quarta-feira, 30 de março de 2011

Vincere

Finalmente consegui ver um filme muito recomendado na época de seu lançamento, "Vincere" de Marco Belocchio. Eu já sabia pelas resenhas que ele tratava da história de um filho ilegítimo do ditador fascista Benito Mussolini. O filme é muito duro, mas serve como reflexão sobre o que venho postando a respeito das Obsessões Amorosas. Para não estragar o filme de quem vai assistí-lo, posso apenas adiantar que é a história de duas vidas devastadas por uma obsessão amorosa. Nas primeiras cenas o jovem Benito está debatendo numa assembléia de uma pequena cidade italiana, Trento, sobre a existência de Deus. Para provar a sua tese, que Deus não existe, Benito Mussolini desafia o Criador a fulminá-lo em cinco minutos. Passados os cinco minutos, está provado que Deus não existe. (O tempo de Deus é misterioso, o raio que fulminou-o demorou mais 40 anos e veio pelo fuzilamento do ditador pelos partizani, resistência italiana na Segunda Grande Guerra). Na platéia, siderada, está uma mulher belíssima, chamada Ida Dalzer, se não me engano. Ela se apaixona perdidamente por aquele jovem idealista, vive com ele um tórrido romance, acaba engravidando e tendo um filho, a quem dá o nome do pai, Benito. A carreira de Benito pai dispara, ele se torna um herói nacional na Primeira Guerra, depois sobe ao poder e se torna o Dulce, a Itália é varrida pelo fascismo. Ida Dalzer é riscada da vida do líder, que volta para a sua família original sem reconhecer o caso e o filho que tivera em Trento.
Ida Dalzer passa a escrever cartas e enfrentar autoridades para ser reconhecida e reencontrar o amor de sua vida. Um sistema delirante vai se formando: ela sabe que será redimida, o seu casamento validado, o seu filho reconhecido como legítimo. Toda a sua existência psíquica depende disso: ela só existe se for acolhida pelo seu amado. Ida Dalzer vai perder tudo, a sanidade inclusive, nessa cruzada. Morre clamando pelo seu direito, pelo seu amor.
Este filme fala sobre duas situações muito presentes nos Transtornos Obsessivos Amorosos: o silêncio e a fabulação. Para o jovem e ambicioso Benito, capaz de desafiar ao próprio Deus, a jovem Ida foi um caso amoroso como tantos outros de sua vida. Ele era o garanhão, tinha o direito de espalhar o seu sêmen pelo mundo. Para Ida, ele era o macho alfa, o único homem de sua vida, para quem ela se entregou de corpo e alma. O filme mostra os dois personagens perdendo essa alma: Benito deixa de ser o jovem idealista para se tornar um ditador sanguinário, que arrastou a Itália para uma guerra ruinosa, da qual o país demorou décadas para se recuperar (quando vejo o atual Primeiro Ministro italiano, Silvio Berlusconi, me pergunto se a Itália realmente chegou a se recuperar de Mussolini). Ida vai criando um mundo próprio, criando para si uma fábula para explicar a ausência e o silêncio do homem amado. Ela não consegue, em momento nenhum perceber que o seu amor está sendo entregue a um homem que não é mercedor dele, que está sacrificando a sua vida e a de seu filho para tentar buscar um amado inexistente. Para não encarar esse vazio, vai se afundando em um vazio cada vez mais profundo e irrecuperável.
Morrer de amor, sim, meninas, mas por alguém que merça esse amor, minimamente.
Tem uma música linda de Chico Buarque, sobre as palavras. Num de seus versos, ele fala: "Nós aprendemos/ Palavras Duras/ Como dizer perdi/ Perdi". Muitas vezes, os amores e as obsessões amorosas terminam nessa palavra: perdi. O que Ida não sabia é que, nesse caso, perder seria ganhar.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Rogério Ceni

