segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Felizes os felizes.

Bem, conforme o prometido ontem, vou aproveitar o último post do ano para publicar um texto do meu amigo imaginário Jorge Luis Borges. Para quem não conhece, Borges foi um espetacular escritor argentino, nascido nos subúrbios de Buenos Aires, em 1899 e falecido em 1986. Borges procurou em toda a sua vida por sua própria voz como criador e encontrou uma Literatura profundamente gaúcha e universal, ao mesmo tempo. Nesse texto, ele vai fazer uma releitura do Sermão da Montanha e de outras falas de Jesus, quase criando um Evangelho pessoal, que ele chamou de Apócrifo. Eu já havia colocado esse texto no último post de 2011 e acho que vou colocá-lo em 2013, também. Felizes os felizes, em 2013. Amen.

FRAGMENTOS DE UM EVANGELHO APÓCRIFO
(Jorge Luis Borges, do livro “Elogio da Sombra”)

3. Desventurado o pobre em espírito, porque debaixo da terra será o que hoje é na terra.
4. Desventurado o que chora, porque já tem o hábito miserável do pranto.
5. Ditosos os que sabem que o sofrimento não é uma coroa de glória.
6. Não basta ser o último para ser alguma vez o primeiro.
7. Feliz o que não insiste em ter razão, porque ninguém a tem ou todos a têm.
8. Feliz o que perdoa aos outros e o que perdoa a si mesmo.
9. Bem aventurados os mansos, porque não condescendem com a discórdia.
10. Bem aventurados os que não tem fome de justiça,porque sabem que a nossa sorte, adversa ou piedosa, é obra do acaso, que é inescrutável.
11. Bem aventurados os misericordiosos, porque sua felicidade está no exercício da misericórdia e não da esperança de um prêmio.
12. Bem aventurados os de limpo coração, porque vêem a Deus.
13. Bem aventurados os que padecem perseguição por causa da justiça, porque lhes importa mais a justiça do que seu destino humano.
14. Ninguém é o sal da terra; ninguém, em algum momento de sua vida, não o é.
15. Que a luz de uma lâmpada se acenda, embora nenhum homem a veja. Deus a verá.
16. Não há mandamento que não possa ser infringido, e também os que eu digo e os que os profetas disseram.
17. O que mata pela causa da justiça, ou pela causa que crê justa, não tem culpa.
18. Os atos dos homens não merecem nem o fogo nem os céus.
19. Não odeies a teu inimigo, porque se o fazes, és de algum modo seu escravo. Teu ódio nunca será melhor que a tua paz.
20. Se te ofender tua mão direita, perdoa-a; és teu corpo e és tua alma e é árduo, ou impossível, fixar a fronteira que os divide...
24. Não exageres o culto da verdade; não há homem que ao fim de um dia não tenha mentido com razão muitas vezes.
25. Não jures, porque todo juramento é uma ênfase.
26. Resiste ao mal, mas sem espanto e sem ira. A quem te ferir na face direita, podes oferecer-lhe a outra, sempre que não te mova o temor.
27. Eu não falo de vinganças nem de perdões; o esquecimento é a única vingança e o único perdão.
28. Fazer o bem a teu inimigo pode ser obra da justiça e não é árduo; amá-lo, tarefa de anjos e não de homens.
29. Fazer o bem a teu inimigo é o melhor modo de comprazer tua vaidade.
30. Não acumules ouro na terra, porque o ouro é o pai do ócio, e este, da tristeza e do tédio.
31. Pensa que os outros são justos ou o serão, e se não é assim, não é teu erro.
32. Deus é mais generoso que os homens e os medira com outra medida.
33. Dá o santo aos cães, deita tuas pérolas aos porcos;o que importa é dar.
34. Busca pelo agrado de buscar, não pelo de encontrar...
39. A porta é que escolhe, não o homem.
40. Não julgues a árvore por seus frutos nem ao homem por suas obras; podem ser piores ou melhores.
41. Nada se edifica sobre a pedra, tudo sobre a areia, mas nosso dever é edificar como se fora pedra a areia...
47. Feliz o pobre sem amargura e o rico sem soberba.
48. Felizes os valentes, os que aceitam com ânimo semelhante a derrota ou as palmas.
49. Felizes os que guardam na memória as palavras de Virgílio ou de Cristo, porque estas darão luz a seus dias.
50. Felizes os amados e os amantes e os que podem prescindir do amor.
51. Felizes os felizes.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Borges, Amigo Imaginário

Amanhã vou escrever o último post do ano, repetindo o último de 2011. Vou colocar o texto de um velho mestre e amigo imaginário, Jorge Luís Borges. O meus filhos quando ganharam algum senso crítico perceberam a índole solitária e introvertida de seu pai e criaram para mim um amigo imaginário, chamado Bob. Quando sentávamos na padoca, depois de atravessarmos a intransponível Raposo Tavares, eles puxavam uma cadeira para o Bob e ofereciam um pedaço de pão na chapa. Se eu fosse consultado, chamaria meu amigo imaginário de Borges, ou de Campbell, ou de Nelson Rodrigues. Meus “amigos” tem algo em comum: passaram a sua infância e adolescência mais ou menos na mesma época, tinham, sobretudo Borges e Nelson, uma imensa fragilidade física e uma timidez insuportável que os obrigava a uma vida solitária e no meio dos livros. Eu não era tão fisicamente frágil, mas era um moleque míope e quase sempre enfiado nos livros. Todos eles construíram obras gigantescas em relação a seu meio cultural pouco privilegiado: Campbell no estudo da Mitologia e Religiões comparadas; Borges na Literatura e Nelson no teatro.
Borges construiu e eu diria que inventou a literatura argentina. Hoje assistimos a filmes argentinos produzidos com baixo orçamento que são mais reflexivos e literários que os brasileiros. Acho que é uma herança evidente de Borges, mas sou suspeito para falar. O texto que vou republicar amanhã, "Fragmentos de Um Evangelho Apócrifo", é uma reflexão devastadora sobre o que seria hoje uma leitura moderna do Sermão da Montanha, do Novo Testamento. Só para dar água na boca, vou fazer um paralelo. Onde está no Novo Testamento a frase: “Bem aventurados os que choram, pois serão consolados”, Borges escreve no aforisma 4: “Desventurado o que chora, porque já tem o hábito miserável do pranto”. Chorar é uma coisa séria, não deve ser uma defesa e muito menos um ato de autopiedade, a droga mais usada no planeta. E por aí vai o texto, amanhã publico na íntegra.
Depois desses posts vou dar umas férias para esse blog e seus bravos 9 seguidores. Não vou parar de escrever em Janeiro, mas não vai ser nessa forma de ensaio/crônica que ele tem apresentado. Vou escrever aqueles diálogos, ou metadiálogos, que são bom método para se produzir conhecimento e reflexão desde os tempos Socráticos. O tema, que pode ser mudado a qualquer momento, será a princípio um “Jung para Crianças”, o que não será puro Jung nem será para crianças, mas os meus leitores já estão se acostumando com essas esquisitices.
De qualquer forma, agradeço muito os page views, os comentários, o incentivo e as questões que eu procurei responder de forma não direta no decorrer dos posts. Esse é o post de número 335 ou 336, e esse blog continua sem temática específica e sem a definição de um público específico, o que, nesses tempos de hipersegmentação, é uma tragédia de marketing e uma delícia de se escrever. Obrigado a quem teve paciência de saborear essa salada.

sábado, 29 de dezembro de 2012

A Jornada de Pi

Ontem fui ver “As Aventuras de Pi”, aproveitando a cidade vazia nessa época. É uma experiência sensorial, um parque temático em forma de cinema. Nem sou tão fã de filmes 3D, mas não consigo imaginar esse filme sem a projeção em tela gigante e 3D.
Nessa época do ano, é muito comum pensarmos o que queremos para nosso próximo ano, o que vai continuar, do que vamos desistir, o que vale a pena insistir ou deixar no caminho. A narrativa do filme é toda em flash back, então sabemos que Piscine, autoalcunhado de Pi, sobreviveu à jornada que se inicia num naufrágio. Durante semanas, ele vai vagar no Oceano Pacífico dividindo um bote com um tigre de Bengala chamado Richard Parker. Pi vai passar por todo tipo de dificuldade e tem todas as oportunidades de se deixar morrer, ou de se entregar para o tigre ou o mar. O filme, que é baseado em um livro que eu espero que lancem por aqui lembra em muito o bíblico Livro de Jó. Pi é um Jó moderno, que não se queixa nem amaldiçoa a própria vida ou o seu destino. Pacientemente, ele tenta extrair de tudo aprendizado para manter-se vivo, manter-se são na sua jornada à deriva.
Pi é cristão, muçulmano, hinduísta. O diálogo que ele tem no mar é com a experiência de Deus e o valor intrínseco da vida. Não é uma coisa que se prove cientificamente. Pi não vai sobreviver para salvar seu patrimônio genético e passá-lo a seus filhos. Nem é o seu instinto de sobrevivência que vai prevalecer. Pi vai enfrentar a mais profunda solidão simplesmente porque é isso que a sua alma demanda, é isso que que o mantém inteiro nessa jornada.
Eu tenho um ofício em que o valor da vida, ou da jornada, é questionada todo dia. Para que estamos nesse planeta estranho? Para que aguentar os rigores da caminhada? Qual o significado de tanta luta? Como na peça de Shakespeare, é uma sinfonia de som e fúria, que não significa nada?
A vida de um médico permite que ele testemunhe o que há de melhor (e pior) na natureza humana. Histórias de resiliência incrível, paciência e aprendizado. A jornada de Pi é uma metáfora da vida humana, em que sobrevive e cresce quem é capaz de aprender e valorizar o aprendizado. Mas o difícil mesmo é encontrar o valor intrínseco da vida e agradecer por ele. É isso que Pi vai encontrar debaixo de um céu muito estrelado.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O Silêncio Antes do Grito

Costumo dizer que o Natal dos psiquiatras é dia 4 de Janeiro. Podemos colocá-lo no dia 6, para coincidir com o Dia de Reis. Quando todos retiram as luzes, os enfeites e as árvores de Natal que os psiquiatras podem cantar as músicas e chamar as charangas melancólicas, tocando aquelas músicas que as vovós entoavam no Natal. Essa é a época de maior risco para suicídios, homicídios, overdoses e acidentes. Esse clima de uhúú!! Deixa todo mundo meio desparafusado. Houve um Natal nos idos de 2004 que eu passei o tempo todo grudado no meu Pager. Um muy amigo me encaminhara um rapaz em surto psicótico. Pedi para levá-lo a uma clínica que eu gosto para ele ser avaliado e eu iria vê-lo depois de comer o peru. O mal humorado e mal remunerado plantonista achou que o garoto estava ok e mandou-o para casa, com um medicamento com efeito próximo ao chá de camomila. O moleque nem chegou em casa e já saiu vazado, sumindo pela Paulicéia desvairada e solitária nesses feriados de final de ano. A mãe me bipava de meia em meia hora para perguntar o que fazer para localizá-lo, já que as delegacias não o consideravam desaparecido. Eu orientei, pensei junto, mandei avisar todos os amigos e familiares, ele acabou aparecendo na casa de um parente no meio da madrugada, toca o bip, eu mando para outra clínica, falo com o plantonista, o menino acaba internado e recebe o tratamento. A mãe, que me acionara umas doze vezes, liga no dia seguinte dizendo que o plantonista era um amor e iria ficar com o caso. Nem obrigado ela falou. Acho que esse não seria o único surto que o rapaz teria em sua vida. A moça nunca mais me bipou, até porque cancelei o bip.
De um jeito ou de outro, esses casos costumam pipocar no final de ano, quando o deus Dioniso vem cobrar um ano de trabalho intenso e de privação. E quando Dioniso ataca, suas sacerdotisas podem estraçalhar os homens que não conseguem se entregar a elas. Ou os que se entregam demais.
Não é incomum então que ocorram intercorrências de final de ano. Teve uma vez que uma repórter da Folha me ligou: em um dia de Janeiro, houve registro na cidade de São Paulo de 4 crimes passionais, do namorado atirando na namorada depois de tomar um fora. O que está acontecendo, doutor? É a época do ano, moça. Paulo Maluf diria: Estupra, mas não mata. Não, os caras estão querendo encontrar a amada em outro mundo, já que nesse, ela não o deseja mais. Não vai ser minha, não vai ser de ninguém.
Nessa época barulhenta, as pessoas ficam cada vez mais refratárias ao silêncio. É uma pena, porque é um período de delicioso silêncio. Silenciam-se as buzinas, as compras, as ânsias. Fica, apenas, a sensação de cansaço que se estende até o último grito de final de ano ou de festa cheia de pessoas vestindo branco. O dia 31 de Dezembro é diferente do Primeiro de Janeiro. O que é uma pena. Eu gosto desse silêncio que antecede o Reveillon.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Amen

