sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Fragmentos de Borges e Felizes os felizes

Lá se vai 2011. Engraçado, esse ano parece que as pessoas passaram ainda mais batidas pelo Natal e pelo Ano Novo. Os votos de Boas Festas são dados na internet em spams de editoras ou de sites com produtos para aumentar o pênis. As pessoas estão se cumprimentando menos, ou muito cansadas para comemorar?
De minha parte, envio o último post de 2011 poupando os visitantes de mais assuntos relacionados à Neurociência, à Psicologia Analítica ou ao Futebol Brasileiro. Vou encerrar o ano com um texto de um escritor que muito amo, Jorge Luis Borges. Vai ser uma espécie de presente de Natal atrasado, já que passamos tão batidos pelo Natal. O texto se chama: “Fragmentos de um Evangelho Apócrifo”, ou seja, um Evangelho cujo autor desconhecemos e nem queremos conhecer. É uma paráfrase do Sermão da Montanha, que nos atinge na boca do Estômago, por sua força de vida. Lá vai:
“ 3. Desventurado o pobre em espírito, porque debaixo da terra será o que agora é na terra.
4. Desventurado o que chora, porque já tem o hábito miserável do pranto.
5. Ditosos os que sabem que o sofrimento não é uma coroa de glórias.
6. Não basta ser o último para alguma vez ser o primeiro.
7. Feliz o que não insiste em ter razão, porque ninguém a tem ou todos a têm.
8. Feliz o que perdoa aos outros e perdoa a si mesmo.
9. Bem aventurados os mansos, porque não condescendem com a discórdia.
10. Bem aventurados os que não têm fome de justiça, porque sabem que a nossa sorte, adversa ou piedosa, é obra do acaso, que é inescrutável.
11. Bem aventurados os misericordiosos, porque a sua felicidade está no exercício da misericórdia e não na esperança de um prêmio.
12. Bem aventurados os de limpo coração, porque vêem a Deus.
13. Bem aventurados os que padecem perseguição em nome da justiça, porque lhes importa mais a justiça do que seu destino humano.
14. Ninguém é o sal da terra; ninguém, em algum momento de sua vida, não o é.
15. Que a luz de uma lâmpada se acenda, embora nenhum homem a veja. Deus a verá.
16. Não há mandamento que não possa ser infringido, e também os que eu digo e os profetas disseram.
17. O que matar pela causa da justiça, ou pela causa que ele crê justa, não tem culpa.
18. Os atos dos homens não merecem nem o fogo, nem os céus.
19. Não odeies a teu inimigo, porque se o fazes, és de algum modo seu escravo. Teu ódio nunca será melhor que a tua paz.
20. Se te ofender a tua mão direita, perdoa-a; és teu corpo e és tua alma e é árduo, ou impossível, fixar a fronteira que os divide.
24. Não exageres o culto da verdade; não há homem que ao fim do dia não tenha mentido com razão muitas vezes.
25. Não jures, porque todo juramento é uma ênfase.
26. Resiste ao mal, mas sem espanto e sem ira. A quem te ferir a face direita, podes oferecer-lhe a outra, sempre que não te mova o temor.
27. Eu não falo de vinganças nem de perdões; o esquecimento é a única vingança e o único perdão.
28. Fazer bem a teu inimigo pode ser obra da justiça e não é árduo; amá-lo, tarefa de anjos e não de homens.
29. Fazer bem a teu inimigo é o melhor é o melhor modo de comprazer a tua vaidade.
30. Não acumules ouro na terra, porque o ouro é o pai do ócio, e este, da tristeza e do tédio.
31. Pensa que os outros são justos ou o serão, e se não é assim não é , não é teu erro.
32. Deus é mais generoso que os homens e os medira com outra medida.
33. Dá o santo aos cães, deita tuas pérolas aos porcos; o que importa é dar.
34. Busca pelo agrado de buscar, não pelo de encontrar...
39. A porta é a que escolhe, não o homem.
40. Não julgues a árvore por seus frutos nem ao homem por suas obras;podem ser piores ou melhores.
41. Nada se edifica sobre a pedra, tudo sobre a areia, mas nosso dever é edificar como se fora a pedra a areia...
47. Feliz o pobre sem amargura e o rico sem soberba.
48. Felizes os valentes, os que aceitam com ânimo semelhante a derrota ou as palmas.
49. Felizes os que guardam na memória as palavras de Virgílio ou de Cristo, porque estas darão luz a seus dias.
50. Felizes os amados e os amantes e os que podem prescindir do amor.
51. Felizes os felizes.”