Esse é um assunto meio batido no dia de hoje. Todo mundo está falando ou vai falar do feito espetacular desse que com certeza é um dos maiores jogadores de futebol que vestiu a camisa tricolor. Nos dias de hoje, ou nas últimas décadas, só um goleiro poderia ocupar essa posição. Essa é uma posição que você pode formar um jogador, do dente de leite ao profissional, então o êxodo de craques não é tão imediato. Só um goleiro pode ficar vinte anos como titular de uma posição. Rogério aprendeu a bater faltas exatamente por isso. Todos os colegas com que treinava na meia hora antes que chegava para treinar foram embora, vendidos, emprestados, trocados. Só ficou ele, olhando para as traves, até que começou a brincar de bater faltas. Tornou-se um dos maiores batedores de falta e pênaltis do futebol brasileiro.
Confesso que só me rendi ao Rogério como ídolo depois do títulos de 2005. Rogério foi o maestro e o líder que o São Paulo só tivera em Telê Santana. Uma vez vazou o sinal do Sportv e o Milton Leite deixou escapar, sem saber que estava sendo transmitido, que Rogério Ceni era chato para c... De fato, as mesmas características que fazem dele um verdadeiro herói arquetípico também o fazem um pouco chato: está sempre puxando a orelha de todo mundo e dizendo como as coisas deveriam ser. Exerce no São Paulo um poder que muitos diretores não tem. Ontem peitou o plano da Globo, de investir e inflar os times de maior torcida, Flamengo e Corinthians, em detrimento dos outros. Acabou referendando a política quixotesca e autista de Juvenal Juvêncio, que resolveu em sue gestão brigar com todas as federações e agora quer peitar só a Rede Globo. Vai terminar pendurado na brocha, e o evento de Rogério Ceni vai lhe dar mais sobrevida. Rogério mesmo, o melhor goleiro de sua geração, nunca se firmou na seleção depois de peitar Ricardo Teixeira, que o detesta, além de Zagalo e outro membros da corja que mandou no futebo brasileiro nas últimas décadas. Deveria ter sido mais manso, mais político? Não sei. Rogério especializou-se em ser um ídolo sãopaulino, encarnou as características de um herói arquetípico como poucos conseguem em nossa história. Quem foi ontem à Arena Barueri, sãopaulinos e mesmo corintianos, daqui a muitos anos ainda vão dizer nos almoços de Domingo: eu estava lá. Eu vi Rogério Ceni fazer o seu centésimo gol.

domingo, 27 de março de 2011

Philos e Phobos

Estava lendo um estudo sobre a melhora nas taxas de mortalidade de bebês prematuros. Como muitas descobertas da ciência, essa também foi acidental. Uma enfermeira, apesar das orientações expressas da chefia de não tocar os bebês, não aguentou a choradeira e acabou massageando as costas de um prematuro. Nos outros plantões, passou a fazê-lo em outros bebês. Felizmente o tempo que passavam internados permitiu à equipe observar que os bebês massageados passaram a crescer e engordar mais do que os intocados, numa medida objetiva de melhora. Desde essa época, no início dos anos 80, pipocaram os estudos demonstrando os benefícios do estímulo e do contato amoroso para a boa ou má evoluçao de várias doenças.
Uma das coisas que os relacionamentos pós modernos perderam é justamente a incidência do tempo nas relações. O começo, o meio e o fim são acelerados pelo medo de um e o desespero de outro. Um tem medo de se comprometer, o outro o desespero de conseguir o tempo para a relação se estabelecer. O tempo para as massagens fazerem efeito e o vínculo se estabelecer.
Freud descreveu e formulou leis maravilhosas baseadas na sua impressionante capacidade de observação. Dividiu as forças básicas da Vida usando duas divindades gregas, Eros e Tanathos. Eros, o deus Cupido, é a nossa capacidade de explorar e sentirmos atração pelo Outro, pelo desconhecido, pelo o que vem por aí. Tanathos representa o fascínio e a procura inconsciente da Morte, ou da Não Vida. Basta ver o fascínio que muitas pessoas tem por histórias de doença e morte para observar as folias de Tanathos em nossa cultura. O que seria dos Datenas e de outros programas se não houvesse esse desejo de ver e procurar a desgraça? Mas hoje que acordei cedo e com sensação de humildade impressionante, vou dar um pitaco no tio Sigmund. Antes de Eros e Tanathos, temos Philos e Phobos. Não sei se a Mitologia Grega fornece divindades específicas para ambas. São antes princípios do que deuses. Os deuses representam tendências psíquicas formadas no decorrer dos séculos, o que os junguianos chamam de Arquétipos. Talvez existam populações genéticas ou redes neurais que, quando ativadas, possam acionar o comportamento arquetípico. Na usina de Fukushima há vários funcionários que vem ignorando o risco à própria vida para tentar evitar uma catátrofe nuclear. Diante do risco para a espécie, ativa-se o Arquétipo do Herói e assim que são chamados os 50 de Fukushima, de heróis. O instinto de preservação da própria vida é inibido diante da necessidade de salvar a própria espécie. A raça humana, capaz de tanta estupidez, também é capaz de ativar esse comportamento de forma consciente. E sublime.
Philos e Phobos são a expressão de princípios que existem na Física primordial: forças de atração e de repulsão. Ambas são inerentes e importantes à vida. Temos também redes neurais e populações genéticas responsáveis pela ativação de um ou outro módulo. Temos pessoas que naturalmente sentem confiança e atração pelo Outro, enquanto outras pessoas parecem sempre com medo, sempre esperando um ataque. Quando eu leio sobre os bebês que se desenvolvem mais apenas recebendo durante alguns plantões o estímulo amoroso nas costas, fico um pouco arrepiado se essas pessoas que tem particularmente dificuldade em confiar, em se entregar, ou receber o Outro com o princípio da Philia: será que não gravaram em suas células essa desconfiança desde o berço? Será uma tendência genética ou uma influência do ambiente, transmitidas por pessoas com pouco afeto?
Tudo hoje nos estimula ao Phobos. Cercamos e nos cercamos com a hipervigilância do medo. O Outro sempre nos traz medo. Os homens tem medo que as mulheres surtem ou façam cobranças desproporcionais. As mulheres tem medo que o afeto de hoje vire um silêncio congelado amanhã. Como um bebê isolado na incubadeira. Phobos está ganhando, de goleada. Os programas de Philos devem ser trazidos de volta às nossas células. Parece fácil de fazer, mas não é.

