sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Fragmentos de Borges e Felizes os felizes

Lá se vai 2011. Engraçado, esse ano parece que as pessoas passaram ainda mais batidas pelo Natal e pelo Ano Novo. Os votos de Boas Festas são dados na internet em spams de editoras ou de sites com produtos para aumentar o pênis. As pessoas estão se cumprimentando menos, ou muito cansadas para comemorar?
De minha parte, envio o último post de 2011 poupando os visitantes de mais assuntos relacionados à Neurociência, à Psicologia Analítica ou ao Futebol Brasileiro. Vou encerrar o ano com um texto de um escritor que muito amo, Jorge Luis Borges. Vai ser uma espécie de presente de Natal atrasado, já que passamos tão batidos pelo Natal. O texto se chama: “Fragmentos de um Evangelho Apócrifo”, ou seja, um Evangelho cujo autor desconhecemos e nem queremos conhecer. É uma paráfrase do Sermão da Montanha, que nos atinge na boca do Estômago, por sua força de vida. Lá vai:
“ 3. Desventurado o pobre em espírito, porque debaixo da terra será o que agora é na terra.
4. Desventurado o que chora, porque já tem o hábito miserável do pranto.
5. Ditosos os que sabem que o sofrimento não é uma coroa de glórias.
6. Não basta ser o último para alguma vez ser o primeiro.
7. Feliz o que não insiste em ter razão, porque ninguém a tem ou todos a têm.
8. Feliz o que perdoa aos outros e perdoa a si mesmo.
9. Bem aventurados os mansos, porque não condescendem com a discórdia.
10. Bem aventurados os que não têm fome de justiça, porque sabem que a nossa sorte, adversa ou piedosa, é obra do acaso, que é inescrutável.
11. Bem aventurados os misericordiosos, porque a sua felicidade está no exercício da misericórdia e não na esperança de um prêmio.
12. Bem aventurados os de limpo coração, porque vêem a Deus.
13. Bem aventurados os que padecem perseguição em nome da justiça, porque lhes importa mais a justiça do que seu destino humano.
14. Ninguém é o sal da terra; ninguém, em algum momento de sua vida, não o é.
15. Que a luz de uma lâmpada se acenda, embora nenhum homem a veja. Deus a verá.
16. Não há mandamento que não possa ser infringido, e também os que eu digo e os profetas disseram.
17. O que matar pela causa da justiça, ou pela causa que ele crê justa, não tem culpa.
18. Os atos dos homens não merecem nem o fogo, nem os céus.
19. Não odeies a teu inimigo, porque se o fazes, és de algum modo seu escravo. Teu ódio nunca será melhor que a tua paz.
20. Se te ofender a tua mão direita, perdoa-a; és teu corpo e és tua alma e é árduo, ou impossível, fixar a fronteira que os divide.
24. Não exageres o culto da verdade; não há homem que ao fim do dia não tenha mentido com razão muitas vezes.
25. Não jures, porque todo juramento é uma ênfase.
26. Resiste ao mal, mas sem espanto e sem ira. A quem te ferir a face direita, podes oferecer-lhe a outra, sempre que não te mova o temor.
27. Eu não falo de vinganças nem de perdões; o esquecimento é a única vingança e o único perdão.
28. Fazer bem a teu inimigo pode ser obra da justiça e não é árduo; amá-lo, tarefa de anjos e não de homens.
29. Fazer bem a teu inimigo é o melhor é o melhor modo de comprazer a tua vaidade.
30. Não acumules ouro na terra, porque o ouro é o pai do ócio, e este, da tristeza e do tédio.
31. Pensa que os outros são justos ou o serão, e se não é assim não é , não é teu erro.
32. Deus é mais generoso que os homens e os medira com outra medida.
33. Dá o santo aos cães, deita tuas pérolas aos porcos; o que importa é dar.
34. Busca pelo agrado de buscar, não pelo de encontrar...
39. A porta é a que escolhe, não o homem.
40. Não julgues a árvore por seus frutos nem ao homem por suas obras;podem ser piores ou melhores.
41. Nada se edifica sobre a pedra, tudo sobre a areia, mas nosso dever é edificar como se fora a pedra a areia...
47. Feliz o pobre sem amargura e o rico sem soberba.
48. Felizes os valentes, os que aceitam com ânimo semelhante a derrota ou as palmas.
49. Felizes os que guardam na memória as palavras de Virgílio ou de Cristo, porque estas darão luz a seus dias.
50. Felizes os amados e os amantes e os que podem prescindir do amor.
51. Felizes os felizes.”

Esse é na verdade, o meu mandamento preferido. Felizes os felizes. Sejamos felizes em 2012. Em 2013. Em 2014...

domingo, 25 de dezembro de 2011

Natividade

Uma das partes mais terríveis do Velho Testamento (e não faltam partes terríveis nele) é a hora em que Jeová/Elohim expulsa Adão e Eva do Paraíso, proferindo as sentenças definitivas: para a mulher: “Parirás em dor” e para o homem:”Ganharás o pão com o suor de teu rosto”. Qualquer engraçadinho diria que a sociedade pós moderna venceu as pragas bíblicas, com a Anestesiologia tornando o parto indolor (sobretudo se for no Brasil, campeão mundial de partos agendados). O trabalho que faz o rosto suar diminuiu também nesses tempos de condicionamento de ar. Mas o mais provável é que Jeová não estivesse sendo tão literal assim.
O Mito da Natividade que, sabendo ou não, comemoramos e revisitamos em todos os feriados de Natal, fala do Parto e do Suor. Todo dia nos deparamos com a sequência descrita em outro Testamento, o Novo. Sempre que recebemos uma notícia inesperada, uma doença, um acidente, algo que muda rápida e definitivamente a nossa vida, recebemos a mesma cacetada que uma menina, diante do anúncio de que vai parir, em dor, uma criança. E toda criança, como aquela, é uma Criança Divina. Ao dizer sim, até pela impossibilidade de dizer não, ao que a Vida nos impõe, repetimos o Sim daquela menina. Somos amigos da estabilidade e do previsível, mesmo sabedores que não há o estável nem o previsível. Quando a mudança nos é imposta, pelas circunstâncias ou pela transformação intrínseca à vida, podemos paralisar, ou dizer o que a menina falou na Galiléia. Sim. Essa menina realmente existiu e encontrou-se com o Anjo? Isso, como eu já escrevi em outros posts, é completamente irrelevante. Nesse exato momento em que as pessoas acordam em suas ressacas da Noite Feliz, alguém deve estar recebendo uma notícia que mudará a sua vida, definitivamente. Quando a vida muda, quando a Anunciação se dá, iniciamos uma jornada. Para os junguianos, uma Jornada Arquetípica. A Jornada vai ser carregada de dúvidas, como o jovem rapaz que cogita abandonar a sua noiva para não condená-la. As dúvidas são talvez o maior sofrimento da estrada.
Como o jovem casal, Maria e José, precisamos atravessar desertos para encontrar o lugar. Passamos por desconfortos na era dos confortos, ficamos acovardados ou paramos do lado da estrada, mas sabemos, ou deveríamos saber, que a estrada é nossa, pessoal e intransferível e ninguém pode trilhá-la por nós. Antes de chegarmos ao fim e concluirmos a jornada, parece que tudo joga contra, tudo ameaça dar errado, até o nascimento pobre, num celeiro ou numa maca de um hospital de periferia. O parto de dá, sim, em dor, a despeito das drogas anestésicas. Não há anestesia para a dor de se construir uma vida. Não há carro potente que possa nos poupar do suor de conseguir atravessar as dificuldades e chegar.
A data do Natal nasceu de uma acordo que adequasse o Mito Cristão ao Solstício de Inverno, ou de Verão, de acordo com o Hemisfério do planeta. Isso também é irrelevante. Natividade é todo dia. Amém.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Terezinha

Outro dia estava citando numa sessão uma música de Chico Buarque, Terezinha. A cliente, na faixa dos trinta anos, não conhecia a música. Mandei youtubá-la. Chico Buarque deveria ser matéria obrigatória. A tal geração Y está perdendo-o de vista. O fato é que, particularmente, as músicas do Chico falam da alma feminina como ninguém. Um junguiano diria que ele faz música com a sua Anima. Terezinha fala das três fases de desenvolvimento do Animus, ou seja, da relação da mulher com o Masculino. Chico inspirou-se numa cantiga de roda: “O primeiro foi seu pai, o segundo seu irmão, o terceiro foi aquele que a Tereza deu a mão”. Chico escreveu, Betânea cantou: “O primeiro, me chegou/ Como quem vem do florista/Trouxe um bicho de pelúcia/Trouxe um broche de ametista”. Esse homem é o primeiro da cantiga de roda. O Homem Bonzinho. Ele é protetor, cuida e é o genro que toda sogra quer. Dá segurança e está sempre por lá quando a mulher precisa. Chico conclui essa estrofe assim “Me encontrou tão desarmada, que tocou meu coração/ Mas ele não me negava nada/ E assustada eu disse não”. O Homem Bonzinho tem todos os predicados, está sempre atento, demonstra o tempo todo a sua perfeição. Entediada, a mulher diz não. Continua a música : “ O segundo, me chegou/ Como quem chega do bar/ Trouxe um litro de água ardente/ Tão amarga de tragar/ Indagou o meu passado/ E cheirou a minha comida/ Vasculhou minha gaveta/ Me chamava de perdida”. Se o primeiro é um homem Pai/Mãe, o segundo é o bad boy. É o que vai fazer a mulher sofrer. É anti-Pai e a anti-Mãe. As mulheres de alcoólatras e de homens feridos em geral conhecem bem essa versão. O homem que agride, que duvida, que pune a mulher pelo que sua mamãe fez e deixou de fazer. A estrofe termina com: “Me encontrou tão desarmada/que arranhou meu coração/ Mas ele não entregava nada/ E assustada eu disse não.”
Não são poucas as mulheres que ficam presas nessas duas fases. As meninas que casam com homens-paizões, tendo chiliques por bolsas de cinco mil reais e morrendo de tédio no meio de um conforto desértico; ou as que se fixam na relação com os bad boys e vivem caçando as suas infidelidades e a absoluta falta de generosidade com a companheira; choram, deprimem, se entristecem sem perceber que estão presas apenas pela sua dependência do sofrimento. Basta dar as costas ao infinito egoísmo desse homem e seguir em frente. Mas como deixar a identidade de ser aquela-que-sofre? A quem ela irá culpar pela sua infelicidade?
Chico termina essa música belíssima com o terceiro homem de Terezinha: “O terceiro, me chegou/ Como quem chega do nada/ Ele não me trouxe nada/ Também nada perguntou/ Mal eu sei como se chama/ Mas eu sei o que ele quer/ Se deitou na minha cama/ E me chama de mulher”. O terceiro, o que vem para ser o cara, ao contrário dos outros, não tenta ifantilizar a mulher. Ela já não é mais a menina assustada, de coração arranhado. É uma mulher adulta, pronta para receber o seu homem: “Foi chegando sorrateiro/ E antes que eu dissesse não/ Se instalou feitou um posseiro/ Dentro do meu coração”.
Acho que vou distribuir a letra dessa música a todas as pacientes obsessivas amorosas, que procuram no escuro, sem saber o que estão procurando num homem. Ou deveria entregá-la aos homens que querem aprender a ser homem?

