domingo, 31 de julho de 2011

A Origem 2

- Então...
- Pois é.
- Assistiu o filme?
- Cheguei tarde em casa, consegui assistir até a metade.
Fez uma careta.
- Desculpe.
- Deixa pra lá. Hoje é o último dia de Julho, é o fim de nosso prazo, mesmo.
- Espera aí.
- O que?
- Você vai desistir?
- Desistir do que?
- Você vai desistir de conversar comigo sobre esse filme?
- Quem está desistindo aqui?
Mordeu os lábios, irritada.
- Você pega pesado comigo.
- E você? Quer ou não quer minha ajuda?
- Claro que quero.
- Então precisa colocar mais energia nesse sistema. Se eu mandei ver o filme, não é para ficar brincando na internet, é para ver o filme. Estamos entendidas?
- Sim, senhora.
- Para começo de nossa conversa, qual o título melhor? O brasileiro ou o original?
Fez uma cara de "O que?"
- Qual título é melhor: "Inception" ou "A Origem"?
- Você não gosta sempre do título em inglês?
- O problema é que não estou discutindo o meu gosto pessoal, mas qual título fala melhor sobre o filme.
Mordeu os lábios, de novo.
- "Inception" é melhor.
- Por que?
- Porque se refere à linha central do filme: entrar dentro dos sonhos de uma pessoa, cada vez mais profundamente, para inserir uma idéia. Uma idéia que pode mudar o destino do mundo.
A velhinha sorriu, suavemente.
- Gostou?
- Gostei.
- Qual o título que você prefere?
- Eu gosto dos dois, na verdade. O primeiro é isso mesmo, uma inserção que pode ser uma concepção. Nisso se baseia toda a Psicologia das Massas e até a publicidade.
- Como assim?
- Não tem nenhum momento do dia em que não tentem fazer a inserção de uma idéia nas suas redes neurais, meu bem. Compre isso, seja aquilo, tenha essa aparência, esse tipo de vida. Toda hora o seu Cérebro é bombardeado com novas necessidades e conceitos que a gente nem percebe. A Inception é o sonho de todo sistema totalitário: entrar no Inconsciente das pessoas e colocar lá as idéias que o Big Brother quiser. Só está faltando que os nossos sonhos sejam patrocinados. Vai de Visa, Go!
Risos.
- E o título em Português?
- Eu gosto dele. Olha que é difícil eu gostar de um título brasileiro. "A Origem" tem a ver com a tensão que você deve estar vivendo no fim de seu curso.
- Como assim?
- Você gosta dessa pergunta, não é? Como assim, como assim?
- Dá para responder, por favor?
- "Inception" é o sonho da Psicologia Comportamental-Cognitiva: se eu programar direito as redes neurais do freguês, todos so sintomas vão embora. O terapeuta é uma espécie de gestor de redes neurais defeituosas. Você deve estar sendo bombardeada por esse povo na faculdade, dizendo que é a única científica e bláblablá...
- Estou achando que você não é só psicoterapeuta: é professora de faculdade aposentada.
- Eu sou apenas a paciente 46.
- Estou sabendo. Ok, então. Inception é Comportamental. É o bom e velho Pavlov tentando enfiar idéias na minha cabeça. E "A Origem"?
- "A Origem" é pura Psicologia Profunda, meu bem. Só nos níveis mais profundos do Inconsciente que vai se buscar a origem dos sintomas. Enquanto não se desata o nó que está lá no fundo, não tem incerção de nada.
- De qual nó você está falando?
- Um personagem quer recuperar a liberdade e ver os seus filhos de novo. Enquanto ele não descer ao quarto círculo de seu inferno inconsciente e não elaborar o luto da morte de sua esposa, que ele causou indiretamente, não vai conseguir nada. Essa é "A origem" de todo o seu sofrimento. Ele está preso na própria culpa e no luto, não consegue retomar o contato com a própria vida.
- E o japonês?
- O japonês está preso dentro de sua necessidade absoluta de poder, de interferir e comandar. Termina preso numa ilha, envelhecendo solitário e miserável dentro do seu complexo de poder. Ele precisa ser salvo unicamente porque o personagem do Leo di Caprio precisa dele, senão iria ficar preso para sempre no seu inferno pessoal.
O rosto da moça se abriu de repente, como se tivesse finalmente, compreendido algo muito importante.
- Você está dizendo que, se a terapeuta não vai lá no fundo do Inconsciente, se não vai até a origem dos sintomas, as coisas não mudam realmente?
- Não fui eu quem disse, meu bem: foi um sujeito chamado Sigmund. E depois dele, muita gente confirmou a teoria.
- Menos a Ciência.
- Até a Ciência. Mas falamos disso em outro dia. Por hoje já falamos bastante.
Sorriu, satisfeita com a conversa.
- Você vai assitir o filme?
- O que você acha?

