terça-feira, 31 de agosto de 2010

O dia em que o Psiquiatra encontra o Cirurgião Plástico

Depois de muito tempo fui convidado para apresentar um tema numa jornada de Educação Médica Continuada, graças a um bom amigo, Dr Ronche Ferreira, um dos mais importantes cirurgiões de Nariz de nosso país e que teve a feliz idéia de juntar Cirurgiões Plásticos em formação para ouvirem o que um psiquiatra ensinaria sobre o Transtorno Dismórfico Corporal, um assunto que causa verdadeiro horror entre os colegas, pois muitos desses quadros são desencadeados ou agravados por procedimentos cirúrgicos em Cirurgia Plástica, 50 por cento dos casos em Cirurgias Estéticas de Nariz. Nesse transtorno, o paciente fica com autêntico horror do resultado da cirurgia e da nova imagem de seu rosto, não conseguindo mais reconhecer-se e querendo de volta a imagem anterior. Vou aproveitar desse blog para preparar a tal aula, o que espero que interesse a todos, não só os profissionais da área.
Acho pessoalmente que as melhores aulas são medidas pelas dúvidas que despertam, não necessariamente pelas respostas que podem, ou não, oferecer. Vou começar então com a primeira dúvida que essa aula me provocou: onde se encontram o Psiquiatra e o Cirurgião Plástico? Vou me socorrer com um autor muito inusitado: L. Ron Hubbard, criador da Scientology, uma seita religiosa que congrega alguns famosos, como Tom Cruise e John Travolta. O autor é inusitado porque os membros dessa religião são conhecidos pela perseguição a quem discorde ou fale mal de seus métodos, o que acaba gerando suspeitas de fanatismo e manipulação de pessoas, mas isso não vem ao caso desse blog. Um trecho desse autor me interessa, que é a descrição das Esferas do Ser em três setores de Vida: Doingness, o que você faz, Havingness, o que você consegue obter ou possuir e Beingness, o que você é ou consegue ser. Lembrei dessa classificação porque ela é muito esclarecedora antes de se fazer uma Cirurgia Plástica: tudo gira muito em torno de Doingness, qual a técnica, a abordagem cirúrgica para se chegar em um Havingness, qual bumbum, ou nariz, ou cintura a pessoa vai possuir ao final do procedimento. O que fica debaixo do tapete ou da maca do consultório é o que pouco se fala, mas é francamente decisivo para o sucesso da cirurgia: o Beingness, ou seja, qual é a Identidade, a Autoimagem do paciente que vai ser mexida pelos bisturis e quais consequências trarão para esse senso de Ser que tanto pode levar o paciente para o psiquiatra quanto ao cirurgião plástico. Temos então uma primeira resposta para a nossa pergunta: onde se encontram o Cirurgião Plástico e os Psiquiatra : aí mesmo, nesse ponto de Ser - no Beingness, na capacidade de se ver como Alguém que o paciente pode ou não ver afetada por uma cirurgia ou um medicamento com ação no Sistema Nervoso.Aí o profissional que cuida do mundo interno pode ajudar, ou ser ajudado, pelo profissional que cuidará da estética, da beleza e do senso de Identidade e Autoestima do paciente. Vamos aprofundar esse tema em nossas próximas postagens.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Psiquiatria Compreensiva 4 - Significado