Ontem estava no velório de um tio querido, pensando em coisas esquisitas.( As pessoas que me encontram na rua pensam sempre que eu sou metido, muito provavelmente porque esteja pensando em coisas esquisitas e não olhe muito para os lados). Entre uma receita de picanha na panela de pressão e algumas histórias engraçadas e ternas que lembrávamos daquele ente querido, muito querido, que agora era um invólucro de proteínas, minerais e água sem o sopro misterioso da vida no meio da sala, eu ainda pensava em coisas estranhas, como cura à distância e Medicina Chinesa. Coisas que é bom que não se espalhem além do grupo que passa os olhos por esse blog. Eu não acredito no mundo causal de que falava o pastor antes de fecharmos o caixão. Não acredito que o clamor da oração estendeu a vida de meu tio. Eu mesmo vibrei muito, mentalizei muito e o que pude ver foi uma pilha se apagando, apesar do interesse e esforço da equipe que o atendia. A Medicina Chinesa acredita que temos um quantum de energia vital. Algumas pessoas gastam mais, outra menos, essa energia. Quando ela acaba, a vida acaba. A moderna Medicina fala do encurtamento dos Telômeros, o que é um conceito muito parecido, estranhamente parecido, com a intuição dos chineses. Enquanto nosso DNA tem essas pontas, os Telômeros, bons e funcionantes, somos mais saudáveis e longevos. Nosso tempo fica nesse tiquetaque da duração das pontas de DNA. A vida perde a capacidade de se proteger e multiplicar e acaba, simplesmente. Não acho que o clamor das orações tenha interferido, quando a Velha Senhora, a Morte, agarrou meu tio e não quis mais largá-lo. O amor, o investimento, o cuidado prolongou a sua luta, mas foi como se a pilha estivesse acabando, coisa que eu senti desde o início de sua doença.
Mas se eu não acredito no num mundo causalista, no que acredito? Acredito, como o filósofo francês Deleuze, em mundo de quase - causas. Acredito na Oração Intercessora e na intervenção médica bem planejada e embasada. Acredito que o Mistério não responde à nossa vontade, mas pode ser movimentado por ela, pois a nossa Consciência é Co-criadora do mundo. Podemos participar dessas quase- causas, mas não podemos interromper a gigantesca roda dos acontecimentos.
O Natal é uma época que celebra a renovação da vida, na forma de uma Criança Divina que nasce de uma Concepção Imaculada. É a vida em sua forma mais pura, se refazendo em meio à sinfonia de som e fúria que é o mundo. Esse arquétipo da Vida anda muito próximo da Morte, talvez por isso a gente ouça tanto falar da Velha Senhora nessa época. Depois do enterro, fui comprar presentes de Natal, pois a Vida e a Morte são irmãs e andam sempre de mãos dadas.

sábado, 22 de dezembro de 2012

O Tempo dos Maias

O mito do Apocalipse aparece em todas as culturas, desde que o mundo é mundo. Nesta semana estamos com eles bem atualizados, com a tal Profecia Maia, em que o mundo supostamente terminaria ontem. Meu filho deu um churrasco para os amigos para comemorar o fim dos tempos, e o único cenário apocalíptico de hoje é o estado da minha churrasqueira.
Recebi alguns e-mails, anunciando grandes mudanças e aberturas de portais. Não notei grandes mudanças energéticas. O sinal mais consistente do fim do mundo foi o título mundial do Corinthians. Um sinal claro de inversão de valores e mudança da ordem natural.
O calendário Maia é um calendário lunar, com ciclos de 28 dias. O nosso calendário, Gregoriano, não é simétrico. Como nossa psique ocidental, é um calendário solar, medindo o ano a partir do ciclo da Terra em torno do Sol. A nossa sociedade solar valoriza o mundo do masculino, a Razão em detrimento das características lunares, que são a intuição, o Pensamento não linear e simbólico. A moderna neurociência identificou a Consciência Solar com o Hemisfério Esquerdo, que é sequencial, lógico, organizador de nossa experiência racional e material. O Hemisfério Direito é responsável pela Consciência Lunar, sendo não linear, intuitivo, sincrético, percebendo o mundo de forma mais afetiva e presciente.
O Calendário Maia é o espelho de um mundo que foi esmagado pela nossa subjetividade solar. Um mundo em que a ritmicidade lunar deixa o tempo mais simétrico, cíclico, como é o Feminino. Os ciclos lunares tem a mesma duração dos ciclos menstruais. Nosso mundo solar cria uma Tecnosfera que desrespeita e aniquila os ciclos. Não há mais dia e noite, desafiamos e queremos extinguir a velhice, abusamos do corpo da Mãe Terra como se ela fosse capaz de recursos infinitos.
Nunca houve uma profecia Maia apocalíptica. O que pode estar acontecendo é um ponto de inflexão em que a ampliação da Consciência vai se tornar cada vez mais urgente. A consciência lunar é mais inclusiva, traz as simetrias e os descansos, a dependência que todos tem de todos. Procuramos por essa Consciência harmônica no meio do caos, da violência e do medo em nosso tempo. Talvez os Maias não tenham continuado a esculpir o tempo porque os colonizadores destruíram as suas pedras e sua percepção, em nome do ouro e do poder.

domingo, 16 de dezembro de 2012

A Mente Vencedora

Dizem que o que faltou ao Chelsea para vencer o Corinthians na final de hoje em Yokohama foi contratar o time B do São Paulo, que deu um chocolate no mesmo time que pulava abraçado aos gritos de “É campeão!”. Outra providência seria destacar os seguranças do tricolor para uma boa massagem no intervalo, no adversário, é claro. Dizem que o time fica tão relaxado que alguns nem querem voltar para o Segundo Tempo.
O pior não foi ver o Timão ganhar os títulos que outrora o São Paulo ganhava. O pior foi ver o Bando de Loucos ganhar com absoluta justiça a Libertadores e o Mundial, na manhã de hoje. Mas já tomei minhas providências: vou remarcar todos os clientes corintianos para Fevereiro de 2013. A minha cachorrinha Boxer, Scarlett, vai ser devolvida ao canil. Desde que ela chegou, no início desse ano, o Corinthians ganhou tudo que nunca antes sonhara. Alguém tem que pagar por isso e a pequena Scarlett ou é corintiana ou é uma tremenda pé frio.
Vou fugir das resenhas, dos programas esportivos, dos jornais e das carreatas. Mesmo assim, quando estava no supermercado, acabando de comprar o almoço, percebi, aterrorizado, que havia cometido um ato falho no vestuário: estava com uma bermuda cinza e uma camiseta preta, da Nike, a mesma cor e a mesma marca dos uniformes do Corinthians. Os carros dos malucos passavam a caminho do churrasco, com buzinaço e os corintianos cantavam olhando para mim como quem identifica um irmão, mais um do Bando de Loucos. Quase eu gritei: “Timão, eh ôô...Timão, eh ô”.
Não foi bom o Santos levar um vareio de bola na final do ano passado, para o Barcelona de Messi. Foi bom o Corinthians ter colocado o Chelsea no bolso no jogo de hoje. Eles jogaram com a costumeira empáfia, achando que matariam o jogo naturalmente. Depois do gol de Guerrero, os Blues foram colocados no bolso pela marcação implacável armada por Tite. Finalmente um time brasileiro ganhou de um time com seis vezes o seu orçamento com autoridade e confiança. Isso depois de um trabalho longo de construção de um time com mentalidade vencedora e foco impressionante.
Mas não diga aos corintianos que eu escrevi isso.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Os Comerciais de Panettone

Em Julho deste ano esse blog fez um relato de uma tragédia próxima, quando a mãe de um colega de meus filhos apagou na direção e faleceu, após o carro cair de uma ribanceira. Uma amiga e colega diria no enterro que não acreditava que a falecida amiga poderia colocar em risco a própria segurança e a de seu filho, dirigindo com sono. Eu lembrei a ela que esse tipo de sono não se anuncia, a pessoa entra automaticamente em sono REM, o sono que temos quando são produzidos os sonhos. A irrupção do sonho REM é uma espécie de desmaio dentro do sono, que pega uma pessoa no volante completamente desarmada.
Ontem um rapaz, saído de uma festa de final de ano da firma, dormiu ao volante e subiu na calçada, matando a mãe e ferindo a filha no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. O seu exame mostrava um nível alcoólico ilegal, mas abaixo dos níveis de embriaguez. O álcool é um fator de irrupção de sono REM e aumenta os seus riscos. Um rapaz de 23 anos virou um assassino e uma família do interior que iria curtir o calor de Floripa tiveram as suas vidas indelevelmente marcadas na manhã de ontem. Podemos declarar oficialmente aberta a temporada de eventos de final de ano. Já falei disso em outros posts, mas basta começar a infestação de papais noéis na TV que todo mundo começa a ficar louco. Os psiquiatras deveriam ser proibidos de tirar férias nessa época. Deveríamos todos ficarmos de prontidão, colados no celular e com caneta e carimbo a postos.
Para quem estiver com sono e dirigindo, um lembrete: na primeira “pescada”, pare o carro. Se der para parar de dirigir e dormir, melhor. Senão, qualquer estratégia criativa para despejar um pouco de Noradrenalina nas sinapses pode valer: tomar café, dançar uma salsa, gritar “Vai Al Ahly!” no meio da torcida do Corinthians, qualquer coisa que permita sair desse estado de pré sono. Depois do primeiro aviso, na próxima o sono vai irromper, direto, sem aviso.
Quanto ao enlouquecimento geral de Dezembro: ninguém sabe se o rabino de Nazaré, filho do carpinteiro que tinha algumas dúvidas sobre a sua paternidade, numa época em que não havia exame de DNA, chamado Jesus, nasceu mesmo em Dezembro. Muito provavelmente essa data foi escolhida pelo seu valor simbólico e de simbologia agrícola, de nascimento da Criança Divina que vai redimir nossas faltas e abrir uma nova época. As pessoas estão sempre apressadas em Dezembro, já que é um mês de três semanas. As festas de empresa são cheias de álcool e de ressacas morais, com aquele clima de euforia e comportamentos sexuais inapropiados. Neste ano ainda temos o final do calendário Maia para ultrapassar, causando nas pessoas uma sensação ainda mais profunda de urgência e de medo. Medo da vida estar passando e de não ter aproveitado tão bem as festas, nem de ter cantado a estagiária vinte anos mais jovem. Devemos passar por tudo isso elaborando bem os lutos do ano que se vai, para termos ainda muitos Natais pela frente.

sábado, 8 de dezembro de 2012

Cinquenta Tons de Alguma Coisa

Eu sei que pode parecer um exagero dedicar dois posts deste prestigioso blog para o fenômeno editorial “Cinquenta Tons de Cinza”. Eu poderia me dedicar a analisar as consequências do DSM V (Manual Estatístico e Diagnóstico da Associação Psiquiátrica Americana – 5ª Edição) ter eliminado o diagnóstico multiaxial nessa edição. Depois de vinte anos usando e uma dissertação de Mestrado dedicadas ao diagnóstico multiaxial, esses expoentes máximos da burrice nosológica eliminaram uma das poucas coisas boas que havia nos manuais, que é a possibilidade de diagnosticar um ser humano que sofre em suas várias dimensões, como o diagnóstico psiquiátrico, a personalidade, a condição médica geral, os estressores envolvidos e o funcionamento social. Era como olhar para alguém por cinco ângulos diferentes, não só como uma coleção de genes disfuncionais ou neurotransmissão danificada. Pois vieram esses expoentes da Psiquiatria mauricinha e burra que nossos queridos ianques praticam e, de uma penada, eliminaram o Diagnóstico Multiaxial. Eu vou continuar usando, ok, Uncle Sam? Viram? Acho melhor falar dos “Cinquenta Tons de Alguma Coisa”. É bem menos irritante.
Quando eu ouvi falar desse livro pela primeira vez, gostei muito da idéia original e achei que a coisa iria rolar de outro jeito. Vou usar um conto de fadas, que está descrito em um livro de Jung para exemplificar o que eu imaginava: Era uma vez uma princesa, que casou com com um belo príncipe. Por muito tempo ela sonhou com seu casamento e noite de núpcias. Finalmente ela estaria com seu amado na alcova. Qual não foi a sua surpresa quando o Príncipe não tocou em um fio de seu cabelo na noite de núpcias. E assim o seu conto de fadas foi para o vinagre. Noite após noite, o homem não mostrava nenhum interesse. O pior, sumia durante a noite e a deixava só em seu leito nupcial. Ela, ao contrário que uma princesa moderna faria, não procurou terapia de casal nem discutiu a relação. Ela preferiu, intuitivamente, esperar em silêncio. Uma noite, ela decidiu seguir o príncipe em sua escapada noturna. Não, ele não estava com um cortesão sarado. É um conto de fadas, não um roteiro pornô gay. O príncipe estava em conluio carnal (esse post está demais, heim?)com a sua própria irmã. A noite toda. A princesa, ao contrário do que se pode imaginar, aguentou firme aquela situação, noite após noite, apenas porque o seu coração mandava. Depois de um bom tempo, o príncipe finalmente veio falar com ela. A sua irmã era uma poderosa bruxa que o havia enfeitiçado a praticar o incesto. Só uma esposa muito, muuiito paciente que aguentasse aquela situação poderia libertá-lo do sortilégio. E foram felizes para sempre. Mas o que isso tem a ver com os “Cinquenta Tons de Cinza”?
O conto tem a ver com a cura de uma ferida. Uma espera pacienciosa e o acolhimento do que temos de pior. É uma ótima alegoria do que é um processo de psicoterapia. A princesa consegue libertar, ou curar a ferida de seu homem através da espera paciente e da tolerância do intolerável. É o que muita gente espera de quem dorme a seu lado na cama: espera, tolerância, continência. Pois eu pensei que a essência desse livro fosse uma mulher que resolve acolher um homem com uma ferida enorme e curá-lo, mesmo sem saber como. Como a princesa do conto. Para isso ela iria tolerar o intolerável por um bom tempo, para curá-lo e, quem sabe, libertá-lo do feitiço da bruxa. O que todo homem espera, meninas, mas não sabe que espera.
A trilogia de E.L. James está bem longe disso. Tudo tem a profundidade dos romances de banca de jornal, tipo “Júlia” ou os livros de Bárbara Cartland, que eu nunca li, mas imagino que seja assim. O trauma de Christian Grey é abordado de uma forma idealizada e sem pegada. Mas por que as meninas não largam esses livros até a última página? Porque o Príncipe Sadomasoca dedica à sua amada, entre uma chicotada e outra, uma atenção plena, incondicional. A princesa, Anastasia (não por acaso, nome de princesa, não é?), aceita e gosta do jogo, mas quer transformar o príncipe num homem capaz de assumir compromisso. Esse é o amor em tempos de cólera (feminina): aguentar firme até o príncipe colocar uma aliança. E leva três livros para isso. Que saudade de “Nove e meia semanas de amor”.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Vivências de Pico