Esse é na verdade, o meu mandamento preferido. Felizes os felizes. Sejamos felizes em 2012. Em 2013. Em 2014...

domingo, 25 de dezembro de 2011

Natividade

Uma das partes mais terríveis do Velho Testamento (e não faltam partes terríveis nele) é a hora em que Jeová/Elohim expulsa Adão e Eva do Paraíso, proferindo as sentenças definitivas: para a mulher: “Parirás em dor” e para o homem:”Ganharás o pão com o suor de teu rosto”. Qualquer engraçadinho diria que a sociedade pós moderna venceu as pragas bíblicas, com a Anestesiologia tornando o parto indolor (sobretudo se for no Brasil, campeão mundial de partos agendados). O trabalho que faz o rosto suar diminuiu também nesses tempos de condicionamento de ar. Mas o mais provável é que Jeová não estivesse sendo tão literal assim.
O Mito da Natividade que, sabendo ou não, comemoramos e revisitamos em todos os feriados de Natal, fala do Parto e do Suor. Todo dia nos deparamos com a sequência descrita em outro Testamento, o Novo. Sempre que recebemos uma notícia inesperada, uma doença, um acidente, algo que muda rápida e definitivamente a nossa vida, recebemos a mesma cacetada que uma menina, diante do anúncio de que vai parir, em dor, uma criança. E toda criança, como aquela, é uma Criança Divina. Ao dizer sim, até pela impossibilidade de dizer não, ao que a Vida nos impõe, repetimos o Sim daquela menina. Somos amigos da estabilidade e do previsível, mesmo sabedores que não há o estável nem o previsível. Quando a mudança nos é imposta, pelas circunstâncias ou pela transformação intrínseca à vida, podemos paralisar, ou dizer o que a menina falou na Galiléia. Sim. Essa menina realmente existiu e encontrou-se com o Anjo? Isso, como eu já escrevi em outros posts, é completamente irrelevante. Nesse exato momento em que as pessoas acordam em suas ressacas da Noite Feliz, alguém deve estar recebendo uma notícia que mudará a sua vida, definitivamente. Quando a vida muda, quando a Anunciação se dá, iniciamos uma jornada. Para os junguianos, uma Jornada Arquetípica. A Jornada vai ser carregada de dúvidas, como o jovem rapaz que cogita abandonar a sua noiva para não condená-la. As dúvidas são talvez o maior sofrimento da estrada.
Como o jovem casal, Maria e José, precisamos atravessar desertos para encontrar o lugar. Passamos por desconfortos na era dos confortos, ficamos acovardados ou paramos do lado da estrada, mas sabemos, ou deveríamos saber, que a estrada é nossa, pessoal e intransferível e ninguém pode trilhá-la por nós. Antes de chegarmos ao fim e concluirmos a jornada, parece que tudo joga contra, tudo ameaça dar errado, até o nascimento pobre, num celeiro ou numa maca de um hospital de periferia. O parto de dá, sim, em dor, a despeito das drogas anestésicas. Não há anestesia para a dor de se construir uma vida. Não há carro potente que possa nos poupar do suor de conseguir atravessar as dificuldades e chegar.
A data do Natal nasceu de uma acordo que adequasse o Mito Cristão ao Solstício de Inverno, ou de Verão, de acordo com o Hemisfério do planeta. Isso também é irrelevante. Natividade é todo dia. Amém.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Terezinha