Há uma passagem que particularmente me tocou no livro de Victor Franckel : "Em Busca do Sentido". Victor foi um psiquiatra de origem judaica que, preso durante os anos de guerra em Campos de Concentração Nazistas, sobreviveu através de sua profissão, evitando toda a loucura que o cercava através da observação meticulosa do comportamento do opressor e do oprimido, ou seja, como se comportavam os soldados e oficiais nazistas que detinham o poder de vida e morte dos prisioneiros, e, por outro lado, como reagiam os seus colegas de infortúnio que passavam da colaboração ativa à apatia mais profunda. Ele conseguiu finalmente sobreviver, de forma quase milagrosa para fundar no Pós Guerra a Logosofia, corrente de pensamento de sua autoria. A passagem a que eu me referia é quando trabalhando na Enfermaria do Campo de Concentração, Victor atendia uma jovem judia agonizante de febre e desnutrição que, perto de sua morte segredou ao jovem médico que era muito grata aos nazistas pelo o que lhe fizeram passar ali. Como assim?, pensou o médico, julgando que a paciente já delirava em sua febre. A jovem respondeu que vivera uma vida fútil de família rica na Alemanha. Não fosse a sua prisão naqueles campos de morte, nunca teria podido viver o que vivera, amar como amou e buscar a vida até o seu último sopro.
Nas últimas postagens abordei os diversos níveis de Compreensão de problemas ou de fenômenos. No nível 1, temos a abordagem direta do fato: um paciente quebra a perna, o médico faz uma cirurgia e coloca a perna em posição para reparar o estrago. O nível 2 é o levantamento de todos os fatores envolvidos em um caso assim: como se deu o acidente? Como o paciente pisa no chão, tem um quadril desalinhado, está muito gordo. Resumidamente, quais são os fatores de risco e de estresse físico/mental envolvidos no caso? No Nível 3 de abordagem o paciente pode descobrir, depois da passagem no tempo, qual o significado daquele evento em sua vida. Por que ele não respeita os próprios limites? Como cuida da própria saúde e como preza, ou não, sua segurança? Finalmente, no nível 4 a pessoa pode tentar descobrir, depois de um tempo ainda maior, qual foi o sentido daquela provação e por que teve que passar pela mesma naquele momento de sua vida?
O exemplo dilacerante da prisioneira judia mostra como uma pessoa pode, numa situação limite, atingir o nível 3 e 4 de compreensão. Ela percebeu o significado, estava lá tendo uma experiência terrível, mas podia aprender com ela, podia aprender a amar e valorizar cada minuto da vida a partir daquela situação. O mais difícil de se atingir é o nível 4, quando fnalmente o Significado vira Sentido, onde a percepção do fato e da vida se tornam mais profundos. O gordo que quebrou a perna na pelada de final de semana pode perceber que a partir desse fato precisou aprender sobre paciência cuidado de si mesmo. A psisioneira agradece a seus perseguidores pela experiência sublime de conhecer os extremos da vida e da morte para encontrar, finalmente, a própria luz. Dificilmente passamos do nível 2 em nosso contato com os problemas e outras questões de nossas vidas. Mas pensar em diferentes níveis nos abrem o coração de nossas questões com o Outro e com a própria Vida.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Psiquiatria Compreensiva 3 - A Cadeia de Causas

Vamos falar sobre o nível 2 de Compreensão: Um paciente chega com um quadro de Depressão. Entrevista, exames , critérios diagnósticos, ok, agora vamos tratar, escolhendo um medicamento que tenha boa tolerabilidade, baixo perfil de efeitos colaterais e, de quebra, não cause um depressão na conta bancária do paciente. Esse é o nível 1 de abordagem: o que quebrou e qual a melhor estratégia de conserto. A maioria das pessoas, médicos inclusive, já se sentem tranquilas se essa primeira fase dá certo. A segunda parte de avaliação é: qual a cadeia de microcausas que cercaram esse evento? Há uma tendência genética na família do paciente, com outros casos? Qual a sua gravidade? Temos também na cadeia de microcausadores da doença uma colheita ainda mais ampla de se fazer: quais os Estressores envolvidos na vida desse ser humano que está com a doença? O que estava acontecendo nos meses que a antecederam? Quais foram as perdas que a pessoa sofreu ou vem sofrendo, gerando desgaste físico e mental? Parece impressionante que façamos uma Medicina, essa Baseada em Evidências, que se contente com um nível 1 de resolução. Precisamos sempre abordar o fenômeno com tudo que o cerca, o tempo todo. Então, caros leitor e leitora, quais são os principais estressores de sua vida? O que lhe rouba mais energia? Não basta só repor o que se perdeu num vazamento, é preciso localizar e deter por onde a energia está escoando. Esse é o nível 2 de Compreensibilidade.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Psiquiatria Compreensiva 2 - Os Níveis de Compreensão

