terça-feira, 30 de novembro de 2010

Harry Potter e a Jornada Arquetípica

Há alguns anos atrás eu mandei um comentário para um site, o Sorria.com.br, na época muito assistido, sobre o primeiro filme da saga Harry Potter, a Pedra Filosofal. Choveram e-mails furibundos na minha Caixa de Entrada, sobretudo da população fundamentalista cristã amaldiçoando as minhas próximas gerações pelo que julgaram que fosse uma apologia à bruxaria, ao demoníaco, à tentativa de uma horrível autora inglesa de colonizar a cabeça de nossas crianças com mensagens maliciosas, etc, etc, etc. Na época eu não quis entrar em nenhuma polêmica de cunho religioso-fundamentalista, então li alguns e-mails, respondi alguns com uma ironia pouco acessível e toquei a vida, que tinha assuntos mais importantes no dia seguinte.
Estamos assistindo, após uma década, a saga finalmente se encerrando. Eu li apenas três livros da mesma, mas não perdi nenhum dos filmes. Os meus filhos cresceram assistindo a essa saga e não me consta que a mesma tenha despertado interesse por antigas bruxarias ou artes das trevas, como temiam alguns. Deve ser por isso que os não-bruxos são carinhosamente alcunhados de trouxas pela comunidade bruxa.
Harry Potter representa uma jornada de formação e transformação de um ser humano, da adolescência psíquica até a maturidade. Como muitas sagas de herói, esta começa com um Harry orfão e sofrendo abandonos e abusos de seus tios que detestam a sua origem e não cansam de tentar reprimí-la. Uma versão masculina da Gata Borralheira ou do Rei Arthur, criado como filho adotivo sem conhecer a sua linhagem nobre. Quando as suas capacidades de jovem bruxo começam a se manifestar, Harry é levado para Hogwarts, numa guinada completa de sua trajetória. Lá, ele descobre que seus pais não morreram em um acidente automobilístico, que ele é um bruxo famoso por razões completamente alheias à sua vontade e, o que é pior, traz a marca de ser ou não, o Escolhido, aquele que vai enfrentar o arquivilão Voldemort, que vai literalmente encarnando depois de um período dissolvido como um espírito mal.
A saga mostra o caminho de linhas tortas que uma psique deve tomar para entender a sua verdadeira natureza. Harry é modesto, incrivelmente corajoso e, vamos saber depois, é um joguete no embate de dois grandes e imbatíveis bruxos, Dumbledore e Lord Voldemort.
Harry vai descobrir ao final da saga que a sua busca, muito cara à psique masculina, de encontrar o seu Pai Simbólico e finalmente serví-lo, que ele projeta inteiramente em Dumbledore, vai terminar em um confronto final, um confronto em que ele estará só. Em nossa vida, esperamos que os pais, os mestres, as figuras de autoridade estejam lá para nos ajudar e dizer o que fazer na hora H. Como Harry, descobrimos que na hora do vamos ver, só contamos com a nossa voz interior e a nossa fé para prosseguir, mesmo na hora mais escura.
Vou voltar a esse tema em outros posts.

sábado, 27 de novembro de 2010

Sistemas de Aprendizagem (Amorosa)