Outro dia estava citando numa sessão uma música de Chico Buarque, Terezinha. A cliente, na faixa dos trinta anos, não conhecia a música. Mandei youtubá-la. Chico Buarque deveria ser matéria obrigatória. A tal geração Y está perdendo-o de vista. O fato é que, particularmente, as músicas do Chico falam da alma feminina como ninguém. Um junguiano diria que ele faz música com a sua Anima. Terezinha fala das três fases de desenvolvimento do Animus, ou seja, da relação da mulher com o Masculino. Chico inspirou-se numa cantiga de roda: “O primeiro foi seu pai, o segundo seu irmão, o terceiro foi aquele que a Tereza deu a mão”. Chico escreveu, Betânea cantou: “O primeiro, me chegou/ Como quem vem do florista/Trouxe um bicho de pelúcia/Trouxe um broche de ametista”. Esse homem é o primeiro da cantiga de roda. O Homem Bonzinho. Ele é protetor, cuida e é o genro que toda sogra quer. Dá segurança e está sempre por lá quando a mulher precisa. Chico conclui essa estrofe assim “Me encontrou tão desarmada, que tocou meu coração/ Mas ele não me negava nada/ E assustada eu disse não”. O Homem Bonzinho tem todos os predicados, está sempre atento, demonstra o tempo todo a sua perfeição. Entediada, a mulher diz não. Continua a música : “ O segundo, me chegou/ Como quem chega do bar/ Trouxe um litro de água ardente/ Tão amarga de tragar/ Indagou o meu passado/ E cheirou a minha comida/ Vasculhou minha gaveta/ Me chamava de perdida”. Se o primeiro é um homem Pai/Mãe, o segundo é o bad boy. É o que vai fazer a mulher sofrer. É anti-Pai e a anti-Mãe. As mulheres de alcoólatras e de homens feridos em geral conhecem bem essa versão. O homem que agride, que duvida, que pune a mulher pelo que sua mamãe fez e deixou de fazer. A estrofe termina com: “Me encontrou tão desarmada/que arranhou meu coração/ Mas ele não entregava nada/ E assustada eu disse não.”
Não são poucas as mulheres que ficam presas nessas duas fases. As meninas que casam com homens-paizões, tendo chiliques por bolsas de cinco mil reais e morrendo de tédio no meio de um conforto desértico; ou as que se fixam na relação com os bad boys e vivem caçando as suas infidelidades e a absoluta falta de generosidade com a companheira; choram, deprimem, se entristecem sem perceber que estão presas apenas pela sua dependência do sofrimento. Basta dar as costas ao infinito egoísmo desse homem e seguir em frente. Mas como deixar a identidade de ser aquela-que-sofre? A quem ela irá culpar pela sua infelicidade?
Chico termina essa música belíssima com o terceiro homem de Terezinha: “O terceiro, me chegou/ Como quem chega do nada/ Ele não me trouxe nada/ Também nada perguntou/ Mal eu sei como se chama/ Mas eu sei o que ele quer/ Se deitou na minha cama/ E me chama de mulher”. O terceiro, o que vem para ser o cara, ao contrário dos outros, não tenta ifantilizar a mulher. Ela já não é mais a menina assustada, de coração arranhado. É uma mulher adulta, pronta para receber o seu homem: “Foi chegando sorrateiro/ E antes que eu dissesse não/ Se instalou feitou um posseiro/ Dentro do meu coração”.
Acho que vou distribuir a letra dessa música a todas as pacientes obsessivas amorosas, que procuram no escuro, sem saber o que estão procurando num homem. Ou deveria entregá-la aos homens que querem aprender a ser homem?