sábado, 26 de março de 2011

O Micro e o Macro

Não é incomum ouvir as pessoas falando no consultório que não invejam a posição do terapeuta ou do médico, pela carga emocional que recebe diariamente, como uma radiação de um reator de Fukushima. São ossos do ofício que aprendemos a lidar, embora os profissionais de ajuda em geral acabem sofrendo com várias doenças ligadas ao estresse, e não é incomum ouvirmos histórias de doenças oncológicas e mortes prematuras de terapeutas. Como no caso de muitos pacientes, os profissionais de ajuda devem fazer a lição de casa: gerenciamento de estressores, boa alimentação, exercícios físicos e supervisão dos pares.Sem mencionar o principal, a dedicação ao próprio processo e à própria ferida. Mas esse não é o tema desse post. A grande questão é a angústia inerente à existência humana, que aparece em todos os locais de ajuda, consultórios incluídos. Nós, pós modernos, temos exacerbados motivos de angústia.
Outro dia estava vendo o Animal Planet ou outro canal relacionado, uma fila de filhotes de Leão Marinho, atrás da mãezona em fila indiana, andando com uma ordem e disciplina incomum em humanos. De repente, um dos bebês fica preso em um congestionamento no cenário glacial e se vê perdido do resto da galera. Impressionante o jeito que ele bota a boca no trombone. Chora e grita furiosamente, até a mãe ouvir e responder, localizando o retardatário. Parecia uma dessas cenas que a gente vê de relance e já passa para a próxima zapeada nos canais. Mas dessa vez eu parei por algum tempo. Aquela cena é o próprio mecanismo de uma crise de Pânico: a sensação de absoluto desamparo e de não sentido. A sensação de se estar em um mundo solitário, onde ninguém vai conseguir resgatá-lo. Essa é uma grande angústia de espécies onde os filhotes precisam de muitos cuidados até atingirem a independência. Na espécie humana, muitos nunca atingem a tal independência. Somos uma espécie gregária que desde sempre andou em bandos e precisou muito do apoio do grupo. Nos últimos séculos nos tornamos mais individualistas, os núcleos familiares diminuíram e a busca de autorealização nos tornou mais solitários e livres. Essa angústia frequenta os nossos consultórios. Tem sempre um gurú de autoajuda ou um pastor engravatado gritando na TV que temos que sonhar e realizar os nossos sonhos. Tem sempre fotos de Revista Caras sugerindo que a Felicidade se encontra em algum lugar das colunas sociais e das Ferraris último tipo. Como o bebê de Leão Marinho, as pessoas choram a sensação de estarem desgarradas dessa fileira de pessoas felizes e realizadas. Onde estão os casamentos perfeitos, as carreiras brilhantes, o sucesso que eu posso atingir apenas visualizando e mantendo uma atitude positiva? As pessoas choram pelos sonhos Macro que não se realizam. Perdem a dimensão microscópica, das rotinas e dos cotidianos, das felicidades invisíveis, do heroísmo anônimo que é construir um dia depois do outro. Mas não. Alguém ainda vai te provar que felicidade está em algum lugar do futuro em que finalmente você vai sentir que está livre da insegurança. Ou na próxima cinta emagrecedora do canal de compras.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Obesidade, Doença Inflamatória?