Tem alguns livros que você encontra onde uma peça de um grande quebra cabeça finalmente se encaixa e algo se clareia. "O Cérebro Quântico", de J. Saltinover teve esse efeito para mim. Uma das pequenas e saborosas histórias que ele usa para ilustrar o aprendizado vem da vida de um grande físico, Richard Feyiman, que deu um livro de Astronomia de nível universitário para a sua irmã, na época no colégio. Ela gostou, mas fora criada numa família onde se acreditava que as meninas não tinham a mesma capacidade dos meninos em dominar disciplinas lógico-matemáticas. Uma variante sutil do "lugar de mulher é na cozinha". Como eu conseguiria ler esse livro? - perguntou. A resposta do irmão mudou a sua vida. Ele a aconselhou a ler o livro com atenção até a parte em que ficasse totalmente perdida. Desse ponto era só voltar e procurar o ponto onde estava parada, até conseguir superá-lo. Devia fazer isso tantas vezes quanto necessário, até dominar o livro. Alguns anos depois, a sua irmã terminava o doutorado em Fisica, contrariando as crenças familiares.
Acho essa pequena história mágica sob vários recortes diferentes. O primeiro, mais óbvio, é como alguém consegue, às custas de aprendizado, se afastar desses sistemas de crença que família, grupo social ou consciência coletiva dizem ser a verdade absoluta e, hoje em dia, "científica". As psicoterapias trabalham, em diferentes registros, com esses sistemas de crença e como modificá-los, mas não vai ser o tema desse post. A parte que me interessa é como ele descreve à perfeição os sistemas de aprendizagem. Repetição, repetição, tentativa, erro, retomada, revisão. Nossa pedagogia passou décadas abominando essa repetição, priorizando a capacidade de raciocínio e pesquisa. A má notícia é que o aprendizado continua precisando de repetição e exposição ao erro. Décadas de cultivo à Autoestima também vem criando gerações e gerações de pessoas com uma evitação quase fóbica ao erro. Errar compromete a minha autoestima. Portanto, isso é uma evitação à aprendizagem. O que isso tem a ver com a aprendizagem amorosa? Tudo a ver. As nossas meninas são educadas pelos desenhos e Barbies a serem boas meninas que o príncipe aparecerá para levá-la em seu cavalo branco, ou em sua Ferrari vermelha. Quando esse conto começa a se chocar com os muros da realidade e dos príncipes meia boca, nossas candidatas à princesa ficam perdidas no país das Maravilhas. Os sistemas de crença não resistem aos sites de encontro e aos amores expressos. Mas o aprendizado é mais difícil para quem persevera no conto de fadas. Se eu fizer tudo direito, vai dar tudo certo. Não é assim que funciona. Para criar sistemas de aprendizagem é preciso coragem, teimosia, repetição, tolerância à frustração. Conhecer pessoas, acreditar, desacreditar. Tentar de novo. Não adiante beijar o sapo em diversos ângulos, ele não vai mudar a sua pele gosmenta. É preciso repetir, aprender sobre si e sobre o outro, perder o medo do erro e do pior, a rejeição, real ou imaginária. Esse é um jeito de criar sistemas de aprendizagem, onde o erro faz parte, como na própria vida.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A Barreira de Silêncio