Um leitor desse blog e amigo, Fábio, me perguntou por e-mail o que eu achava das EQMs, as Experiências de Quase Morte, um campo de controvérsia entre os Céticos e os Metafísicos de praxe. Eu pedi para tomar uma Kaiser antes. Vou acabar com a pouca credibilidade que me resta. Mas vamos lá.
O psiquiatra suíço Carl Jung, já idoso e sempre metido a atleta, teve, já idoso, um acidente na neve, o que causou-lhe uma fratura. Na época, ele ficou completamente imobilizado no leito, o que, sabemos hoje, é praticamente uma sentença de morte do idoso se não forem tomadas algumas medidas de prevenção, que não eram disponíveis nos anos cinquenta do século passado. Jung acabou tendo um Tromboembolismo Pulmonar, evento ainda hoje de extrema gravidade quando ocorre. Durante esse evento, ele teve uma experiência psíquica bastante descrita por pessoas que passaram pela Experiência de Quase Morte: Jung viu seu corpo de fora e de cima. Gradativamente foi se afastando, afastando até subir nas nuvens e sair na estratosfera, vendo a Terra de longe. Lá ele encontrou com Emma Jung, sua esposa recentemente falecida. Finalmente, ele se viu perto de entrar numa espécie de templo, onde ele finalmente saberia quem ele era, qual a sua substância espiritual. Antes de entrar, entretanto, encontrou com seu médico, que estava vestido como um sacerdote de Cós, terra do pai da Medicina, Hipócrates. O seu médico deu-lhe a má notícia que sua hora não havia chegado e que ele teria que voltar para casa. Jung descreveu em seu livro - ”Memórias, Sonhos, Reflexões” este episódio. Voltar para dentro de seu corpo foi como voltar para uma caixinha de fósforos, relatou. Quando acordou, soube que havia passado por uma Parada Cardio Respiratória e tinha sido reanimado. Ele surpreendeu a todos quando pediu para falar com seu médico, imediatamente. O fato de tê-lo visto naquela outra dimensão significava algo. O médico não lhe deu ouvidos e teve um infarto pouco tempo depois, morrendo instantaneamente.
Os cientistas reduzem esses episódios e vivências como sonhos vívidos, sonhos que acontecem quando estamos em estado intermediário entre o sono e a vigília. O bem estar e os sentimentos de beatitude e iluminação são atribuídos a uma bomba de Endorfinas despejadas no Cérebro quando estamos perto da morte ou em risco de vida. Tudo não passaria de alucinações ou ilusões provocadas pelo estado de sofrimento das células, como um último alento antes de sucumbir. Um evento biológico, portanto.
Muitas pessoas descrevem com precisão os eventos e o que se conversa no momento da reanimação como se estivessem descrevendo os mesmos em terceira pessoa. O próprio Jung descreveu exatamente a posição de seu corpo e os esforços das pessoas em reanimá-lo. A experiência lembra também algumas algumas vivências de Pico, estados de iluminação e beatitude que místicos, meditadores e pessoas comuns descrevem como experiências espirituais de ampliação de consciência e intensa beleza, quando o Ego perde seus limites e se funde com o mundo. Ou com Deus. Não há mais limites, nem medos, nem preocupações, só a sensação de expansão e gozo. Os céticos diriam que uma boa viagem de ácido ou um gole de Ayhuasca, num ritual do Santo Daime, podem provocar todas essas sensações.
E o que o autor dessas mal tecladas acha do assunto? Recentemente escrevi sobre o Quinto Cérebro, que na verdade não é o Cérebro, mas a Mente Não Local. Sonhos premonitórios, sensações compartilhadas por pessoas separadas por quilômetros, como uma Mente que não respeita a localidade e viaja com uma velocidade maior do que a luz. Experiências fora do corpo e várias experiências não locais pertencem a essa dimensão psíquica.
Muitas pessoas que passam pelas EQMs voltam da vivência diferentes, com uma visão mais serena e mais espiritualizada da vida. Sentem que não precisam mais temer a morte, nem a vida. É uma experiência que demonstra o quanto o ponto de vista do Ego, com seu medos e mesquinharias, é extremamente limitado. Eu acredito nisso. Pouco me importa se isso for uma overdose de Endorfinas.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Depressão e Renascimento

Outro dia recebi um torpedo sobre perda de receita e necessidade de deixar uma nova na portaria do prédio para a paciente pegar. Aproveitei para perguntar se ela estava melhor e a resposta foi desalentada e desalentadora: “Só nascendo de novo”. Tudo bem, o pessimismo é uma das características que impedem a sua melhora, mas a mensagem foi dura.
Não li a matéria da VEJA sobre Depressão, mas já ouvi que há uma ênfase na pesquisa sobre a Ketamina, um potente anestésico que vem produzindo estranhas melhoras de alguns casos de Depressão. Como no caso descrito acima, a Depressão se aprofunda e se mantém com os pensamentos ruminativos do paciente. O que são esses pensamentos circulares? São uma espécie de software mensal que parte da sensação de “coitadinho de mim”até a sensação pior de todas, que é a sensação de que “tudo é ruim” ou “nada faz sentido”, o que pode acarretar pensamentos e comportamentos suicidas. Há uma sofrida simbiose entre esses pensamentos circulares e a disfunção de neurotransmissão de nosso Cérebro Emocional para criar esses círculo de tristeza e desespero. A Ketamina, quando aplicada em anestesias ou em sessões terapêuticas, como que apaga esses circuitos de sofrimento. É como se fizesse um “reset” desses circuitos e a pessoa ficasse zerada desses pensamentos por alguns dias. É uma boa oportunidade para introduzir outros medicamentos e novos pensamentos, antes que os antigos sejam reativados. É claro que essa é uma visão pessoal, que pode se revelar errada, mas ela está baseada na mudança que ocorre sempre que alguma técnica, medicamentosa ou não, penetra nesses softwares profundos e tentam modificá-los. A PNL, Programação Neurolinguística se baseia nesse princípio, mas peca pela velha fantasia que a nossa Razão consegue domesticar o nosso Cérebro Emocional. O caminho para transformar e reprogramar essas estruturas e circuitos neurais é longo e delicado, muitas vezes longo. Mas não deixa de ser tentador pesquisar mais a fundo técnicas para produzirmos um “esquecimento de si” e um reinício. Como um renascimento.
Há um psiquiatra que eu prezo e já citei nesse blog que afirma, corajosamente, que o que machuca não é a Ferida que a vida nos provoca, mas, antes disso, a Defesa é que machuca.
A verdadeira coragem talvez seja a coragem de deixar as defesas morrerem e renascer. Diz um outro sábio, Fritz Pearls: “Consentir com a própria morte e renascer, não é fácil”. Ele disse isso nos anos setenta, e parece que foi ontem.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A Relação Abusiva

Lembro de um curso na minha pós que foi particularmente bacana e ilustrativo: como montar uma seita fundamentalista. Não chegamos ao nível de como montar um homem bomba, pois eram tempos anteriores ao 11 de Setembro. Mas a técnica básica nós aprendemos: isolar as pessoas do convívio exterior, de preferência em lugar ermo, sem muitos recursos. Se não tiver luz elétrica, melhor. Importantíssimo é impedir as pessoas de dormir, ou bagunçar todo o ciclo vigília-sono de seus trainees fundamentalistas. Repita, de diversas formas, as mensagens que você queira incutir nos “alunos”: primeiro sugerindo, depois afirmando, finalmente gritando slogans e memes que vão penetrar, de forma cada vez mais profunda, na cabeça das pessoas. Privações são benvindas: privação de comida, de banho, de luz do sol, tudo o que oferece às pessoas orientação, referência. Finalmente, incentive e premie os neófitos que repetirem as mensagens e a ideologia transmitida e questione, isole e humilhe os dissidentes e os questionadores. Em alguns dias você terá fiéis e fanáticos seguidores após uma boa lavagem cerebral.
Venho atendendo alguns casos que me fizeram lembrar dessas aulas. Não estou atendendo nenhum homem bomba, entretanto. Eles não costumam buscar tratamento. As seitas ou os grupos terroristas não são o único lugar onde as pessoas possam passar por isso. O lugar onde pode ocorrer esse condicionamento é na relação abusiva.
A fórmula é muito parecida com as das seitas. Inicialmente, o parceiro da relação abusiva vai tentar isolar a vítima, digo, o cônjuge, de seu meio social. O marido pode implicar com as aulas de dança, ou as tardes no clube; a esposa vai cismar com a pelada de final de semana ou com as Terças Feiras de carteado. Afaste a cara metade de seus amigos e dos interesses que não seja discutir a relação. Uma técnica eficaz é questionar a natureza e a real intenção das pessoas. A família também deve ser afastada, em nome do amor. Os encontros amorosos devem ser ardentes e intensos. Os desencontros também. Uma característica da relação abusiva é essa: quando é bom, é muito bom; quando é ruim, é intolerável.
A relação abusiva usa os pontos fracos do ser amado. Se a pessoa tem medo da solidão, ameace sempre e cumpra, algumas vezes, com o abandono. Uma técnica consagrada é a Dissonância Cognitiva: puna, desmereça e deixe o ser amado a pão e água, durante a maior parte do tempo. Dê afeto, reconhecimento e bons momentos de forma errática, inconstante. Isso faz que a pessoa busque, sem perceber, pelos poucos momentos agradáveis em meio a um cotidiano de cobranças e privações.
Se o leitor já viveu ou está dentro de uma relação com essas características, procure ajuda. Uma relação a dois não é um passaporte para o Paraíso, mas deve ficar, sempre que possível, longe do Inferno. É que ambos os amantes merecem e devem esperar.