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Godspell 2

Hoje é a postagem de número 200 desse blog. Outro dia estava ouvindo uma moça dar entrevista sobre blogs, acho que ela tem um grupo ou uma empresa que hospeda e ajuda as pessoas com seus blogs. A entrevista era no rádio. Ela disse que a maioria dos blogs morrem depois de alguns meses, geralmente por desânimo de seus autores. Os posts ficam perdidos na blogosfera, nessa época de twitts e manifestações do tipo: " Acordei tarde, que sono!" que alguns twitteiros postam como se fosse o auge da experiência humana ou se houvesse uma horda de seguidores prontos a comentar os seus bocejos. O pior é que, em alguns casos, há uma horda de seguidores emocionados com esse twitt de conteúdo definitivo para nossa cultura pop.
Esse blog não pereceu, apesar dos pesares. Sofre com meus excessos de trabalho, com a falta de um tema específico, não criando portanto um público ou um perfil de interessados. Continua uma coisa caseira e algo despretensiosa (a despeito do autor), que gera alguns comentários mais calorosos e queridos, mas pouca paixão. Posso adiantar que não vou abandoná-lo, salvo causa de força maior. Provavelmente vou mudar algumas de suas características, mas esse é um projeto para 2012.
Teclei ontem sobre uma peça atualmente em cartaz em Nova Iorque, um musical belíssimo chamado Godspell. O texto cantado e encenado é o Novo Testamento, com um Jesus loiro e vestindo uma calça bege e uma camisa de um time de beisebol. Ontem eu mencionei a cena final, onde o Cristo crucificado é levado em triunfo sobre a cruz para fora do teatro. Uma porrada. A vitória sobre a morte e o sofrimento se dando através da morte e do sofrimento. Esse é o paradoxo crístico, nessa época de literalidades (as pessoas e as coisas estão demasiada e estonteantemente literais, meu Deus).
Outra cena da peça me tocou profundamente e acho que vale a pena dividí-la com os leitores nesse semana de Natal, onde o Papai Noel tem mais destaque do que o nascimento da Criança Divina. A mesa da ceia foi colocada num canto do palco. Os atores tomam copos de cafezinho de vinho e compartilham da mesa. Pouco a pouco, vão chamando as pessoas da platéia a descer ao palco e compartilhar o vinho. As pessoas, a princípio tímidas, depois mais confiantes, vão descendo ao palco e tomando daquele vinho, nem todas imaginando o que significa aquele vinho. Os atores saem de cena, a banda para de tocar, as pessoas continuam descendo para o palco (é um teatro de arena) para compartilhar da mesa. Se a peça terminasse ali, estava muito bom. Nessa época de individualismo e individualidades postadas em twitters e facebooks, o verdadeiro significado da Última Ceia estava todo manifesto nessa cena: compartilhar, se fartar do sangue derramado para que todos tenham acesso à essa consciência. Foi muito intenso esse momento. Quando os atores se retiram de cena e deixam a mesa, entram quase sem querer nessa matriz simbólica: dividir para multiplicar.
O significado do Natal e de outras festas sempre ronda essa questão: o compartilhar,o desarmar das mágoas e das mesquinharias de nosso dia a dia, para a construção de uma pequena e duradoura unidade. Os atores da peça tinham essas diferentes origens: brancos, negros, hispânicos, orientais, judeus, todos reunidos em torno da mesa e da dificílima reunião dos habitantes de Babel.
Esse talvez devesse ser o espírito de Natal.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Godspell

Outro dia um paciente muito antigo e querido veio me contar da conversa com a terapeuta lacaniana de sua filha, quando mencionou que fazia psicoterapia junguiana há algumas décadas. Ela observou que Jung era um psiquiatra de orientação algo mística, ele óbvio, veio me falar, e eu devolvi o recado dizendo que me recuso a discutir esse assunto sem cerveja. O papo morreu aí, sem cerveja. Adoro a obra de Lacan e não fico mencionando que ele era, em sua vida pessoal, um monumento ao Narcisismo que tentava tratar em seus pacientes. Não confundo autor e obra. Jung já foi chamado de tudo: antisemita, místico, psicótico, romântico e por aí vai. Mas, parafraseando outra lacaniana que eu adoro, Françoise Dolto, para que tanto ódio?
Carl Jung era filho de um pastor protestante, muito pobre. Viu, após a sua adolescência, seu pai ser consumido por um profundo processo depressivo, embalado por uma também profunda crise de fé, que acabou culminando em uma doença oncológica que lhe tirou a vida. Penso que a escolha pela psiquiatria e uma parte muito grande da obra de Jung foram uma tentativa inconsciente de salvar o seu pai. Jung era eminente e profundamente, um psicoterapeuta cristão. Daí a acusação de misticismo. O capítulo em suas memórias sobre vida após a morte, que ele permitiu a publicação apenas após a sua própria, também não ajudou muito a sua fama. Mas o leitor e a leitora desse blog pode questionar: é uma acusação tão grave assim? É realmente tão ruim ser um místico? Não, com certeza, não. Mas Jung foi um pesquisador e fenomenólogo rigoroso, sempre descrevendo e checando cientificamente a validade de seus constructos. Não propôs uma teoria que nasceu de uma intuição ou uma visão da Verdade, por isso ele repudiava a "acusação" de misticismo.
Todo esse preâmbulo para falar do Cristianismo como um sistema de símbolos, como são as mitologias. o importante não é encontrar provas históricas da existência de Jesus, mas antes entender o fundamento da Consciência Crística, um estado de consciência ampliada que podemos atingir depois de muito trabalhar em nosso desenvolvimento.
Quando estive em Nova iorque, no começo do mês, fui a um musical da Broadway, com a forte recomendação de um amigo. O musical foi montado pela primeira vez nos anos setenta, e dá título a este post: Godspell. Fui meio cabreiro de encontrar uma montagem meio hipponga, meio datada, não foi isso que aconteceu. É uma montagem belíssima do Evangelho de São Mateus transformado em música e, sobretudo, em alegria. Jesus é interpretado por um rapaz de pouco mais de 20 anos, com uma calça de brim e uma camisa de beisebol azul clara. Incrível a alegria que conseguia transmitir repetindo as velhas frases do Novo Testamento, tão conhecidas e que pareciam inteiramente novas em sua interpretação. O elenco era muito jovem, com aquela pegada e sinceridade que a técnica vai diluindo com os anos. Jesus é levantado por cabos e amarrado a um tronco na cena da Crucificação. Quem eleva o tronco é Judas, que depois ajuda a carregá-lo em triunfo para fora do palco, subindo as escadas do teatro. Chorei lágrimas de esguicho. Aquele é o significado da morte na cruz: o triunfo sobre a dor da condição humana, o triunfo sobre a morte e sobre o medo do devir que nos come os dias. Isso que é o Mito Cristão, não o que ficam cacacrejando os carolas. Mas vou falar mais sobre isso e sobre a peça, até o Natal.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Futebol Total

Estou assistindo nesse momento o vareio de bola que o Santos está tomando do Barcelona, na final do Campeonato Mundial de Clubes. Não tenho nenhum prazer em ver o melhor time do Brasil assistindo o melhor time do mundo jogar, sem defesa. Todo mundo sabia que seria muito difícil o Santos ganhar. O que todos pensavam é que, pelo menos, daria jogo. Não deu.
Uma das minhas lembranças mais fortes no futebol foi de uma seleção que assombrou o mundo na década de setenta: a Laranja Mecânica, a seleção da Holanda da Copa do Mundo de 74. Eu era um moleque de dez anos e desci chorando para jogar bola no meu prédio, depois de ver o Brasil tomar um vareio de bola semelhante do time da Holanda, na semifinal da Copa da Alemanha. A comparação não é imotivada, nem por acaso.
A seleção da Holanda de 74 mudou o jogo que conhecemos como futebol. Um técnico do minúsculo país, um dos países baixos, Rinus Mitchels, foi o criador dessa revolução. A Laranja Mecânica jogava o futebol total: todos marcavam, todos atacavam, todos defendiam. Não havia posição fixa, só faixas do campo que o jogador ocupava. Não havia um centroavante enfiado na área, mas quatro, cinco, seis jogadores, chegando em conjunto em condições de concluir. O time evoluía em triangulações, tomando as beiradas do campo, fazendo ultrapassagens constantes. Não ganhou aquela Copa, o que deve ter contribuído ainda mais para eternizá-lo.
A cultura do futebol total encontrou o seu melhor solo para ser semeado em Barcelona. Rinus Mitchels, Cruiff e toda aquela geração acabaram em Barcelona. Quem já visitou essa cidade entende fácil como o estilo holandês caiu como uma luva na capital da Catalunha. A criatividade, a inversão da lógica na arquitetura, nas artes, na música, tudo combinava com a revolução holandesa. O Barcelona de Guardiola, que vai se sagrar campeão mundial daqui a alguns minutos,é a materialização de toda essa fusão da escola holandesa com a Catalunha (diga-se de passagem, é a única herdeira da escola holandesa, já que a seleção da Holanda é um bando de brucutús aplicando voadoras e pontapés. Na final da última Copa do Mundo, a seleção “holandesa” era a Espanha). No mesmo jogo, Guardiola pode mudar o jeito de jogar do Barça três ou quatro vezes. Em termos filosóficos, Muricy é um estruturalista, Guardiola é um desconstrutivista. Muricy acabou de trocar um centroavante por outro. Guardiola trocou um lateral que joga de ponta por um segundo atacante que volta para marcar no meio. Dá para entender a diferença?
A Copa do Mundo será em dois anos, no Brasil. Temos receio de muitas vergonhas que podemos passar: na infraestrutura, na segurança, na organização. Com esse jogo, podemos também temer por passar vergonha também dentro do campo. Mano Menezes também é um estruturalista. Será que vai conseguir fazer a seleção jogar como uma seleção brasileira?

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O Que os Homens Dizem

Já mencionei em outros posts que a busca de um parceiro ou de um grande amor virou uma grande jornada arquetípica da mulher pós moderna. As comédias românticas, onde a mocinha sofre todo tipo de desilusão para encontrar o grande amor no final, também aumentam o sofrimento, pois fica gravado no Inconsciente da moça que, apesar de todos os pesares, tem um happy ending à sua espera, não importa o que possa acontecer ou parecer.
Óbvio que eu não ouço só a versão das Luluzinhas, enlouquecidas pela ausência dos meninos. Os rapazes também sentam no meu sofá e falam da perplexidade de serem medidos de cabo a rabo desde o primeiro encontro, com vistas ao meio fraque e ao altar da igreja. Tinha um particularmente engraçado que cunhou o termo DRI, em oposição à tradicional DR. DR são as intermináveis (para os homens) e as insuficientes (para as mulheres) Discussão de Relacionamento. As mulheres tem as áreas da Fala mais desenvolvidas, por isso que as meninas normalmente falam antes e melhor do que os meninos, quando são bebês (e quando são crescidas, também). Por isso que em qualquer DR conseguem pulverizar os argumentos de seu oponente, listando meticulosamente todas as suas incoerências. A DRI é uma Discussão de Relacionamento Inexistente. Dentro da selva atual de classificações, com Peguetes, Periguetes, Ficantes Eventuais, Ficantes Fixos e por aí vai, a DRI é quando uma Peguete muito eventual vem cobrar coisas e assuntos como se o casal inexistente estivesse perto das Bodas de Prata. O cara olha com aquela cara e some. Do que ela está falando? -perguntam, e somem.
Os homens também tem uma classificação para a mulher a ser evitada: é a Mulher que Surta.
Além das DRIs, a Mulher que Surta faz um esforço hercúleo para parecer descolada, independente e vitaminada, mas uma hora não aguenta a falta de consistência masculina do rapaz e explode, geralmente com uma miscelânea de queixas imaginárias. O cara olha com aquela expressão embasbacada e se sai com o tradicional- "Não te prometi nada", o que deixa a Mulher que Surta ainda mais surtada.
Outra dica para as meninas: não puxem um arquivo de frases amorosas e promessas que o candidato a Romeu falou antes do, como poderia dizer sem chocar, conluio carnal. Os machos de diversas espécies usam vários artifícios de sedução, como cantos maravilhosos dos pássaros e caudas de pavão abertas para impressionar as fêmeas. Não se iludam, eles estão pensando "naquilo". Atingido o objetivo, as promessas, as frases bonitas, as juras, perdem a sua importância. A Mulher-que-ainda-Não-Surtou começa a procurar por aquele macho da espécie que trinou belos cânticos de amor na véspera, para descobrir que o nosso galã faz parte de outro grupo de homens, o Cara-que-Some. O cara que some, depois de concluída a noite de paixão (ou os quinze minutos de paixão, dependendo do cara), some no deserto de celulares na caixa postal, facebooks indeterminados e montanhas de compromissos de trabalho. A Mulher-que-Não-Tinha-Surtado começa, após alguns dias de silêncio, a ficar muito perto de se tornar uma Mulher-que-Surta, sobretudo quando o Dito Cujo aparece algumas semanas depois, como se nada tivesse acontecido e indaga: "Oi, sumida. E aí?", com aquela cara lustrada em óleo de peroba.
E ainda falam que as psicoterapias profundas vão deixar de existir. Haja divã para esse povo, perdido nas selvas das redes sociais.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Especialistas do Perú

Outro dia estava na odisséia paulistana do trânsito de Natal. As aulas acabaram, o Trânsito piorou. Coisas da paulicéia. Recebi um desses jornais de semáforo, em breve o único jornal que vamos conseguir ler durante o dia, de capa a capa. Havia uma matéria de capa, paga, simulando o próprio jornal, com modelos sorridentes cortando um perú de Natal. Pelo menos não havia nenhum Papai Noel na matéria, mas o objetivo era parecer uma matéria normal. Uma das “manchetes” dava conta que os especialistas recomendavam o tal peru X ou Y para a ceia de Natal. Ai meu Deus. Agora vamos precisar consultar os especialistas para comprar e fazer o perú no Natal, essa tradição tão "brasileira".
Acabei de ler mais um livro de Malcom Gladwell, “O Ponto de Virada”. É um ensaio muito bacana sobre epidemias sociais, o que pode transformar um mocassim horrível, da marca Hush Puppies em moda e mesmo febre americana nos anos noventa. Eu vi uns exemplares do Hush Puppies em Manhattan, são feios mesmo. Um pequeno grupo de moleques descolados em New York começaram a usar esses sapatos do nada. Logo o boca a boca foi tornando esses sapatos em febre, a produção estourou, os sapatos estranhos estão até hoje nas vitrines. A moda deve ter passado, ou mudado de direção.Mas os Hush Puppies estão lá, firmões. Malcom Gladwell descreve a importância dos ditos especialistas na difusão desses conceitos: pessoas que servem de referência com seus conselhos para a galera, dizendo que determinada tendência é “cool”, descolada e deve virar moda. Por isso a propaganda disfarçada de matéria jornalística apelava para a opinião de “especialistas” que ditavam a tendência de fazer perú no Natal.
O problema dessa nossa tendência a depender dos especialistas é a morte do bom senso. A falta da capacidade de unificar conhecimentos. Precisamos de especialistas para praticamente tudo. Na indústria farmacêutica, esses especialistas são classificados como “Formadores de Opinião”. Alguns são de dar com cachorro morto na cabeça, e ainda assim são lambidos e levados para os eventos onde vão transmitir o ponto de vista sobre determinada medicação ou transtorno a ser tratado. Outro dia tive uma experiência interessante, em que o expert que dava aula começou a falar a verdade! (Como assim??). O remédio tinha limitações, já observadas na prática clínica e ele confirmou essas limitações! Foi um escândalo para mim. Fui agradecer ao final da apresentação, pelo respeito à minha inteligência.
Acho que deveríamos fazer um movimento para os marketeiros respeitarem a nossa inteligência. A grande questão é como podemos, nós mesmos, assimilar o hábito de respeitar a nossa inteligência. Não acreditar em especialistas de perú (nada contra os Urologistas) pode ser um bom começo.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Sócrates Brasileiro