A Mitologia Grega tem vários temas muito caros aos terapeutas, desde o mais famoso, o de Édipo, secundado pelo de Narciso. Vários personagens da mesma emprestam o nome para síndromes e doenças. Um mito que me deixa um tanto quanto desconfortável é o de Tântalo, cozinheiro dos deuses do Olimpo. Tântalo, como muitos mortais, cobiçava o poder e a glória de atingir o panteão dos deuses e tentou fazê-lo de mais sórdida maneira que a Mitologia ousou contar: ele matou o próprio filho, cortou-o em pedaços e o serviu no banquete, almejando com isso ser elevado à condição de semi-deus pela participação na carne de sua própria carne. Os Deuses perceberam enojados o ardil e não comeram daquela comida, com uma exceção, se não me engano de Héstia, que era muito distraída e ensimesmada. Tântalo foi condenado a uma eternidade de fome e sede, no calor dos infernos, ao lado de uma árvore frutífera repleta de frutos e ao alcance de suas mãos, mas toda hora em que ele estica a mão para fartar a sua fome e sede, a árvore se movimenta, longe de seu alcance.
Eu me lembrei desse mito terrível para falar do sentimento de uma pessoa em pleno quadro de obsessão amorosa na época da Internet e das Redes Sociais. De todas as ilusões que nos castigam nesses tempos bicudos e apressados, a ilusão de que o Outro está ao alcance da mão nos colocam sempre na posição de Tântalo, sobretudo no caso dos Obsessivos Amorosos.
Já dissemos em outros posts que para o homem pós moderno, o silêncio virou uma barreira profunda, insondável para evitar o que mais teme, o vínculo. Circula entre a molecada uma camiseta com a imagem de um noivo e uma noiva com o sigelo título : Game Over. Em Fortaleza encontrei uma variante nordestina da camiseta, com o título mais simpático de "Lascou-se". Casamento significa estar fora do jogo, ser solteiro é estar dentro do jogo de colecionar mais um e outro caso, para não usar outro termo. Uma técnica para manter o jogo é sumir ou impor o silêncio. A mulher fica congelada dentro do silêncio, tentando interpretar cada sinal de fumaça, cada foto na rede social, cada pequena notícia do ser desejado que indique que ele vai voltar, vai romper o silêncio e o final feliz dos contos de fada vai se cumprir, com algum atraso. Como na árvore de Tântalo, o desejo arde e parece ao alcance da mão, ou ao alcance de um click. Mas é o silêncio que está por lá, sempre com alguns disfarces de "estou na correria", "já ia te ligar" ou um "que bom que você está aqui".
Tântalo, na sua ânsia de lograr os deuses para virar um semi-deus de forma ilegítima me lembra da nossa condição humana de fugir da própria dor, do sentimento de falta e abandono que nos acompanha. Acho que ele não sabe que, se parar de estender a mão em desespero, talvez o fruto caia em suas mãos, naturalmente. Mas há sempre aquela esperança de que, se eu usar a técnica da mão trocada, ou aparecer por acaso, ou tiver mais paciência, dessa vez, a árvore não vai se afastar.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Caminho

Vou começar esse post sem saber se vou mandá-lo ao blog. Vou pensar alto sobre um filme que eu assisti meio sem saber o que esperar, desses que se perdem nas prateleiras ou atingem um público específico. O filme é espanhol e chama-se "Camino", com o título sempre oportuno em Português de "Caminho de Luz", que dá um tom algo espírita para um filme ao mesmo tempo católico e anticatólico, ou anticlerical, no mínimo. É incrível como o diretor e o roteirista conseguiram manter esse olhar imparcial para uma história que traz uma mensagem profundamente espiritual ao mesmo tempo que lança um olhar implacável ao moralismo dos fiéis e padres retratados. Estou pensando alto e o leitor que não assistiu o filme não vai entender.
Camino é uma menina de onze anos, às portas da adolescência. Em diálogo hilário, a sua colega conta que está indo ao psicoterapeuta. Mas o que você tem? - pergunta Camino. "Tenho Pré Adolescência, mas quem sofre com essa doença é a minha mãe". Camino, como a sua amiguinha desbocada, sente as mudanças desse período, sob o olhar de sua mãe, retratada como uma carola intrusiva, empurrando livros de santos e de fé cristâ. Ela está se apaixonando por um colega de escola, chamado Jesus, apelidado Cuco. A sua irmã já está numa escola Opus Dei e seu pai, um personagem muito impressionante, fica amassado entre o amor que sente por essas mulheres e o sentimento de ser um estranho no ninho no meio de sua mulher, cunhada e filha falando de Jesus e santidade. Logo Camino começa a sentir os sintomas de dores no pescoço, que se revelam uma fratura de vértebra, depois surge um tumor agressivo, os esforços inúteis dos médicos até a morte da menina, como numa Via Crucis moderna. Sabemos ao final que a menina chamava-se Alexia e morreu em 1985. Está em processo de beatificação e a ela o filme é dedicado. No momento de sua passagem, um forte odor de rosas encheu o quarto. A equipe hospitalar emocionada, aplaudiu sua morte, como se percebesse a grandeza da passagem e da garota.
Ao contrário do que parece não recomendo o filme, não. Assistí-lo é uma experiência de angústia e impotência. O tempo todo esperamos que a menina fique boa, namore o moleque e mande às favas aquela cascata de terços. A mãe da menina, então, não sabemos se é uma mulher além do limite da santidade ou uma obsessiva grave, levando inconscientemente os filhos para morte, simplesmente pela vaidade do martírio.
O fato é que nessa época de livros de Autoajuda e busca permanente de satisfação imediata, de fantasias onipotentes de nossa tecnologia, Camino mostra o paradoxo, o mistério, as coisas que, mesmo desejando ardentemente, nos são negadas pela vida. Procuramos pelo final feliz, como já postei em outro texto. Não sabemos, entretanto, que o final feliz é um Mistério.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Chico Xavier