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Godspell 2

Hoje é a postagem de número 200 desse blog. Outro dia estava ouvindo uma moça dar entrevista sobre blogs, acho que ela tem um grupo ou uma empresa que hospeda e ajuda as pessoas com seus blogs. A entrevista era no rádio. Ela disse que a maioria dos blogs morrem depois de alguns meses, geralmente por desânimo de seus autores. Os posts ficam perdidos na blogosfera, nessa época de twitts e manifestações do tipo: " Acordei tarde, que sono!" que alguns twitteiros postam como se fosse o auge da experiência humana ou se houvesse uma horda de seguidores prontos a comentar os seus bocejos. O pior é que, em alguns casos, há uma horda de seguidores emocionados com esse twitt de conteúdo definitivo para nossa cultura pop.
Esse blog não pereceu, apesar dos pesares. Sofre com meus excessos de trabalho, com a falta de um tema específico, não criando portanto um público ou um perfil de interessados. Continua uma coisa caseira e algo despretensiosa (a despeito do autor), que gera alguns comentários mais calorosos e queridos, mas pouca paixão. Posso adiantar que não vou abandoná-lo, salvo causa de força maior. Provavelmente vou mudar algumas de suas características, mas esse é um projeto para 2012.
Teclei ontem sobre uma peça atualmente em cartaz em Nova Iorque, um musical belíssimo chamado Godspell. O texto cantado e encenado é o Novo Testamento, com um Jesus loiro e vestindo uma calça bege e uma camisa de um time de beisebol. Ontem eu mencionei a cena final, onde o Cristo crucificado é levado em triunfo sobre a cruz para fora do teatro. Uma porrada. A vitória sobre a morte e o sofrimento se dando através da morte e do sofrimento. Esse é o paradoxo crístico, nessa época de literalidades (as pessoas e as coisas estão demasiada e estonteantemente literais, meu Deus).
Outra cena da peça me tocou profundamente e acho que vale a pena dividí-la com os leitores nesse semana de Natal, onde o Papai Noel tem mais destaque do que o nascimento da Criança Divina. A mesa da ceia foi colocada num canto do palco. Os atores tomam copos de cafezinho de vinho e compartilham da mesa. Pouco a pouco, vão chamando as pessoas da platéia a descer ao palco e compartilhar o vinho. As pessoas, a princípio tímidas, depois mais confiantes, vão descendo ao palco e tomando daquele vinho, nem todas imaginando o que significa aquele vinho. Os atores saem de cena, a banda para de tocar, as pessoas continuam descendo para o palco (é um teatro de arena) para compartilhar da mesa. Se a peça terminasse ali, estava muito bom. Nessa época de individualismo e individualidades postadas em twitters e facebooks, o verdadeiro significado da Última Ceia estava todo manifesto nessa cena: compartilhar, se fartar do sangue derramado para que todos tenham acesso à essa consciência. Foi muito intenso esse momento. Quando os atores se retiram de cena e deixam a mesa, entram quase sem querer nessa matriz simbólica: dividir para multiplicar.
O significado do Natal e de outras festas sempre ronda essa questão: o compartilhar,o desarmar das mágoas e das mesquinharias de nosso dia a dia, para a construção de uma pequena e duradoura unidade. Os atores da peça tinham essas diferentes origens: brancos, negros, hispânicos, orientais, judeus, todos reunidos em torno da mesa e da dificílima reunião dos habitantes de Babel.
Esse talvez devesse ser o espírito de Natal.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Godspell

Outro dia um paciente muito antigo e querido veio me contar da conversa com a terapeuta lacaniana de sua filha, quando mencionou que fazia psicoterapia junguiana há algumas décadas. Ela observou que Jung era um psiquiatra de orientação algo mística, ele óbvio, veio me falar, e eu devolvi o recado dizendo que me recuso a discutir esse assunto sem cerveja. O papo morreu aí, sem cerveja. Adoro a obra de Lacan e não fico mencionando que ele era, em sua vida pessoal, um monumento ao Narcisismo que tentava tratar em seus pacientes. Não confundo autor e obra. Jung já foi chamado de tudo: antisemita, místico, psicótico, romântico e por aí vai. Mas, parafraseando outra lacaniana que eu adoro, Françoise Dolto, para que tanto ódio?
Carl Jung era filho de um pastor protestante, muito pobre. Viu, após a sua adolescência, seu pai ser consumido por um profundo processo depressivo, embalado por uma também profunda crise de fé, que acabou culminando em uma doença oncológica que lhe tirou a vida. Penso que a escolha pela psiquiatria e uma parte muito grande da obra de Jung foram uma tentativa inconsciente de salvar o seu pai. Jung era eminente e profundamente, um psicoterapeuta cristão. Daí a acusação de misticismo. O capítulo em suas memórias sobre vida após a morte, que ele permitiu a publicação apenas após a sua própria, também não ajudou muito a sua fama. Mas o leitor e a leitora desse blog pode questionar: é uma acusação tão grave assim? É realmente tão ruim ser um místico? Não, com certeza, não. Mas Jung foi um pesquisador e fenomenólogo rigoroso, sempre descrevendo e checando cientificamente a validade de seus constructos. Não propôs uma teoria que nasceu de uma intuição ou uma visão da Verdade, por isso ele repudiava a "acusação" de misticismo.
Todo esse preâmbulo para falar do Cristianismo como um sistema de símbolos, como são as mitologias. o importante não é encontrar provas históricas da existência de Jesus, mas antes entender o fundamento da Consciência Crística, um estado de consciência ampliada que podemos atingir depois de muito trabalhar em nosso desenvolvimento.
Quando estive em Nova iorque, no começo do mês, fui a um musical da Broadway, com a forte recomendação de um amigo. O musical foi montado pela primeira vez nos anos setenta, e dá título a este post: Godspell. Fui meio cabreiro de encontrar uma montagem meio hipponga, meio datada, não foi isso que aconteceu. É uma montagem belíssima do Evangelho de São Mateus transformado em música e, sobretudo, em alegria. Jesus é interpretado por um rapaz de pouco mais de 20 anos, com uma calça de brim e uma camisa de beisebol azul clara. Incrível a alegria que conseguia transmitir repetindo as velhas frases do Novo Testamento, tão conhecidas e que pareciam inteiramente novas em sua interpretação. O elenco era muito jovem, com aquela pegada e sinceridade que a técnica vai diluindo com os anos. Jesus é levantado por cabos e amarrado a um tronco na cena da Crucificação. Quem eleva o tronco é Judas, que depois ajuda a carregá-lo em triunfo para fora do palco, subindo as escadas do teatro. Chorei lágrimas de esguicho. Aquele é o significado da morte na cruz: o triunfo sobre a dor da condição humana, o triunfo sobre a morte e sobre o medo do devir que nos come os dias. Isso que é o Mito Cristão, não o que ficam cacacrejando os carolas. Mas vou falar mais sobre isso e sobre a peça, até o Natal.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Futebol Total