A Medicina, como qualquer ciência, é cheia de enigmas. A Tecnologia nos trouxe muito em termos de compreensão dos processos e formas de intervir nas doenças. A Medicina tradicional Alopática, da qual faço parte e trabalho, coleciona sucessos em todos os campos. Fracassamos redondamente com uma série de outras, como a epidemia de Obesidade.
Assistimos desde a metade do século passado a explosão de doenças inflamatórias. Uma inflamação dentro da cavidade de uma artéria é um exemplo. Se essa artéria for uma Coronária, levando sangue para o Coração, ou uma Carótida, levando sangue para o Sistema Nervoso, essa inflamação pode causar muita confusão um dia desses.
A atividade inflamatória é uma defesa de nosso organismo contra todo tipo de ataque, desde uma pancada a uma pneumonia. Nas últimas décadas a nossa alimentação foi ficando cada vez mais dependente de processos industriais, subtraindo nutrientes essenciais perdidos no processamento de alimentos e refinamento. Esses processos aumentam a nossa resposta inflamatória. Os reatores nucleares de Fukushima me lembram tristemente a nossa civilização inflamatória. Muita pressa, muito calor gerado, falhas no processo de resfriamento. Nossa atividade inflamatória pode estar assim, e nem imaginamos.
Já está muito claro há décadas que o açúcar refinado, a farinha branca existente em pães e bolachas em muito contribuem para levar uma mensagem falsa ao Cérebro, que é: "Está faltando comida". Lembro de minhas aulas de Nutrição, no segundo ano de faculdade, das fotos de bebês severamente desnutridos e obesos, em regiões onde as mães dispunham de muita farinha e poucos vegetais e carnes para alimentá-los. A atual epidemia de Sobrepeso e Obesidade pode ter muito a ver com isso. Muita comida processada e reprocessada, muita farinha, açúcar e poucos vegetais.
Aqui em nossa clínica estamos contando já há algum tempo com uma Nutricionista na equipe. Sempre que eu encaminho alguém para ela, vejo a expressão de desalento no rosto da pessoa que já tentou vários e exaustivos regimes, sempre terminando cpm a recuperação do peso perdido, muitas vezes com lucro. O pior é que normalmente a pessoa incorpora o senso comum que transforma a pessoa portadora dessa doença em criminosa. "Eu não tenho força de vontade". "Eu sei o que preciso fazer, a hora em que eu estiver pronta, vou fazer", ou, como um gordinho famoso falou: "O problema é a minha Tireóide".
Há algumas semanas temos feito reuniões para conjugar o trabalho da Nutrição, da Psicologia e da Psiquiatria para decifrar esse enigma: como ensinar as pessoas a aumentar a sua consciência alimentar, como modificar gradativamente os padrões alimentares e transformar o emagrecimento em uma paixão, em vez de uma tortura. Será que conseguiremos? Os resultados iniciais são bons. Mas não é essa a minha pergunta. A minha pergunta é como alguém pode montar um serviço de atenção ao Sobrepeso e Obesidade que não tenha sempre uma equipe dessas atuando.

domingo, 20 de março de 2011

Mandela

Ontem estava assistindo na TV a cabo o filme de Clint Eastwood, Invictus. Para quem não assistiu, é a história de um campeonato mundial interclubes de Rugby, que se deu na África do Sul no início dos anos 90. O campeonato deu-se numa época delicada da história desse país, com o fim do odioso regime do Apartheid e início da participação dos negros nas eleições e no poder. Morgan Freeman faz o papel de Nelson Mandela, o primeiro presidente sulafricano depois de 27 anos preso, uma das mais longas prisões políticas da época. Mandela herda um país e uma família destroçados pelo ódio. Matt Damon faz o papel de François Pienaar, capitão e líder desse time de rugby, esporte dos brancos. Mandela tem a visão unitiva, quando é tão fácil optar pela divisão. Adotando o time de brancos ele tem a visão de aproximação das culturas e dos povos separados por décadas de racismo e exclusão. Para decepção dos seus pares, o grande líder procura pela unidade, pela inclusão. Imagino o risco político e visão histórica necessárias para isso. Mandela poderia ficar completamente só, com a decepção de seus pares e a desconfiança dos brancos.
O filme mostra, com o olhar seco de Clint Eastwood, a aproximação desses dois homens cuja trajetória tão diferente conflue naquele momento histórico. Há uma cena particularmente bonita, quando a capitão Pienaar olha pela janela, olhar perdido. A sua esposa imagina que ele está preocupado com a final do campeonato. Ele responde que não. Ele está preparado para o que vai acontecer no dia seguinte. Está preparado para a vitória e a derrota, o que o destino lhe reservar. Não é nisso que estava pensando, mas sim em como pode um homem passar vinte e sete anos preso e sair da cadeia pronto a perdoar quem o deixou lá de forma injusta.
O filme é sobre Liderança e Perdão. Essas palavras não costumam andar muito juntas. Não é para qualquer um a tarefa de juntá-las.