sábado, 30 de julho de 2011

A Origem

- Você parece preocupada hoje.
- Preocupada?
- Sim. O que foi?
- Estamos conversando há algum tempo e eu não consigo definir um tema para a nossa entrevista.
Achou melhor não responder.
- O nosso autor prometeu que iríamos ficar aqui de papo até o final de Julho. O mês termina amanhã e não conseguimos nada de concreto.
Deixou o silêncio carregado, sem brigar com ele. Esse era um tema que estava aprendendo com aquela senhora sem perceber: a escuta.
- Você pode escrever sobre um filme.
- (Deu de ombros) Todo mundo acaba falando sobre um filme, uma peça, uma obra de arte. Isso é um trabalho de Psicologia, precisa de um tema.
- Você quer ganhar um prêmio de originalidade ou quer um tema?
- Do que você está falando?
- Estou falando de um filme bacana para você basear o seu trabalho.
- Qual?
- "Inception".
- O que? (fez uma careta)
- Ah, desculpe. Tenho a mania de guardar o título em Inglês. "A Origem". Você assistiu?
- Assisti e dormi na metade. Ele é muito complicado...
- Complicada é a burrice humana, meu bem. Vá assistir de novo.
- Por que?
- Porque esse filme tem um monte de Psicologias dentro dele. Tem Freud, tem Jung, tem até as últimas novidades da neurociência.
Olhou para a velhota espantada.
- Você é uma psicoterapeuta!
- Como?
- Você é, ou foi, psicoterapeuta? É claro! Como pode ser tão sabida, falar de tantos assuntos diferentes, me ajudar a escrever meu trabalho. Como eu não percebi isso antes?
- E para conhecer Freud e Jung tem que ser uma psicoterapeuta?
- (Apontou o dedo, irritada) Não venha me confundir. Até nisso você é terapeuta! Fica respondendo as perguntas com outras perguntas, isso me deixa louca!
Deu boas risadas.
- Você quer mesmo que eu veja esse filme?
- Quero.
- Não sei, não.
- Então pode procurar pelo seu tema sozinha.
- Precisa ser tão chata?
- Você quer escrever sobre o que? Velhice, solidão, morte? É isso que você veio procurar num asilo?
- Mas não é sobre isso que esse filme trata?
- O que?
- O filme. "A Origem". Não trata sobre velhice, solidão, morte?
- Agora você me pegou.
Risos.
- Tá bem. Eu vejo o filme.
- Que bom.