domingo, 25 de novembro de 2012

Autismo Virtual

Na década de 40 do século passado, um psiquiatra infantil, uma especialidade nascente na época, chamado Kanner, pegou um termo emprestado à Esquizofrenia, o Autismo, para descrever um transtorno extremamente grave em crianças. Ele usou o termo por observar que as crianças com esse quadro viviam em uma espécie de mundo próprio, com pouco ou nenhum contato ou interesse no mundo exterior. Kanner, influenciado pela Psicanálise da época, acabou levantando uma hipótese que fez muito estrago durante décadas: ele imaginou que o Autismo fosse causado por mães muito duras ou indiferentes a seus filhos: as “Mães Geladeira”. Fico imaginando gerações e gerações de mães se torturando por achar que uma doença que hoje é entendida como um transtorno pervasivo e devastador do desenvolvimento fosse causado por alguma falha em seu afeto ou sentimento pelo filho ou filha portadora dessa condição.
Hoje o autismo é um espectro diagnóstico que abrange muitas causas diferentes, mas nenhuma delas deriva de mães pouco calorosas afetivamente. O que Kanner deve ter notado foi a baixa interação entre a mãe e a criança, muitas vezes derivada da dificuldade da própria criança em se interessar afetivamente pelo mundo exterior.
Não sou psiquiatra infantil e pouco atendi ou mesmo diagnostiquei casos de Autismo em minha vida como médico. Tenho uma opinião que a principal dificuldade ou deficiência de uma criança autista seja a de exploração do ambiente. A presença de um comportamento exploratório é nuclear para todo o nosso processo de aprendizagem. Quem já conviveu com bebês já pode ter observado uma cena inusitada, o bebês brincando e contemplando o movimento da própria mão. Pode passar muito tempo explorando a mistura de visão com a sensação de estar mexendo os dedos, que nessa fase estão completamente desacoplados. Para desenvolvermos qualquer capacidade e aprendizado, precisamos explorar, tentar, errar, tentar de novo, até desenvolver esquemas motores, na infância e mentais, quando adultos, para encontrar saídas para problemas e excelência em nossas capacidades. Uma criança que trabalhe para o tráfico em uma favela pode ter uma capacidade superior a de um arquiteto ou motorista de taxi para construir mapas mentais de caminhos e rotas de fuga dentro dos labirintos de barracos. É um conhecimento muito útil para fugir de perseguidores e salvar a própria vida, além de fazer entregas ou dar recados. A criança pode ser semianalfabeta ou não saber nada sobre a Geografia de seu país, mas domina a Geografia do morro como ninguém. O interesse de fazer parte do grupo, ganhar dinheiro e poder dentro da hierarquia social desenvolve essas capacidades até o nível da mestria.
Há um filme de alguns anos atrás da Pixar - “Wall-E”, sobre um robô obsoleto num planeta Terra que virou um depósito de sucata. A Civilização passou a viver em naves estelares, cada pessoa tem o seu computador e passa o tempo todo em jogos e facebooks interplanetários. As pessoas não se interessam mais por nada que não seja a telinha, estão obesas e sedentárias mas, sobretudo, alienadas dos processos da vida.
A ilusão de que tudo está a distância de um clique pode estar tornando as pessoas mais parecidas do que deviam com a humanidade de Wall-E. O estranho é que nunca tivemos tanta ferramentas para ajudar o nosso comportamento exploratório. Podemos usar as mesmas redes para procurarmos informações, empregos, amor incondicional ou a cara metade, mas isso provoca o efeito paradoxal de sedação de nossa capacidade exploratória, numa espécie de autismo virtual.
Os especialistas, consultores e educadores deveriam virar experts no desenvolvimento dessa ferramenta, fundamental para todo o desenvolvimento da raça humana: a curiosidade.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Dieta do Melão e do Abacaxi


Ontem estava na praia, participando de forma involuntária da conversa de algumas tias da barraca ao lado. Não dava para não saber do que falavam, já que o faziam em tom de voz progressivamente alto e exaltado. Não, não estavam brigando. Estavam contando casos de sua vida cotidiana. Soube que uma delas iria ser madrinha de casamento de um sobrinho que a detesta. A noiva, entretanto, a adora. A sua irmã, mãe do rebento, não havia sido comunicada sobre o casamento. A sua irmã, segundo ela, “é uma pessoa horrível”. Não era possível, dada a proximidade das barracas e dificuldade de encontrar outra longe da conversa, deixar de notar a quantidade de cerveja e petiscos que animavam o já animado convescote. Pastéizinhos, sequinhos mas com pouco recheio, segundo uma senhora com formas avantajadas, salgadinhos, lula frita e sorvetinhos. Outra senhora conclamava o grupo a iniciar, na Terça Feira, a dieta do Melão e do Abacaxi. Por que não do Mamão e da Jabuticaba, minha senhora? Uma outra segredava, já depois de algumas latinhas de cerveja, que fora amante do marido por muitos anos e que ainda ficava insegura se ele “iria assumi-la” de verdade. Um velho professor me dizia que não há pior negócio na vida de um homem do que transformar a amante em esposa e a mocinha parecia confirmar a regra. Falava das intimidades do casal em um tom audível em um raio de cinco metros de barracas. Era a mais jovem do grupo e pode-se dizer que a tal insegurança não estava fazendo bem à sua forma, entre alguns pastéis e um pacote de Doritos. Aderiu entusiasticamente à ideia da dieta do Melão e do Abacaxi, antes de pedir mais alguma porção de frituras de praia, naquele óleo de boa aparência.
Eu li com interesse o capítulo sobre autoengano em um livro de Neurociência Cognitiva. Qual seria a circuitaria límbica responsável pela capacidade das pessoas serem completamente sem noção a respeito de seu próprio comportamento? O comportamento alimentar, por exemplo? O capítulo foi uma decepção. Fala do autoengano como uma capacidade quase ilimitada que temos de contar uma historinha para nós mesmos que vai apaziguar, temporariamente, as nossas culpas. Pode-se notar isso com muita clareza na barraca ao lado. A mocinha que conta para si mesmo uma historinha de que, agora que é “a oficial” e não a amante, deve ser amada por seus predicados todos (?) e não só por um rostinho bonito. A outra que enxugou algumas latinhas de cerveja, mas vai começar a dieta após o feriado. Vai enxugar alguns quilinhos com vistas às Festas do final de ano. A sua curva de ganho de peso deve ser progressiva nos últimos anos, mas ela é boa pessoa, ao contrário de sua irmã, que “é horrível”.
O autoengano é um mecanismo baseado me nossa capacidade, dada pelo nosso Córtex Pré Frontal, de traçar e projetar cenários para o futuro, possibilitando ignorar um presente pouco promissor. É como um mecanismo do jogador que já apostou e perdeu tudo, mas continua jogando baseado na visão de que a sorte vai virar e ele sairá da atual situação para a riqueza e o reconhecimento que nunca teve na vida. Ou do desempregado que recusa a proposta de emprego, após meses fora do mercado, porque “agora quer dar um upgrade na carreira e não vai aceitar qualquer coisa”. É fundamental para os mecanismos de autoengano essa capacidade de criar uma narrativa e um cenário para o seu futuro onde tudo vai dar certo.
Quem está lendo esse post poderia argumentar que esse mesmo mecanismo de projetar futuros improváveis e se lançar em jornadas temerárias são a base de todo o progresso humano, de todo ser visionário que acreditou no inacreditável e o fez acontecer, geralmente com muito sacrifício. Pois essa é a diferença fundamental entre o visionário e o autoenganador: o primeiro se lança no futuro que projetou. O último fica esperando o dia em que a sorte vai mudar, ou que a dieta do Melão e do Abacaxi vai funcionar, sem necessidade de mudança de seus hábitos alimentares e padrão de consumo de pastéis de praia.

sábado, 17 de novembro de 2012

Cinquenta Tons de Hades

Estou aqui curtindo o feriadão na praia. Trouxe livros de Neurociência, Psicoterapia Xamânica e uma edição especial do Mente e Cérebro. Bom material para blogar, pois esse blog já viu de tudo, de futebol a pães na chapa. Mas acabei comprando o livro que anda frequentando os nossos divãs, o “Cinquenta Tons de Cinza”. A família aqui reunida e acostumada com a leitura técnica, viu com grande estranheza esse que vos tecla na espreguiçadeira lendo um livro que parece reserva de mercado das luluzinhas. Será que o papai está virando o fio depois de velho? Os moleques tacharam o livro de pornografia e minha mulher chamou-o de erotismo de revista Contigo. Caramba. Um fenômeno editorial dessa monta e já amealhando tantos ataques?
Uma nova confissão: o que me interessa é tentar entender o que essas autoras Sub-Crepúsculo tem que conseguem tocar no Inconsciente Feminino Coletivo. Como que um livro em que uma menina virgem, estudante de literatura inglesa, se envolve com um milionário esquisito que vai lhe proporcionar uma relação de dominação e abuso, psicológico e sexual, pode ser tido e havido como um herói romântico, quase o homem ideal? Como a heroína dessa fábula moderna, Anastasia Steele, fala o tempo todo: Puta merda! Mudaram os príncipes ou mudaram as princesas?
A personagem principal é uma Perséfone. Para quem não conhece um dos mitos mais antigos e mais reveladores da Psique Feminina, lá vai: Deméter é uma deusa virgem, que rege os ciclos da Natureza e do plantio. Zeus, que não perdoa nenhum rabo de saia, tenta seduzi-la. Ela foge o quanto pôde, até se transformar um uma vaca para fugir do assédio. Zeus a percebe e se transforma em um Touro. O final da história é que Deméter dá a luz a uma filha, fruto desse quase estupro, que é Core. A menina vira a felicidade de Deméter. Protegida pela mãe, Core vive num mundo infantil e protegido, colhendo flores e vivendo idilicamente em comunhão com a Natureza. Zeus, sempre ele, fica incomodado com a puerilidade de sua filha. Pede ajuda a Hades, deus do Mundo Inferior, que deixa as profundezas do Tártaro para raptar a filha de Deméter. O chão se abre e o Ser das Profundezas rouba a menina. Deméter passa a vagar pelo mundo, procurando em vão por sua filha. A terra seca, as lavouras se perdem e os homens sentem fome e amaldiçoam os deuses. Zeus fica preocupado com essa perda de Ibope dos deuses olímpicos e vai encher o seu irmão nos infernos, de novo. Como é muito comum na Mitologia Grega, uma solução ambígua é promovida: Hades libera a menina, que já não é uma menina, se vocês me entendem: agora ela é Perséfone, Rainha do Mundo Inferior. Antes de devolvê-la para a Mami, Hades oferece uma romã para a moça. Ela come sem saber que seu ato a deixa presa para sempre ao Mundo Inferior. A partir daí, ela passa dois terços do ano com a mãe, deusa da agricultura e um terço (os meses do inverno e da entressafra) com Hades, deus dos Ínferos e, imagina-se, um gostosão.
Anastasia, heroína da saga, também passou a vida com a presença onipotente se sua mãe. O seu pai morreu quando era um bebê e o homem que reconhece como pai é um frágil sujeito, diluído na fieira de maridos que a mami colecionou. Ela é uma mulher bonita, desejada, mas que consegue se esquivar completamente de sua própria sexualidade. Sente-se feia, desajeitada e intimidada com homens poderosos. É virgem aos vinte um anos (qualquer semelhança com Bella, da saga Crepúsculo, não é mera coincidência). Conhece por acaso o bilionário sadomasoca Christian Grey (Grey em inglês quer dizer cinza, daí o trocadilho do título, “Cinquenta Tons de Grey”). Como Perséfone, Anastasia vai ser raptada pelo Deus dos Ínferos pósmoderno: bilionário, poderoso, com a beleza de um deus grego, absolutamente obcecado por ela, estudante de classe média, mal vestida e completamente alheia ao mundo inferior que o seu Hades vai revelar (o rapaz, além de todos esses predicados, é bastante bem dotado, para desespero do público masculino).
Grey tem vários pontos em comum com o vampiro Edward. O principal é a sua capacidade de enxergar em uma menina comum, alheia à própria beleza e sexualidade, uma deusa maravilhosa. Grey é obcecado por Ana assim como Edward é desesperado por Bella. Eles representam arquétipos adormecidos no homem pósmoderno, cada vez mais desprovido de sua própria masculinidade. Christian Grey é um Hades ferido e apaixonado, que não permite que Perséfone deixe o seu Reino. Pior ainda, ele descobre que seu Reino não vale nada sem Perséfone, digo, Ana. Isso num mundo em que os homens trocam facilmente uma noite de amor pelo controle dos videogames.
E.L. James, autora da trilogia, é ou não é um gênio, heim meninas?