Estava na cama do pequeno quarto do hotel em Manhattan quando a minha esposa me avisou da morte de Sócrates Brasileiro, grande ídolo do Corinthians e do futebol brasileiro, por complicações de uma Insuficiência Hepática, causada por uma Cirrose e Alcoolismo, nessa ordem. Não foi uma surpresa, embora achasse que o Magrão ainda tinha mais lenha, pouca, para queimar. Voltei para o Brasil no meio da semana e já engatei um ritmo de doze horas de consultório, o que me poupou dos longos e melosos obituários, todos falando do jogador mítico, elegante, luminoso, que encantava a todos com as suas passadas curtas e seus passes de calcanhar, desconcertantes. Imitei muito esses passes. Mas o que fez aquele jogador impressionante virar aquela figura inchada, pálida, com os olhos infinitamente tristes que víamos na TV nos últimos anos?
Sócrates, Garrincha, Jorge Mendonça, e, como esquecer, Maradona, não são poucos os jogadores que se consomem na bebida depois do fim dos holofotes. Fim da atenção especial, das manchetes, dos tapinhas nas costas? Tenho outra teoria. O atleta, o artista, a figura pública, desenvolve uma espécie de personalidade por trás da Persona. Os jogadores de futebol tem uma personalidade futebolística específica. O São Paulo tem um moleque muito bom de bola, o Marlos, que tem tudo para virar um pequeno Messi. Mas o garoto não deslancha, as pernas tremem, o chute sai torto na hora H, simplesmente porque Marlos não desenvolveu a sua personalidade futebolística. A diretoria do São Paulo pode mandar o garoto lá para o meu sofá que eu dou um jeito nele. Sócrates, ao contrário, era uma personalidade futebolística ímpar. Um Príncipe. Elegante, peito estufado, visão 360 graus, o braço levantado comemorando o gol de forma impassível. Nunca explodia, nunca dava pontapé, nunca saía gritando e babando na hora da vitória. Era frio, introspectivo, vivia dentro de uma bolha mental onde pensava o jogo como ninguém. Imagino Sócrates jogando hoje, nessa época de correrias, onde ninguém parece pensar, só correr. Sócrates, com esse nome, só podia mesmo pensar profundamente o jogo, a solução mais minimalista, o toque inesperado. Tenho a impressão que a sua personalidade futebolística o matou. Explico.
Pelé faz uma distinção entre Pelé, o Rei, e Edson, a anta. É bom mesmo. A personalidade futebolística de Edson Arantes do Nascimento foi a mais fulgurante de todas. Um monstro que parecia ter o triplo de seu metro e setenta e dois. Pelé era o cara. Edson, que vive às custas do que Pelé realizou, é um homem simples, pouco habilidoso com as palavras e com os homens fora das quatro linhas. Sócrates nunca se encontrou fora delas. Tentou a Medicina, tentou ser técnico, tentou muitos empreendimentos, parece que a única atividade que prosperou foi o papo de boteco. Teve um filme, “Boleiros” em que Sócrates fez o papel dele mesmo, sempre empunhando um copo de cerveja, contando e ouvindo “causos”. Parece que foi lá que o Magrão passou os anos de aposentadoria: tomando cerveja, beliscando salgadinhos e relembrando as cenas míticas do Príncipe. Por isso os seus olhos sempre pareciam tão tristes e cansados. Como eu já falei em outros posts, você dá conta da ferida, ou a ferida dá conta de você. Sócrates, o homem, cedeu à essa tristeza. Mas deixou o Príncipe em nossa lembrança, para sempre.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Nova Iorque e o Mito

Para quem deu pela falta, estou escrevendo o primeiro post de Dezembro depois de um tempo desconectado. Estou em Nova Iorque para uma viagem curta, de pouco mais de um final de semana. A última vez que eu passei por aqui era um adolescente e a imagem que mais gravei foi o edifício Dakota, onde John Lennon foi assassinado. Hoje corremos de atração em atração para tentarmos uma visão rápida da Big Apple, com museus, show da Broadway e, claro, compras.
Engraçada é a distância entre a N. Iorque mítica e a de verdade. Ontem passamos pelo Central Park numa ponte onde vários cineastas gravaram cenas de amor. Lembro de um filme do Woody Allen, "Another Woman" em que a atriz principal, como uma boa personagem do Woody Allen, entediada e atormentada pelo casamento infeliz e amornado, dá um beijo cinematográfico (desculpe o pleonasmo) em Michael Caine (que não é o seu marido no filme) debaixo daquela ponte. Pois a ponte é um cantinho descascado e pichado, digno do parque Trianon, em São Paulo. As carruagens que dão a volta no parque, também presentes em várias comédias românticas e cenas do Sex and the City, de perto, tem uns cavalos meio Poços de Caldas e condutores sem cartolas. Tudo isso por cinquenta dólares a voltinhas. Por cinquenta dólares eu puxo a carroça, em vez de ficar encima.
Por falar em Poços de Caldas, fomos comer, na saída do Metropolitan, o também mítico Hot Dog das barraquinhas de New York. Lembro dos machões do Law and Order, sem tempo para almoçar na busca dos bandidos, comendo esses quitutes.O Hot Dog que eu faço lá me casa é bem melhor, do pão quentinho à salsicha de melhor qualidade. Eu alertei a minha mulher: colocar ketchup no cachorro quente é ofensa grave. Ela pediu o dela com mostarda, o meu com chili. Será que Clint Eastwood aprovaria um Hot Dog com chili? Pois o chapeiro saiu perguntando em Português quais molhos a gente queria. Brasileiro de Poços de Caldas, é mais um mineiro em busca do American Dream que termina com o esfregão ou a chapa quente na mão. Mas como disse outro mineiro, o Wálter, nosso guia em outro passeio, um trabalhador americano ganha em um dia o suficiente para comprar um forno de micro ondas, enquanto que o brasileiro que ganha salário mínimo rala um mês para comprar o mesmo forninho. Tudo bem que aqui custa um quinto do eletrodoméstico do Brasil. Mas Wartão (que começou o dia se apresentando com a pronúncia em Inglês, Ualter, e terminou Wartão) deu uma grande e definitiva vantagem de Manhattan: quase não se vê argentinos. A bronca que eles tem dos ingleses se estende aos americanos.
Para quem lê essas mal tecladas, pode parecer que há alguma decepção nesse encontro com a Big Apple. Nada mais falso. Mas se a minha Sampa natal fosse tão retratada por nossos cineastas e séries de TV (parece que nossos cineastas paulistas só conhecem as locações do Minhocão e os cariocas, nas favelas e nos morros) também teríamos turistas chineses fotografando o MASP ou o Ibirapuera, mostrando as locações dos filmes. Haveria também uma São Paulo mítica, do Bexiga ao Itaquerão.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O Futebol e suas Metáforas

Hoje tive um sonho melancólico me acordando. O São Paulo tomava um gol do Corinthians, o segundo, selando uma derrota. Acordei com a bola entrando milimetricamente no canto de Rogério Ceni, que se esticou inteiro, em vão. Uma interpretação seria que, em alguns momentos de nossa vida, apesar de todos os esforços para fazer a coisa certa, ainda assim as coisas podem dar errado. No meu caso, tomar um gol do Corinthians é o cúmulo da tristeza futebolística.
Recentemente o presidente do São Paulo, o burlesco Juvenal Juvêncio, cunhou uma frase que reverberou em todas as mídias sobre o presidente do Timão, Andrés Sanchez: “O problema dele é o Mobral inconcluso”. Há alguns dias Andrés foi convidado para ser diretor de seleções, uma manobra para levá-lo à Presidência da CBF sucedendo Ricardo Teixeira, após a Copa. A frase agressiva\preconceituosa\engraçada de Jujú visava já mandar um torpedo na direção dessa manobra. Andrés respondeu com uma meia dúzia de desaforos, nenhum com a força de chegar às manchetes como o punchline de seu desafeto.
O meu sonho desagradável também tem a ver com a iminente conquista do quinto título brasileiro pelo Corinthians. Aqui podemos extrair umas lições, aplicáveis a toda atividade humana. Uma das coisas mais difíceis de se fazer na Medicina é manter uma conduta que você entende correta, quando as coisas vão mal ou a resposta clínica é insatisfatória. Eu adoro as peripécias do Dr Gregory House, mas aquilo é ficção enlouquecida. Não há como trocar de conduta cinco vezes no mesmo dia. As pressões vem de todos os lados e eu simpatizo com os técnicos se defendendo de ataques de todo tipo de leigos, sobretudo da Imprensa, os piores, que não tem idéia da gestão de um processo grupal, como montar um time a partir de um grupo de jogadores. A conduta precisa ter um tempo para se mostrar certa ou errada, não adianta ficar trocando.
O São Paulo tem um elenco melhor do que o Corinthians nesse ano. Não é só melhor, é bem melhor. No próximo final de semana o Timão será campeão brasileiro e o São Paulo não vai conseguir nem estar entre os G5 da Libertadores. Qual será o mistério? O apito amigo beneficiou o time de Andrés? Muito menos que no ano passado. O segredo pode estar no bom aproveitamento que o presidente do Corinthians teve de seu Grupo Escolar inconcluso.
Tite, o técnico que montou um time sabedor de suas deficiências, com uma defesa sólida e vitórias de um a zero, uma fórmula que Muricy já aplicara no São Paulo em seu tricampeonato, balançou no cargo em três ocasiões: a primeira no maior vexame de todos os tempos para o seu clube, que foi a eliminação da Libertadores por um obscuro time de terceira linha da Colômbia, o Tolima. Logo depois, perdeu o Campeonato Paulista para o Santos de Neymar. Finalmente, jogou na retranca contra o São Paulo para interromper uma sequência de derrotas. Na época eu, bom são paulino, fiz um post nesse blog para tirar onda com Tite, que fala muito difícil num clube gerido por um presidente pouco letrado. Queimei a língua, e gosto de atestar que queimei.
Andrés Sanchez, chamado de analfabeto pelo presidente do São Paulo, agiu como um grande comandante nos momentos difíceis desse ano. Ele aprendeu que trocar de técnico no meio do campeonato é uma roubada e é procedimento de exceção. Bancou o seu treinador quando todo o mundo pedia a sua cabeça e agora colhe os louros. O São Paulo, do alto de sua vaidade, e a vaidade costuma ser péssima conselheira, trocou de técnico quatro vezes na temporada. Trocou mal, escolheu mal e trouxe Emerson Leão de seu merecido ostracismo, para dar muito errado. Dessa vez eu acertei, avisando que iria dar errado. Um time se faz com a unidade orgânica entre os seus jogadores, formando um todo psíquico. Juvenal, o letrado, junto com a sua diretoria, não conseguiu ninguém que desse unidade ao grupo. Deu no que deu.