domingo, 24 de julho de 2011

Amy

Naquele dia estava com a face mais tristonha, ela que sempre estava disposta a oferecer a sua alegria e atenção. Só não podia imaginar o motivo.
- Tudo bem?
Respondeu à pergunta retórica com um sorriso triste.
- Olha, eu sei que não é da minha conta...
- (Interrompendo) Querida, você precisa aprender uma coisinha.
Arregalou o olho.
- O que foi que eu fiz dessa vez?
- Você não fez nada. Apenas tenho uma dica para te dar.
- (Encolheu os ombros) Pode falar.
- Você está se formando em Psicologia, certo?
- Espero que sim.
- Você vai ter uma licença para trabalhar nessa área no ano que vem, certo?
- Certo.
- Então uma dica: a pergunta é seu instrumento de trabalho. Nunca peça desculpas por ter que fazer uma pergunta, nem comece com "eu sei que não é da minha conta". Se não é da sua conta, nem comece a pergunta.
Ficou com as bochechas vermelhas, o que já não contecia há algum tempo em suas conversas.
- Estava sendo educada.
- Eu não estou falando em ser educada. Você quer saber alguma coisa?
- Quero.
- Então pergunte.
Gaguejou de novo.
- Estou vendo que você não está bem...
- (Interrompendo, de novo) isso não é uma pergunta.
- Tá bom, cacete! (Colocou a mão na boca, assustada com a própria reação)
A outra parada, às gargalhadas. Suspirou fundo.
- Tata, você não está bem nessa manhã, em particular?
- Não estou muito bem, de fato. Obrigada por perguntar.
Dessa vez as duas explodiram numa gargalhada.
- Aconteceu alguma coisa que a chateou particularmente?
- Sim, aconteceu. Acabei de ver a notícia da morte daquela moça.
- Que moça?
- Aquela cantora magrela, Amy.
- Amy Winehouse?
- Essa mesmo.
- Você conhece a música da Amy Winehouse?
Dessa vez, ela realmente não gostou da pergunta.
- Não, meu bem. Sou uma velhota morando no asilo que não tem contato com o mundo!
- Não foi isso que eu quis dizer.
- Não?
Fez menção de se levantar.
- Olha, acho que hoje não é um bom dia e ...
- Desculpe.
Olhou ainda mais surpresa.
- Desculpe. Estou chata, mesmo.
- Vou fazer mais uma pergunta.
- Faça a pergunta sem anunciar, criatura!
- Ok.(Respirou). Ok. Uma pergunta idiota e óbvia: Você era fã da Amy? Uma grande fã?
- Eu amava e odiava o trabalho dela.
- Como assim?
- O primeiro álbum era um trabalho bonito, de alguém que parecia saber exatamente o que estava fazendo e aonde queria chegar. Depois eu odiava o que estava acontecendo: as bebedeiras, as internações, os escândalos, todo esse caminho que todo mundo sabia onde iria terminar. Todo mundo sabia que ela estava se consumindo em si mesma e, sabe o que é pior?
Seus olhos estavam fixos nela, mal respirava.
- O pior, querida, é que ela teve tudo: dinheiro, sucesso, os melhores médicos, os melhores hospitais e nada nem ninguém conseguiu que ela abrisse mão da própria morte. Você entende isso?
- Não entendo e acho que não vou conseguir entender. Tem gente que olha para a vida e simplesmente não consegue se atar a ela. Parece que estã pendurados na vida, esperando a hora de poder saltar para fora...
Olhou para ela, surpresa.
- Viu, não sou tão verde assim, heim?
- O pior é que eu fico com aquela música tocando na minha cabeça. (Cantarolou um pouco uma música da Amy Winehouse).
- Eu também estou com essa música na cabeça.
- Talvez esse seja um pequeno consolo.
- Como assim?
- Você usa muito essa expressão.
- Qual?
- Como assim.
- Como assim? (Risos).
- O que eu irira dizer é que quando a pessoa vai embora, se apagam um pouco as besteiras, os desencontros e fica essa voz bonita, tocando pela casa. É uma música atemporal. É como se o artista se apagasse, para a arte poder falar um pouco.
- Gostei dessa.
- Gostou?
- E olha que não começamos muito bem.
- Às vezes as melhores conversas não começam muito bem.
- Bom saber.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

A Mente Alerta

- Podemos começar daí, então ?
- Daí, onde?
- Você me falou que a luta pelo direito de ter plantas, ou bichos, aqui na casa de repouso teria um título.
- A Mente Alerta?
- Isso.
- Posso começar por aí, então?
- Claro.
- O que tem a ver esse título bonito com as plantas e a sobrevivência?
- Tem quase tudo a ver. Quando lutamos para cuidar de coisas vivas, estamos fugindo da miséria.
- Miséria?
- Miséria. A pior de todas.
- E qual é, para você, Tata, a maior das misérias?
- A maior miséria que alguém pode ter é não amar.
Parou por alguns momentos, um pouco surpresa com a resposta mas ainda assim sem penetrá-la. A velha senhora e entrevistada notou a reação, ou a falta dela, mas continuou seu raciocínio.
- Você assistiu ao último Harry Potter?
- Qual?
- O último da série, que encerra a saga.
- Não assisti, não.
- Você gosta de Harry Potter?
- Mais ou menos.
- (Torceu o nariz para o "mais ou menos") Preste atenção, se você assitir o filme, à última frase que o professor Dumbledore fala para Harry Potter, sobre os mortos.
- Pode falar, que eu vou demorar para ver esse filme.
- Você sabe, pelo menos, quem é o Professor Dumbledore.
- (Riso Amarelo)Sei. Mas ele não morreu no outro filme?
- Você vai ter que ver o filme para saber isso.
Balançou a cabeça, contendo o sorriso com um mordiscar de lábios.
- A frase você pode falar, para alegria de nossos ouvintes?
- Dumbledore fala para Harry Potter: " Não tenha pena dos mortos, tenha pena dos vivos, principalmente dos vivos que não sabem o que é amar". Gostou?
- Gostei.
- Você está se perguntando o que isso tem a ver com a Mente Alerta, não é mesmo?
- Na verdade eu estava me perguntando o que isso tem a ver com as samambaias (risos).
- (Rindo junto) As pessoas daqui, ao contrário das pessoas de fora, tem uma coisa rara hoje em dia, que é o tempo.
- Sim.
- Não gastamos o tempo com I-Pods, computadores e nem teve temos TV a cabo. Podemos cuidar de coisas. As pessoas passam o tempo todo chorando pelos cantos que não recebem mais uma coisa importantíssima para elas.
- Que seria?
- Atenção. Elas não tem mais atenção de ninguém. O café da manhã é largado aí na mesa, a enfermagem empurra os remédios sem conferir direito, as famílias vem visitá-las olhando para o relógio. A sensação mais dura da velhice e desse lugar não é a decadência física, não senhora. É a falta de atenção, mesmo.
- Aí que entram as samambaias?
- Isso ! Aí que entram as samambaias.
- As samambaias vão dar a essas velhinhas a atenção que elas precisam...
- Não pense que não notei a ironia, mocinha.
- (Risos) Estou melhorando, não estou?
- Pode ser...Pode ser...Mas eu falava de samambaias. O truque aqui é o mesmo que lá fora: em vez de passar o tempo chorando ou esperando pela visita de netos gordinhos e desinteressados, podemos voltar a ter a mente alerta. O truque é fácil: em vez de tentar chamar a atenção, que tal dar atenção para as coisas? A questão é: como mudar a orientação das pessoas que só se preocupam com o própio umbigo?
- De todas as idades?
- De todas as idades.
- Você acha que elas podem dar atenção para as coisas vivas, como as samambaias.
- Como as samambaias. Isso pode até mudar o título de seu TCC.
- Lá vem você.
- (Risos) Lá venho eu. Que tal o título: " O Amor e as Samambaias".
Risos.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