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Indiana Jones e o Dalai Lama

Há uma passagem curiosa do Dalai Lama, que estava sendo entrevistado por um grupo de psicanalistas. Eles tentavam “salvar”o Desejo, numa tentativa de aproximação entre o Budismo e a Psicanálise moderna. Freud construiu um edifício teórico em torno da recuperação do Ser e de sua capacidade desejante. O Budismo, pelo contrário, traz em suas nobres verdades a existência do Sofrimento como condição comum de nossa passagem por esse planeta esquisito. Para interromper esse ciclo eterno de desejo-frustração- dor, Buda sugere a interrupção do desejo. Vamos combinar que são dois sistemas de crença difíceis de serem harmonizados. O Dalai Lama lembrou, finalmente, de um desejo que não vai trazer o Sofrimento. Os psicanalistas se apressaram em perguntar qual seria esse desejo: o Desejo de Renúncia, respondeu Sua Santidade.
Eu pessoalmente fui contra a realização do quarto filme após a trilogia de Indiana Jones. O terceiro filme da série, “A Última Cruzada” é disparado o melhor de todos e nunca deveria ter sido sucedido por aquele pastelão de soviéticos e ETs que é “Indiana Jones e a Caveira de Cristal”. Há uma cena nesse filme (“A Última Cruzada”) que talvez trouxesse uma luz a esse debate. Para quem não lembra ou não era nascido, Indiana Jones passa o filme todo procurando por duas coisas: o seu pai e o Santo Graal. Ele vai descobrir que seu pai, Dr Jones, foi feito prisioneiro de nazistas. Os inevitáveis nazis querem encontrar o Santo Graal e precisam do conhecimento do Jones pai e dos músculos do Jones filho para darem cabo da tarefa. Posso escrever vários posts sobre esse filme, se os leitores quiserem e se manifestarem. A cena que eu vou pinçar, em particular é das mais importantes do filme: o templo onde está escondido o Santo Graal (Cálice onde Jesus celebrou a Última Ceia e que recolheu o sangue vertido na cruz) começa a desmoronar, é aquele corre corre. A vagaba alemã, que pegou os dois membros (no bom sentido, é claro) da família Jones escorrega e está caindo no precipício. Indiana Jones, como bom herói que é, joga-se para salvá-la. Ela é pega pela mão e enxerga o Graal repousando numa fenda. Tentando alcançá-lo, ela cai no precipício. A terra se move e Indiana Jones também escorrega, sendo pego por seu pai (Sean Connery, impagável nesse filme). Quando ele se vira, lá está o Graal. Indiana tenta alcançá-lo, já escorregando. O seu pai alerta para o perigo. Está por um dedo. De repente, ouve-se uma voz grave: “Indiana!” Ele responde sem pensar: “Sim, senhor”. “Deixa para lá”. “Mas pai”. “Deixa”. Indiana obedece e seu pai consegue puxá-lo para longe do perigo. No final ele pergunta a seu pai, que buscara pelo Santo Graal durante toda a sua vida, o que ele ganhou depois de tanta busca, para deixar o Graal no deserto. “Iluminação”, respondeu o velho Dr Jones.
Acho que esse é o Desejo de Renúncia que o Dalai Lama mencionou. Na vida, estamos todos procurando pelo Santo Graal de cada um: dinheiro, sucesso, poder, amor incondicional, atenção, mensalão, por aí vai. Muitas vezes parece que estamos a um dedo de alcançar o que sempre desejamos e buscamos e, de uma forma estranha, a vida diz que não, ou a coisa desejada escorrega entre os dedos. Dr Jones sabe que seu filho precisa abrir mão da Ânsia, que é o Desejo cego e insaciável que os budistas tem razão, é o pai de todo Sofrimento. O Graal não é algo que se possa agarrar, pois está em nosso mundo interno.
Indiana Jones é um herói ocidental, obstinado, emputecido (Harrison Ford está sempre com cara de emputecido quando veste o personagem). A coisa mais difícil para ele é desistir de algo que custou tanto a ser encontrado. Quando ele abre mão e deixa ir, sente-se estranhamente iluminado, leve. Tenho a impressão que essa é a tarefa tanto dos budistas quanto dos psicanalistas: deixar o Ego despreocupado de sua eterna insatisfação, sua eterna e dolorosa ânsia. Na hora que abrimos mão dessa tirania, uma luz se manifesta.

domingo, 11 de novembro de 2012

Cadeados e Bocas

Circulou como assunto top na web a história do médico que “receitou” para uma paciente rechonchuda meia dúzia de cadeados: cadeados para a boca, a geladeira, a carteira e por aí vai. A moça, que pelas fotos exibidas não é boa com cadeados nem com dietas, mostrou-se boa marketeira do próprio infortúnio, bombando na internet e nas redes sociais com a sua “prescrição”. As opiniões logo se dividiram, o médico declarou que foi mal interpretado, mas acabou afastado de suas funções e vai responder a sindicância no CRM. A moça, quem sabe, pode chamar a atenção de algum Reality Show de emagrecimento. Talvez, aí, ela vai ter o que nem ela nem o médico dispunham no Centro de Saúde: equipe multiprofissional, suporte medicamentoso, atenção especializada. Milhares de outras (e outros) pacientes vão continuar penando de dieta em dieta, vendo a sua curva de ganho de peso apontando inelutavelmente para cima. O pior da situação é a sensação de que ambos os participantes são vítimas do evento.
O médico mencionou que a sua filha fez uma Cirurgia Bariátrica. Talvez daí a sua exasperação com o tema. Praticamos uma Medicina que leva de goleada das doenças que envolvem voracidade e saciedade. Obesidade, Transtornos Alimentares, Dependências de Substâncias, Alcoolismo, onde há um componente compulsivo, os resultados são muito ruins. É mais fácil curar o Câncer do que a Obesidade. O colega deve ouvir todos os dias as queixas dos pacientes, que não conseguem emagrecer e só fazem engordar. A ANVISA da presidente Dilma proibiu o uso das substâncias outrora mais utilizadas para o emagrecimento, deixando profissionais e pacientes sem opção.
O colega “prescreveu” os cadeados pela angústia de ouvir as pessoas se queixando do ganho de peso como se comer não fosse um ato voluntário. As pessoas descrevem o ato de comer, compulsivamente ou não, como um ato que ocorre fora do comando da consciência. O profissional é cobrado implacavelmente, como alguém que não consegue ajudar o paciente no processo de emagrecimento. Deve ser isso que motivou o colega a prescrever cadeados: comer é um ato voluntário que demanda escolha e uso de alimentos e líquidos. Se a pessoa vai comer com seu Cérebro de Paleomamífero ou com seu Néocortex, vai depender de sua escolha própria. Simples assim. Simples assim?
A moça tem hábitos alimentares profundamente arraigados, com excessos de farináceos e derivados do leite, gorduras e carbohidratos consumidos abundantemente. Ao contrário do que se pensa, não basta “fechar a boca” para emagrecer. Os cadeados estão mal indicados, pode-se assim dizer. O consenso é que ela não pode e não deve parar de comer. Deve, antes, comer direito. Diminuir as porções, aumentar os vegetais, verduras, legumes e esquecer que existem os refinados, como açúcar e farinhas brancas. O seu organismo precisa ser convencido que pode emagrecer. E isso é para o resto da vida.
O Fantástico submeteu, há dois anos, os seus apresentadores a um processo de dieta restritiva e exercícios, para provar que “todos podem emagrecer”. Zeca Camargo e Regina Ceribelli ficaram magrinhos e sarados, dando entrevistas para a Contigo. Hoje eles estão com um sobrepeso mais grave do que antes do “desafio”. Como em todas as dietas restritivas, o resultado foi o efeito sanfona e o ganho de peso.
O médico e a paciente devem lidar com a frustração e a impotência que o assunto nos evoca. Não adianta prescrever cadeados nem alimentar a vitimização. O assunto é complexo e merece ser olhado de frente.

domingo, 4 de novembro de 2012

Faça um Pedido ao Silêncio

Para quem acompanha esse blog, mencionei a existência de Cinco Cérebros há uns três posts. O termo é apenas para fins didáticos. O Quinto Cérebro está mesmo em nossas redes Neurais? Boa pergunta. O materialismo científico considera a Mente um produto de nosso Cérebro. Percepção, Processamento de Informação, produção de Pensamentos e interpretação do mundo, tudo isso deriva de nosso substrato neural.
Estou digitando isso enquanto na Tv a Cabo está passando um documentário sobre a ascensão de Adolf Hitler ao poder a partir dos escombros da derrota alemã na Primeira Guerra Mundial. Um estudante medíocre, um pintor que passava fome pelas ruas de Viena, um militante obscuro dos partidos de ultradireita alemã, toda a trajetória de Adolf Hitler sugeria um percurso de fracasso e obscuridade. Quando ele se juntou a um grupo radical Nacional Socialista, cultivando o ódio aos opressores que haviam vencido a guerra. A crise econômica era dramática, os bancos eram geridos por ricos donos do dinheiro, de origem judaica, que exorbitavam os juros em tempos de hiperinflação. Esse homem medíocre, sem particular capacidade intelectual e cultural aprendeu a “sintonizar” com algo que estava fora de sua Mente e também fora da Mente dos alemãs. Hitler encarnou um arquétipo messiânico. Ele aglutinaria um povo humilhado, faminto e canalizou todo o ódio e toda derrota contra o povo judeu, com os resultados que já conhecemos. Hitler foi um homem medíocre e odioso que sintonizou com uma Mente que estava fora dele. Os junguianos chamam essa Mente de Inconsciente Coletivo. Um substrato que está circulando dentro das cabeças de todos e de nenhuma pessoa, ao mesmo tempo. Hitler relatou que é como se ele soubesse, antes de falar, o que iria dizer e as pessoas queriam ouvir.
O Quinto Cérebro na verdade não está dentro do Cérebro. É a mente que, em momentos de crise, acaba se manifestando como um ser vivo, uma pessoa que acaba sintonizando com a voz do Inconsciente Coletivo, sendo uma parte de algo muito maior do que uma vida comum.
Para usar um exemplo menos desagradável, posso voltar a Michael Jordan. Michael passou um tempo longe das quadras de basquete, meio enfadado de já ter conquistado tudo que um atleta poderia conquistar em um esporte de alto nível. Foi jogar beisebol por duas temporadas, sem bons resultados, pois seu Quarto Cérebro precisaria de algumas décadas de prática para chegar ao mesmo nível que tinha nas quadras. Jordan voltou ao Chicago Bulls jogando muito bem, mas sem o nível de antes de sua curta aposentadoria. Demorou um tempo para ele voltar à espiral de aprendizado e excelência que apresentara antes da interrupção. Quando ele marcou pela primeira vez uma pontuação excepcional, afirmou que “o jogo estava fluindo” através dele como antes. Para ele, era como se ele não jogasse, mas “fosse jogado”.
Esse é o Cérebro não local. Pode ser chamado de Espírito Santo, Atman, Prana ou Supraconsciência. Tem muito mais nomes para acrescentarmos. É uma Mente fora de nossa mente, que pensa em nossos pensamentos e inspira alguns de nossos atos. Esse quase Cérebro é o substrato silencioso e invisível que a Ciência afirma ser fruto de nossas inseguranças e medos. Para a ciência, essa ordem intrínseca nem chega a existir.

sábado, 3 de novembro de 2012

James Bond em Tebas

Ontem fui assistir o novo filme de 007, “Operação Skyfall”. Adoro essa fase Daniel Craig do personagem, depois de anos de canastrice e humor tipo chanchada de Pierce Brosnan. O fato é que vamos dar um tempo na Neurociência nesse post. Vamos voltar a Jung, que já estou cheio dos quatro Cérebros.
O James Bond de Craig é um herói ferido. Encontra o amor no primeiro filme dessa nova fase, “Casino Royale”, vê a amada traí-lo e morrer afogada na sua frente, sem poder salvá-la. No segundo filme, “Quantum of Solace”, Bond é um vingador enfurecido, insone, que não hesita em sacrificar amigos e Bond Girls para perpetrar a sua vingança contra os matadores da mulher amada. Nos dois filmes ele passa a maior parte do tempo levando pito de M, inesquecível na pele de Judi Dench. A relação do filho rebelde com a mãe supostamente rigorosa, mas que acoberta e deixa o traquinas fazer o que bem entende, fica bem clara nesses filmes da saga Bond. M está sempre ralhando com Bond enquanto o filhinho rebelde trucida suspeitos e usa as mulheres para atingir os seus objetivos.
Este novo filme brinca muito com essa característica chauvinista e old fashioned do Bond de Daniel Craig. Ele é chamado de tiozinho pelos superiores e o seu apoio nerd, G, que lembram a Bond que ele não é mais o mesmo. Um tiro no ombro no início deixa o seu braço trêmulo. Ele é reprovado em todos os testes e, mais uma vez, acobertado por M. Ele vai voltar à ação para protegê-la, pois dessa vez o Serviço Secreto está sob ataque para atingi-la. Ela está exposta e fragilizada, acusada de estar, também, superada.
O filme vai mostrar o embate arquetípico entre os dois filhos da Mãe poderosa: os dois foram feridos por ela. Um vai usar a sua ferida para se voltar contra a mãe Inglaterra na figura da chefe do MI 6. O outro, que foi igualmente rifado por M, 007, vai protegê-la e caçar o irmão monstruoso.
Esse é um tema já visto na tragédia grega. Na Trilogia Tebana, de Sófocles, é muito conhecida a história do Édipo Rei, já mencionada em posts antigos desse blog. Édipo cumpre o seu destino trágico, matando o seu pai e desposando a própria mãe de forma não intencional. Édipo arranca os próprios olhos e passa a vagar pelo mundo guiado por Antígona, filha de seu casamento incestuoso. Na última peça da trilogia, “Antígona”, Édipo já foi engolido pela terra. Tebas passou a ser governada por Creonte, tio de Antígona. Ela enfrenta publicamente Creonte, pois ele proibiu o sepultamento de seu irmão. E esse é o ponto de James Bond. Após a morte trágica de Édipo, os seus filhos se dividem. Um se junta aos inimigos de Tebas e tenta derrubar o rei Creonte. O outro toma a defesa da cidade mãe. Os irmãos se matam mutuamente na batalha, um golpeando o outro. Creonte quer sepultar o aliado como um Herói de Guerra e deixar o outro aos cuidados dos urubús. Esse é o embate que está no novo filme de James Bond. Para o Serviço Secreto, James Bond e Silva, os irmãos arquetípicos da Mãe Incestuosa, Jocasta, digo, M, estão mortos. Ambos vão voltar da morte para honrar e encontrar, profundamente, a sua própria identidade perdida. Faltou ao filme uma Antígona para dizer que Bond e Silva, o arquivilão, são faces da mesma moeda.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Vídeogames e o Quarto Cérebro

