quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Mulheres e Fúrias

Tem uma passagem da Mitologia Grega em que Hércules, em um de seus Doze Trabalhos, segura o Minotauro pelos chifres, empregando uma força descomunal até que o bicho se tranquilizou e perdeu a sua fúria. Essa imagem é muito bonita e na prática clínica representa a força e a determinação que às vezes temos que mobilizar para conter os nossos instintos, as nossas fúrias. Hércules hoje em dia iria terceirizar os Doze Trabalhos com algumas empresas coreanas e indianas, deixaria o touro solto destruindo as cidades e pediria um recall dos chifres do Minotauro, mal ajustados em alguma fábrica de Taiwan.
A imagem de Hércules não é muito fácil de criar empatia com as mulheres. A idéia de segurar as próprias fúrias pelos chifres é meio masculina, mesmo nessa época de mulheres saradas e bombadas. Gosto mais de outro mito, mais feminino, que é o mito de Eros e Psiquê. Nós junguianos falamos dele como se fosse de domínio público, não é. Vou resumir um pouco o seu enredo para abordar o tema desse post.
Psiquê era a mais bela das mulheres, uma beleza louvada e famosa em toda o seu país. A sua beleza era comparada com a própria Afrodite (veja bem, é sempre mal negócio ter um atributo louvado e comparado a um deus do Olimpo. Isso sempre vai gerar excessos e, depois, consequências). Pois de tanto se falar em Psiquê, Afrodite enviou o seu filho, Eros em pessoa, para lançar as suas flechas e fazer a moça cair em desgraça, apaixonando-se por um monstro. O correspondente disso na vida real são as moças belíssimas e idealizadas que acabam se envolvendo com amores bandidos e monstruosos, que podem levá-las à ruína. Eros foi cumprir as ordens de mamãe, mas acidentalmente se picou em uma de suas flechas, apaixonando-se perdidamente por Psiquê. Isso que é o feitiço virando-se contra o feiticeiro, ou feiticeira no caso. Eros acaba desposando Psiquê, mas todos acham que ela se casou com um monstro. Ele a visita toda noite, com a condição de que não pode ser visto, nem seu rosto revelado. Psiquê mora no alto de uma colina, recebe toda a noite o deus do Amor em pessoa, mas o leitor imagina que isso é suficiente? Claro que não. Ela é instigada pelas irmãs a quebrar seu juramento e iluminar o seu marido misterioso. Quando o faz, percebe que casou com um deus de infinita beleza, mas derruba óleo quente de seu candeeiro em seu ombro. Machuca profundamente seu marido com essa traição, ele vai embora, numa época que não havia terapeutas de casal. Psiquê pensa em morrer, mas é impedida pela sogrona, Afrodite, que vai lhe dar quatro grandes tarefas para recuperar o seu amor. A segunda tarefa é que me interessa. Psiquê deveria tosquiar carneiros violentíssimos e gigantes cuja lã era feita de ouro. Como de hábito, ela pensa em suicídio, mas é salva por criaturas mágicas que a ensinam um estratagema: ela deve pegar um caniço oco e se esconder sob as águas de um lago, respirando pelo canudo/caniço até o sol se pôr, quando os terríveis carneiros estão cansados e na sombra. Nessa hora ela pode colher a lã de ouro presa nos arbustos sem ser dilacerada pelas feras.
As mulheres indagam nas revistas femininas e nos divãs por que os homens estão tão ensaboados e ausentes dos relacionamentos. Não percebem que muitas vezes entram na relação com um quantum absurdo de energia e de expectativas, como carneiros furiosos prontos a dilacerar a sua presa por uma pequena falha ou desatenção. Os homens, que também se lamentam nos divãs, fogem embasbacados dessa mulher pósmoderna, já chamada nesse blog da “Mulher-que-surta”. Não é à toa que vemos muitas delas encontrando uma relação mais generosa e tranquila depois da maturidade. Só depois que baixa o sol do meio dia e as expectativas desmedidas, as fúrias de abandono e as ameaças chantagistas que algumas pessoas de ambos os sexos estão prontas para consolidar um relacionamento. Tem gente, infelizmente, que pode adoecer gravemente nesse processo, que pode durar muito tempo. Em alguns casos, as feras nunca se acalmam.
Guimarães Rosa, em uma das várias frases maravilhosas do “Grande Sertâo: Veredas” proclama que ”Deus é paciência. Tudo o que for contrário disso é o Diabo”.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Uma Casa, Muitas Moradas