Estou assistindo nesse momento o vareio de bola que o Santos está tomando do Barcelona, na final do Campeonato Mundial de Clubes. Não tenho nenhum prazer em ver o melhor time do Brasil assistindo o melhor time do mundo jogar, sem defesa. Todo mundo sabia que seria muito difícil o Santos ganhar. O que todos pensavam é que, pelo menos, daria jogo. Não deu.
Uma das minhas lembranças mais fortes no futebol foi de uma seleção que assombrou o mundo na década de setenta: a Laranja Mecânica, a seleção da Holanda da Copa do Mundo de 74. Eu era um moleque de dez anos e desci chorando para jogar bola no meu prédio, depois de ver o Brasil tomar um vareio de bola semelhante do time da Holanda, na semifinal da Copa da Alemanha. A comparação não é imotivada, nem por acaso.
A seleção da Holanda de 74 mudou o jogo que conhecemos como futebol. Um técnico do minúsculo país, um dos países baixos, Rinus Mitchels, foi o criador dessa revolução. A Laranja Mecânica jogava o futebol total: todos marcavam, todos atacavam, todos defendiam. Não havia posição fixa, só faixas do campo que o jogador ocupava. Não havia um centroavante enfiado na área, mas quatro, cinco, seis jogadores, chegando em conjunto em condições de concluir. O time evoluía em triangulações, tomando as beiradas do campo, fazendo ultrapassagens constantes. Não ganhou aquela Copa, o que deve ter contribuído ainda mais para eternizá-lo.
A cultura do futebol total encontrou o seu melhor solo para ser semeado em Barcelona. Rinus Mitchels, Cruiff e toda aquela geração acabaram em Barcelona. Quem já visitou essa cidade entende fácil como o estilo holandês caiu como uma luva na capital da Catalunha. A criatividade, a inversão da lógica na arquitetura, nas artes, na música, tudo combinava com a revolução holandesa. O Barcelona de Guardiola, que vai se sagrar campeão mundial daqui a alguns minutos,é a materialização de toda essa fusão da escola holandesa com a Catalunha (diga-se de passagem, é a única herdeira da escola holandesa, já que a seleção da Holanda é um bando de brucutús aplicando voadoras e pontapés. Na final da última Copa do Mundo, a seleção “holandesa” era a Espanha). No mesmo jogo, Guardiola pode mudar o jeito de jogar do Barça três ou quatro vezes. Em termos filosóficos, Muricy é um estruturalista, Guardiola é um desconstrutivista. Muricy acabou de trocar um centroavante por outro. Guardiola trocou um lateral que joga de ponta por um segundo atacante que volta para marcar no meio. Dá para entender a diferença?
A Copa do Mundo será em dois anos, no Brasil. Temos receio de muitas vergonhas que podemos passar: na infraestrutura, na segurança, na organização. Com esse jogo, podemos também temer por passar vergonha também dentro do campo. Mano Menezes também é um estruturalista. Será que vai conseguir fazer a seleção jogar como uma seleção brasileira?