A Planta de Estimação

Continuou a revirar as suas anotações, procurando em vão por alguma coisa. Alguma idéia, por exemplo. A outra esperava tentando disfarçar um sorriso.
- Está difícil por aí, é?
A menina riu amarelo, mas ficou ainda mais irritada.
- Oi?
- Não estou achando.
- Isso eu posso ver.
- Que saco!
- Posso saber o que você está procurando?
- Eu preparei algumas perguntas para te fazer e não estou achando.
- (Ainda com ar muito divertido) Bom, eu posso aproveitar para te fazer umas perguntas então.
Desistiu, bufando.
- Sobre o que são as suas perguntas?
- Sei lá,cacete... Eu estava lendo uma entrevista tão bonita, de repente me veio um monte de perguntas legais na cabeça, anotei tudo e agora esqueci em algum lugar, caramba. Por que essas coisas acontecem comigo?
Os seus olhos marejados tiraram toda a graça da situação.
- Posso te ajudar?
- Por favor...
- Por que você veio me entrevistar?
- Na real?
- Na real.
- Eu vim te entrevistar para ver se encontro uma idéia, uma inspiração... Não consigo ainda definir um tema.
- Você ficou sabendo da nossa greve?
- Que greve?
- Há umas três semanas, fizemos quase dois dias de greve de fome.
- Como assim, greve de fome?
- Nem foi tão difícil fazer a tal greve, a comida daqui está cada vez pior.
- Foi por isso que vocês fizeram greve?
- Isso o que?
- Por causa da comida ruim que fazem por aqui?
- O que? Não...Não foi nada disso. Queríamos outra coisa.
- Queriam o que?
- Queríamos cuidar de umas plantas aqui dentro. Colocar samabaias, xaxins e outras plantas por aqui.
Olhou envolta, procurando pelas plantas.
- Vocês conseguiram?
- Não, não conseguimos. A equipe médica explicou que poderiam propagar infecções, o povo aqui morre de medo de morrer, o movimento acabou enfraquecendo.
- Vocês não conseguiram nada?
- Conseguimos o direito de plantar alguns legumes lá fora.
- Me desculpe, estou realmente gostando da história, mas o que isso tem a ver com as minhas perguntas e o meu trabalho?
- Ah, meu bem...Isso tudo tem a ver com o seu trabalho. Você sabe que em casas de repouso em que os internos podem cuidar de bichos, ou de plantas, a mortalidade é a metade do que em outros que ficam fazendo os velhos baterem palminha que nem retardados?
- Não, não sabia.
- Esse pode ser um bom tema para o seu trabalho.
- Qual tema: A minha Planta de Estimação? (Risos)
- Exatamente. Mas eu daria um nome ainda melhor.
- Qual?
- A Mente Alerta: Ensaios de Sobrevivência.
Parou de falar, como visualizando o título em um slide.
- Gostou?
- Gostei.