domingo, 27 de novembro de 2011

Dormir de dia, Acordar de noite

No filme “Tempos Modernos”, Charles Chaplin colocava a sua obra prima, o personagem Carlitos, dentro de uma fábrica, numa linha de produção, onde a sua principal função era apertar uma única porca. Ele precisaria fazê-lo com muita precisão, pois a sua função seria apertar centenas de porcas por minuto. Óbvio que Carlitos vai se embananar no serviço, perdendo algumas peças, indo para frente atrás delas, para depois voltar, até ser engolido pelo mecanismo, na cena clássica em que continua apertando as porcas enquanto é levado pelas engrenagens. Chaplin queria denunciar a escravidão do homem pela máquina e pela produção em série. Uma vez eu ouvi de um cliente engenheiro, que o pensador mais influente do século vinte não foi Charles Darwin, mas Henry Ford, criador da linha de montagem. Como no filme de Carlitos, tudo virou uma gigantesca linha de montagem, com uma elite mexendo nos botões e o resto da galera cumprindo as suas microfunções, sem ter a visão do todo.
De algumas décadas para cá, Carlitos não seria engolido pela máquina, mas pelo computador. Ficaria pedido em algum lugar na Nuvem, o gigantesco espaço virtual onde as informações da Rede são processadas. O homem vem tentando competir com a máquina e agora chegamos numa época em que todos seremos biônicos, com algum chip ou peça mecânica inserida em nosso corpo. Alguns pacientes com depressões intratáveis já tem implantado em seu nervo vago um marcapasso que estimula o seu Cérebro continuamente, para devolver a função a áreas praticamente mortas pelos estressores e as derrotas que sofremos na vida. Uma geração de jovens está seqüestrada na nuvem, vivendo cada vez mais no Virtual e perdendo a dimensão do Real. Na Coréia um casal deixou o seu bebê morrer de inanição porque ficava horas cuidando de seu bichinho virtual. A notícia parece fabricada, de tão surreal, mas está aí debaixo de nosso nariz. Já temos uma porcentagem de jovens que chegam à idade adulta com uma escolaridade lesada em suas origens, jogando jogos na rede durante a madrugada e dormindo durante o dia. Tomam energético à noite e calmantes de dia, para viverem só no mundo em que as coisas obedecem aos seus desejos.
A Psiquiatria dá a sua contribuição para a maluquice, diagnosticando à torto e à direito o Transtorno Bipolar. No ano passado eu trabalhava num caso de um garoto chegando à maioridade que apresentava esse quadro de sequestro virtual. À noite ele fumava maconha com os amigos, jogava vídeo games de última geração e comia porcarias até abrir um buraco em seu estômago. Durante o dia ele dormia e fugia dos berros desesperados de seus pais. Tentamos fazer contato com o seu “planeta”, estabelecer acordos e trazê-lo de volta ao mundo real. Óbvio que a família abortou o processo, levou-o à uma colega que diagnosticou que o menino era um Bipolar, entupindo-o de sedativos. A última notícia que eu tive é que ele agora dormia o dia inteiro e estava cada vez mais alheio e isolado do mundo real, agora com uma Maconha legalizada, que são os psicotrópicos.
Temos uma elite que acompanha o ritmo frenético dos processamentos de informação e vida online vinte e quatro horas por dia e uma camada crescente da população de excluídos não só do mundo digital, mas do Real, mesmo.
Educar os filhos hoje tem uma dupla função: ensinar a aprender as coisas no Real, que é bem mais chato do que abrir tudo com alguns cliques do mouse, e indicar o caminho de viver, onde os erros não são apagados com a tecla DEL.

sábado, 26 de novembro de 2011

Bunny

Lá em nossa clínica, o Espaço Quattro!, somos muito ligados em cachorros. Preciso confessar que, em nossos eventos, recolhemos quilos de ração para entidades de proteção e resgate de cachorros. Com o colapso das ideologias, imagino que os partidos políticos serão divididos em amantes de cachorros, de gatos, os indiferentes e os que odeiam ambos. Não acho possível alguém amar gatos e cachorros equanimemente. Temos que fazer uma opção. Sou, portanto, do partido dos cachorros. Recomendo aos casais como primeira experiência de paternidade a adoção de um bicho de estimação. Cachorro, de preferência. Quando compramos uma casa sem saber se daria a grana para as prestações, estávamos sem grana nenhuma. Os primeiros trezentos dólares que juntamos (em época de superinflação, os cálculos eram em dólares) eu queria investir em uma antena parabólica. A minha mulher queria uma filhotinha de boxer. Adivinha quem ganhou. Eu quis chamar a cachorrinha de Parabólica, mas fui novamente voto vencido. Como os boxers tem olhos baixos e um pouco tristes, sugeri Giulietta Masina. Nome um pouco pretensioso e intelectualóide, como eu. Dessa vez, colou. Giulietta Masina era uma atriz italiana, esposa do grande diretor Frederico Fellini, eu acabara de ver um filme em que ela, já velhinha, contracenava com Marcello Mastroianni em “Ginger e Fred”. Nunca pensei que ficaria tão apaixonado por um bicho como por Giú. Quando vieram os bebês, ela se tornou uma babá delicada e zelosa, sempre deixando os avós enlouquecidos com as suas lambidas nas crianças. Giú não tinha uma saúde de ferro, era vítima dos cruzamentos consangüíneos de criadores em busca de uma marca, um pedigree. Morreu antes de completar nove anos, de uma Torção de Estômago. Ficamos, todos, quase um ano em luto. Até o gato, um viralata desaforado chamado Tom ficava no telhado da frente de casa de plantão, esperando a volta de Giulietta. Como uma família em que os pais são terapeutas, esperamos o luto se amenizar e ser elaborado, não cometemos o absurdo de sair comprando outro bicho como se a Giú fosse um brinquedo quebrado. Uma amiga aqui da Granja Vianna, ela também completamente louca por cachorros, achou uma boxer de 2 anos no site, para doação. Ela veio até com uma casinha, onde estava escrito Fanny, seu nome. A minha professora da quarta série se chamava Fanny e não me deixou saudades. Para não jogar a plaquinha fora nem deixar a cachorra pirada com uma mudança de casa e de nome, passamos a chamá-la de Bunny. Felizmente ela não é fluente em inglês, portanto não se sente ridícula por ser um animal de mais de trinta quilos que tem o nome de coelho. Eu pensava na verdade na namorada de Pernalonga, Lola Bunny. Mas ficou Bunny, mesmo, ninguém chegou a usar o nome Lola.
Bunny ficava num quintal acorrentada. O pouco que soubemos, e deduzimos, era que o dono gostava dela e a sua esposa mocréia, não. Ela não podia ficar dentro de casa, a comida era regulada e pelo visto, às vezes esqueciam de dar, porque Bunny sempre come como uma versão cachorral de caminhoneiro. O que tiver no prato, ela limpa. Apesar de estar com a gente há sete anos, o tempo de uma vida para um cachorro, Bunny nunca perdeu as marcas dos maus tratos que sofreu. Temos outra boxer mais jovem e matusquela que lhe faz companhia, Chiara (voltamos aos nomes italianos). Eu brinco com elas gritando e balançando cabos de vassoura. Chiara nunca se assusta e consegue diferenciar quando realmente o grito significa que ela comeu de novo o chocolate da despensa ou que estou brincando. Bunny, não. Qualquer grito para ela provoca medo, mesmo o de brincadeira. Impressionante que um bicho que sofreu maus tratos ser capaz de tanta doçura, tanta paciência. Com o desmatamento aqui da região, outro dia veio para um porco espinho aqui no quintal. Bunny, que já está velhinha, encurralou o bicho num canto e tentou atacá-lo como pôde. Chiara ficou dando a maior força, olhando de lado, mas não se meteu a morder aqueles espinhos. Bunny ficou com espinhos enfiados no céu da boca, na testa, nas gengivas, dentro do nariz. Eu tive medo que ela reagisse ao estresse e a anestesia, pois para deixar remover aqueles espinhos iria precisar de sedação. Peguei um alicate de fazer bijouterias e arranquei, um a um, os quarenta e oito espinhos enfiados em regiões dolorosas da boca e rosto da cachorrinha. Ela reclamou, resistiu, chegou a ameaçar me morder, mas agüentou firme o pequeno procedimento, feito por um psiquiatra até às duas da manhã, sem anestesia, sem me dar um arranhão.
Os budistas chamam de bodhicchita a capacidade de amar infinitamente, independente se o amor é retribuído ou não. Bunny é um ser bodhicchita.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

O Eu e a Ferida

Há um filme de Win Wenders de vinte anos atrás, chamado "Até o Fim do Mundo", um filme que deu origem a um período ruim de sua carreira, após a sua obra prima, "Asas do Desejo". A história era de um homem que criara uma interface entre uma microcâmera e a retina de pessoas deficientes visuais. O personagem principal, interpretado por William Hurt, atravessa o planeta para encontrar esse cientista, pois tem um filho deficiente visual. A máquina também possibilita às pessoas gravarem e reverem os próprios sonhos. O efeito colateral mostrado no filme é que todas as pessoas ficam viciadas nos próprios sonhos e passam o dia inteiro revendo-os e lembrando de sua infância e suas feridas. Choravam pelos abandonos, queriam voltar ao passado para recuperarem o que se perdeu no caminho. Todos viravam dependentes de suas memórias, sobretudo as traumáticas.
Pouco ou nada se fala sobre os efeitos colaterais do processo terapêutico, a psicoterapia de orientação analítica já é tão atacada e achincalhada que os seus praticantes não ficam acrescentando mais pedras ao linchamento. Mas uma das coisas que pode acontecer quando fazemos as nossas viagens no tempo, nas psicoterapias, é exatamente o que é retratado no filme de Win Wenders: uma fascinação e uma fixação às próprias feridas e às feridas do mundo.
Outro dia apontei para uma cliente querida esse efeito horrível, quando a Doença de Pânico virou para ela uma verdadeira obsessão, tudo gira em torno dos pensamentos e da antecipação da doença ou dos sintomas. Como no filme, ela passa muito tempo de seu dia atenta às sensações corporais que possam ensejar ou lembrar uma crise de Pânico. Tudo virou uma sombra de sua doença.
Os jornais de hoje trazem matérias sobre o aumento dos casos de afastamento e de licenças médicas por doenças psiquiátricas. Hoje estamos sempre ouvindo que fulana anda muito "estressada", sicrano está muito "deprimido" ou que a namorada "surtou" com o namorado por uma razão fútil. Os termos antes reservados às doenças psiquiátricas invadiram o senso comum. Irritação, cansaço, fadiga e, sobretudo, uma fascinação cada vez mais crescente com a própria ferida, ou com a delicada autoestima, são drogas pesadas, que as pessoas usam cada vez mais.
Revelar a própria ferida , compreendê-la e transformá-la, são os passos de qualquer psicoterapia bem sucedida. O passo mais importante, talvez, seja parar de procurar culpados e perseguidores, devedores e cobradores, para assumir a responsabilidade pela própria ferida. Como diz a Lei de Spinelli número catorze, ou você dá conta de sua ferida, ou a ferida dá conta de você. (Se parece uma frase de Monteiro Lobato, sobre Brasil e saúvas, não é mera coincidência).

domingo, 20 de novembro de 2011

Insônia

Dei uma entrevista para uma jornalista amiga sobre o tema desse post. Queixava-se ela da visão seca dos neurologistas com seus laboratórios de sono, pediu ajuda de um psiquiatra, já que o sono de nossos pacientes é um assunto de grande interesse para a classe. Eu tinha um velho mestre que dizia que quando o paciente dorme é meio caminho andado. O psiquiatra pode e deve meter a sua colher nesse assunto.
Ela observou que segundo os dados dos institutos de sono, nunca se dormiu tão mal como nos últimos dez anos. O que está acontecendo? Boa pergunta. Mas uma pergunta não ocorreu em nossa conversa agradável: Para que dormimos?
A partir das aves e dos mamíferos que o dormir é uma constante em todas as espécies. Os mamíferos aquáticos, por exemplo, como golfinhos e baleias, repousam uma metade do Cérebro enquanto a outra continua operando o maquinário. Não sei por que alguém não teve ainda essa idéia. Poderíamos passar acordados todo o dia e noite. Usaríamos o Hemisfério Esquerdo durante o dia e o Direito à noite. Seríamos seres completamente diferentes em turnos de doze horas, o Médico até o fim do expediente, o Monstro quando o sol se põe. Mas não era disso que estávamos falando. Para que serve o sono?
Apesar do perigo, por exemplo, um antílope, dormindo, está muito mais sujeito a ser atacado por predadores do que acordado. Bom mesmo é ser um leão, no topo da cadeia alimentar, dorme vinte horas por dia sem medo de ser atacado. Ainda põe as leoas para trabalhar. Isso é que é vida. Apesar do perigo, o antílope e outros animais dormem.
Dormimos para equilibrar o metabolismo cerebral e corporal, para fixar memórias e aprimorar as nossas habilidades. Dormimos para viver e aprender. Existe uma doença transmitida por Príons, fragmentos primitivos de RNA que podem causar um grande estrago em nosso Cérebro. Uma dessas doenças eliminam a capacidade de dormir do acometido, que morre depois de alguns dias. Não podemos viver sem o sono. Precisamos de um sono que seja eficaz. Ele precisa ser regular, atingir níveis profundos de relaxamento, produzir bom sonhos e acordar gradativamente. Nem preciso dizer que não são muitas pessoas que conseguem ter um sono assim. Estamos talvez numa época histórica onde o sono seja mais agredido do que nunca. Horários irregulares para dormir e acordar; falta de um relaxamento progressivo até podermos entrar em estado de sono; excesso de atividades excitantes durante o dia e antes de dormir, tudo isso são fatores de desequilíbrio de nossos ciclos, o ciclo Vigília-Sono é apenas um dos ciclos afetados.
Dormir em horários regulares, não usar substâncias excitantes nem refeições pesadas antes de dormir, não ficar fritando na cama quando o sono não vem, não trabalhar encima da cama nem levar as preocupações para o travesseiro, são maneiras de preservar o nosso sono. Mas, sobretudo, devemos preservar e valorizar as horas de sono. Vivemos num tempo que as pessoas gostariam de dormir cada vez menos, arrumando atividades que adentram a madrugada.
Sabe o que é difícil nesse discurso? Vivemos hoje num mundo de mesmices. Esse discurso de preservação do sono é correto e uma boa higiene de sono pode mudar o rumo de uma doença, como a depressão, por exemplo. Mas o discurso médico lembra muito o de uma tia velha depositando as suas regras do bem viver. Com a ampliação da jornada de trabalho, pois as pessoas passam cada vez mais tempo trabalhando e demoram cada vez mais para atravessar o trânsito para chegar em casa, esse período do final da noite início da madrugada talvez seja a última fronteira da liberdade. O último período que as pessoas tenham para ficar em sua própria companhia, relaxando depois de mais um dia de tem-quês: tem-que levantar, tem-que bater meta no trabalho, tem-que colocar as crianças no banho quando chega em casa. A grande questão é que esse período precisa ser de preparação do sono, portanto, de relaxamento. Para muita gente, é a única hora do dia em que realmente estão despertas.
Não gosto de ficar ditando regras (poderia usar outro verbo), então o que posso sugerir é estar inteiro para dormir, e estar inteiro para acordar. Não durma querendo estar acordado nem acorde querendo estar dormindo. Esteja presente no seu dia e na sua noite. Durma bem.