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O Que os Homens Dizem

Já mencionei em outros posts que a busca de um parceiro ou de um grande amor virou uma grande jornada arquetípica da mulher pós moderna. As comédias românticas, onde a mocinha sofre todo tipo de desilusão para encontrar o grande amor no final, também aumentam o sofrimento, pois fica gravado no Inconsciente da moça que, apesar de todos os pesares, tem um happy ending à sua espera, não importa o que possa acontecer ou parecer.
Óbvio que eu não ouço só a versão das Luluzinhas, enlouquecidas pela ausência dos meninos. Os rapazes também sentam no meu sofá e falam da perplexidade de serem medidos de cabo a rabo desde o primeiro encontro, com vistas ao meio fraque e ao altar da igreja. Tinha um particularmente engraçado que cunhou o termo DRI, em oposição à tradicional DR. DR são as intermináveis (para os homens) e as insuficientes (para as mulheres) Discussão de Relacionamento. As mulheres tem as áreas da Fala mais desenvolvidas, por isso que as meninas normalmente falam antes e melhor do que os meninos, quando são bebês (e quando são crescidas, também). Por isso que em qualquer DR conseguem pulverizar os argumentos de seu oponente, listando meticulosamente todas as suas incoerências. A DRI é uma Discussão de Relacionamento Inexistente. Dentro da selva atual de classificações, com Peguetes, Periguetes, Ficantes Eventuais, Ficantes Fixos e por aí vai, a DRI é quando uma Peguete muito eventual vem cobrar coisas e assuntos como se o casal inexistente estivesse perto das Bodas de Prata. O cara olha com aquela cara e some. Do que ela está falando? -perguntam, e somem.
Os homens também tem uma classificação para a mulher a ser evitada: é a Mulher que Surta.
Além das DRIs, a Mulher que Surta faz um esforço hercúleo para parecer descolada, independente e vitaminada, mas uma hora não aguenta a falta de consistência masculina do rapaz e explode, geralmente com uma miscelânea de queixas imaginárias. O cara olha com aquela expressão embasbacada e se sai com o tradicional- "Não te prometi nada", o que deixa a Mulher que Surta ainda mais surtada.
Outra dica para as meninas: não puxem um arquivo de frases amorosas e promessas que o candidato a Romeu falou antes do, como poderia dizer sem chocar, conluio carnal. Os machos de diversas espécies usam vários artifícios de sedução, como cantos maravilhosos dos pássaros e caudas de pavão abertas para impressionar as fêmeas. Não se iludam, eles estão pensando "naquilo". Atingido o objetivo, as promessas, as frases bonitas, as juras, perdem a sua importância. A Mulher-que-ainda-Não-Surtou começa a procurar por aquele macho da espécie que trinou belos cânticos de amor na véspera, para descobrir que o nosso galã faz parte de outro grupo de homens, o Cara-que-Some. O cara que some, depois de concluída a noite de paixão (ou os quinze minutos de paixão, dependendo do cara), some no deserto de celulares na caixa postal, facebooks indeterminados e montanhas de compromissos de trabalho. A Mulher-que-Não-Tinha-Surtado começa, após alguns dias de silêncio, a ficar muito perto de se tornar uma Mulher-que-Surta, sobretudo quando o Dito Cujo aparece algumas semanas depois, como se nada tivesse acontecido e indaga: "Oi, sumida. E aí?", com aquela cara lustrada em óleo de peroba.
E ainda falam que as psicoterapias profundas vão deixar de existir. Haja divã para esse povo, perdido nas selvas das redes sociais.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Especialistas do Perú