domingo, 17 de julho de 2011

Paciente 46

Olhou debaixo de seus óculos tímidos. Falou com a voz tremida, com medo de gaguejar.
- Podemos começar, então?
Sorriu, com uma expressão entre a ternura e a graça.
- Deixa eu entender uma coisa: você é uma estudante de Psicologia.
Assentiu.
- Você está procurando por um tema para o seu trabalho de conclusão do curso.
Ficou discretamente ruborizada, como criança pega fazendo arte.
- Estou querendo entrevistar pessoas que falem sobre a melhor idade.
- Melhor idade para quem, minha filha? Melhor idade para fazer excursões de terceira idade?
Encolheu-se na cadeira.
- Você quer fazer entrevistas sobre a velhice, é isso?
- Não! (Desta vez, respondeu de pronto). As pessoas da clínica me indicaram você, justamente porque é a cabeça mais jovem daqui. Você é alegre, ativa e brinca com todo mundo.
- Você vei descobrir os meus segredinhos, então?
Ficou com as bochechas coradas, de novo.
- Sabe, querida, eu fico muito feliz de conversar com uma estudante de Psicologia, nem achei que ainda existisse Psicologia, pensei que os terapeutas tinham sido substituídos pelos gurus de autoajuda.
- Não está faltando muito.
- Pois é. O fato é que eu vou me divertir muito com essa entrevista, mas preciso só de uma coisa.
- Pode falar.
- Eu preciso que você não me trate como uma velha. Não use eufemismos, nem meias palavras, nem tente evitar de me causar algum fricote ou mágoa de velhinha. Combinado?
- (Com os olhos arregalados) Combinado.
- Que bom. Por onde você quer começar?
- Pelo seu nome e idade.
- Sem nomes e sem idades.
- Como assim?
- A sua entrevista é para abrir questões, não é? Não é um estudo de caso. Eu não sou um caso.
- Mas você tem um nome, não tem?
- Tenho. Aqui na clínica eu sou a 46.
- Como é?
- É assim que os médicos me chamam, a mulher do 46.
- Eu não sou médica.
- Mas o seu pai é, não é mesmo?
Abaixou a cabeça, como se atingida por um tapa. Tomou fôlego mesmo assim.
- Eu vou te chamar de Tata.
- Quem é Tata?
- Era assim que eu chamava a minha avó. Pode ser assim?
- (Apaziguada) Pode.
- Mais uma coisa.
- Sim?
- O meu pai é diretor dessa clínica. Isso me ajudou a ter acesso a você, por exemplo. Mas eu não tenho nada a ver com o jeito com que ele dirige esse serviço, beleza?
- Belê.
Houve um silêncio meio tenso, antes de explodirem, juntas, numa gargalhada.

sábado, 16 de julho de 2011

Livro de AutoAjuda

Dando sequência a essa fase do "que me der na telha", vou fazer mais uma pérola de autoironia, que é escrever textos de suposta autoajuda. Quem andou acompanhando os meus últimos posts deve lembrar de um em que eu contrapunha um livro budista que eu comprei numa bookstore de Orlando com os livros de "Faça Assim, Faça Assado" que dominam as prateleiras de Autoajuda. O livro budista enfatiza a importãncia de se respeitar a experiência individual e a capacidade pessoal de uma pessoa se desenvolver e achar as próprias respostas, o que deveria ser uma das metas da Psicologia Profunda. Fiz naquele post um contraponto com os livros em que o autor descreve a própria experiência como universal e a si próprio como Mestre do Bem Viver. "Faça desse jeito e os resultados não vão demorar". Uma espécie de Polishop da Felicidade Humana. Deve estar ficando claro nesse, como no outro post, qual o tipo de trabalho, e livro, me agrada mais. O fato é que eu e quem mais acredita na capacidade humana de criar sistemas de aprendizagem e desenvolvimento pessoal a partir da própria capacidade, estamos perdendo de goleada. Basta dar um pulo nas bookstores brasileiras para ver que não só as prateleiras de autoajuda ocupam o triplo do espaço das de Psicologia, como as próprias prateleiras de Psicologia estão dominadas por psicólogas(os) que incorporaram o discurso Faça Você Mesmo, Ou Faça O Que Eu Digo, Não o que EU Faço, dos livros de Autoajuda. "Ame-se e tenha os homens aos seus pés". Esse seria um bom título para meu livro, não?
O fato é que ficar na beira da estrada bancando o crítico rabugento não vai funcionar. Se existe demanda e mercado para os livros de Autoajuda é porque tem uma grande quantidade de pessoas precisando de respostas, mesmo que de respostas simplificadas e simplificadoras. Nunca na história da humanidade tivemos tanto acesso a informação e qualquer tema que "googarmos" na internet vai produzir dezenas de especialistas falando alhos, contra outra dezena falando bugalhos. Não sabemos mais em quem confiar e como filtrar opiniões tão conflitantes.
Vou basear as minhas primeiras incursões no reino de Autoajuda no livro "Mindfullness" escrito por uma psicóloga pesquisadora, Ellen J. Langer, Merloyd-Lawrence Books, 1989. O livro vai ter a forma de diálogos e pequenas histórias ilustrativas, pois sou um autor de limitados recursos literários e aprendi a me expressar razoavelmente nessa estrutura dialógica. Se for ficando chato, acabo logo com esse caminho e volto a escrever sobre filmes. Posso até incluir o novo filme de Woody Allen, viu Ana? (vide comentários do blog). Posso até mudar de idéia amanhã, que ando meio instável ultimamente. Ou se os meus leitores mandarem parar. Acho que vou começar hoje mesmo.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Os Filmes que assisti com Jung - O Campo dos Sonhos