Bert Hellinger, criador da terapia das Constelações Familiares escreveu em tom de quase brincadeira que o Budismo nasceu do complexo materno de Sidarta Gautama, já que a sua mãe morreu após o parto. O Cristianismo teria nascido do complexo paterno de Jesus, rejeitado e quase abandonado pelo seu pai terreno, começando aí a sua busca pelo Pai verdadeiro.
Ontem assisti mais uma vez o filme "Chico Xavier" cuja vida também foi profundamente marcada pelas figuras femininas e sua ausência, também em tragédias prematuras. A família numerosa de Chico Xavier foi pulverizada pela morte de sua mãe. Algumas das cenas mais belas do filme saem justamente dos encontros entre o menino Chico e a sua mãe que aparecia em espírito para ele. As suas capacidades de medium eram prontamente punidas pela sua tia espancadora, uma carola aterrorizada pelo próprio medo e maldade.
Sem entrar no mérito dos fenômenos mediúnicos, embora seja de se notar que a vida e a trajetória de medium de Chico Xavier tenha se iniciado quando outro homem de capacidade impressionante brotava na mesma Minas Gerais, Eurípedes Barsanulfo. O que será que acontece naquela região do Brasil? Será que a energia cósmica tem grandes portais naquelas paisagens?
Chico, como muitos iluminados, teve a experiência da perda da mãe e da referência familiar. É claro que é muito mais comum que esse tipo de perda conduza ao esfacelamento de uma vida, não de iluminação. Chico começa a viver, desde o início de sua vida, o que os budistas chamam de bodhichitta, a experiência do amor absoluto pelo outro e a percepção do profundo sofrimento inerente à própria condição humana. Essa é a parte mais importante de sua vida, a epifania que ajudou-o a encontrar sua identidade espiritual. Não é incomum sabermos das trajetórias de pessoas que passaram por profundas e dolorosas perdas para encontrar o seu caminho. É como se essa perda criasse dois efeitos profundos: primeiro, a desconfiança saudável da própria vida. Não há nada que tenho que não possa perder, portanto não há sentido em buscar a perfeita defesa ou proteção. A nossa única defesa é saber que não temos defesa, então precisamos da graça. Mas isso é assunto para outros textos. O segundo efeito é o de procurar refúgio em outros estados de consciência ou de Ser. A neurociência vem demonstrando a ativação de áreas do Cérebro onde se percebem o Estado Unitivo, onde o que chamamos de Ego se encontra com um campo amplo de Consciência. Deus, Atman, estado de Buda, todas as religiões descrevem essa experiência de união, onde se apagam as diferenças entre Eu e Outro.
Uma coisa que muito me conforta vendo o filme mais uma vez é a percepção da conduta de Chico Xavier diante da infinita estupidez humana, a capacidade de entender e tolerar a capacidade impressionante de tolerar a incompreensão e o lixo que as pessoas são capazes de pensar e verbalizar, inclusive pessoas da sua própria família. O meu filho fez um paralelo com Gandhi ao ver o filme, com o que concordei. Chico desposou a pobreza e o não-revide como via de ação. Isso requer muuiita prática.