Outro dia estava na odisséia paulistana do trânsito de Natal. As aulas acabaram, o Trânsito piorou. Coisas da paulicéia. Recebi um desses jornais de semáforo, em breve o único jornal que vamos conseguir ler durante o dia, de capa a capa. Havia uma matéria de capa, paga, simulando o próprio jornal, com modelos sorridentes cortando um perú de Natal. Pelo menos não havia nenhum Papai Noel na matéria, mas o objetivo era parecer uma matéria normal. Uma das “manchetes” dava conta que os especialistas recomendavam o tal peru X ou Y para a ceia de Natal. Ai meu Deus. Agora vamos precisar consultar os especialistas para comprar e fazer o perú no Natal, essa tradição tão "brasileira".
Acabei de ler mais um livro de Malcom Gladwell, “O Ponto de Virada”. É um ensaio muito bacana sobre epidemias sociais, o que pode transformar um mocassim horrível, da marca Hush Puppies em moda e mesmo febre americana nos anos noventa. Eu vi uns exemplares do Hush Puppies em Manhattan, são feios mesmo. Um pequeno grupo de moleques descolados em New York começaram a usar esses sapatos do nada. Logo o boca a boca foi tornando esses sapatos em febre, a produção estourou, os sapatos estranhos estão até hoje nas vitrines. A moda deve ter passado, ou mudado de direção.Mas os Hush Puppies estão lá, firmões. Malcom Gladwell descreve a importância dos ditos especialistas na difusão desses conceitos: pessoas que servem de referência com seus conselhos para a galera, dizendo que determinada tendência é “cool”, descolada e deve virar moda. Por isso a propaganda disfarçada de matéria jornalística apelava para a opinião de “especialistas” que ditavam a tendência de fazer perú no Natal.
O problema dessa nossa tendência a depender dos especialistas é a morte do bom senso. A falta da capacidade de unificar conhecimentos. Precisamos de especialistas para praticamente tudo. Na indústria farmacêutica, esses especialistas são classificados como “Formadores de Opinião”. Alguns são de dar com cachorro morto na cabeça, e ainda assim são lambidos e levados para os eventos onde vão transmitir o ponto de vista sobre determinada medicação ou transtorno a ser tratado. Outro dia tive uma experiência interessante, em que o expert que dava aula começou a falar a verdade! (Como assim??). O remédio tinha limitações, já observadas na prática clínica e ele confirmou essas limitações! Foi um escândalo para mim. Fui agradecer ao final da apresentação, pelo respeito à minha inteligência.
Acho que deveríamos fazer um movimento para os marketeiros respeitarem a nossa inteligência. A grande questão é como podemos, nós mesmos, assimilar o hábito de respeitar a nossa inteligência. Não acreditar em especialistas de perú (nada contra os Urologistas) pode ser um bom começo.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Sócrates Brasileiro

Estava na cama do pequeno quarto do hotel em Manhattan quando a minha esposa me avisou da morte de Sócrates Brasileiro, grande ídolo do Corinthians e do futebol brasileiro, por complicações de uma Insuficiência Hepática, causada por uma Cirrose e Alcoolismo, nessa ordem. Não foi uma surpresa, embora achasse que o Magrão ainda tinha mais lenha, pouca, para queimar. Voltei para o Brasil no meio da semana e já engatei um ritmo de doze horas de consultório, o que me poupou dos longos e melosos obituários, todos falando do jogador mítico, elegante, luminoso, que encantava a todos com as suas passadas curtas e seus passes de calcanhar, desconcertantes. Imitei muito esses passes. Mas o que fez aquele jogador impressionante virar aquela figura inchada, pálida, com os olhos infinitamente tristes que víamos na TV nos últimos anos?
Sócrates, Garrincha, Jorge Mendonça, e, como esquecer, Maradona, não são poucos os jogadores que se consomem na bebida depois do fim dos holofotes. Fim da atenção especial, das manchetes, dos tapinhas nas costas? Tenho outra teoria. O atleta, o artista, a figura pública, desenvolve uma espécie de personalidade por trás da Persona. Os jogadores de futebol tem uma personalidade futebolística específica. O São Paulo tem um moleque muito bom de bola, o Marlos, que tem tudo para virar um pequeno Messi. Mas o garoto não deslancha, as pernas tremem, o chute sai torto na hora H, simplesmente porque Marlos não desenvolveu a sua personalidade futebolística. A diretoria do São Paulo pode mandar o garoto lá para o meu sofá que eu dou um jeito nele. Sócrates, ao contrário, era uma personalidade futebolística ímpar. Um Príncipe. Elegante, peito estufado, visão 360 graus, o braço levantado comemorando o gol de forma impassível. Nunca explodia, nunca dava pontapé, nunca saía gritando e babando na hora da vitória. Era frio, introspectivo, vivia dentro de uma bolha mental onde pensava o jogo como ninguém. Imagino Sócrates jogando hoje, nessa época de correrias, onde ninguém parece pensar, só correr. Sócrates, com esse nome, só podia mesmo pensar profundamente o jogo, a solução mais minimalista, o toque inesperado. Tenho a impressão que a sua personalidade futebolística o matou. Explico.
Pelé faz uma distinção entre Pelé, o Rei, e Edson, a anta. É bom mesmo. A personalidade futebolística de Edson Arantes do Nascimento foi a mais fulgurante de todas. Um monstro que parecia ter o triplo de seu metro e setenta e dois. Pelé era o cara. Edson, que vive às custas do que Pelé realizou, é um homem simples, pouco habilidoso com as palavras e com os homens fora das quatro linhas. Sócrates nunca se encontrou fora delas. Tentou a Medicina, tentou ser técnico, tentou muitos empreendimentos, parece que a única atividade que prosperou foi o papo de boteco. Teve um filme, “Boleiros” em que Sócrates fez o papel dele mesmo, sempre empunhando um copo de cerveja, contando e ouvindo “causos”. Parece que foi lá que o Magrão passou os anos de aposentadoria: tomando cerveja, beliscando salgadinhos e relembrando as cenas míticas do Príncipe. Por isso os seus olhos sempre pareciam tão tristes e cansados. Como eu já falei em outros posts, você dá conta da ferida, ou a ferida dá conta de você. Sócrates, o homem, cedeu à essa tristeza. Mas deixou o Príncipe em nossa lembrança, para sempre.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Nova Iorque e o Mito