Esse blog tem mais de um ano e tem sido um bom veículo de idéias, reflexões, críticas. O assunto dele é basicamente tudo, de Futebol a Neurociência. Não é divulgado de forma nenhuma, senão o boca a boca, não tem um fio condutor que defina um público alvo, ou em bom Português, um target. Uma delícia de fracasso. Como estou cansado de achar assunto, nesse mês de Julho esse blog vai ficar ainda mais esquizofrênico, falando de filmes, ou cenas marcantes dos mesmos, ou começando a discutir questões de Psicologia Analítica através de diálogos. Não digam que eu não avisei.
Estava falando agora há pouco sobre "O Campo dos Sonhos". Um filme todo ele calcado na elaboração da Metáfora Paterna. Já falei sobre ele em outro post, mas vou retomá-lo.
O filme é sobre um fazendeiro do Iowa, um estado agrícola americano. O personagem principal, interpretado por Kevin Costner no auge da carreira no final dos anos 80 e início dos 90. O fazendeiro começa a ouvir vozes falando dentro de sua cabeça: "Se você construir, ele virá". Se consultasse um psiquiatra, iria ganhar uma prescrição de antipsicótico ou uma internação. Pior ainda quando ele começa a obedecer essa voz/intuição e levanta um campo de beisebol oficial bem no meio de sua plantação de milho, endividando-se até o pescoço para fazê-lo. Para piorar a situação, as vozes não param de falar, ele vai resgatar um escritor solitário e sofrido, um pediatra idoso que queria mesmo é ter sido jogador de beisebol. O campo começa a ser frequentado por jogadores de beisebol lendários, ou seus fantasmas. É como um campo de futebol onde viessem jogar Leônidas da Silva, Garrincha, Heleno de Freitas e outras lendas de nosso futebol.
Durante o percurso pela América pegando os caras que as vozes mandavam, ele contava a sua história. Conta que saiu de sua casa aos 17 anos, após uma briga idiota com seu pai. Deu as suas cabeçadas, casou, construiu a sua fazenda e sua família. Quando estava no trempo de recuperar a sua relação com o seu pai, pois já crescera e estava pronto para conversar como gente, o pai havia morrido. Fica óbvio então, mesmo para quem assista o filme sem o olhar interpretante de um terapeuta, que todos os personagens estão procurando por redenção. Redenção das coisas não realizadas, das perdas e das omissões que vamos deixando por todo o caminho. Não é fácil quando um homem está preparado para acertar as contas com as figuras parentais, com o pai, por exemplo e ele não está mais lá para conversar. Contei esse filme para um cliente que passou a noite toda de febre conversando em sonho com o seu falecido pai. Não tinha dado tempo para colocar o assunto em dia durante a vida. O pai insistia para ele parar de se culpar. A vida joga a gente de um lado para o outro e é difícil entender a sua ordem debaixo do aparente caos.
No final do filme, um dos jogadores, líder do time aponta para o construtor do campo, ainda angustiado porque não sabia por que construíra o Campo dos Sonhos. Vem jogar com esse calouro aqui, ele falou. O calouro era o pai dele, ainda jovem e sem as cacetadas e decepções que a vida, infelizmente, nos impõe. Ele apresenta o jogador, seu pai, para a sua família. o filme termina com ele trocando bola de luva a luva com o seu pai. E eu chorando lágrimas de esguicho, claro. "Se você construir, ele virá".