domingo, 14 de novembro de 2010

Perto de um Final Feliz

Estava lembrando de um filme antigo durante uma sessão. O filme é "O Fio da Navalha", com Bill Murray, acho que do final dos anos 70, começo dos 80, baseado no livro de Somerseth Maughan (não sei se a grafia está correta). O livro é sobre uma jornada espiritual de um homem, criado em meio à aristocracia inglesa que vai para a Índia, trabalha em condições de extrema pobreza enquanto lê os Upanishads, espécie de Bíblia hinduísta. Duas cenas desse filme me ficaram, embora já tenha visto há anos: numa delas, um homem simples e com traços claramente hindús tenta explicar para o personagem inglês como ele vivencia a sua relação com Deus. Ele está lavando pratos em um bote e ilustra que para ele, lavar aqueles pratos é como falar com a própria divindade. Em outra cena, ele volta para a Inglaterra do começo do século passado e se apaixona por uma antiga conhecida, que também passara por poucas e boas. Essa moça perdera o marido e filho em acidente e virou uma prostituta, tentava reiniciar a sua vida através desse amor reencontrado. Ela acaba assassinada por alguém de seu passado, no auge de sua felicidade. O personagem principal, crispado pela perda mas com uma profunda serenidade, afirma antes de partir que, depois de tudo o que passara e virado o mundo de ponta cabeça, pensou que aquele amor era uma recompensa. Agora ele sabia que não havia recompensa. E seguiu am frente, liberto do amanhã.
Essas cenas vieram ao caso por conta de uma vivência dolorosa de uma pessoa, que, depois de anos atribulados, finalmente encontrou um amor que parecia vivo, finalmente tudo o que esperava, imaginou e lutou tomava forma nesse amor que, depois de um período de explosão e outro de dúvida, acabou por desmanchar-se no ar, com muita dor, é claro. Não é difícil de pensar o quanto somos assombrados pelo Futuro, tanto ou mais do que o Passado. Sempre somos acalentados pela esperança de que vamos encontrar a recompensa, seja ela representada por um Príncipe Encantado ou pelo Reconhecimento ou Sucesso. Sempre esperamos que o Amanhã será pleno. Será que isso está errado? Certamente que não. Pobre de quem não tem planos, ou esperança. Mas as cenas de "O Fio da Navalha" me oferecem uma visão alternativa. Na primeira cena, o sábio hindú sente a Presença de Deus nos pratos que está lavando. Nossas máquinas de lavar pratos nos impedem de um encontro místico? Acho que não. A nossa mente presa ao futuro, sim. Lavar os pratos como um encontro profundo é estar em estado de Presença, no estado de Aqui Agora tão difícil para a nossa mente tagarela. Mais difícil ainda é entender as linhas tortas que a vida usa para escrever o nosso destino. O personagem de Maughan segue em frente, repetindo para si mesmo que esperar por uma recompensa é uma forma de prisão, uma forma de nos mantermos fixados em apenas um objetivo possível. Como no caso desse personagem, esta pessoa a quem me refiro seguiu em frente, sem ficar presa ao medo de novas decepções, ou lamentando que "as coisas não dão certo para mim". Ela segue porque a vida é feita do momento presente e da fruição do tempo.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A Dama do Lotação

Estava arrumando as prateleiras de livros em casa quando caiu um livreto com pequenas histórias de Nelson Rodrigues, dentre elas um pequeno conto chamado "A Dama do Lotação". Acho que Nelson foi nosso primeiro blogueiro, criando personagens imortais em pequenos textos e historietas como essa. A personagem principal é uma mulher de classe média carioca, casada e respeitável que começa a ter uma estranha compulsão sexual, a fantasia de todo usuário de transporte coletvivo: o ônibus lotado, a proximidade dos corpos, ela começa a se insinuar para um desses suarentos passageiros, a coisa vai num crescendo até que descem do ônibus e se fartavam da própria lascívia nos motéis da época, as "garçonieres", pequenos quartos e apartamentos para as escapulidas dos vetustos pais de família. Dia após dia essa mulher multiplicava as suas aventuras para depois voltar para casa, com o sonolento e desinteressado marido que a tudo ignorava em seu orgulho de machão.
Após um tempo, esse homem acaba descobrindo que sua mulher tem essa vida dupla e, ao contrário do homem da época, não decide lavar a própria honra em sangue. Não mata a mulher e nem chega a ser verbalmente agressivo, apenas resolve retirar-se da própria vida. O marido opta por ser um vivo-morto, abandona o emprego e fica prostrado, em casa, deitado sobre a mesa como um cadáver, com a vela nas mãos. A esposa, extremada, passa os dias com as suas aventuras sexuais mas à noite vela o corpo do marido-cadáver-vivo, rezando por ele de forma incansável madrugada adentro.
Nessas útimas semanas temos falado das obsessões amorosas, a distância amorosa como uma forma de dominação, a espera de um companheiro como um sofrimento e quase desespero. Há quase 50 anos o gênio de Nelson Rodrigues já captara essa tendência, vinda com a revolução sexual que na época só se insinuava: a mulher tentando encontrar e manter o homem através da sexualização prematura, as compulsões sexuais e a distância ressentida do homem, cada vez mais despido de seu desejo e virilidade, como o vivo-morto desse conto. A mulher espera e vela por esse homem, esperando por seu despertar.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Freguês