sábado, 19 de março de 2011

Saudade do Presente

Outro dia estava lendo na Folha uma matéria sobre a penetração do Budismo no Brasil. Lembro de ter ficado emocionado com a declaração de uma senhora, de origem muito humilde, que estava muito feliz por perceber que poderia ser uma ótima budista simplesmente sendo uma ótima faxineira. Ela não precisava ganhar mais dinheiro para dar ao pastor, nem se preocupar com o Pecado e a Vida Eterna. Era só entregar-se para o momento absoluto e encontrar o Nirvana lavando a janela. É claro que ela não falou tudo isso, a declaração foi sobre ser uma ótima faxineira. Mas valeu. Como me valeu.
Nós fomos completamente encharcados com a doutrina americana do Ter para Ser. O que você faz? Isso dá dinheiro? Os nossos valores são obviamente pautados pela capacidade de consumo, o carro, o sapato, a bolsa, o relógio. Todos signos de sua capacidade de consumo. Quando morei em um pequeno apartamento no Morumbi no início do casamento, ficava espantado com um vizinho que tinha um carro mais caro do que o apartamento. Falei disso uma duas vezes, o cara bateu o carro e eu evitei o assunto desde então. Espero que ele esteja feliz com os seus carrões. O fato é que aquela faxineira achou um atalho para fora de nossos ciclos de Produzir-Acumular-Consumir-Morrer. Descobriu um atalho para o Presente.
Nada diferencia o nosso Cérebro e nossa capacidade intelectual tão profundamente do resto dos habitantes desse planeta do que a capacidade de prever e interferir no Futuro. Plenejamos, sonhamos, construímos o Futuro do nada, apenas de nossa capacidade de imaginar, plenejar, executar. A área do Cérebro capaz de Planejar-Executar-Rever e Replanejar é o nosso Lobo Frontal, justamente uma das áreas mais recentemente desenvolvidas na Evolução. É nossa glória e nossa tragédia. Fiz alguns posts sobre os Transtornos Obsessivos Amorosos. Uma base evidente para a Obsessão Amorosa é a percepção do Futuro ameaçador. Se eu não encontrar a pessoa certa, terei um futuro de infelicidade e privação, não terei ninguém para me ajudar ou proteger. Quanto dinheiro é dispendido com a construção de uma idéia de futuro protegido. Quantos livros de autoajuda são consumidos para termos o futuro de nossos sonhos.
Uma coisa muito legal de ter filhos é a percepção das fases da vida que passam e não voltam. A fralda, os dentes de leite, as espinhas, as formaturas. Podemos viver a passagem dos ciclos com uma sensação de saudade do Presente, saudade do que estamos vivendo aqui e agora e que não vai voltar mais. Podemos praticar essa saudade todo dia, em vez de corrermos loucamente na direção de um futuro que, quando chega, já é Passado. Podemos ser bons faxineiros dos intermináveis pensamentos de nosso Ego medroso.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Cisne Negro

Continuando com a nossa série do Oscar, vamos falar do filme que deu a estatueta de melhor atriz para Natalie Portman. Caso o leitor(a) não tenha visto o filme, sugiro que interrompa a leitura desse post. Agora. Eu avisei.
Uma cliente arremessou na minha cara: ela morre no final (eu não tinha visto o filme ainda). Discordo.Por mais que o filme seja evidentemente uma fábula, e que um filme exija de quem vê uma "suspensão da descrença", seria bem difícil uma bailarina dançar "O Lago dos Cisnes" inteiro com uma perfuração intestinal e hemorragia interna. A personagem de Natalie Portman vai entrando cada vez mais no registro da Alucinação, até um ponto que o espectador é surpreendido em saber que o que parecia uma cena real só existia no imáginário da bailarina. Ela está o tempo todo enfrentando os próprios fantasmas, que aparecem com o seu próprio rosto ou com o rosto de uma bailarina, sua amiga/inimiga, que tem tudo o que falta à protagonista: sensualidade, espontaneidade, entrega. É disso que o filme trata: de enfrentar todos os seus fantasmas, a rivalidade, a inveja, a disputa pelo papel, a disputa pelo olhar do Outro. A cena final está no registro da alucinação. Nâo dá para afirmar que ela morre, nem o contrário.
A personagem principal de Black Swann é tangida o tempo todo entre a mãe superprotetora/controladora e o diretor que lhe esfrega na cara as suas deficiências, ameaçando tirá-la do papel. A psicologia junguiana diria que ela está presa numa fortíssima tensão de opostos, esmagada entre a Mãe Terrível, que lhe cobra: "Eu abri a mão de minha carreira para cuidar de você, agora está na hora de me retribuir, está na hora de você realizar os meus sonhos frustrados" e do Pai Voraz e Incestuoso, personificado pelo diretor, que a toma à força, exige a entrega e espera pela hora de fundir-se com ela, sexualmente, sensualmente, deixando a coitada da menina ainda mais perdida, mais despedaçada por todas as expectativas astronômicas colocadas em suas costas. Quando ela mata alucinatoriamente a si própria, encontra finalmente a sua perfeição. É uma cena particularmente bonita quando ela se livra de todos os medos, todas as dúvidas, todas as expectativas projetadas para se encontrar na personagem e incorporá-la. Finalmente ela se livra dos pensamentos e dos olhares para desabrochar como grande artista. Nesse momento ela se entrega e isso dói. Esse é o significado de sua hemorragia, no final do balé: a menina/moça finalmente encontra e dá vazão à sua expressão artística de dentro de sua ferida, não de fora e isso sangra.
O leitor(a) pode achar que eu gostei muito do filme. Gostei como psicoterapeuta junguiano. O filme me ajudou muito nessa semana. Como expectador, achei que o filme foi salvo do esquecimento pelo Oscar que deu à Natalie Portman.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Avatar