Os vídeogames e sua metástase temível, os jogos online, colonizaram os corações e mentes das crianças, adolescentes e adultos que passaram por eles. Já não é possível ficar perto deles sem notar algum tipo de conexão, com tablets, smartphones, i-pods e quejandos. Como que essas drogas altamente indutoras de abuso e dependência capturam mais e mais adeptos?
Estava falando no último post do Cérebro de Réptil, o Primeiro Cérebro, que mantém as nossas funções vegetativas, fundamentais para o desenvolvimento e manutenção da vida. Falei também do Segundo Cérebro, também chamado para fins de compreensão de Cérebro Emocional. É um Cérebro visto em Mamíferos ou Paleo Primatas, que coordena as nossas reações de Medo, de Desejo, de busca pela adaptação ao meio ambiente e sobrevivência.
O Terceiro Cérebro, ou, didaticamente, o Cérebro Racional, é bem mais jovem evolutivamente mas permitiu aos hominídeos o domínio desse planeta como raça dominante. As capacidades básicas desse Cérebro, que é o Planejamento das Ações, a Execução, a capacidade de Avaliação dos Resultados e Correção dos Erros não é inédita entre os Primatas, mas estendeu-se ao infinito com a aquisição da Linguagem Falada e Escrita. Não é à toa que os quadros de transtornos de desenvolvimento tem uma evolução dramaticamente melhor ou pior se o paciente desenvolve a capacidade de Linguagem.
Falei no último post sobre Michael Jordan, que de jogador de basquete mediano na escola tornou-se o maior jogador de todos os tempos assim que encasquetou que queria sê-lo. O treino, a repetição e as curvas de aprendizagem progressivas, com uma capacidade de Concentração inacreditável, levaram Michael a um entendimento complexo e uma leitura ampla e instantânea do jogo e da ação do adversário, levando a uma perfomance difícil de repetir. Ele estava usando sem saber o Quarto Cérebro, que talvez faça a integração simultânea de várias camadas e estruturas cerebrais. Passar do Terceiro para o Quarto Cérebro é como passar desse meu notebook para um computador quântico. Estranhamente há pouca gente estudando essa passagem. Ainda pensamos nos gênios como seres estranhos que nascem do nada, como saltos da Natureza que são aleatórios e inexplicáveis, não fruto do trabalho e do suor de pessoas que se apaixonaram pela sua área de atuação e atingiram a completa excelência.
Os videogames e os jogos online estão escravizando nossos jovens com essa paixão em dominar esquemas motores e perceptuais complexos, na tentativa de atingir a excelência e a maior pontuação. Para isso, integram um sistema de recompensa/punição/aprendizagem que tem esse efeito em quem joga. Dominar o repertório de manobras, conhecer os atalhos e os bugs do jogo é a via de comunicação e pertencimento dessa comunidade virtual. Ouço meus filhos gritando nos headsets com colegas australianos, japoneses e europeus em mais um jogo online. A derrota não vai gerar depressão nem luto, mas vai antes, levar a mais excitação e novas tentativas de atingir a excelência no jogo. Está na hora de aprendermos com esses caras.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Cérebro Emocional e Aprendizagem

Sábado eu gravei uma vídeo aula aqui no consultório. Um paciente meu está com um bloqueio de estudo, o que está pior às vésperas do vestibular e eu queria aproveitar para alinhavar uma idéias. Ele não veio para a aula de um aluno só mas deu para gravá-la em vídeo. Talvez eu a coloque no Youtube, mas ela ficou um tanto ruinzinha, pela falta de domínio do veículo. No começo ela estava gritada, depois a voz ficou baixa. O ângulo da filmagem foi a linha dos olhos do aluno, deixando o expositor, no caso, eu, mais gordinho do que já me encontro. Mas no final a experiência foi OK e vou repeti-la. Estou apaixonado pela idéia da criação de Consciência ser basicamente um sistema de aprendizagem em várias camadas, do nosso Cérebro normal à máquina quântica que são nossos neurônios e nossas redes neurais. Fico com um pouco de medo de usar esse termo, “quântico”. O que antes era definido como “holístico”, hoje está sob o guardachuva do “quântico”. Percepção Extrassensorial, sincronicidades, visões de OVNIs e vidas passadas, tudo tem um componente que puxa pelo “Quântico”. Mas o fato é que nosso Cérebro é uma máquina probabilística, capaz de percepções e intuições não locais, bem, isso aparece na prática clínica o tempo todo. Pode dar o nome que quiser.
A aula em questão era sobre um conceito de psiquiatra/físico Jeffrey Satinover que já citei em outros posts, o Quarto Cérebro. Como o único aluno não veio, acabei falando dos três Cérebros mais conhecidos. O primeiro é um Cérebro mais antigo, vegetativo, quase um pequeno Cérebro de Réptil em nosso Sistema Nervoso. Ele garante as funções ditas vegetativas, o batimento cardíaco, a respiração, o sono, a regulação da temperatura e o nível primário de Consciência. Se ele não vai bem, o resto também não vai bem.
O Segundo Cérebro está no início da parte mediana de nosso Cérebro e vai até a Substância Cinzenta. É um Cérebro de Mamífero ou de Paleoprimata. Responde pela regulação de toda a nossa vida emocional e instintiva, a regulação de nossos hormônios e aparato básico de sobrevivência, os ciclos biológicos e a modulação do medo e do desejo, grandes forças em nosso desenvolvimento e motivações. No caso do aluno que não veio, é justamente a parte do seu Sistema Nervoso que está causando o seu bloqueio. Uma estrutura do tamanho de uma ervilha, chamada Amígdala, está orquestrando todo o estrago. O medo de fracassar criou um sistema de congelamento. Quando ele pensa em estudar, um frio percorre o seu Estômago, o Coração dispara, a boca fica seca. A repetição de experiências desagradáveis criou um profundo bloqueio, passar no vestibular parece um salto impossível sobre o precipício. Ele não suporta mais decepcionar a si mesmo e as pessoas que o amam. Não esperem nada de mim, ele fala com o seu bloqueio. Ele não percebe, mas está lutando pelo seu direito de fracassar. Parece estranho, mas quase todo mundo chega a um ponto em que precisa abandonar o medo de decepcionar as pessoas amadas.
Superar as dificuldades e os medos também podem ser transformados em um Sistema de Aprendizagem. Como eu já escrevi em outras postagens, mudar velhos hábitos é uma tarefa para um Hércules interior. Mudar o hábito de desistir, de fracassar, de interromper o processo de aprendizagem, também é uma tarefa daquelas. Estava lendo que Michael Jordan não era nem o melhor jogador de basquete de sua família. O seu irmão mais velho era a estrela e sempre fazia questão de prová-lo diante do irmão caçula. Parece que quando Michael foi reprovado e cortado do time de basquete de sua escola, aquilo provocou uma mudança profunda em seu comportamento. Ele passou a treinar mais do que todos e procurar adversários cada vez mais difíceis. A sua curva de aprendizagem passou a ser exponencial e diária, até virar o maior jogador de basquete de todos os tempos. Ele passou a se excitar com os erros e as derrotas, em vez de chorar e ficar com pena de si. Ele também não ficou deitado em um divã de um terapeuta compreensivo e acolhedor repetindo a mágoa e a admiração do irmão que gostava de oprimi-lo. Penso que ele derrotou esse irmão milhares de vezes em sua vida. Tenho certeza que ele fez isso usando os sentimentos, inclusive o seu medo, para atingir níveis cada vez maiores de Concentração e Motivação. Viram? Não deu para falar do Terceiro Cérebro. Mas não vou demorar a abordá-lo.

domingo, 28 de outubro de 2012

A Fratura

Estou aqui bestando no final do final de semana, vendo a “Sessão de Terapia” no GNT, com as melhores cenas geralmente de Maria Fernanda Cândido, no papel de Júlia e ZéCarlos Machado, no papel do analista Théo. As cenas são carregadas da tensão de uma paciente transferida e tentando achar uma brecha na expressão facial de Théo. Ela quer ficar com ele, quer ser a mulher de sua vida e o terapeuta ali, fazendo cara de terapeuta. Zé Carlos Machado não consegue traduzir com clareza a tensão de um homem de mais de cinquenta anos seduzido por uma mulher mais jovem e bela, querendo se entregar para ele. A luta entre o homem e o curador não fica clara nos olhos de Théo. Ele parece e bobo e suas respostas, ainda mais bobas. Júlia o convida a examinar e expor com clareza os seus sentimentos, para poderem lidar com eles. Estranhamente, nesse ponto, a paciente é que está sendo terapêutica e acolhedora, enquanto o terapeuta está todo duro, soltando alguns lugares comuns.
Particularmente bonita é uma cena em que Júlia descreve o que ela vê no homem que está na sua frente. Ela não acha que Théo é o herói, o analista todopoderoso. Ela percebe que algo dentro dele está quebrado, e o que está quebrado tem uma infinita tristeza. Se os dois pudessem juntar as suas tristezas, alguma coisa nova poderia surgir no meio do gigantesco vazio que há entre duas pessoas e suas faltas. É uma fala tão bonita que descreve um ponto nuclear do encontro de duas pessoas numa sessão de terapia. Ele desatou a perguntar e mesmo censurar o que Júlia dissera, por que ela não conseguia se gostar, por que dizia que se detestava há trinta e cinco anos. Ai, meu Deus.
Júlia enxergou a fratura. O homem fraturado entre o seu desejo e sua dor, sempre transido entre uma coisa e outra. O homem da Terapia Comportamental é muito chato, cheio de fobias e obsessões que devem ser eliminadas às pauladas pelas orientações e direções do terapeuta marceneiro psíquico. Júlia cutuca num lugar onde a medicação e a psicoeducação nem imaginam que exista: o lugar do paradoxo, onde a ferida e a grandeza de um homem estão no mesmo lugar. Júlia descreve que algo está quebrado dentro do homem que tenta tratá-la. O que ela não sabe é que essa fratura é a nossa natureza humana.

Fenômeno

Adoro pescar na TV a cabo uns filmes que sumiram na transição do VHS para o DVD. Um deles, do final da década de 90 é o “Fenômeno”, com John Travolta, que provavelmente foi a origem do apelido do hoje rechonchudo Ronaldo Fenômeno. Para quem na viu, é a história de um mecânico de uma pequena cidade americana da Califórnia que, após um evento estranho, em que ele vê uma luz intensa, passa a desenvolver uma capacidade quase ilimitada de aprendizagem e memória, virando objeto de medo e de especulação dos habitantes, que acham que foi abduzido por aliens, e que pode ser perigoso.
O personagem de Travolta, George Maley, passa a apresentar uma curva de aprendizagem assustadoramente alta, chegando a aprender língua exótica, o Português, em vinte minutos. Os problemas não demoram a aparecer, quando ele começa a ficar acelerado, pensando e tendo novas ideias o tempo todo, gerando novos conhecimentos sobre Agricultura, Sismologia, Energia Solar e qualquer assunto em que se debruçasse. No final do filme, lamento revelar, George é diagnosticado com um Tumor Cerebral, um Astrocitoma que envolveu todo o tecido nervoso e passou a superestimulá-lo. Esse estímulo constante aumenta a sua capacidade de concentração, os pensamentos fluem livremente e a formação de memória foi se tornando cada vez mais rápida e eficiente. Ele fica num estado de excitação que em Psiquiatria é chamado de Mania, um estado de aceleração em que a pessoas fica em estado de Humor expansivo, com uma euforia contagiante em que todas as possibilidades parecem ao alcance da mão. Não há necessidade de comer, nem de dormir, todas as associações de ideias são rápidas e parecem infalíveis. O portador do quadro normalmente sente-se muito bem e tudo parece muito bom, mas na verdade os quadros de mania podem ser catastróficos e difíceis de tratar. Estão geralmente vinculados à Doença Bipolar e devem ser tratados com vigor e por muito tempo. Confesso que sempre me intriguei sobre como poderia desenvolver uma Mania controlável, que não levasse o paciente à insanidade e à depressões graves quando a neurotransmissão entra em exaustão. Alguns mecanismos para essa otimização estão sendo esclarecidos.
Estudos de memória demonstram que o filme não está tão errado, embora não exista um Tumor que hiperestimule o Cérebro dessa forma, aumentando as capacidades de atenção e a retenção de novas aprendizagens. Mas outros estudos demonstram que as pessoas que atingem vários níveis de excelência no que fazem são os que conseguem estabelecer esse looping de retroestimulação e aprendizagem constante. Grandes pianistas, o violoncelista Yo Yo Ma e os gênios da Matemática compartilham desse mecanismo de estímulo constante, levando a níveis cada vez mais assustadores de excelência no que fazem. Isso depende menos da carga genética e mais na capacidade de estabelecer sistemas de aprendizagem e reforço de redes neurais. É como se as conexões neurais ganhasse uma musculatura cada vez mais sólida, na medida em que são mais usados e solicitados. Isso também deve ter um papel importante na origem de alguns quadros demenciais. As demências são muitas vezes desencadeadas pela aposentadoria ou por uma perda importante na vida do paciente. Isso pode gerar um ciclo vicioso de desuso. O Cérebro é um órgão como outro qualquer, precisa de exercícios.
No final do filme, George fica estranhamente grato por haver uma explicação científica para as suas capacidades extraordinárias. Ele aponta para o Neurocirurgião que quer estudar o seu Sistema Nervoso in vivo que todos podem desenvolver essas capacidades, essa é uma capacidade humana desconhecida, mas acessível. Vai demorar algumas centenas de anos, mas estamos a caminho. Muita gente diagnosticada com a Doença Bipolar pode ter, na verdade, um Cérebro que se autoestimula demais. Precisamos de redes neurais que façam isso.