segunda-feira, 11 de julho de 2011

A Pedra

O psiquiatra suiço Carl Jung não tinha do que se queixar. Após uma infância pobre e uma adolescência de grande privação, quando perdeu o seu pai e conseguiu cursar a Medicina com a ajuda de um tio, Jung decidiu dedicar-se à Psiquiatria, uma especialidade nascente. Namorou e casou com Ema, herdeira de uma família de ricos industrais suiços, portanto os dias de aperto tinham ido embora, definitivamente. Jung trabalhou numa das mais importantes equipes psiquiátricas de seu tempo, com o Dr Bleuler. Foi essa equipe que cunhou o termo Esquizofrenia, que significa Mente Cindida, Mente Quebrada. Esse insight é confirmado até os dias de hoje pela moderna Neurociência. Mas Jung não estava satisfeito. Conheceu o trabalho de Sigmund Freud, encantou-se com a nascente Psicanálise. Naquela época, como hoje, isso podia significar a exclusão da Psiquiatria. Até os dias de hoje, a Psicologia Profunda, Psicanálise incluída, tem o estatuto de uma Pseudociência. Jung deixou a equipe do Dr Bleuler e foi se juntar ao Freudismo. Foi eleito por Freud o seu sucessor e tudo estava bem encaminhado, mas o homem não estava satisfeito. Discordava de Freud em quase tudo: a origem sexual dos sintomas, a natureza do Inconsciente e do trabalho do psicoterapeuta. Depois de muitas discórdias, Jung rompeu com Freud, mas a verdade é que foi expulso do círculo psicanalítico, como um pária, um leproso. A sorte é que sempre contou com amigos e amigas endinheiradas, que o ajudaram a construir o Instituto Carl Jung. Depois do rompimento com Freud, Jung pode desenvolver o estudo do Inconsciente Coletico, por ele descoberto. Mas o cara não tinha sossego. Começou a estudar a Alquimia Medieval e viu nela um paralelo com o nosso Desenvolvimento Psíquico. Tome mais descrédito, mais ironias, como chamá-lo até hoje Romântico, ou pior, de Místico. O fato é que Jung trouxe para a Modernidade os livros empoeirados daqueles magos que passaram séculos em seus laboratórios secretos procurando pela Pedra Filosofal, uma substância capaz de curar as pessoas e reverter os efeitos do tempo. Não por acaso que o primeiro livro da saga de Harry Potter é Harry Potter e a Pedra Filosofal, que Lord Voldemort tenta roubar de Flammel, lendário alquimista. Jo Rolling deve ter sido fiel leitora de Jung, e seus livros estão repletos de mitologias e busca interior. Como nossos consultórios.
A Ciência Moderna não sabe, mas continua procurando pela Pedra Filosofal, a capacidade de encontrar a substância básica da vida e vencer a Morte.
Para os terapeutas, a Pedra não tem essa característica mágica. A Pedra é antes de mais nada a Base Egóica, o que pode ou não separar os homens de seus primos primatas. A Pedra é nossa capacidade de tolerar frustrações, adiar a satisfação imediata de nossos anseios por projetos de longo prazo, melhorar as nossas capacidades a partir do duro aprendizado com os nossos erros. Essa é uma parte difícil de nosso trabalho, hoje em dia. O mundo virtual dá a muita gente a impressão de que a vida é recortar e colar tudo, nada demanda tempo nem esforço.
O terapeuta é o chato que continua mexendo no tacho para que a psique vá tomando forma, para que o sujeito seja sujeito da própria vida e da própria busca. Devemos tudo isso a aquele velho e teimoso psiquiatra suiço, que teve como principal compromisso a Verdade e a busca por entender o Sentido de nossa jornada arquetípica, que chamamos de nossa vida.