Pode notar o seguidor desse blog que estou começando os posts com uma abordagem inicial do sujeito rabugento e hipercrítico que ainda dorme em meu mundo interno. Começo falando da primeira impressão, crítica e rabugenta, que o autor dessas mal tecladas tem, para depois a visão ir se modificando, espero, para melhor. Confesso que uso o blog para cuidar desse ser azedo, suavizá- lo. É uma forma de autoterapia, pode assim se dizer. Quando eu assisti Avatar pela primeira vez, achei-o uma bobajada New Age, um papo cabeça da bela e torturada alma americana, tentando purgar os seus pecados. Os habitantes de Pandora em tudo se parecem com os nativos americanos, esmagados e exterminados pelos conquistadores brancos, europeus, que dominavam várias tecnologias, inclusive a da morte. Achei que Avatar era uma forma de se idealizar e, alguns séculos depois, passar para o lado dos mais fracos e ensinar aos conquistadores a virtude do respeito a outra cultura e ao meio ambiente. Uma forma de voltar à cultura dos peles vermelhas, que respeitavam o seu meio e a natureza. No Avatar II, a missão, os americanos voltariam com um poderio redobrado para varrer aqueles selavagens do mapa. Essa é a visão algo rabugenta do filme de James Cameron.
Nesse feriado em que passei bem longe da folia, estudei e li bastante, inclusive um trabalho muito bacana que mostra o aumento progressivo de doenças como as coronarianas e o Câncer. Apesar dos bilhões de dólares investidos em pesquisas e tratamentos, as doenças estão matando mais e mais cedo do que há poucas décadas atrás. Posso dedicar vários posts a esse fenômeno, mas o que se observa do ponto de vista psiquiátrico é também uma escalada no uso de medicamentos, talvez o triplo de que se usava há duas décadas, sendo que as pessoas estão mais loucas, mais aceleradas e consequentemente, mais infelizes e doentes. Acho que estamos adoecendo de certa forma como os colonizadores que querem invadir e destruir Pandora, o planeta daqueles adoráveis seres azuis: somos tangidos à tríade Produzir/Consumir/Morrer que nos fazem apressar, passar por cima, seguir a ordem sem questioná-la. Visto um ano depois, Avatar pode estar falando, de um jeito algo adocicado, da necessidade imperativa de retomar contato. Contato com o que? Com o Outro. Os seres de Pandora conversam com as árvores, conectam-se com os seres alados para voarem e respeitam profundamente a ordem da vida, porque entendem que essa ordem é parte de mim e parte do mundo.
Avatar chega em um momento que uma das grandes fantasias da humanidade está chegando ao fim: a fantasia de que nosso planeta é um sistema aberto, que pode ser exlporado e devorado incessantemente que sempre vai se refazer, nunca vai se esgotar. Desde os colonizadores que dizimaram os índios nas Américas que essa fantasia é prevalente na cultura do conquistador: eu posso arrancar, matar, esfolar, que nunca vai acabar.
Hoje percebemos que o planeta e seus ecossistemas são um sistema fechado, portanto, esgotável e pior, está se esgotando década após década. Não vai adiantar nos escondermos na selva de Pandora para retomarmos contato com o príncipio intrínseco da vida, representado pela Mãe Terra, Gaia, ou a Grande Mãe. Talvez Avatar toque em um conceito budista que é ensinado há trinta séculos pelos monges, que é a Interdependência. Estamos numa cultura que exacerba e cultiva a sensação de separação entre pessoas, culturas, recursos. Tudo é uma coisa, um Isso que eu tenho que chupar e cuspir o bagaço. Essa cultura é errada e está começando a se modificar, cada vez mais na marra. Em nossas salas de terapia, podemos dar uma contribuição para esse processo. Assim como as salas de cinema.

