamente inteligente que aquilo não reflete a realidade clínica de forma alguma, com diagnósticos feitos após sequências absurdas de provas terapêuticas e suposições infundadas durante algumas horas ou dias até a verdade redentora. Na vida real, esse processo diagnóstico dura muito mais, algumas vezes por anos até o quadro clínico ficar realmente claro.O divertimento, entretanto, é garantido, embora a série já dê sinais claros de estar perdendo o fôlego depois de cinco temporadas e meia.Eu gosto e assisto, seja pelas frases devastadoras que seria uma delícia proferir (em um episódio antigo, a mãe da paciente pergunta, mas o que esse sujeito está fazendo? Estou tentando salvar a sua filha. Você, por sua vez, está tentando matá-la), seja pela narrativa em espiral que acompanha a forma de raciocínio do Dr House, que vira e torce os sintomas e os casos por todos os ângulos, inclusive o da insanidade, até chegar ao ponto em que todos os sintomas estão se originando. Nessa época em que os médicos são assombrados pela "Medicina baseada em Evidências", House segue pistas baseados na mais pura intuição e junta grupamentos sindômicos com a facilidade de uma criança juntando legos de diversos tipos. Os casos com diagnóstico e terapêutica difícil parecem mesmo, na vida real, com cebolas que descascamos, descascamos sem chegar ao miolo, ou gigantescos quebracabeças onde sempre falta uma peça crucial. A parte mais divertida é que essa peça crucial, para House, sempre vem na forma de um insight. Uma frase solta, uma briga, uma pista falsa permitem a House um A-Há onde todas as peças se fundem, como uma fila de dominós caindo e formando um desenho. Cético e irônico com a Psicanálise e sua capacidade de ajudá-lo em seu sofrimento, House precisa de verdadeiros exercícios de associação livre para finalmente fechar os seus quebracabeças. O assustador é que, na vida real, as nossas decisões podem ser mais parecidas com as do Dr House do que gostamos de admitir.

terça-feira, 30 de março de 2010

Inteligência Alimentar

Eu sugeri esse nome para a minha cunhada batizar o seu blog de Nutrição. Modéstia à parte, sou bom com nomes. Caso ela não o aproveite, já está eternizado nesse artigo, que foi inspirado por duas matérias da imprensa. Uma, da BBC Brazil, divulga um estudo de um grupo da Flórida, publicado na Nature Neuroscience, onde o uso de altos teores de gorduras e açúcares na dieta de camundongos induziu um aumento de Neurotransmissores relacionados ao prazer e um verdadeiro quadro de dependência desse tipo de alimentação, gerando ratos obesos, diabéticos, apáticos.O estudo chega a comparar a dependência dessa alimentação ao uso de drogas pesadas, como a Heroína.
Outra matéria de primeira página da Folha, dá conta da obrigatoriedade imposta pela ANVISA de uso de Receituário de Controle Especial Azul para a prescrição da Sibutramina, uma importante medicação para o combate da Obesidade, doença grave não só em ratos que vem adquirindo nas últimas décadas uma característica epidêmica no Ocidente. Qual a relação entre essas duas notícias? Pesquisas com outros desafortunados ratinhos mostraram que determinadas áreas do nosso Cérebro, como uma pequena estrututa do nosso Subcortex chamada Hipotálamo, quando estimulado em sua face Lateral, induz impressionante aumento de apetite e comer compulsivo, com consequente Obesidade nos roedores. Outra região do Hipotálamo, por outro lado, ao ser estimulada produz uma sensível diminuição da fome e da aceitação alimentar, a região Ventro Medial, verdadeiro sonho de consumo dos neurocientistas e da indústria farmacêutica para a inibição do apetite. O fato é que vivemos em mundo de constante estímulo de nosso centro da Fome: comerciais de alimentos, comidas cada vez mais crocantes e calóricas em nossa Civilização Fast Food, todas induzindo um comportamento alimentar que lembra os ratinhos dependentes de salgadinhos e tortas de creme. Lanchonetes, cartazes, hipermídia nos convidam a comer sem nenhuma inteligência. Os ratinhos dependentes, quando apresentados a dietas saudáveis, torcem o nariz e fazem greve de fome ( será que o nosso presidente também vai condenar essa greve de fome desses ratinhos imperialistas?). E a Sibutramina? A ANVISA está bloqueando acesso ao nosso antídoto, a droga que nos subtrae desse comer compulsivo? Não. A restrição se deve ao uso indiscriminado da substância. Eu não consigo emagrecer, doutor, tem um remedinho? Lá vem a Sibutramina. Tinha uma música da Blitz que dizia :"Todo mundo quer ir pro céu/ mas ninguém quer morrer". Emagrecer é fácil, mudar hábitos, não. A Sibutramina é uma boa droga, mas induz emagrecimento em 15 por cento dos casos. A sua eficácia aumenta muito com novos e inteligentes hábitos de alimentação e exercícios físicos (que produzem também Neurotransmissores de prazer). O fato é que a Medicina apanha da Obesidade e de toda doença crônica que necessite de mudanças de hábitos antigos e profundos. Muita gente acha que o remédio para emagrecer pode fazer esse milagre. Não pode.Você pode.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Sobre Nardonis e Isabellas

O cronista Nelson Rodrigues deixou várias e maravilhosas frases para o nosso imaginário brasileiro, uma delas me ocorre ao pensar no casal Nardoni: “Toda unanimidade é burra”. Pois o dito casal é uma unanimidade na mídia e a sua condenação foi celebrada dionisiacamente com fogos e festas fora do Fórum e dentro de nós. Isabella, por outro lado, tem o seu túmulo visitado e caminha para virar um anjo ou uma pequena santa popular, como Santo Antoninho Marmo, desses que recebem promessas e agradecimentos por graças alcançadas. Dormimos em paz com nossas consciências, pois a justiça foi feita. Resta o vazio, diz Ana Carolina Oliveira, mãe de Isabella. Olhar para esse vazio demanda coragem.
O casal Nardoni não tinha antecedentes criminais. O que se pode falar deles fica circunscrito a tantas famílias disfuncionais: brigas e berros com palavrões em altos brados, agressões verbais e tensões entre esposa/madrasta e a filha do primeiro casamento. Pelo o que foi descrito nos autos e na perícia, houve várias agressões físicas do carro até o apartamento, até a esganadura da menina. Alexandre, julgando a filha morta, construiu um cenário para a ocultação do crime de sua esposa. O resto é de conhecimento público.
O que me incomoda nesse processo de demonização do casal é justamente a característica de bodes expiatórios de uma sociedade progressivamente violenta e abusiva com os mais fracos. Eles estão presos e podemos dormir em paz? A justiça foi feita? O fato é que todos os dias chegam Isabellas e mais Isabellas nos Pronto Socorros da cidade. Fraturas, contusões e lacerações creditadas a quedas da laje e pequenos acidentes domésticos quando na verdade são frutos de agressões e abusos físicos que as crianças sofrem entre quatro paredes, de seus cuidadores e entes queridos. Resta o vazio de um lugar que essa menina de cinco anos não vai mais ocupar, o vazio da perda irreparável. Devemos lembrar que vivemos pressionados, que a frustração nos é estimulada todo dia, com outros Nardonis adotando um comportamento selvagem no trânsito, em brigas de bar, em incidentes domésticos. A melhor homenagem que podemos fazer a essa menina é cuidarmos muito bem de nossa irritação e de nossa violência interna, pois nosso mundo está precisando, muito, de exercícios de não violência, todo dia. Essa pode ser a nossa homenagem a ela e às nossas crianças.