sábado, 19 de novembro de 2011

Blogstórias 2 O Homem sem Rosto

Aquele já era o quarto ou quinto médico que consultara. Neurologistas, psiquiatras, oftalmos, nada. Os sintomas não batiam. Ele desenvolvera uma cegueira específica. A cegueira para o próprio rosto. Uma anosognosia específica, dizia o médico. Anosognosia é uma incapacidade de identificar rostos. Todos os rostos, não só o próprio. Olhando para a sua imagem refletida em um lago, perdeu a própria face. Como um Narciso às avessas. Ele não se apaixonara por sua imagem refletida, antes percebia, horrorizado, que a sua imagem não aparecia, não era refletida.
Os exames, os mais modernos, os profissionais renomados, nada trazia de volta o seu rosto. Parava nos parques para ver o rosto iluminado das crianças, suas gargalhadas. Podia diferenciá-las, podia enxergar mesmo os brilhos diferentes em cada olhar. Mas não reconhecia mais nos espelhos a sua própria imagem.
Nós passamos a vida em meio a tantos milagres, que para nós é apenas o usual, o comum. Ver a própria imagem, reconhecer-se nos espelhos enquanto o tempo vai nos transformando, dia após dia, mas ainda somos nós que estamos por lá. Estamos acostumados, mal podemos imaginar a incrível sensação de reconstruir, todo dia, nossa imagem. Onde estava o seu rosto, como rever os seus olhos mesmo que eles não lhe dissessem nada?
Como tudo nessa vida, ele tinha a opção de se adaptar, ou não. Ele optou por se adaptar. Era sempre essa a opção. Ele se adaptava, e seguia. Mas a tristeza nunca deixava de acompanhá-lo. A sensação de que algo se perdera.
Cansado de tantos especialistas que simplesmente não sabiam o que lhe dizer, ele finalmente foi procurar um velho com fama de bruxo, bem no meio de montanhas de Minas. O homem ouviu a sua história sem esboçar reação ou estranheza. Todos tinham uma história. Todos tinham um nó, um buraco que não se preenchia. Ele era o Narciso ao contrário. Depois de sua longa narrativa, o homem, finalmente olhou em seus olhos. Chegou a sentir um calor percorrendo o caminho daquele olhar. O seu maior medo, finalmente, apareceu. O medo de todos duvidarem. O bruxo adivinhou o seu pensamento. Perguntou quem realmente duvidava. Os seus olhos se encheram de lágrimas. Ele duvidava. Ele sempre duvidara. Aprendeu que duvidando não iria se decepcionar, não iria mais esperar, como não esperava que aquele homem necessitado de um ortodontista pudesse ajudá-lo. O homem esperou que as suas lágrimas secassem, mandou-o de volta para casa. Nada falou sobre o que fazer, ou como.
Ele voltou para a sua casa desarrumada. Pegou no telefone e ligou para seu filho, que já não ouvia a sua voz há muitos dias. Esperou que sua ex aparecesse para interceptar a ligação, mas por um quase milagre ela estava em outro lugar. Conversou com o menino e sentiu o mesmo calor do olhar do velho. Percorreu o quarto e viu, na foto do seu filho, os seus olhos refletidos.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Blogstórias 1 As Asas de Ícaro

Crucial para a história de Ícaro é a figura de seu pai, Dédalo. Quando a rainha traiu o rei Minos com uma divindade do Olimpo, nasceu uma figura monstruosa, o Minotauro. Meio homem, meio touro, o Minotauro era um ser de força das bestas, impossível de ser enfrentado. Mas foi Dédalo, engenheiro e conselheiro do rei, que propôs tirar proveito da situação. Construindo um labirinto perfeito, Minos poderia ter em sua vergonha uma grande arma para oprimir o povo. Na realidade, a maior arma de um tirano, o medo. Todo ano os atenienses mandariam seus belos jovens para alimentar o apetite infinito do monstro, ou dos dois monstros, Minos e seu touro. Dédalo, tão sedento de poder quanto, usava de sua astúcia para agradar os poderosos na mesma medida em que, bajulando-os ou ocultando a sua monstruosidade, acabava por dominá-los. Diz um ditado mineiro que esperteza, quando é muita, acaba engolindo o seu dono, e foi o que aconteceu com Dédalo. O labirinto era tão perfeito que acabou prendendo em suas entranhas o perverso engenheiro e seu filho, Ícaro. Os dois acabariam por se tornar as primeiras ovelhas de sacrifício do Minotauro.
Dédalo, entretanto, continuava sendo astuto e engenhoso, conseguiu construir para si e para o seu filho asas de cera e penas dos pássaros que caíam no labirinto. As asas permitiriam voar por sobre a própria maldade e vencer o destino. O pai pediu a Ícaro que não voasse para perto do sol, pois as asas de cera poderiam derreter e o filho, preso dentro da prisão construída pela sede de poder de seu pai, prometeu ser cuidadoso. Mas quando conseguiu finalmente alçar o vôo, Ícaro ficou completamente embriagado pelo vôo. Nunca um homem gozara daquela sensação, a mesma dos pássaros. Ícaro voou cada vez mais alto, insensível ao desespero de seu pai, que implorava para que voltasse. Chegando perto do sol, percebeu que não era um pássaro, que as suas asas eram muito frágeis para sustentar o seu vôo. O sol derreteu a cera e Ícaro caiu, para nunca mais se levantar, nas profundezas do mar.
Nosso Ícaro moderno há muito não falava com seu pai. Dele se ressentia por sua ausência e, sobretudo, por seu desinteresse. O seu pai nunca teve nos filhos algo diferente de uma boa moldura para a foto de homem respeitável, homem público, chefe de família sedento de poder, mas aparentemente um homem amoroso e atencioso aos seus. Com os anos, a sua carreira não foi tão longe, a família se desmanchou e o jovem Ícaro foi morar com os avós, estudar e trabalhar, tentando construir uma vida de verdade, longe da loucura de seu pai. Da fortuna que o mesmo juntara, seja por quais meios, ele recebera apenas um carro importado, dos mais caros e possantes. Sensível à nossa época de aparências, Dédalo recebeu o carro como parte de uma de suas negociatas. Sabia que aquele carro impressionaria as meninas e os colegas de seu filho, além de ser um símbolo de seu poder. Pedia para o filho que o usasse com cuidado, era um carro muito caro e possante (ao contrário dele próprio).
Foi no meio de uma balada que Ícaro viu a luz do sol. Um sol enganador. Misturou álcool e balas que um amigo levou, umas balas que crianças não chupam. A mistura de álcool e drogas deixou-o exaltado, logo ele saiu, depois de levar um toco da menina desejada, que não se impressionava com suas asas de cera. Logo na primeira avenida, bateu em alta velocidade em três carros, tentando enfiar o carro num vão que só a sua imaginação exaltada viu. Fugiu em desespero, correndo à esmo pelas ruas da cidade. Ninguém poderia alcançá-lo com aquele carro. Depois de muitos e muitos quilômetros de ferocidade, fez mais um strike em um cruzamento, batendo em vários carros. O Ícaro moderno, ao contrário do mitológico, não morreu. Matou um senhor em sua van que saía para o trabalho de madrugada. Foi ele que morreu queimado. Ícaro teve a assistência de advogados caros e pagou uma fiança astronômica. Mas leva, para toda a sua vida, a imagem do homem gritando entre as ferragens e labaredas. Disso ele não vai conseguir fugir.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Quântico, Porém Honesto

Podemos dividir todas as visões científicas em duas grandes correntes, desde Platão e Aristóteles: os físicos e os metafísicos. Os primeiros acreditam na realidade que pode ser medida e testada, os metafísicos acreditam no invisível e no indizível. Para eles, a realidade é apenas uma casca fina de uma realidade muito maior. Jung dizia que o Ego, a camada psíquica que mais percebemos e que organiza a nossa experiência consciente, com relação ao Inconsciente, é como uma traça comendo um casaco da Austrália. O Ego é a traça e a Austrália é o Inconsciente. Você acha que a traça consegue imaginar, comendo um casaco da Austrália, o que é a Austrália?
Na Medicina, na Ciência, os materialistas ganharam e de goleada. Os metafísicos são classificados de pouco científicos, ou não científicos, o que é um xingamento definitivo. Quando escrevo isso, lembro de um congresso em que um colega, dos mais respeitados neurocientistas desse país, fazia uma aproximação entre a Neurociência e a Metateoria Freudiana. O seu debatedor quase deu um chilique, alinhando todas as barbaridades teóricas que já tinha ouvido dos freudianos. Como acontece muitas vezes em debates quase científicos, os dois discordavam falando a mesma coisa: é claro que dá para aproximar os constructos freudianos da Neurociência, mas sempre com a parcimônia de propor o que pode ser testado e refutado pela experiência.
Hoje em dia, os metafísicos, na sua desesperada tentativa de deixarem o limbo da não cientificidade, adotaram a Física Quântica como metáfora salvadora. Tudo o que não é local, não pode ser medido pela ciência materialista ou mesmo é proveniente do umbigo do autor, tudo isso fica debaixo do guardachuva do Quântico. Os curadores energéticos tem um “Toque Quântico”. Os fenômenos não mensuráveis, a Parapsicologia, o Tarô e a Astrologia, todo mundo é um pouco quântico em sua prática.
O Pouco que eu sei é que a Física Quântica fez uma das maiores descobertas da Ciência, em todos os tempos: que matéria é energia condensada, e que há um estado de transição em que o elétron pode se comportar como onda e como partícula, ao mesmo tempo. Grande triunfo dos metafísicos, depois de séculos de opressão. Tudo o que existe é energia, tudo vibra e pode passar de um estado a outro. Reza a lenda que o maior santo da Irlanda, Saint Patrick, atravessou uma fogueira sem ser queimado. A sua matéria corporal entrou em altíssima freqüência vibracional e ele se teletransportou no meio da fogueira, sem se queimar. Diriam os cientistas: uma lenda.
Uma cliente minha foi até Goiás, conhecer João de Deus, um médium, ou um curador quântico, e ouviu relatos de mudanças físicas impressionantes nas pessoas após as cirurgias espirituais. Histeria coletiva e autosugestão, dizem os cientistas.
Os físicos continuam encontrando hipóteses para explicar esses fenômenos e se escoram na maior das barricadas, que é a não replicabilidade dessas experiências. Não há um João de Deus em cada esquina, removendo tumores com uma faca de cozinha, sem esterilização ou anestesia. Tudo não passa de mecanismos inatos de cura de nosso organismo, ativados por uma forte sugestão emocional. Para os materialistas, tudo tem, ou terá, alguma explicação que vai contrariar os apressados e românticos metafísicos. Enquanto isso, os curadores quânticos salvam milhares de vidas escondidos dos holofotes da Ciência.

domingo, 13 de novembro de 2011

A Mesma Praça

Foi uma semana cheia, bem cheia, no consultório. Fico um pouco aflito de ficar tanto tempo sem escrever o blog, mas o mesmo demanda um bom estado de espírito, um relaxamento para que o texto se desenvolva. Não dá para fazer isso entre uma consulta e outra, ou na correria, ou em meio a muito cansaço.
Agora estou em Lambari, Minas Gerais. Sul de Minas. As pessoas me perguntam se eu tenho família por aqui, de tão pouco usual que é vir para cá. Lambari é uma pequena cidade do Circuito da Águas, que tem São Lourenço, mais famosa por sua água, o que se tornou uma marca visível em grandes supermercados; mas tem também Caxambú e Cambuquira. Aqui é um reduto de cariocas, procurando por montanhas e água mineral na fonte. Venho aqui desde a minha infância, seguindo uma tradição familiar iniciada por meu pai. Já fazia um bom tempo que eu não vinha e ontem foi uma emoção reencontrar essa pequena cidade, onde o tempo parece não passar. A mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores e o mesmo jardim.
Para completar esse clima de filme italiano ontem fomos ver o show de Jerry Adriani nesse hotel. A maior parte dos leitores desse blog nem deve saber da existência de Jerry. Ontem ele passou pelas fases de sua carreira, cantor de músicas italianas, cover de Elvis Presley, de quem herdou a impostação característica, passando pela Jovem Guarda para terminar nos bailões da saudade e nas vovozinhas histéricas. Um Justin Bieber da terceira idade. Ontem no show eu fiquei sinceramente preocupado com uma pequena vovó (quem leu esse blog anteriormente sabe do meu apreço pelas vovós) que se esgoelava em todas as músicas do velho ídolo. Fiquei procurando pelo desfibrilador.
Músicas de tamanha ingenuidade. Pensei nos rappers americanos que podem dedicar uma discografia (?) ao próprio bilau, com letras em homenagens ao próprio umbigo, os roqueiros grisalhos tentando segurar a onda e lá estava Jerry Adriani entoando “Doce doce amor\Diga onde está\diga por favor\doce doce amor”. Pode parecer um tom assim meio melancólico, nostálgico, mas não é, não. É ternura, pura e simples. Eu, como Quentin Tarantino, tenho uma memória paradoxal para os anos 70, os cantores da “Buzina do Chacrinha”, as costeletas de Odair José e o rei Roberto Carlos. É uma brasa, mora. Diziam que a entonação de Renato Russo tinha sido decalcada da impostação de Jerry Adriani, que por sua vez derivara do vozeirão de Elvis Presley. Essa é a nossa cultura pósmoderna, nada se cria, tudo se transforma. O meu momento tiozinho não foi com as músicas da Jovem Guarda (estou muito mais para a Tropicália, se é para falar de anos sessenta), mas quando Jerry cantou “Monte Castelo”, da Legião Urbana . “Ainda, que eu falasse a língua dos homens\ E falasse a língua dos anjos\ Sem amor, eu nada seria”. Que banda hoje, faria uma música alternando uma Epístola de São Paulo com os versos de Camões?
Jerry Adriani gravou uma música nova, sobre o fim do mundo, em 2012. Deve estar acabando, mesmo, nosso mundo acelerado.