segunda-feira, 7 de março de 2011

O Discurso do Rei

Ontem finalmente fui assistir o oscarizado "O Discurso do Rei", um filme bem feitinho para o Oscar pela história de superação pessoal e esperança bem ao gosto da Academia. Confesso que fui com uma certa má vontade por ter gostado muito do "A Origem", que me gerou um post há alguns meses. "A Origem" é um filme complexo, que exige muita atenção e participação do espectador. Merecia o Oscar.
Para quem ainda não viu, "O Discurso do Rei" narra uma saga do Príncipe Albert, pai da atual Rainha da Inglaterra, Elizabeth, às voltas com uma gagueira desde a sua primeira infância. A primeira cena é particularmente angustiante, quando o Príncipe recebe a incumbência de seu pai, o Rei George V, de fazer um discurso ao vivo no estádio de Wembley para todo o reino, na época um Império. Ele gagueja dolorosamente, para constrangimento de todos (se fosse hoje em dia, seria vaiado).
O filme narra a sua busca pela cura, com a intervenção amorosa de sua esposa (aliás, meninas que se queixam dos homens e de sua ausência, nos Transtornos Obsessivos Amorosos: onde estão as mulheres que ficam ao lado de um homem em sua fragilidade como aquela esposa, heim, heim?). Por intervenção de sua esposa ele procura um Terapeuta que usa métodos pouco convencionais para recuperar os transtornos da fala. É bem difícil um terapeuta não se identificar com o personagem de Geoffrey Rush, Lionel. Ele faz tudo que um bom terapeuta deve fazer: humaniza o paciente (aqui você não é o Duque de York: aqui você é Bertie), faz o enquadre correto (recusa-se a atendê-lo no palácio, delimita as regras do processo e faz o futuro rei cumprí-los), faz apostas com ele para mostrar que consegue desempenhar as tarefas, vai trazendo um homem traumatizado e ferido para o centro do processo terapêutico. É tarefa do terapeuta, entre outras coisas, mostrar para o paciente que a sua capacidade está ali, intacta, pronta para ser usada se o medo for apenas enfrentado.
Há uma cena particularmente bonita, em que Bertie, minutos antes de seu coroamento, confronta Lionel, que não tem nenhuma formação acadêmica para tratar transtornos da fala. O futuro rei sente-se traído, mas Lionel não se dá por achado. Ele começara em seu ofício após a Primeira Grande Guerra, recuperando soldados que não conseguiam mais falar depois da experiência do horror da guerra. Ele foi aprendendo do jeito que aprendemos, na raça, errando, revendo, reconstruindo uma trajetória e várias feridas. Lionel sabe que a gagueira de Bertie tem uma origem mais profunda do que uma dificuldade funcional ou neurológica.
"O Discurso de Rei" vem em boa hora para os terapeutas, nesses tempos em que a tecnologia, a indústria farmacêutica e a manipulação genética tentam substituir a relação entre humanos. A cura se dá por um ato de encontro, o encontro será possível após muitos e muitos desencontros, como o filme mostra de forma magistral. É fácil perceber o trabalho de Colin Firth predestinado ao Oscar. O que não dá para entender é que Geoffrey Rush não tenha levado mais uma estatueta para casa.