Já está circulando a piada de corintiano chegando para o freguês sãopaulino : "CPF na nota?". Impressionante o bloqueio emocional que se abateu sobre o time tricolor ontem. Parecia que o time estava triste, apático diante da expectativa de "Hoje termina o tabú", 3 anos e 11 jogos depois. No outro jogo em que o São Paulo levou um vareio de bola do Corinthians, no primeiro turno, o drama foi parecido: um time xôxo, com um buraco no meio de campo, vendo os adversários se multiplicando na frente da área. Sem mencionar o Elias, sempre ele, que já deve entrar rindo em campo quando o jogo é contra o São Paulo.
Não deixa de haver uma justiça poética nessa freguesia, que começou exatamente no pior ano da história do Corinthians, em 2007. Houve naquela época o impedimento da antiga diretoria contiana e assumiu Andrés Sanchez, que não acerta duas concordâncias na mesma frase mas cercou-se de gente muito boa e qualificada para botar ordem na casa, o que foi fazendo no decorrer dos anos. O São Paulo ganhou três Campeonatos Brasileiros no mesmo período e começou a sentir-se no paraíso. De lá para cá, as coisas começaram a se inverter, basta ver a quantidade de revézes que o São Paulo colecionou em relação à diretoria corintiana. Andrés Sanchez vocifera que a sua única derrota política para o inacreditável Juvenal Juvêncio foi a eleição do Clube dos Treze (que lhe valeu até um estádio, êta derrota maravilhosa). A derrota mais dolorosa, sem dúvida, foi a da Copa do Mundo. Juvenal, o hábil, o visionário, acreditou na palavra dos políticos paulistas,jurando fidelidade eterna ao Morumbi. Foi só o assunto chegar no horário eleitoral que todos acorreram ao Andrez proclamando o Itaquerão, a salvação da lavoura. Resta ao tricolor transformar o Morumbi em casa de shows. Quem lê essa postagem pela primeira vez deve pensar que eu sou corintiano, não é mesmo? Não sou não. Mas acho que há uma certa ironia de Juvenal Juvêncio terminar seu melancólico segundo mandato encastelado, com acessores pífios e esvaziados por seus arroubos e interferências, colecionando derrotas no campo e fora dele para o arquirrival. Lembra José Serra tentando ganhar a eleição sozinho, no peito e na raça, enquanto Aécio já costurava os acordos pós derrota. Eu sou o mais qualificado, gritava Serra. Somos o clube com melhor estrutura, balbucia Juvenal. O mundo está mudando rápido, gente, sobretudo para quem não consegue se debruçar sobre os própios erros e refletir. Quem sabe, até corrigir a rota que está errada.