domingo, 6 de novembro de 2011

O Sonho do Arquétipo

Há um pequeno e maravilhoso texto de Jorge Luís Borges, escritor argentino, em que um homem, provável fora da lei, é sistematicamente esfaqueado pelos homens de seu bando, até que vê, em meio a seus agressores, a figura de seu filho de criação. Ele olha para o traidor e suspira: "Peró, hombre!". O narrador conclui que ele não sabia que aquilo estava acontecendo para que uma cena se repetisse. O texto, pequeno, gaúcho, mítico, faz uma alusão a uma cena de "Júlio César", de Shakespeare, onde o imperador de Roma é apunhalado por seus traidores no Senado, até entrever a figura de seu filho. "Até tú, Brutus?" foi a frase que atravessou os séculos e que Borges estava recriando numa cena de faca gaúcha.
Jung descobriu que, além das memórias e dos inonscientes pessoais, havia uma série de imagens, impressões e estruturas que todos compartilhamos, o Inconsciente Coletivo. Esse extrato do inconsciente tem uma espécie de DNA, os arquétipos. Mãe, Herói, Velho Sábio, são imagens e estruturas que se manifestam em todas as culturas, em todos os mitos, numa repetição infinita. Somos, na verdade, um sonho dos arquétipos. Repetimos histórias e mitologias, mesmo sem perceber. Os arquétipos são os moldes que se repetem em nossa vida como farsa ou como tragédia.
Uma coisa que é arquetípica é a nossa capacidade de contar histórias. Outro dia estava estudando com o meu filho para uma prova de História, matéria que era a minha preferida na escola. Que livro simplesmente horroroso. Um livro de História que não conta histórias. Alinha os fatos, estabelece relações, inclue documentos, tudo isso com um tom assim meio determinista\marxista, mostrando os determinismos econõmicos dos movimentos históricos. Mas a tal autora não contava, em lugar nenhum, a história. Nossos arquétipos históricos. Eu fiquei tagarelando a história que me lembrava, os 18 do Forte e a nossa atual revolta contra as oligarquias e a corrupção. Luís Carlos Prestes, o cavaleiro da Esperança e a entrega de sua esposa grávida, Olga Benário, ao holocausto nazista, uma das páginas mais vergonhosas de nossa história. Ele ouvia aquilo com algum interesse mas logo tínhamos que voltar aos fatos, como um livro descrito com a frieza analítica de um relato jornalístico.
Nas próximas semanas vou incluir nesse blog quase secreto algumas blogstórias, para demonstrar como acabamos repetindo essas cenas de forma inconsciente. Ao contrário do livro, vou contar as histórias. Vou dar um exemplo.
Há algumas semanas eu fiz um paralelo da vida e morte de Steve Jobs com o Mito de Édipo. Édipo quer dizer "Pés Inchados", ou "O Coxo". Vários séculos depois de ter sido escrito, ainda somos assombrados pelo sofrimento do Rei de Tebas. Èdipo representa a nossa condição humana, não porque somos afim de nossa mãe e queremos matar o pai, essa é outra conversa. Èdipo representa a nossa ferida humana fundamental: apesar de tanto domínio da técnica, da vida e da morte, internamente carregamos a Ferida Arquetípica, a sensação de estarmos separados do Todo e da nossa natureza original. Recentemente saiu uma fofoca que Steve Jobs recusou a cirurgia que poderia ter salvado a sua vida e quando correu atráz, era tarde demais. Disse o amigo que fez a fofoca que ele se considerava especial por ser um filho adotivo. Bobagem. Steve Jobs foi sob esse aspecto, um herói trágico, que vence mas acaba sucumbindo à própria ferida. Como Édipo.
Apesar de toda produção e ares de grandeza, temos os pés inchados e as dores da nossa natureza humana. E vivemos algumas coisas para que as cenas se repitam em nossa vida.
Para os poucos e fiéis leitores: essa seção de blog será indicado nas Blogstórias.

sábado, 5 de novembro de 2011

Um pequeno conto psiquiátrico

Não se lembra mais de quando veio o vazio. Talvez desde a infância, quando de alguma forma já pressentia que estava a mais naquele dourado quadro de família Doriana. Quando a adolescência chegou e ele descobriu-se homossexual, a diferença ficou ainda mais evidente. Todos tinham planos, projetos, metas. Ele só conseguia se sentir como um alienígena naquele quadro de felicidades medianas, de conformidades e de sorrisos estudados. O seu terapeuta tentava dedilhar essas impressões: o que teria acontecido? Por que haveria entre esse rapaz e a sua mãe tamanha sombra? Teria ela desejado abortá-lo, teria sentido em sua gestação uma tarefa que não queria cumprir? O terapeuta sabia dessa transmissão, como um vírus, desse não pertencimento original. O bebê que não vê o seu rosto refletido nos olhos de sua mãe, passa a se acreditar uma parte da mobília, um portaretrato velho e empoeirado no canto da sala. Logo ele aprendeu que uma forma de justificar a sua presença no planeta foi fazer-se útil. Um bom menino, que não jogava bola, não tinha amigos senão os amigos nos livros. Mas ajudava a mãe, ficava como um bicho de estimação por perto ajudando as longas horas de ausência de seu pai. Mas ainda assim a sua imagem não era refletida. A sua mãe fora educada a acreditar que a homossexualidade era uma doença, ou um desvio de caráter. Ainda em dias mais recentes, quando conviviam com o seu quase namorado, tudo ainda parecia caber na moldura de família Doriana. Debaixo dos falsos e aristocráticos sorrisos, a sensação de que aquele rapaz estava só se aproveitando de seu abismal sentimento de solidão, que eles não faziam idéia de onde vinha. Assim como não conseguiram entender quando ele se enfiou num motel barato para se entupir de medicamentos.
Não é possível que em pleno século vinte e um não houvesse um exame que detectasse alguma falha grave, estrutural, no Cérebro desse menino. Uma família bem estruturada, irmãos adaptados e pais zelosos, como que, no meio de tanta perfeição, poderia haver um menino propenso a essas melancolias aterradoras, a esse impulso para sair desse mundo tão lógico?
O terapeuta foi retirado do caso. Não há como explicar a sensação de vazio, a falta de significado, o sentimento absoluto de falta de sentido. Vamos investigar esse Cérebro, esquadrinhar os seus genes, introduzir medicamentos de última geração. Com certeza, há um defeito nesse maquinário que pode ser corrigido, a alegria pode ser finalmente recuperada, os ódios e as mágoas varridas sob o tapete impoluto da sala.
O terapeuta olha para o horizonte. Não muito longe daqui, está se armando uma tempestade. E ninguém parece, ou quer, notar.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Jujú e Lula

Às vezes, quando eu olho a tela branca desse blog eu me lembro das tirinhas do Angeli na Folha, "Angeli em Crise", sempre com nuvens negras e horrores cercando a falta de um tema. Sou altamente solidário. Como escapar da falta de um tema? Eu poderia facilmente aproveitar o ensejo para disparar mais um blog contra o Juvenal Juvêncio, mistura de Paulo Francis com Hugo Chavez (tem a impostação de voz, a teatralidade e a humildade de Paulo Francis, junto com a habilidade política e vocação democrática de Hugo Chavez), o atual presidente (?) do glorioso São Paulo Futebol Clube. Mas já mandei algumas sapatadas no Jujú e ele não parece balançar no cargo. Poderia falar da contratação de Leão, para teoricamente "botar ordem na casa" tricolor. Impressionante como as dificuldades com a própria virilidade que acomete a diretoria tricolor pode virar essa escolha compensatória, de um suposto xerife que veio falando grosso e colecionando resultados pífios (inclusive ser eliminado da SulAmericana pelo poderoso Libertad, do Paraguai. O salário do Rogério Ceni e do Luís Fabiano pagam todo o elenco do Libertad e ainda vem troco). Mas deixa para lá. Só fica um adendo Shakeaspeariano de que o poder, quando usurpado ou exercido de forma ilegítima, traz resultados trágicos mesmo, desde os tempos de Hamlet.
Podemos falar da relação entre Luto e Câncer, para mudar de tema. O expresidente Lula desenvolveu um tumor de agressividade moderada em sua Laringe apenas 10 meses depois de deixar o poder e, principalmente, o centro das atenções. Lula já vinha dando vários sinais de luto na época da campanha presidencial, dizendo que iria exterminar a oposição, caçando os desafetos que lhe tiraram a CPMF em seus estados em verdadeiras cruzadas revanchistas. Chegou a nos brindar com várias inadequações etílicas, mais do que a sua média, a ponto de ter sido retirado de circulação após o primeiro turno por alguns dias, até recuperar a sobriedade (em ambos os sentidos). Diriam os oncologistas que eu estou falando uma bobagem psicossomática, que o tumor já estava lá e deu sinal de vida apenas agora, após um crescimento gradativo. Stress, Álcool e Nicotina teriam causado o estrago. Beleza, posso aceitar o argumento. Mas é tão escandalosa a relação entre períodos prolongados de tristeza e luto e a eclosão ou recidiva de doenças oncológicas que é impossível para um psiquiatra ignorá-la. Lula foi um presidente ansioso/medroso no começo do mandato, mas depois passou bons anos em "furioso enamoramento de si mesmo" como diria Nelson Rodrigues. Nunca se viu um presidente com uma autoestima tão favorável, com uma capacidade tão imensa de atrair a atenção e o amor de todos. É lógico que tanta fúria narcísica tem lá o seu preço, pois como saciar um egocentrismo tão mastodôntico? Nenhum carinho, nenhuma atenção, nenhum reconhecimento são suficientes para aplacar essa fome. Lógico que perder isso da noite para o dia não é mole. Ainda mais com uma presidenta-poste que Lula elegeu mas que não consegue comandar. O pior, na hora que faz uma pequena limpeza, demonstra de forma consistente a putaria nababesca dos anos Lula. Os 85 bilhões jogados no ralo dos parasitas que há séculos consomem nosso sangue brasileiro.
Bom, Lula, te desejo sorte. Pode passar aqui no consultório que eu te dou uma guaribada nesse luto. Difícil é tratar o luto de 170 milhões de brasileiros.