sábado, 5 de março de 2011

Follow your Bless

Estava revendo um DVD de uma série de entrevistas do mitólogo Joseph Campbell, uma coletânea que foi chamada de "O Poder do Mito", uma série luminosa de entrevistas com esse grande estudioso de mitos e de Mitologias. Essa entrevista me remeteu a uma lembrança:Um curso que ajudei a organizar no começo dos anos 90, sobre Psiquiatria e Psicologia: Uma Ponte Possível (hoje poderia se chamar "Uma ponte longe demais", mas esse é outro assunto). Lembro como se fosse hoje de uma palestra de um grande terapeuta junguiano, dividindo a aula com um outro grande psiquiatra que viria a ser meu orientador do mestrado, alguns anos depois. O grande junguiano mostrou-se quase que um perfeito imbecil, aproveitando a sua exposição para atacar a psiquiatria e os psiquiatras, jogando para a platéia de estudantes de psicologia e profissionais em início de carreira. Ignorou o intuito do curso, que era justamente aproximar as disciplinas e fez ataques bobocas ao Reducionismo e Narcisismo da Psiquiatria. Tive uma profunda sensação de solidão naquela aula. Se aquele era um Big Shot da Psicologia Junguiana, o que poderíamos esperar de seus discípulos? Lá pelos meus vinte e poucos anos e eu percebi que, dali para frente, precisaria seguir só e aprender o que precisasse aprender com suor e algumas lágrimas. Pois esse sentimento de solidão é aplacado por homens como Joseph Campbell. Já se vai um quarto de século que ele deu essa entrevista, mas, fora o seu corte de cabelo e o blazer retrô nada indica a o tempo decorrido.
O entrevistador, Bill Moyers, falecido recentemente, ficava boquiaberto com o que saía das idéias de Campbell. Numa dessas perguntas iluminadas, perguntou a Campbell como encontrar na vida um caminho para a realização pessoal, a realização como indivíduos e como seres mitológicos que somos. Campbell nem titubeou para responder: "Follow your bless", ou numa tradução livre: "Siga a sua felicidade". Somos criados para fazermos parte de um sistema. Um sistema social, econômico, uma realidade consensual e coletiva. Precisamos o tempo todo nos adequar aos sistemas para que eles funcionem. Muita gente perde a noção da própria identidade e passa a ser o gerente, o dentista, o corretor de seguros. Campbell, ele próprio um livre pensador que nunca se curvou à Academia ou a qualquer tipo de controle sobre sua vasta produção de livros e estudos descreve a solidão e a imensa tensão interna que o sujeito precisa aguentar para se tornar Sujeito e Autor de sua própria vida. O "Follow your bless" é exatamente seguir a nossa paixão e o caminho que pouca gente percorreu, ouvindo muitas vezes apenas àquela pequena voz silenciosa que sussura em nosso íntimo. A primeira vez que eu assisti ao "Poder do Mito" foi em fitas gravadas da TV Cultura, num apartamento cuja antena externa era bem ruinzinha. Olhando de novo essas entrevistas, agora com alguns cabelos prateados nas têmporas, me ocorre uma profunda sensação de gratidão por homens que que nos deixam esse tipo de legado. Eles tornam nosso Caminho menos solitário.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Efeito Placebo e a Fé

Recebi um e-mail de uma nova leitora, estudante de Psicologia, chamada Maria Beatriz, que gostou de um post antigo, em que falo sobre Placebo e Sistema de Crenças. Mas o que seria o tal do efeito Placebo?
Há um episódio de House em que ele está em um avião e um dos passageiros começa a apresentar sintomas do que parecia uma doença infectocontagiosa grave, com febre, dores e vômitos. Após algum tempo, várias pessoas no avião começam a sentir os mesmos sintomas, parecendo uma epidemia alastrando-se rapidamente. O médico vivido por Hugh Laurie pega o interfone da aeromoça e vai perguntando pelos sintomas mais absurdos e todos começam a sentí-los, até serem "desmascarados". Eles não estão doentes, só reproduzindo os sintomas do coreano por autosugestão. A epidemia verdadeira no avião é de sintomas histéricos, não há doença nenhuma. Todos suspiram e vão voltando ao normal. Esse mecanismo ilustra um pouco o Efeito Placebo. Uma forte sugestão, uma crença em algum medicamento e procedimento pode provocar reações positivas ou negativas em pessoas mais ou menos sugestionáveis. Outro dia li uma crítica à Medicina Alopática, a que eu pratico, dizendo que a mesma faz com que as pessoas acreditem mais no doença do que na saúde. Seria um efeito placebo ao contrário, como no episódio de House. As pessoas vão acreditando em doenças cada vez mais complexas e com o discurso "olha que o jacaré te abraça" incorporado à Medicina. Nessa semana perdemos um grande escritor brasileiro, Moacir Sclyar, que teve um AVC durante um procedimento cirúrgico para eliminação de pólipos. Sabe-se que os pólipos podem se malignizar e se transformar em temíveis tumores de Intestino. O AVC do Moacir provavelmente aconteceria em outra situação. Mas não há como se negar que ele faleceu pela complicação de um procedimento simples para prevenir um problema futuro. A necessidade de prevenir esse problema futuro gera morbidade e complicações no presente, por uma Medicina cada vez mais agressiva.
A estudante de Psicologia estará estudando um tema complexo, que se estende pela Psiconeuroimunologia e Psiconeuroendocrinologia. Nem sei se ela imagina a fria. O fato é que a crença do paciente no tratamento já é meio caminho andado. A crença do médico, também, por isso que milhões de dólares são gastos para divulgar os efeitos de determinado medicamento para a classe médica. Devemos então fugir dos médicos, dos procedimentos e dos medicamentos? É claro que não. Mas devemos investigar mais a fundo os mecanismos em que o organismo humano reage como um sistema de autoreparação apenas pelo fato do paciente acreditar que vai melhorar, que o remédio é bom e, mais ainda, que o médico sabe o que está fazendo. Isso faz toda a diferença e explica porque os médicos não foram substituídos por computadores. A relação humana e entre humanos produz mais curas impressionantes do que a Ciência possa imaginar. Boa sorte na sua pesquisa, Beatriz.