domingo, 21 de outubro de 2012

Atenção, Memória e Pão na Chapa

Ontem fiz um pequeno ensaio sobre o a Amnésia dos Garçons, um quadro particularmente dramático quando a minha Média e meu Pão na Chapa estão em jogo. Um comentário anônimo brincou com meu mau humor paulistano e me mandou tomar café da manhã em casa. Lembro de uma entrevista de Chico Buarque em que ele dizia que colocar uma música no disco é como ver um filho cair na vida: ela pode virar tema de comercial de sabão em pó, pode ser mal interpretada, pode virar objeto de culto; não há como saber. Mal comparando, também não pretendo querer dizer como o post deve, ou não, ser lido. Respeito a leitura de cada visitante, pois a postagem é de domínio público na hora que se dá um click para publicá-la. Mas o texto de ontem é humorístico. O uso do palavrão é um recurso humorístico e mostra o cidadão comum perdido na selva das desatenções que vão desde o garçon à mocinha que ligou na veia de uma paciente uma carga de café com leite, levando a vovozinha de oitenta anos à uma morte estúpida e dolorosa. Estamos perdidos numa selva de Atenção difusa e de Amnésias seletivas.
A padoca que eu frequento e tomo café quando vou para o consultório do Itaim tem um fabuloso Pão na Chapa: crocante, cheio de manteiga fresca e não rançosa, dá água na boca só de pensar. A atendente de minha mesa é a Ilza, que tem o mesmo nome de minha mãe. Espero não procurá-la por alguma tensão edípica. Ela já sabe que eu gosto de meu pão na chapa sem prensar. Quando ela falta é que preciso ensinar a sua substituta, que me olha como se eu fosse o mais obsessivo dos fregueses. Dessa cena que eu tirei a cena humorística e pseudo irritada de ontem.
Evolutivamente, precisamos de uma Atenção Multifocal, uma espécie de radar para antenar o ambiente o tempo todo. Ataques de predadores, répteis ou acidentes demandam esse tipo de Atenção desde que descemos das árvores e viramos bípedes. A maturação de nosso Córtex Pré Frontal e sobretudo o milagre evolutivo da Linguagem e da Fala possibilitaram aos hominídeos uma capacidade progressiva de Atenção e Concentração, com grandes vantagens para a aquisição de novas Memórias. Para criar novas memórias, precisamos estar com a atenção focada e de repetição, para fortalecimento das redes neurais que vão formar conceitos, memórias e estratégias adaptativas.
Quando uma auxiliar de enfermagem coloca café com leite ou sopa dentro de um equipo de soro, deve estar com a cabeça no post do Facebook ou na briga que teve com o namorado. Vivemos na barbárie da civilização autoestima, todos estão tão focados nas suas próprias necessidades e demandas, o Outro é apenas um ser que deve suprir as carências e necessidades do ser narcísico que a pósmodernidade nos legou. A Atenção desatenta faz parte desse contexto. Fica engraçado com a garçonete amnésica e trágico com a menina mal treinada e cabeça de vento, que ceifou uma vida.
O que o texto de ontem tenta vincular é a relação íntima e importante entre a capacidade de Atenção/Concentração e a formação de novas memórias. Todas as disciplinas meditativas trabalham na intensificação dessas capacidades e por tabela, na ampliação da Consciência.
Estou aberto para financiadores que queiram pagar um projeto de pesquisa e implantação de programas de Atenção Plena em todos os setores da sociedade. Começando não pelos garçons, mas pelas pessoas que tem a vida do Outro em suas mãos e não estão atentas a isso.

sábado, 20 de outubro de 2012

Média, Pão na Chapa e Memória

Perto de meu consultório tem uma padoca que faz a melhor Média com Pão na Chapa da região. Há outra que a média é melhor, o café é mais forte, mais encorpado e o gosto do café com leite, muito melhor. Mas o Pão na Chapa dessa padaria é um lixo. O chapeiro chega a deixar o pão sem manteiga em vários pontos. Portanto, se considerarmos o conjunto da obra, a padoca A tem uma Média pior, mas um Pão na Chapa incomparavelmente melhor do que a padoca B. Se os visitantes desse blog imaginam que essa será uma coluna de gastronomia de padarias, se enganam. Falaremos sobre a Neurociência dos garçons. Especificamente dos problemas neuropsicológicos que parecem afetar os garçons de padarias e de outros estabelecimentos, sobretudo os mais cheios. Onde eu estava mesmo? Ah, sim, na padoca A. Peço religiosamente a minha Média com Pão na Chapa. Só há uma ressalva. O pão na chapa não pode vir prensado. As padarias adotaram a moda lamentável de colocar o pão com manteiga, verdadeiro ícone de nosso imaginário brasileiro (basta lembrar da música de Noel Rosa, em que pede “Uma boa Média que não seja requentada/ Um pão com manteiga à beça...”). O que diria Noel Rosa, com seu proverbial mau humor, desses pães descaracterizados na prensa, onde o pão e a manteiga perdem o seu gosto, completamente? Triste é o país que abandona sua identidade cultural. Mas é óbvio que eu não falo nada disso para a garçonete que me olha com aquele olho de sono de quem já está lá há muito tempo e não quer ouvir sobre a importância de não amassar o Pão na Chapa. O fato é que, mais de uma vez, faço o meu pedido de forma didática: “Por favor, uma Média e um Pão na Chapa sem prensar”. Observe que eu não aumento a complexidade do pedido, solicitando uma Média mais forte, com mais café, por exemplo. Isso poderia congestionar as redes neurais da moça. Peço, apenas e tão somente, para ela não prensar o puto do pão com manteiga. A minha mente científica consegue catalogar uma incidência de quase 100 por cento de erro na primeira tentativa. Quando a moça aparece com aquele pão que o diabo amassou eu observo que pedira sem prensar. Elas me olham com aquela cara de que vai cuspir em todo o meu pão não prensado e me punem com alguns minutos de atraso, o que esfria a minha Média. Nas outras vezes (porque eu volto a essa padoca, na semana seguinte), quando eu falo para fazer um Pão na Chapa Sem Prensar, Porra, a moça já lembra do estimulo aversivo da devolução e, dessa vez, acerta. O problema é que na outra semana terei que repeti o processo de aprendizagem com outra garçonete, pois a anterior já deve ter tido um ataque de nervos e deixou o emprego. Não por minha culpa, eu espero.
Qual a origem da Amnésia dos Garçons? Observem que eu não vou nem abordar o Transtorno de Déficit de Atenção dos Garçons. Você pode acenar, gritar, convulsionar na mesa que o cara continua olhando para um ponto perdido no infinito, apenas para não fazer contato visual com o freguês. Mas não. Vou falar do problema específico de Memória dessa valorosa categoria profissional. Quando queremos guardar uma nova memória, temos mecanismos de Memória Rápida e Ultrarrápida. Quando precisamos discar um número novo de telefone, guardamos esse número em nossas redes neurais por alguns segundos, esquecendo do mesmo logo depois de discá-lo. É a Memória de Trabalho, ou Working Memory. Para transformá-la em Memória Declarativa, ou Memória mais permanente, é preciso uma Atenção mais detida. Um revólver apontado à cabeça do garçon pode ser um mecanismo motivacional que aumente a sua capacidade de retenção. Pensando bem, o excesso de tensão ansiosa pode prejudicar a formação de Memória. Plantar bananeira na mesa ou pegá-lo pelo colarinho pode melhorar o seu quociente atencional, melhorando a formação de novas memórias.
O fato é que a Memória de Trabalho, se não for bem treinada, vai se desmanchar rapidamente entre a mesa e o balcão do chapeiro. E notem que a padoca B já forneceu tablets para o garçon digitar o pedido, criando uma memória digital para ele. Mas o Pão na Chapa da padoca A vale o risco neuropsicológico.

domingo, 14 de outubro de 2012

Sobre Pastores e Ovelhas

Há um trecho do Novo Testamento, se não me engano antes do milagre da multiplicação dos pães, em que Jesus olha para a multidão e fica tomado pela compaixão, pois pareciam ovelhas sem um pastor. É uma passagem muito bonita e emocionante. Várias vezes Ele se enterneceu com o sofrimento, sobretudo aquele causado pela ignorância e pela dificuldade de achar um caminho que as pessoas tinham há vinte e um séculos. Não que tenha melhorado muito nesse período de tempo, a sensação de não ter um norte continua permeando a experiência humana.
Não sou Jesus, mas acho que tive uma sensação parecida com ele diante da multidão faminta. Estava acompanhando a última mesa redonda do Congresso Brasileiro ontem, justamente uma que abordava a Doença de Pânico. O programa falava em vários aspectos dessa doença que parece moderna mas já era descrita nos tempos de Hipócrates. As aulas foram boas, mas um pouco decepcionantes pelos esquemas interpretativos um pouco antigos da tal Neurobiologia. Vou exemplificar para não parecer, apenas, uma crítica rabugenta. Um esquema mostrava um estímulo que pode desencadear uma crise de Pânico, por exemplo, um lugar muito quente, abafado. As áreas vinculadas ao medo ao nosso Cérebro Emocional interpretam mal essa experiência, gerando preocupação. Essa preocupação vira medo, o medo entra em looping e esse looping leva à crise de Pânico. Errado. A maior parte das crises passam por estímulos que nem são percebidos conscientemente. Um lugar fechado, um engarrafamento, um aumento de frequência cardíaca, algo que nem vai ser interpretado pelo nosso Cérebro Consciente. Vai direto para as áreas do medo, sem que o paciente o perceba. A crise já aparece, de pronto, como um raio adrenalínico atravessando o corpo. O medo vem depois, assim como o looping de preocupação, que faz a crise se espalhar. O esquema do cara era antigo, mas a tentativa era bem intencionada de entender os sintomas. Como o colega estava de passagem marcada, anteciparam as perguntas. Foi aí que ocorreu a cena.
Um colega que é psiquiatra no interior do Brasil, pegou o microfone e fez uma pergunta constrangedora. Contou que tinha um paciente esquizofrênico que estava se isolando progressivamente, recusando qualquer tipo de ajuda. Ele perguntou, singelamente, se a mesa tinha alguma sugestão para o caso. O colega que estava dando aula sobre os sintomas de Pânico, notem. Nada a ver com o pergunta. Ficou num misto de constrangimento e uma irritação discreta. Poderia ter dito que aquilo era uma aula sobre outro assunto, mas acabou frisando que os dados sobre o caso estavam muito resumidos, mas acabou sugerindo uma conduta com antidepressivos e neurolépticos atípicos. Para quem não sabe o que significam esses palavrões, não se preocupe. O fato é que foi uma pergunta sem noção, fora de hora e de lugar e a resposta foi ainda pior. Um esquizo que está se isolando e recusando qualquer tipo de ajuda precisa de investimento humano. A família precisa ser orientada, alguma figura que o paciente respeita ou, na pior das hipóteses, uma intervenção institucional, como um hospital dia ou uma internação, podem ajudar a romper o cerco criado pela doença. Remédios de 200 reais a caixa não seriam a ajuda que médico e paciente precisavam. Mas o colega recolheu-se em sua desesperança e a aula seguiu. Pareciam ovelhas sem pastor.
A Psiquiatria se ressente, como toda a Medicina, de uma visão mais ampla, menos fragmentada, dos casos. O que parece o óbvio para alguns é quase intangível para outros. O colega em sua simplicidade humana e teórica deve ter ficado com aquela dúvida durante todo o Congresso e resolveu externá-la lá exatamente por ser a sua última chance. Fico imaginando-o perdido entre aquele mar de esquemas e teorias, sem entender o básico do que é um paciente esquizo. Deu vontade de comprar uma Kombi e sair pelo país adentro, espalhando Psiquiatria. Recolhendo as ovelhas.