domingo, 30 de outubro de 2011

David

Ontem fui a uma festa de criança, coisa que me é normalmente um suplício. Os salgadinhos gordurosos e irresistíveis, que sempre me dão azia, a cerveja morna depois de rodar as mesas, o papo furado com aqueles primos que você só encontra em festinhas, casamentos e funerais (não necessariamente nessa ordem); bem, não é a minha idéia de divertimento. Mas vamos, em consideração com a amizade, o carinho de alguns abraços, e, quer saber, acaba sendo divertido. Fiquei sabendo, na festa, que um amigo está pensando em fechar o consultório. Esta é uma notícia que está ficando quase comum. Em seis meses é o quarto médico de ótimo nível querendo pendurar o carimbo e a caneta. Por que será?
Estamos numa sociedade de hiperconsumo, o psiquiatra virou um bem de consumo como outro qualquer. Outro dia atendi um rapaz, com crises de Pãnico graves e impossibilitantes, um quadro desencadeado por vários estressores, inclusive um chefe abusivo. O cara estava quase pedindo as contas, do trabalho e da vida, com alguns tratamentos mal sucedidos. Começamos mexendo aos poucos, mas decisivamente, na conduta. O quadro foi melhorando, com chuvas e trovoadas, ele voltou a sorrir e a se organizar, retomou o trabalho e sua autoestima. Sumiu. Foi continuar o tratamento em algum colega, talvez mais barato, talvez mais próximo de sua casa. Foi embora sem nenhum tchau ou muito obrigado. Eu costumo dizer em tom de brincadeira que psiquiatra não tem coração, para não se magoar com esse tipo de atitude. Mas o fato é que o embrutecimento das relações humanas não haveria de poupar a prática médica. Está com o nariz escorrendo? Vai, assoa no psiquiatra e quando estiver melhor, um abraço. É lógico que esse comportamento não é a regra, felizmente, não há dia que não seja repleto de sorrisos e de gratidões, de ambos os lados da escrivaninha. Mas essa brutalidade vai minando muitos colegas que preferem uma função mais protegida, mais técnica, longe do corpo a corpo da clínica.
Em Junho desse ano morreram dois psiquiatras por quem eu tinha o maior apreço: Marcos Mercadante e David Servan-Schreiber. Dos dois, conhecia pessoalmente o primeiro, apenas. Ambos na faixa dos cinquenta anos, da qual me aproximo. Dá um frio na barriga saber que o estresse de nossa carreira pode ter sido um fator nas duas partidas prematuras.
Esse blog já citou e homenageou os dois livros de David: "Curar" e "Anticâncer". Neste final de semana, li em duas sentadas o seu livro/despedida: "Podemos dizer adeus mais de uma vez". David morreu de um Glioblastoma, tumor cerebral que costuma ceifar a vida de seus portadores em até seis anos. David viveu com ele por vinte anos, escreveu os seus livros, divulgou as suas idéias nos vários países onde foi publicado. Acho que esse livro vai vender muito menos, por ser um relato doce e poderosíssimo de alguém que tenta compreender a própria vida e a própria morte. Não é um tema muito popular, embora a sua leitura me encha de esperança e de orgulho desse cara. Como homem e como colega.
A Ciência busca ávidamente formas de prolongar a vida e erradicar a morte, como se ela fosse o pior dos parasitas. David transformou o seu relato numa dança com o que o poeta chamou da "indesejada das gentes". Com algum medo, e muita ternura.
De qualquer forma, se algum conhecido ou cliente ficar preocupado com o tom algo melancólico desse post, não se preocupe. Amanhã cedo já vou estar atendendo, cuido razoavelmente bem da minha saúde e continuo adorando clinicar.
Boa semana para nós.

sábado, 29 de outubro de 2011

Comece de Onde Você Está

Escrevi esse texto para o site femininaonline.com.br que trabalha com roupa íntima para mulheres gostosas e cheinhas. Resolvi compartilhá-lo com os leitores(as) deste blog. Lá vai:

Ouvi a frase citada de uma psicanalista que resumiu maravilhosamente a questão : “Antigamente as pessoas queimavam as mulheres nas fogueiras. Agora, isso não é mais necessário: eles inventaram a balança”. De fato, a balança é o campo de tortura e dominação do feminino. Recentemente houve uma polêmica de uma marca de Lingerie que colocou a escultural Gisele Bünchen em calcinha e sutiã anunciando para o marido que bateu o carro, de novo. As feministas se descabelaram diante da imagem da mulher caracterizada como barbeira ao volante (na verdade, os homens batem e matam mais ao volante, mas gritam para a “Dona Maria” que guia como se estivesse colada à direção do carro), usando o seu corpo para seduzir o homem ao dar uma má notícia. Usa-se o corpo da mulher para vender rodas de liga leve, ferramentas de uso doméstico e até lingerie. Tudo é bom pretexto para deixar a mulher com pouca ou nenhuma roupa. O que as feministas deixam de notar é que o pior massacre não é de tornar o corpo uma forma de objeto de troca com o homem. Pior que isso é a sensação das mulheres de tentar se comparar com Gisele Bünchen e tentar usar a lingerie da mesma forma que essa top model internacional, com a sua equipe de personal trainers, nutricionistas, massagistas e esteticistas garantindo uma porcentagem inatingível de massa magra em seu corpo. A mulher, humilhada, evita andar com pouca roupa e só se despe com a luz apagada, pois nunca vai estar à altura da top model do outdoor. Pior ainda, algumas se apertam no mesmo modelo que a moça usou no comercial, evidenciando sobrepesos e gorduras localizadas. Tudo isso gira em torno da ditadura das imagens, que garantem à mulher sempre a sensação de estar um passo atráz das outras, mais magras, mais gostosas, mais desejadas.
O titulo desse texto foi retirado de um livro budista, que convida o leitor a iniciar a sua prática no aqui e agora. Acalme o seu coração aqui e agora, harmonize a sua mente aqui, e agora. Isso vale também para a sua sensualidade. Sinta-se gostosa aqui e agora, escolha uma roupa íntima que te valorize as formas aqui e agora. A sensualidade, como outros campos de sentimentos humanos é uma prática e um aprendizado. A maior parte das pessoas trabalha com a luta contra si e contra o seu corpo, do tipo: vou usar aquela lingerie sexy depois que emagrecer tantos quilos, vou me despir para o meu amor depois da lipo. O desejo é adiado, a frustração, não. “Comece de onde você está” quer dizer, empreste a beleza para o seu corpo aqui e agora.
No filme “Comer, Rezar e Amar” a personagem de Júlia Roberts pergunta para a sua amiga, que está com medo de comer uma pizza porque engordou alguns quilos na Itália, se algum homem pediu para ela sair quando tirou a roupa. Para o homem, uma mulher tirando a roupa é como ganhar na loteria. Escolher a roupa íntima, o baby doll e o clima na hora de tirar a roupa pode tornar, aos olhos de um homem, a sua gordinha em uma Gisele Bünchen.
Comece a se fazer bela agora, de onde você está.

Marco Antonio Spinelli é Médico Psiquiatra, Psicoterapeuta de Orientação Junguiana, autor do Blogdomarcospinelli.blogspot.com

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O Fio de Ariadne: Sandplay e Verdade Terapêutica

Essa postagem é um resumo da palestra proferida, a pedido da coordenação da Jornada. Algumas das idéias já foram descritas em outros posts, então me desculpem por chover no molhado. Vamos nós:


Uma das fontes de discordância entre as diversas correntes de pensamento, quando se trata de Psicoterapias, é quem está descrevendo melhor a Psique. Lembra a história hindú de um bando de cegos palpando um elefante e descrevendo o que tocou. Para um, o elefante é uma tromba; para outro, uma pata; um terceiro pode descrever as orelhas magníficas. Falta, a todos, a visão do Todo. Não é diferente com as formas de abordagem do sofrimento psíquico humano. O curioso é que as Psicologias Profundas foram descobertas antes de outras mais superficiais, mais fáceis de serem testadas pelos métodos científicos. Hoje estamos vendo um esforço quase deliberado em se desacreditar as Psicologias do Inconsciente, tratadas como ficções de seus autores pelos seus detratores. O pior é a falta de diálogo entre os xiitas e sunitas da Psicologia, ou psicologias. Vamos meter a nossa colher nesse angú:
Podemos dividir as dimensões de abordagem da mesma forma que dividimos a leitura de um fenômeno. Ou mesmo, dos níveis de abordagem de um problema comum, de nosso dia a dia:
Vamos pensar num fato simples, comum. Uma pessoa torce o pé e isso lhe causa uma fratura. Abordando no nível 1, isso foi a Manifestação de algo. No caso, de uma ruptura de um osso. Abordagem no nível 1 inclue fazer um raio X, detectar o problema, corrigí-lo, com cirurgia ou gesso. Não sabemos, mas a maior parte de nossas questões são resolvidos no nível 1: caiu, quebrou, SuperBonder colou. Se olharmos com mais detalhe, podemos chegar no nível 2, onde o fenômeno é visto com mais detalhes. Esse é o nível do Significado. Como é a marcha da pessoa? A Biomecânica de suas articulações? Há algum grau de Osteoporose em seus ossos? As ruas onde caminha estão mal pavimentadas? Todos os fatores que foram predisponentes ou desencadeantes do problema são levantados, a prevenção de um novo evento pode ser feita de forma mais ampla. Na vida, quando conseguimos olhar para as coisas com a complexidade do nível 2, já ficamos muito felizes. Na maior parte das vezes, não conseguimos nem um remendo no nível 1. Mas podemos ir ainda mais fundo. Se olharmos com mais detalhe, chegamos no nível 3, o nível do Símbolo. O que esse evento simbolizou naquele momento? A pessoa está estressada, por isso anda sem olhar? Não consegue elaborar um luto, ou uma mágoa, e sai por aí levando tombos? Tem uma doença oculta, um Tumor no Cerebelo ou uma Arritmia Cardíaca, causando as quedas? Esse é o nível de causalidade que as Psicologias do Inconsciente abordam. Se olharmos de forma ainda mais profunda, chegamos no nível 4, que é o nível do Sentido. Isso só dá para saber depois de um tempo. Aquela fratura obrigou a pessoa a ficar em casa, concluindo um livro magistral que estava parado há anos. A fratura tirou o sujeito da correria do dia a dia, deixando-o mais conectado com os ritmos da vida. Esse nível não é para qualquer um. Muita gente duvida mesmo que ele exista. Podemos vê-lo quando uma pessoa agradece por uma doença ou uma adversidade, que lhe causaram sofrimento mas a levaram para outra visão e compreensão da vida. Aquilo teve um Sentido.
A Terapia de Sandplay, criação da suiça Dora Kalff, traz em suas cenas na areia, todos esses componentes. A Expressão, no nível 1, através da montagem de uma cena com miniaturas em uma caixa de areia (que minhas gatas iriam adorar). O Significado, no nível 2, das questões de sua vida. A paciente solitária pode montar uma cena em que está presa numa ilha, por exemplo. A dimensão 3, do Símbolo, pode aparecer numa imagem inocente, de uma menina andando entre os bichinhos e pedras, que mostram uma infância solitária, uma criança, agora com quarenta anos, desconfiada se as pessoas podem ou querem ajudá-la. Analisando as imagens, depois de alguns anos, pode-se ver o Sentido profundo da dor e do sintoma que trouxe a pessoa para o seu processo. Se olharmos com mais cuidado, vamos perceber uma espécie de mão invisível, organizando as miniaturas e o processo. Os junguianos chamam essa ordem invisível de Self. E, bem sabemos, o Invisível, o Inapreensível, anda bem fora de moda.
Finalmente, falamos sobre o filme "A Origem", como uma metáfora desse Inconsciente em camadas. Não adianta ficar plantando idéias nas camadas mais superficiais da psique. Senão, era só repetir algumas fórmulas dos livros de Autoajuda e tudo sairia como planejamos. O filme mostra o desafio de se adentrar as camadas mais profundas do Inconsciente, os porões da Alma Humana. O sonho, dentro do sonho, dentro do sonho que os exploradores de sonhos vão explorar no filme.
Uma personagem do filme é muito cara aos terapeutas: Ariadne, que arrisca a própria vida ou a própria sanidade para ajudar os personagens em seu mergulho, sobretudo Cobb, o personagem de Leonardo di Caprio, que vai até o fundo de seus pecados e culpas para finalmente elaborar e resolver o Sintoma. E qual era o Sintoma? Cobb não conseguia ver, ou entrever, o rosto de seus filhos, nem em seus sonhos, nem em suas lembranças. Ariadne o conduz, no Labirinto de suas dores, às camadas mais profundas de seu Inconsciente, onde, como disse Jesus, a Verdade o libertou.
Ariadne é uma personagem e uma metáfora perfeita para a Psicoterapia do Inconsciente e para a Psicoterapia de Sandplay. Ela demonstra o profissional que põe à disposição a sua estrutura, a sua escuta ou as suas miniaturas para que o paciente preencha esse espaço com o seu Inconsciente. É lá, no nível 3 e 4, que encontramos a verdade. E, se dermos sorte, a Cura.

domingo, 23 de outubro de 2011

Fora do Tempo

Hoje pela manhã já somos bombardeados com notícias de acidentes etílicos de automóvel. Ontem um bancário atropelou dois garis, recusando depois passar pelo teste do Bafômetro. Outro acidente estarrecedor foi da Fórmula Indy, no Domingo passado: um carro desgovernado, pegando fogo, atravessando a pista oval, os outros carros se apertando contra o muro até um strike de muitos pilotos, com um morto. A cena parece uma definição da pósmodernidade, as pessoas correndo em uma pista oval, tentando uma velocidade cada vez maior, para chegar em lugar algum. Mesmo com o carro pegando fogo, o risco de uma catástrofe, que acabou ocorrendo, os caras se apertavam para continuar dentro da corrida. Deu no que deu.
O fato é que a sensação de correria sem sentido acomete a todos. Recolhemos nos consultórios os feridos e avariados, que muitas vezes fazem um pit stop para recarregar a gasolina e voltam depois para a pista, correndo sem motivo e sem enxergar a linha de chegada. As bebedeiras seguidas de acidentes também fazem parte do pacote.
Ontem no evento uma das palestrantes mostrou, através das cenas montadas com miniaturas na Caixa de Areia, a evolução, impressionante, de uma paciente sua, no decorrer de quatro anos. De imagens iniciais, sem figuras humanas e com ilhas de areia que não se comunicavam entre si, as cenas foram ganhando vida, personagens e o desabrochar, que Lury, a terapeuta, comparou com uma crisálida que foi virando uma borboleta. As imagens falavam por si.
Acordei refletindo que o trabalho psicoterápico virou uma ilha de sossego no meio da correria. O trabalho com as miniaturas coloca o paciente numa franja de Não Tempo, mais do que na lentidão, ou no repouso. Fora do tempo, a psique pode voltar a se expressar, a se colocar dentro de imagens que procuram sempre pelo centro organizador no meio da aridez de nossos egoísmos. E correrias.
Tentei falar em minha aula de que a Terapia de Jogo de Areia é uma ferramenta clínica para atingir extratos mais profundos de nossa Psique, onde realmente as mudanças podem ocorrer. Cavamos nessas camadas para desfazer os nós, aguar as plantas, abrir as janelas do que está esquecido e cheirando a mofo em nossa alma. As pessoas procuram por soluções rápidas, epidérmicas, quase mágicas. A pressa termina em um muro de um circuito oval.
Ontem fiquei recompensado de estar em um Sábado fora do tempo. A delicadeza desse Não Tempo se manifestou na última cena, onde cada participante colocou a sua miniatura dentro da caixa e montamos uma cena coletiva. Ninguém se atreveu a interpretar a cena, mas ela obviamente representava o grupo se formando em torno de uma mulher grávida. No meio de escombros e de ferros retorcidos, estamos cuidando de uma gravidez de risco, que é o nosso mundo.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