Para quem deu pela falta, estou escrevendo o primeiro post de Dezembro depois de um tempo desconectado. Estou em Nova Iorque para uma viagem curta, de pouco mais de um final de semana. A última vez que eu passei por aqui era um adolescente e a imagem que mais gravei foi o edifício Dakota, onde John Lennon foi assassinado. Hoje corremos de atração em atração para tentarmos uma visão rápida da Big Apple, com museus, show da Broadway e, claro, compras.
Engraçada é a distância entre a N. Iorque mítica e a de verdade. Ontem passamos pelo Central Park numa ponte onde vários cineastas gravaram cenas de amor. Lembro de um filme do Woody Allen, "Another Woman" em que a atriz principal, como uma boa personagem do Woody Allen, entediada e atormentada pelo casamento infeliz e amornado, dá um beijo cinematográfico (desculpe o pleonasmo) em Michael Caine (que não é o seu marido no filme) debaixo daquela ponte. Pois a ponte é um cantinho descascado e pichado, digno do parque Trianon, em São Paulo. As carruagens que dão a volta no parque, também presentes em várias comédias românticas e cenas do Sex and the City, de perto, tem uns cavalos meio Poços de Caldas e condutores sem cartolas. Tudo isso por cinquenta dólares a voltinhas. Por cinquenta dólares eu puxo a carroça, em vez de ficar encima.
Por falar em Poços de Caldas, fomos comer, na saída do Metropolitan, o também mítico Hot Dog das barraquinhas de New York. Lembro dos machões do Law and Order, sem tempo para almoçar na busca dos bandidos, comendo esses quitutes.O Hot Dog que eu faço lá me casa é bem melhor, do pão quentinho à salsicha de melhor qualidade. Eu alertei a minha mulher: colocar ketchup no cachorro quente é ofensa grave. Ela pediu o dela com mostarda, o meu com chili. Será que Clint Eastwood aprovaria um Hot Dog com chili? Pois o chapeiro saiu perguntando em Português quais molhos a gente queria. Brasileiro de Poços de Caldas, é mais um mineiro em busca do American Dream que termina com o esfregão ou a chapa quente na mão. Mas como disse outro mineiro, o Wálter, nosso guia em outro passeio, um trabalhador americano ganha em um dia o suficiente para comprar um forno de micro ondas, enquanto que o brasileiro que ganha salário mínimo rala um mês para comprar o mesmo forninho. Tudo bem que aqui custa um quinto do eletrodoméstico do Brasil. Mas Wartão (que começou o dia se apresentando com a pronúncia em Inglês, Ualter, e terminou Wartão) deu uma grande e definitiva vantagem de Manhattan: quase não se vê argentinos. A bronca que eles tem dos ingleses se estende aos americanos.
Para quem lê essas mal tecladas, pode parecer que há alguma decepção nesse encontro com a Big Apple. Nada mais falso. Mas se a minha Sampa natal fosse tão retratada por nossos cineastas e séries de TV (parece que nossos cineastas paulistas só conhecem as locações do Minhocão e os cariocas, nas favelas e nos morros) também teríamos turistas chineses fotografando o MASP ou o Ibirapuera, mostrando as locações dos filmes. Haveria também uma São Paulo mítica, do Bexiga ao Itaquerão.