domingo, 10 de julho de 2011

Gracias a la vida

Semana daquelas, gente. Não deu para postar nada. Agora vai melhorar. Desculpem a demora.
Nessa semana carregada, vieram em duas sessões diferentes uma vivência bonita e incomum (infelizmente incomum): a vivência da alegria, do coração de alegria da vida. Explico: uma pessoa teve um vislumbre da alegria de receber a família em casa e ter comida farta que atendeu a todos. Depois de uma infância difícil e apertada de dinheiro, muitos anos de estudo e trabalho construíram essa abastança. Em outra sessão, veio a alegria de redescobrir o próprio casamento, a alegria do amor depois de muita guerra conjugal. As duas vivências me remeteram para um filme bobo, do final dos anos 90, o título em Português é "Um Santo Homem", interpretado por Eddie Murphy. Tantos filmes cult falando de alegria e ampliação de consciência e eu fui lembrar de um filme de Eddie Murphy, um camaleão que repete sempre o mesmo personagem e está filmando e fazendo mais ou menos sucesso há um quarto de século. No filme, ele faz o papel de um andarilho, achado à beira de uma highway imensa, desmaiado, sendo socorrido por um casal que estava a caminho do serviço, em um canal de vendas de TV do tipo Polishop. Logo eles vão descobrir que ajudaram um guru moderno, um homem em sua peregrinação espiritual, que vai mudar muito a vida de ambos.
O homem acaba hospedado na casa do produtor e entra nos programas de vendas de jóias bregas, produtos de cozinha e de marcenaria, sempre deixando mensagens espirituais que vão aumentando a audiência e as vendas. A cena do filme que eu citei nas sessões foi a de uma festa onde estava G, o Santo Homem encontrado por acaso na estrada. A festa era para um importante cliente, que começou uma conversa com o exótico convidado em roupas orientais. Lá pelas tantas, falou de seu profundo medo de aviões, que limitava os seus negócios. G propõe um exercício que vai eliminar o medo, ele topa prontamente e, no meio da sala e da festa, G hipnotiza o sujeito e o coloca dentro de um vôo. De repente, o avião pega uma zona de turbulência, as luzes começam a piscar no painel. Tudo parece bem, mas a turbulência faz o avião pular como um cabrito. O homem começa a se apertar de medo. G sugere que o avião agora começa a perder altitude, as pessoas gritam, as aeromoças pedem calma mas o piloto não se manifesta. Fica claro que o avião está caindo e que o homem deve se preparar para a própria morte. Todos na festa fazem um silêncio de cemitério, pensando onde aquele exercício vai dar. No momento de maior tensão, G muda o tom de voz. Suave. O avião está caindo mas você não tem mais medo. Um profundo sentimento de gratidão começa a surgir. Você vislumbra a sua vida, as coisas boas que realizou, as pessoas que amou, os desafios que enfrentou, às vezes ganhando, às vezes perdendo. Você está pronto para sentir a gratidão pelo dom de sua vida. Não há mais medo, não há aperto. Você sente apenas uma profunda alegria por ter vivido. De repente, o avião recupera a altitude, as pessoas param de gritar, o piloto avisa que a zona de turbulência passou e que os passageiros podem soltar o cinto de segurança. O seu coração se enche de serenidade e você sabe que nunca mais vai ter medo de avião. O homem acorda radiante e os convidados aplaudem a "mágica". No dia seguinte, avisa que voou sem problemas e duplica o seu investimento no canal de compras.
É claro que isso é bem mais fácil de dar certo num filme do que na vida real. Mas podemos enfrentar os medos e as fobias com a nossa imaginação, com a coragem e com as pequenas vitórias do dia a dia. O que me impressionou na cena de uma comédia romântica com mensagem pseudo espiritual foi a percepção, pelo roteirista e os atores, dessa alegria que há no coração da vida. Já muito foi escrito aqui nesse espaço sobre a nossa psique voltada para o Futuro e para a insatisfação, o que nos subtrae desse coração da alegria. Mas ela aparece, em flashes cada vez menos raros, se dermos passagem. Isso pode ser um exercício diário. Se você estivesse nesse avião, o que agradeceria?

sábado, 2 de julho de 2011

Tablets e Psicoterapeutas

Ontem estava na única megastore de livros que conheço em Orlando, a Barnes & Noble. Eu sou um bom garimpante nessas Megastores, sempre acho coisa interessante. Por exemplo, encontrei um livro Zen Budista pelo preço de uma Revista Caras: "Se você encontrar o Buda na estrada, mate-o". Não é um livro sobre serial killers de budistas ou de monges. É um livro que desconstróe a figura do mestre, seja ele qual for. O que aprendemos, aprendemos com nossa interiorização, não adianta ficar imitando ou macaqueando os mestres e seu percurso. Jung dizia, não tente imitar Jesus, mas a sua dedicação, a sua busca. Acho que o livro vai falar sobre isso. Continuo procurando coisas que tragam outro oxigênio para a prática clínica. Havia um livro sobre Psiquiatria Tóxica que praticamos hoje em dia. Obrigado, eu passo. Conheço e enfrento essa Psiquiatria, todo dia. O engraçado dessa livraria é a pobreza de títulos. É uma pena, mas a livraria pode estar acabando, como a loja de discos ou Cds. Os tablets vão substituir a nossa relação tátil amorosa com os livros. Vai juntar menos poeira, mas um pau no tablet pode perder uma biblioteca. Eu, que gosto de grifar e fazer obseravações nas páginas, vou perder muitos grifos.
Enquanto puder, vou continuar com livros empoeirados e tinta de jornal nos dedos.
As prateleiras de Psicologia e Autoajuda se fundiram. Não há nenhum livro de Freud na prateleira. É como contar a história do futebol sem contar quem o inventou. Veja um contraste: um livro que pede para confiarmos em nossa experiência e interiorização e várias prateleiras de livros propondo: "faça isso, pense aquilo, faça desse jeito".
Pode ser que os psicoterapeutas fiquem obsoletos como as livrarias nessa sociedade que quer respostas prontas como um macarrão instantâneo. Mas eu vou continuar curtindo as massas feitas devagar, com capricho. E profundidade, na época da superfície.