sábado, 6 de novembro de 2010

Transfusão de Serenidade

O termo do título é de autoria de um teólogo e psicoterapeuta de quem eu gosto muito, Jean Yves Leloup. Ele a descreve em um momento particularmente dramático, quando estava à beira do leito de um paciente terminal, que sentia a proximidade da morte e se angustiava profundamente com o momento da passagem. Jean Yves descreve em um livro sobre os Terapeutas do Deserto que o paciente vai se acalmando na medida que o terapeuta faz uma transfusão de serenidade, tocando psiquicamente a alma turbada pelo vazio, até que o paciente começa a descrever uma paz interior, ausente de medo.
Lembrei desse trecho na apresntação de Flávio Kechanski, já citada na última postagem, no Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em Fortaleza. Para quem não me conhece, sou psiquiatra e psicoterapeuta de orientação junguiana. No congresso não há portanto nenhuma palestra que eu não sofra uma alfinetada. Entro na apresentação da Sociedade de Psicoterapia e o palestrante fala de um caso onde a paciente tinha um quadro depressivo que respondia mal aos psiquiatras biológicos desalmados, interessados em diagnosticá-la e entupí-la de medicamentos, sem perceber que a paciente estava presa numa simbiose familiar, os pais inteiramente dependentes dela, por isso os remédios não faziam efeito. O terapeuta atento e arguto começa a trabalhar na simbiose, a paciente melhora da depressão. O terapeuta mantém os medicamentos estabilizadores do humor, mas fala disso com um tom de quase displicência. Na outra sala, outro colega descreve como seu paciente estava perdido na selva de psicoterapeutas inoperantes e autorreferentes, até finalmente ser salvo pela medicação potente e heróica que seu psiquiatra introduziu, dando finalmente ao paciente a estabilidade de humor que necessitava. Percebe, caro leitor? É pancada de cá, pancada de lá.
Há alguns anos a Folha de domingo fez uma matéria de capa: Dr Freud ou Dr Prozac? A resposta é muito simples: Dr Freud E Dr Prozac. Todas as evidências mostram há muitos anos a eficácia maior do trabalho combinado, mas os xiitas de lado a lado continuam trocando suas farpas, suas acusações.
Na palestra de Flávio Kechanski, ele rechaçou com elegância a eficácia das terapias de base analítica em pacientes dependentes de crack nas fases iniciais de tratamento. Isso faz todo o sentido, pois o foco inicial é a desintoxicação e recontrução gradativa de uma psique despedaçada por uma das drogas mais potentes à disposição dos dependentes, o crack. Flávio destacou também a importância do uso de tratamentos baseados em evidências no tratamento desses casos graves. A psicoterapia de base analítica, subentende-se, baseia-se em sistemas teóricos nem sempre baseados em evidências. Podemos discutir isso em outra ocasião, mas também posso aceitar a colocação. Só que durante a sua apresentação, que, o leitor pode notar, gostei muito, Flávio descreveu uma enfermeira de sua equipe que consegue reverter quadros de agitação psicomotora jogando cartas com o paciente, até que ele consiga novamente centrar-se. Aí o raciocínio vai todo para as cucuias, para não usar outro termo. A enfermeira tranquilizando um paciente agitado apenas na base do carteado não está usando uma Terapia Cognitiva baseada em evidências. Está fazendo, isso sim, uma transfusão de serenidade, como fazem os bons psicoterapeutas. Seja por transmissão eletromagnética de afeto, seja por informação não local, seja pelo mecanismo metafísico pouco baseado em evidências e muito em vidências que caracteriza uma boa relação terapêutica.
Coloco isso apenas para abrirmos mais o leque de possibilidades quando um ser humano se debruça sobre o sofrimento de outro ser para tentar ajudar, tentar transfundir a serenidade que pode mesmo faltar para si. Se vai se usar mais ou menos a técnica, seja ou não a técnica baseada em evidências, o fato é que as transmissões não locais de alma para alma ampliam muito a nossa capacidade de ajuda. E de entendimento.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