Uma das fantasias que as pessoas tem a respeito de suas doenças é que podem chegar ao médico e pedir que ele simplesmente faça um conserto no que está quebrado. A culpa com certeza não é delas, desde Descartes que o corpo é visto como uma máquina separada de sua alma, portanto, quebrou, é só levar para a oficina, digo, o hospital. Convivemos com pacientes que cruzam os braços esperando que o medicamento faça efeito e a doença vá embora. É grande a decepção quando percebem que adoecer é uma jornada de ida cuja volta é longa e sinuosa e, pior, voltar não é uma ciência exata. Tristemente curioso é quando essa fantasia se dá com crianças e adolescentes, após anos de mal funcionamento e os pais olham para o médico com aquela cara singela de "dá para consertar esse sujeito", geralmente, claro, colocando-se fora do problema e da solução. Virem-se, por favor. Sempre que me vejo diante dessa atitude de pacientes e familiares eu me lembro (e às vezes, falo) de multidimensionalidade e dos diferentes níveis de abordagem de um problema. Vamos dar um exemplo bem concreto: imaginem um cidadão que estava lá jogando a sua pelada de fim de semana, achando-se um Neymar mas com o corpo mais parecido com o Ronaldo Fenômeno. Jogada de linha de fundo, o gordo gira encima de sua abundante carroceria e os tendões do tornozelo não resistem à sobrecarga e se rompem. Pronto Socorro, gesso e cara feia da patroa, já cansada das presepadas do marido. Parece uma coisa muito simples, não é? Lesão, Raio X, Exame Físico, Diagnóstico e Tratamento. A máquina quabrou, vamos consertá-la, todo mundo feliz no final, menos a esposa que vai ter que levá-lo ao trabalho. Esse é o nível 1 de atenção e resolução. Em todas as esferas de resolução de problemas, as pessoas procuram, esperam e se satisfazem com o nível 1 de atenção/resolução. Alguém poderia imaginar: esse atleta de fim de semana pode jogar futebol? Como ele deveria se preparar e cuidar para não ser mais um na fila do Pronto Socorro? O que ele quer provar para si mesmo quando não percebe o perigo? Ele está prevendo que seu chefe já está cheio de ter um funcionário descuidado e que vai pensar em demití-lo assim que ver o gesso? Ele tem alguma idéia do que a vida está tentando lhe dizer com mais esse contratempo? Não, caros e possíveis leitores. Ele acha que quebrou, consertou, colocou pino e vamos para outra. Nos próximos capítulos, vamos falar sobre os outros níveis de atenção. Uma dica: já estão esboçados nas perguntas acima.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Psiquiatria Compreensiva

Para o senso comum, compreensivo é alguém tolerante, capaz de ouvir o outro e perdoar deslizes menores. Um psiquiatra compreensivo deve ser aquele que perdoa a terceira falta seguida, os atrasos constantes ou a recusa de aplicar o que é combinado na consulta? Não. A compreensibilidade é um termo antigo, posto na Psiquiatria por Karl Jaspers, grande filósofo e autor de descrições e compreensões que ainda passeiam por tudo o que se faz em Psiquiatria, quase um século depois de levadas aos livros. Entender é uma coisa, explicar é outra, compreender uma terceira coisa. Posso dizer para a paciente que se queixa da sensação que algo está errado dentro do seu corpo e que já realizou uma dezena de exames, todos normais, que isso pode ser explicado por uma disfunção de alguns neurotransmissores em seu Cérebro Emocional. Posso entender que esses sintomas foram piorados pelos excessos de trabalho e de autocobrança, que a sua mãe lhe ensinou que era o certo e agora a está levando a perigosa exaustão. Posso, finalmente, compreender que o seu processo é a somatória de vários fatores concorrentes, já que ela é um ser multidimensional. A Psiquiatria vem deixando a Compreensibilidade Jasperiana empoeirando nos livros antigos de Psiquiatria Fenomenológica. Temos há décadas uma somatória de critérios baseados na somatória de sintomas. Aritmética simples, se você tem tantos sintomas de Depressão, por tanto tempo, então você vai receber tal medicamento em tal dose. Os psiquiatras continuam tentando explicar, entender e mesmo compreender, mas isso só dentro da sala de atendimento e só quem ainda gosta de praticar o velho raciocínio clínico. No mais, basta uma pequena lista de sintomas que, confirmados, justificam a conduta. Na próxima postagem vou abordar os quatro níveis de compreensão, e como eles podem nos ajudar em todos os diagnósticos, até nos psiquiátricos. Até lá.