As Camadas da Psique

Ontem estava lendo um livro que basicamente refuta a maior parte da minha prática clínica. O autor dizia que a maior parte da teorias junguianas e freudianas são ficções, ou religião (em meios científicos, isso é um xingamento). Os sonhos, por exemplo, para a Neurociência Cognitiva, servem para consolidar memórias, elaborar as vivências do dia, distribuir entre os hemisférios essas memórias como forma de dissipar a tensão, os estressores do período de vigília. Não há como corroborar um valor simbólico, ou oculto, dos sonhos, pelo menos pelos métodos científicos disponíveis. Não vou entrar nesse mérito epistemológico, não é o foco desse blog. Desde os tempos bíblicos, ou antes disso, desde os primeiros xamãs que os sonhos são uma via de comunicação com outros estratos de consciência, pessoal e transpessoal. Como a Ciência, pelo menos a tradicional, se atém aos fenômenos materiais, como mencionar algo tão imaterial quanto os sonhos? Será que essa tecnologia de transmissão de imagens visuais via câmeras vai possibibitar que vejamos nossos sonhos em alta definição, no café da manhã? Aposto que não. Os sonhos, como qualquer percepção, são uma reconstrução, retradução no Cérebro de nossos pensamentos, desde os que tivemos na noite anterior até as primeiras impressões de bebê. Reconstruímos os pensamentos, as dúvidas, as imagens, os cheiros e cognições conscientes e inconscientes durante os sonhos. As câmeras vão registrar algumas imagens, como as câmeras de um prédio, mas não as impressões, o enredo, as sobreposições de conteúdos que temos durante o sonho.
Quem está lendo pode pensar que eu me irrito ou abomino um livro que fala que tudo o que se comprova verdadeiro no dia a dia de consultório é na verdade uma peça de ficção ou uma crença religiosa dos altares da Psicologia Profunda. Sinceramente, não. Vou falar em dois dias de um filme que eu nem gostei tanto assim, "A Origem", justamente porque ele apresenta de forma muito didática, a concepção de um Inconsciente em camadas. Um dos personagens, de Léo di Caprio, é Cobb, o cara que concebe e coordena a equipe para entrar no Inconsciente de um mega empresário, Robert Fischer, para implantar uma idéia: a de que ele não precisa imitar o seu pai, recém morto, em sua condução de um grande império corporativo. Para que a idéia seja implantada e cresça, ela deve ser sugerida, trabalhada, elaborada em cada camada de Inconsciente que vão adentrar, via uso de sedativos mais e mais potentes, até chegar num sonho, dentro de um sonho, dentro de um primeiro sonho. Parece complicado, e é mesmo. Mas traz uma luz nas questões e nas pendengas entre as psicologias profundas e as cognitivas. Cobb precisa da ajuda de Ariadne, jovem e brilhante estudante que vai construir os labirintos para entrar no inconsciente do milionário. Cobb não pode ser o arquiteto, pois sempre que ele está nesse lugar, aparece uma sombra de sua mulher, Mal, que morreu e vamos descobrindo no filme de que forma ela morreu e porque a culpa não deixa que Cobb consiga atingir os seus objetivos. São, sob esse aspecto, personagens caros a uma Psicologia Profunda. As psicologias cognitivas, ou mais superficiais, tem a ingenuidade de achar que nosso Cérebro racional pode muito berm lidar ou reprogramar nossas redes neurais profundas, só com o uso do bom senso. Não pode. Quando Cobb olha nos olhos de sua esposa morta e compreende, finalmente, que a sua cobiça, sua ambição cega acabaram provocando a sua morte, finalmente, pôde pedir desculpas e seguir em frente com a sua dor, agora consciente. Só quando essa verdade se manifesta é que todos os nós de Cobb se desatam e ele pode, camada por camada, voltar a superfície. As Psicologias Cognitivas podem, realmente, atingir essa profundidade? Normalmente, não.
O filme "A Origem" fala de muitas coisas, mas traz à tona uma verdade evidente que as diversas psicologias não conseguem admitir: o Inconsciente se organiza em camadas, as micro curas de nossas feridas se dão, quase simultaneamente, em todas elas. É bobagem ficar jogando cascalho no telhado alheio, antes é melhor descobrir o que podemos fazer em cada camada, e que tipo de paciente se beneficia mais ou menos de cada abordagem.
Daqui a dois dias será a aula que eu venho preparando nesse blog há algumas semanas. A aula tentará mostrar que nós, amantes das profundidades, ainda temos muita coisa boa para oferecer para alívio do sofrimento psíquico. E o que é pior, vamos continuar cavocando em busca de respostas.

domingo, 16 de outubro de 2011

Sandplay

Tem uma frase do Lacan que eu adoro: "Sou onde não penso; penso onde não sou". Ela é muito bonita, mesmo sendo quase ininteligível para a maioria das pessoas. Eu tinha uma provocação que usava com a angústia que os pacientes sentem quando não conseguem falar dentro da sessão: " O Que fala quando você não fala?". As duas frases, ou jogo de palavras meio zen, falam de um dos mistérios de nosso ofício, que é a coisa que pensa dentro de nosso Cérebro e que está atrás de nossa mente tagarela, de nosso eterno diálogo interno. Não são poucas as pessoas que adoecem com um sintoma cada vez mais comum, o "Pensamento em turbilhão", justamente quando esse pensamento se perde dentro de si mesmo e fica dando voltas dentro da cabeça, sem que a pessoa consiga silenciá-lo. O impressionante é que precisamos às vezes de uma dose alta de medicação sedativa para que esse palavrório diminua e a pessoa consiga, finalmente, descansar dentro da própria mente. O Que fala dentro de sua alma quando você para de falar?
A Terapia de Sanplay vai revelar justamente esse ser que se manifesta fora de nosso discurso. Parece complicado de entender? Vou dar um exemplo. Uma pessoa intelectual e articulada, que zomba nas consultas das técnicas e abordagens psicológicas, montou uma cena com as miniaturas na caixa de areia, quase triunfante por achar a técnica boba e infantil. A imagem que apareceu é de uma menina solitária, uma única personagem humana no meio do cenário, cercada de bichos, de plantas e de brinquedos olhando para frente. A cena montadas com as miniaturas mostra todos os personagens apontando na mesma direção. Quando eu mencionei a menina que ela fora, muito solitária, muito cercada de brinquedos e da própria imaginação, ela se emocionou. A sua empáfia científica acabou de desmoronar. Na cena estava o miolo da sua dificuldade: a visão unilateral, sempre para a frente, pela dificuldade de olhar o seu passado. A menina aprendeu a construir o seu futuro para fugir de uma infância difícil, que ela jurou abandonar e nunca mais ficar na mão de ninguém. O preço disso aparecia na cena da areia: independência com solidão. Nenhuma figura masculina em toda a cena.
A Terapia do Sand Play, ou como eu prefiro chamar, a Terapia de Jogo de Areia, é uma técnica e um método de revelação do Incosciente. Ele que é o sujeito oculto da frase de Lacan: "Sou onde não Penso, Penso onde não SOU". É lógico que a frase é uma paráfrase e uma inversão do famosíssimo aforisma de Descartes: "Penso, logo Existo". Genial. O lugar onde eu mais sou é o lugar em que o pensamento não atrapalha a minha verdade. Aí é o Inconsciente, que, como o nome já diz, está fora do meu campo de Consciência. A menina solitária, um pouco triste e sonhadora era a verdadeira identidade daquela mulher descolada, supercrítica e elegante que se apresentava para o tratamento.
Pois essa é exatamente a mágica da brincadeira com as miniaturas dentro do setting terapêutico. Na aula que vou dar no evento do dia 22 de Outubro (vide o post anterior), uma colega sugeriu que eu usasse imagens do filme que vai servir de ilustração para a aula, que é "A Origem". Agradeci a sugestão, mas não vou acolhê-la. A terapia com as miniaturas liberta uma coisa que ficou perdida em nossa infância, que é a nossa capacidade de fantasia, de imaginação. Espero que a aula consiga estimular a imaginação das pessoas. Já temos a nossa imaginação muito colonizada por imagens, por vídeos, por fotos e desenhos, não conseguimos mais, simplesmente, tentar reconstruir um acontecimento em nossa imaginação. Na aula, vou deixar que cada um imagine as cenas com as miniaturas como se a tivessem montado.
Esse talvez seja um grande diferencial desse tipo de terapia: trazer de volta a capacidade de imaginar, fantasiar, fazer associações e finalmente, mostrar ao paciente em 3D o que está escondido atrás de nossas personas tão sofisticadas. Talves é lá, no meio de nossas fantasias, que está a verdade de nosso desejo e de nosso ser.

sábado, 15 de outubro de 2011

Obsessões Amorosas, De Novo

Acabei dando a tal entrevista para a jornalista, que me encontrou na internet em entrevista que falei da Relação Iô iô. Vai ser triste depois de tantas décadas de estudo e de síntese de Psiquatria Clínica, Psicoterapia Junguiana, Neurociência, sem mencionar a Medicina Chinesa que eu ando sapeando, vou ficar conhecido como o descobridor da Relação Iô iô.
Esse blog atrai mais leitoras e comentários quando fala de relacionamentos. Já recebi longos e pungentes relatos de leitoras em meu e-mail relatando os horrores dos relacionamentos dos quais não conseguem se libertar. Já usei personagens da Mitologia Grega e de Nelson Rodrigues. Diariamente atendo mulheres bonitas, inteligentes, sofisticadas, se descabelando por homens que, se bater no liquidificador, não dão meio copo de suco. O que está acontecendo? É uma epidemia?
Os homens ganharam a guerra dos sexos. A vitória não se deu por enfrentamento direto, muito pelo contrário, mas pela guerrilha da ausência, de transformar a mulher e as relações em objeto de consumo. Surtou, eu troco. As mulheres ficam aterrorizadas de serem classificadas nessa classe de "mulher que surta", então ficam tateando, às cegas, uma forma de firmar o relacionamento, na fronteira gigantesca entre a "ficância" e o namoro. Amarradas pelo medo de explodirem, atropelarem a relação com a própria insegurança, com alguma cobrança fora de hora que faça o rapaz bloqueá-la nas redes sociais. Toneladas de pipoca, chocolate e lenços de papel são consumidas em meio às comédias românticas em que o bonitão sempre acaba persuadido pela mocinha a abandonar a feliz vida de solteiro e finalmente assumir um relacionamento, um vínculo, uma família. Procuram pelos príncipes pós modernos, que sempre olham com aquela cara quando a mulher aponta a atenção pouco diferenciada que dedicam a si e à relação.
O que eu posso dizer no espaço de um post? Antes de mais nada: é preciso um espaço de interiorização. As pessoas estão mais loucas do que jamais estiveram porque vivem em permanente angústia de exteriorização: os homens querem uma Ferrari, as mulheres querem ser uma Ferrari. A vida, a consciência evolue em ciclos de Tentativa-Erro-Interiorização-Elaboração-Aprendizagem. Quando a candidata a Jennifer Anniston (cuja vida amorosa, segundo os tablóides, só dá certo nas telas de cinema) tem uma decepção, uma perda, uma rejeição, é melhor que não saia colecionando ficantes, ou repetindo o padrão, de relação em relação. Acolha os sentimentos, recolha as pressas, interiorize que tipo de homem ou relacionamento gostaria de ter em sua vida. Se os homens fogem das "mulheres que surtam", fujam dos "homens difusos", os que colecionam mulheres ou estão sempre com a atenção em outro lugar que não seja a mulher. Sobretudo, fujam dos caras que não cumprem as suas promessas e não param de fazê-las. Os caras que fazem do some/reaparece uma arma para manter a mulher enlouquecida. Outro dia ouvi no rádio que a militância feminista de um país africano conclamou as mulheres à uma greve de sexo se os homens não tomassem determinada posição. Já pensou se a moda pega? Os homens vão ficar românticos, apaixonados, atenciosos, quase cavalheiros. Quandos as pernas se fecham, os olhos se abrem. Espero que a minha mulher não leia esse post.