I Miss the Drama

Uma coisa que é um tanto tradicional nas mesas e convescotes de um Congresso de Psiquiatria (isto deve acontecer nos outros também) é aquela ar blasé de todos os colegas sempre dizendo que foi tudo uma porcaria. Uma coisa do tipo: eu já sabia de tudo, não me trouxe nenhuma novidade. Bem, queridos colegas, depois que inventaram a Internet, não há como termos grandes revelações e lançamentos nos Congressos. Não é o Salão do Automóvel, onde lançamos remédios ou tratamentos de última geração. O chique mesmo é achar tudo uma bosta. Eu prefiro caçar coisas boas. Como sou um psiquiatra generalista, que trata de adolescentes até queridos velhinhos, acabo me interessando por um monte de assuntos diferentes, enquanto os colegas vão lá, apresentam o seu trabalho, atualizam as fofocas e vão para a praia.
Uma apresentação emocionante foi de um colega do Sul, Flávio Kechanski (espero que a grafia esteja correta) que fez uma apresentação do tipo "Como Eu Trato", no caso, como ele trata o usuário de Crack. A novidade foi a platéia, de quase 700 pessoas. Isto significa que, após décadas, o crack está chegando à classe média e aos consultórios, daí o grande interesse. Nesta apresentação havia duas novidades, pelo menos para mim. Todo mundo sabe, uma dificuldade que todo dependente químico tem é a hora da retirada da substância. No caso da cocaína, o day after é particularmente difícil, com a sensação do Crash (o som da palavra em Inglês já mostra o barulho das coisas desabando). Flávio mostrou um trabalho com resultados robustos de uma terapia de troca por medicamento estimulantes, como os usados para Sonolência Diurna. Na hora do Crash, ou da Fissura, esses medicamentos estimulantes diminuem os sintomas de retirada e dão mais gás para o paciente passar por esse vale da sombras. Isso tem implicações importantes. Uma coisa que a maioria dos dependentes, os dependentes de relacionamentos inclusive, é a sensação pervasiva de vazio, de falta de sentido que favorece a fissura, a busca incessante de algo que traga a sensação de se estar centrado, ou de que as coisas fazem algum sentido. Isso é uma coisa que nos constitue como humanos. A sensação maior ou menor de vazio, de ânsia, de busca por algo que nos aplaque, que nos traga sentido. No caso dos dependentes, essa ânsia está no miolo de todas as dificuldades de tratamento e recuperação. A sensação de que a Realidade é de um vazio opressivo que necessita de escape, de dissociação para que a dor não aumente demais. Achar um medicamento que diminua essa sensação abre muitas possibilidades de ajuda. Outro trabalho com dependentes de cocaína mostrava o Cérebro de um Dependente quando se falava no uso da substância. As áreas do Cérebro relacionadas aos pensamentos e aos desejos se acendiam como uma árvore de Natal. Como uma criança esperando pela festa,ou na fila da Montanha Russa. Foi como enxergar dentro do Cérebro os circuitos da fisssura, o que se acende quando desejamos desesperadamente algo. Muito viemos escrevendo sobre as Obsessões Amorosas neste blog, sobre os pensamentos circulares e as compulsões de busca do objeto desse amor. Será a dependência amorosa um tipo de cocaína? Ou pior: será que a compulsão de Busca\Frustração\Luto não é uma repetição compulsiva que busca a repetição da dor? No filme "O Casamento de Rachel", a história gira em torno da irmã dependente química que sai da internação para passar o final de semana no casamento de sua irmã, Rachel. Além de toda roupa suja que vai ser lavada nessa família, há uma cena em que Kimi, a irmã problema, vai até uma reunião de AA, e um dos caras fala que sente falta de uma coisa das bebedeiras: o drama. "Sinto falta do drama", dizia, das emoções que vem à tona nas bebedeiras, nos vômitos de ódio e rancor que sempre aparecem, além de dor e arrependimento depois. Será que uma das coisas que alimentam o ciclo de frustração e compulsão amorosa não é o Drama, não é chance de sofrer muito, chorar muito e sentir acolhimento (ou endorfinas) após a decepção?
Como o leitor pode ver, sempre tem coisas muito boas a se pescar em um Congresso.