sábado, 13 de outubro de 2012

Sequestro Virtual

Para quem não leu o último post, estou aqui em Natal, indo para o Congresso Brasileiro de Psiquiatria pela Via Costeira, o que significa estar sempre com a visão tomada pelo mar. E pensar que há 3 anos o Congresso foi em São Paulo. Ninguém conseguia chegar nas primeiras aulas por conta do trânsito na Marginal. Esta cidade é que é lugar para se fazer congresso e as pessoas, pasmem, estão indo para as atividades! Isso é que é gostar de Psiquiatria.
Houve uma mesa redonda com um tema cheio de pais preocupados: a Dependência de Internet. A aula começou com a citação de um moleque de treze anos, paciente do expositor: “Estar conectado é estar vivo”. O moleque pode ser adicto de redes sociais, mas é bom frasista. O meu filho comprou um jogo para jogar online, com o singelo título de Diablo III. Pois só esse jogo online já matou três. Suicídio? Não. A morte online se dá por privação de sono, desidratação e mal epilético, provavelmente. Um casal coreano foi preso por deixar seu bebê morrer literalmente de fome, porque estavam ocupados demais com seu bebê virtual. O que se estava discutindo é a função aditiva, ou geradora de abuso, do mundo virtual.
O mercado de games é mais poderoso do que o cinema. A última versão do FIFA está batendo todos os recordes de vendas. Assistindo à exposição eu me lembro de uma briga numa reunião no Instituto de Psiquiatria. O neurologista falava dos Reward Systems (Sistemas de Recompensa), as vias neurais que comandam o prazer, como um fator importante na geração de dependências. O psiquiatra se escandalizou, dizendo que aquilo era uma redução grosseira, que não estávamos falando de ratos, mas de gente. Lamento dizer que o neurologista tinha razão. E a indústria do videogame tem perfeita noção do sistema de alternância de punição/recompensa que vai deixando as pessoas de diversas idade vidradas diante das telas de LCD. Os mecanismos que tornam os adolescentes um público mais vulnerável dependem das características de seu Cérebro. Durante esse período, essas vias de recompensa ficam menos sensíveis à Dopamina. Isso determina aquela mudança no humor em que aquela criança que adorava tudo e vibrava diante das novidades passa a achar tudo um saco. O famoso tédio dos adolescentes deriva dessa mudança.
Outra mudança nessa fase é o aumento das áreas que geram os impulsos. A área do Cérebro que contém esses impulsos, o Córtex Pré Frontal, ainda não está amadurecida.É uma mistura explosiva de impulsividade e falta de contenção, temperadas pela dificuldade de avaliar as consequências, já que há uma dificuldade de acreditar que vai haver consequências. Os jogos online criam um sistema de alta concentração e recompensa, aumentando a atividade da Dopamina no Cérebro Emocional e a secreção de hormônios como a Adrenalina e o Cortisol. Um mundo muito mais atraente e excitante que nossa mundo real, tão tedioso.
Os quadros de Abuso e Dependência de Internet ou do mundo virtual não vão diminuir nos próximos anos, muito pelo contrário. Se eu tivesse uma visão marketeira de meu ofício, abriria um grupo de pesquisa e atendimento desse público. Somos uma geração de pais vivendo em um mundo mais complexo, onde as ameaças virtuais são tão graves quando as reais. O trabalho nessa travessia é de maturar a capacidade de conter os impulsos, limitar o tempo no mundo virtual e viver com os pés fincados no real. Fácil, não?

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Bullying

Pois estou aqui, num chalé com o pé literalmente na areia, em Natal, ouvindo o mar. Direto no Congresso Brasileiro de Psiquiatria. Pasmem, apesar do local descrito, estou indo para o Congresso, e vou ser um repórter nesse blog sobre os temas mais interessantes. O título desse post já é uma dica sobre o tema de hoje.
Estamos na cidade onde existe um dos mais avançados institutos do Cérebro nesse país, chefiados pelo médico com maiores chances de receber o primeiro prêmio Nobel para um brasileiro. Quantos colegas do Instituto do Cérebro foram convidados a palestrar no glorioso e trigésimo Congresso Brasileiro de Psiquiatria, organizado pela ABP (Associação Psiquiátrica Brasileira)? Se alguém chutou nenhum, ganhou o prêmio.
Apesar de estar pasmo com esse fato, que demonstra que sai diretoria, entra diretoria e as panelinhas não se desmancham, ainda há vida inteligente no Congresso.
Tatina Moya, jovem pesquisadora paulista, radicada no Rio de Janeiro, fez um relato sobre o atendimento de pessoas envolvidas em Bullying. Lembrei de um texto clássico de Freud sobre violência, chamado "Uma Criança Está Sendo Espancada". Nesse ensaio impressionante, Freud descreve que, numa cena de violência, temos três posições de identificação: alguns se identificam com o Agressor, outros com a Vítima, finalmente outros ficam numa posição neutra, a do Observador. Esse texto já tem quase um século e ainda descreve, com admirável simplicidade, o que acontece com as vítimas de abusos em sua vida: alguns repetem as agressões e passam a ser pessoas violentas e abusivas, outras permanecem na posição de vítimas e procuram inconscientemente por relacionamentos onde recebam maus tratos e a grande maioria acaba anestesiada diante da TV ou da violência, sem esboçar reação. Ou, pior, algumas pessoas na posição de autoridade repetem a apatia do Observador.
Não sei se Tatiana leu ou teve contato com o texto de Freud. Ele anda muito fora de moda nesses tempos de Psiquiatria Biológica. Mas a parte magistral de sua apresentação foi justamente ter abordado as três pontas desse triângulo. Todo processo de bullying tem esses participantes. O Perpetrador, normalmente o menino mais velho, mais popular ou naturalmente inclinado à violência; a Vítima, a criança mais tímida, gordinha ou com alguma diferença visível para os valentões; e, talvez, a pior parte do triângulo, que somos nós, observadores impassíveis. Tatiana colocou, com propriedade, que muitas escolas ou pais entendem que isso é uma fase natural, que vai passar quando os anjinhos crescerem. Estudos de suicídio mostram que muitas pessoas podem tentar contra a sua vida décadas depois de sofrer assédios e exposição ao ridículo entre seus pares. As marcas são profundas e duráveis. Outro dado de pesquisa impressionante é que o risco de depressão e suicídio é importante tanto entre as Vítimas quanto entre os Perpetradores. Há um risco maior para os garotos que ficam nas duas posições, passando de vítimas a agressores. Quanto maior e mais constante a experiência com a violência e o abuso, maior o risco psiquiátrico e maior o risco de suicídio no futuro.
Outra pesquisadora descreveu, com emoção, que foi votar nessa última eleição numa escola onde havia um cartaz que dizia: "Vamos expulsar o Bullying dessa escola". Ela conversou com o diretor, que descreveu uma política de elaboração e diálogo com todos os participantes do Bullying. Diante da violência, todos são vítimas. Mas nada é pior do que cruzar os braços.

domingo, 7 de outubro de 2012

Tiririca e a Memória

Nosso sistema eleitoral criou uma barreira representativa, tornando todo o processo eleitoral abstrato e impenetrável para a população pobre e com baixa aquisição cultural. Uma barreira importante é a barreira da Memória. O desfile enlouquecido de candidatos aleatórios transmite ao eleitor uma impressão de geléia geral e desorientação. Não há como diferenciar ou fixar quem é quem e o que realmente eles querem ou podem fazer. Aqui em Cotia temos candidatos que tentam seguir a trilha aberta por Tiririca, verdadeiro gênio do marketing político, que se diferenciou justamente por ter escrachado de vez essa hipocrisia. Temos aqui candidatos como o Nego Drama, que deve estar procurando pelo voto dos rappers, já que seu nome é título de música dos Racionais MC’ s. Tem um candidato autointitulado Lingüiça Sem Preguiça, o que sempre me fez perguntar se era um apelo para o voto feminino. “Abaixo as Linguiças Preguiçosas”, seria um slogan de alta densidade eleitoral. Através do humor e da palhaçada, tentam se fixar na memória do eleitor. Tiririca tinha razão.
A multiplicação das mídias criou esse espaço de diluição de memória. Para criarmos uma nova memória, precisamos de aumento de dendritos e ramificações de nossos neurônios, principalmente numa região do Cérebro chamada Hipocampo. A Memória nova a ser adquirida demanda repetição, rememoração e síntese proteica. Depois da conquista humana de tanto sedentarismos, temos hoje o sedentarismo da Memória. Não temos mais as Memórias, temos o Google. E uma grande geração de pessoas sedentárias cognitivamente, com a lassidão de tomar conhecimento do que realmente está acontecendo. Uma alienação que não produz boa síntese proteica e boa capacidade associativa, o que é fundamental para ampliar as capacidades de nossos neurônios. O mundo está ficando cada vez mais estratificado entre Cérebros hiperfuncionantes, como posso notar na quantidade imensa de jovens que trabalham doze horas por dia em ritmo acelerado de processamento de informação e os hipofuncionantes, com pessoas mais humildes que receberam diplomas sem ter a qualificação necessária para tê-los. Muito desses Cérebros pouco treinados procuram uma brechinha na política, sempre com a mentalidade vigente de se dar bem sem fazer força.
Os candidatos acenam com aumento do tempo de permanência da criança na escola. Na verdade a revolução seria fazer as pessoas aprenderem mais em menos tempo na escola. Isso se faz transformando o ambiente escolar em algo mais estimulante intelectual e afetivamente. Como um vídeo game. Mesmo nas candidaturas à Prefeitura de São Paulo, onde há candidatos que já foram ministro e secretário estadual de Educação, as propostas são xôxas, bobocas e populistas. Já está na hora da Neurociência ser matéria curricular de educadores. Votem em mim.

sábado, 6 de outubro de 2012

Experiência Emocional

Eu tinha uma cliente engraçada que dizia que a sessão só era realmente boa se ela chorasse. Isso criava uma certa tensão humorística, porque quando ela finalmente chorava a gente se cumprimentava: Yes! Acabava atrapalhando o choro, mas era engraçado. Ela não sabia, mas estava absolutamente certa, embora pelo ângulo errado.
Estou lendo um paper sobre a aplicação da Neurociência à Psicoterapia. A autora, Vera Lemgruber, recuperou um termo dos anos 40, criado por um psicanalista, F. Alexander, a Experiência Emocional Corretiva. No decorrer de uma sessão terapêutica, uma reação emocional forte, como o choro, uma gargalhada, um grito, um susto, normalmente significa que algo importante foi tocado. Algo que a Defesa estava sutilmente escondendo e que, de repente, explode numa reação emocional. Outro dia eu estava assistindo aquele reality show trash, que é o Celebrity Rehab. Já falei dele em outros posts. O programa é sobre um período de reabilitação para dependência química, em um grupo de semi ou excelebridades reunidas aleatoriamente numa clínica para tentar um período de entendimento e recuperação de suas dependências. O psiquiatra que comanda o tratamento é Dr Drew, que eu adoro assistir. Ele tem a coragem, ou a falta de noção, de se expor e expor também as suas deficiências. Eu me divirto com as furadas de sua parca compreensão simbólica, o que atrapalha o seu trabalho e o trabalho da Psiquiatria com esses casos extremamente complexos. Pois Dr Drew deve ter lido sobre o assunto, pois houve uma sessão em que ele conversava com um dos pacientes sobre uma experiência traumática, em que ele lembrava de mais uma surra que seu pai tinha lhe dado. A lembrança e a compreensão do vazio que ela provocava levou-o às lágrimas. Quando essa emoção aflorou, o terapeuta quase que imediatamente encerrou a conversa. Ele queria apenas aquilo, chegar à emoção e pimba! – Nosso tempo acabou. Soltei um belo e sonoro palavrão. Não é possível que esse cara vai colocar o paciente para fora da sala enxugando as lágrimas.
Jung chamava essas Experiências Emocionais de Ab-Reação. Uma emoção forte que libera um afeto escondido debaixo de camadas e camadas de esquecimento e repressão. A expressão do afeto tem geralmente um sentido libertador (no seu sentido mais profundo: liberta-a-dor). O artigo perde o pé nesse ponto, quando sugere uma psicoterapia voltada para a produção de EECs. Já fiquei imaginando os pacientes num pau de arara, tomando choque e o terapeuta gritando: Chora! Chora, desgraçado! Menos, menos, gente. Psicoterapia não é campo de tortura. As experiências emocionais ocorrem e são acolhidas e trabalhadas, não um alvo a ser atingido. Dr Drew pisou na bola de novo. Após a experiência emocional, ele podia e devia ter acolhido as lágrimas do paciente, esperado o afeto ser expresso e ligar o que ele sentia com o seu comportamento de adição. A compreensão da dor e do mecanismo de repetição pode ajudar, e muito, na recuperação. E a experiência emocional na sessão pode ter efeito esclarecedor, chegando em níveis mais profundos de Ser.
A parte excelente desse artigo é a percepção que se aliarmos a força do Cérebro Emocional ao Racional em um processo terapêutico, os resultados serão muito, muito melhores. Isso parece a coisa mais óbvia do mundo, mas acreditem, para muita gente, não é. Podemos ouvir em qualquer conversa de boteco as pessoas dizendo que Depressão é fraqueza e Pânico é falta de força de vontade. Não são. Há uma infinita rede de medos e lembranças afetando os quadros psiquiátricos.
O terapeuta não é o senhor do Labirinto, mas procura pelos fios deixados por Ariadne.