Tem um velho conto taoísta que eu gosto muito. Havia um mestre que recebia visitantes de todo mundo procurando por sua sabedoria. Era acompanhado por um fiel ajudante, que não conseguia evitar de ouvir algumas de suas conversas. Um belo dia ele foi consultado por três homens diferentes, que fizeram a mesma pergunta. Para um ele respondeu sim, para o segundo, não, para o terceiro, talvez. O seu fiel ajudante não aguentou e perguntou, finalmente, como podia dar tantas respostas diferentes para a mesma pergunta. O mestre, inabalável, falou que a resposta era menos importante do que o perguntador: o primeiro deveria seguir o caminho afirmativo, o segundo o caminho negativo, o terceiro o caminho da dúvida. Essa história está no livro “Psicoterapia e Taoísmo”. Gosto muito dela, por diversos motivos. Um deles é a causa da dificuldade de se replicar cientificamente uma Psicoterapia de base analítica. A mesma questão pode ter uma resposta positiva, negativa ou de mais dúvida, para pessoas diferentes.
Essa pequena parábola também fala da diversidade de métodos. Dentro das Psicoterapias temos também os que optam pelo caminho do Positivo, do Negativo e da Dúvida. É claro que hoje o mais popular é o da Psicologia Positiva: desde os gurus de autoajuda até os terapeutas cognitivos, todos querem enfiar alguma idéia positiva na sua cabeça. E funciona? Com certeza, funciona. Nos anos 90 eu tinha um consultório no Itaim, com uma equipe muito legal de funcionários. Tinha um deles, o Toninho, que era um rapaz bacana, bem apessoado, mas sempre mal humorado, macambúzio, que vira e mexe soltava alguma frase do tipo: comigo acontece de tudo. E acontecia, mesmo. Um dia o prédio foi assaltado, e quem levou a coronhada? O Toninho. O elevador quebrava com quem dentro? Ele mesmo. Toninho se converteu, passou a louvar o Criador e a vida, namorou e casou. Deixou de ser um chato pessimista e passou a ser um chato otimista, erguendo louvores e pregando no elevador. Foi um bom negócio? Foi. As coisas melhoraram para ele, mas não para quem subia no elevador.
A Psicologia da Dúvida é mais difícil e cada vez menos popular. Implica em se fazer perguntas que abram novos caminhos. Eu gosto mais dessa. Ela parte do princípio que o único jeito de continuar crescendo é fazendo perguntas, levantando questões, ampliando consciências. Isso tem o seu custo, o principal é a própria dúvida. Tem também uma doença, que é a dúvida estéril, que é o duvidar pelo gosto de duvidar. Ainda assim, vale a pena.
A Psicologia Negativa pode ser creditada ao Materialismo, por exemplo. Não existe nada que não seja a matéria, não há continuidade da do Ser depois da morte, tudo é regido pelo acaso e pelas leis da Matéria. Mas não fica só nisso, não. O Zen Budismo é uma forma de Psicologia Negativa. Negativa não significa ruim, ou pessimista, como o nome sugere. Pode até acontecer da Psicologia Negativa cair na Negação de tudo, o que desemboca na questão do suicídio. Albert Camus, escritor e filósofo, dizia que a única questão filosófica importante é o suicídio. O século passado foi dedicado a essa sensação do Negativo como falta de sentido, e os consultórios estão sempre cheios de quem sofre no meio da Dúvida e da Negação. Mas pode ser que, se mergulharmos bem profundamente no Vazio, vamos encontrar o coração das coisas, onde existe o Riso.
Talvez não exista no mundo nenhum purista nesses caminhos. Podemos seguir o caminho do Positivo para muitas coisas, o da Dúvida para tantas outras e do Negativo quando desistimos de tudo. Jesus disse que a casa do Pai tem muitas moradas. E muitos caminhos.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Ordem Implícita

Hoje eu deveria dar sequência ao tema que abri no último post. Para ser mais preciso, nos últimos posts, começando pelo “Quarto Cérebro”. Quando mencionei uma ordem do Invisível, que uma corrente da Física chama de “Ordem Implícita”, estava delineando um “Quinto Cérebro”, que não está no Cérebro. É ele que se comunica com o Universo Holoconsciente. Tem um exercício que eu faço, com as coisas que nos torturam e nos movem, que é o nosso desejo, ou nossos desejos. Imagino que posso colocá-los em um lugar imenso. Um lago espelhado. Para dizer a verdade, tirei a idéia do lago de um livro de Deepack Choppra. Jogo os desejos no lago, eles produzem um leve ondular nas águas e depois a superfície volta a ser absolutamente espelhada e impassível. O Invisível passa a cuidar desses desejos. Um Universo holoconsciente passa a lidar com eles e o Tempo das Coisas começa a operar. Alguns desejos afundam, outros frutificam. Claro que se eu falar sobre isso num Congresso ou fora de um workshop com gurus de Autoajuda, vou acabar internado, ou pior, desconsiderado. O princípio desse tipo de diálogo é o diálogo com uma espécie de Supercomputador Cósmico, que vai processar e dar forma a essa busca. Quem tem um desejo, tem um caminho. O caminho se faz ao caminhar, dizia o poeta. Quanto mais constante e nítida a forma do desejo e sua reiteração, mais as manifestações, as coincidências e os sinais podem aparecer ao buscador. É claro que isso pode gerar um comportamento esquizofrênico de ficar tentando decifrar manchas de gordura e acontecimentos fortuitos, mas é um risco que temos de correr.
Nos últimos anos tenho me aproximado do Taoísmo pela sua profunda identidade com o pensamento de Carl Jung, terapeuta junguiano que sou. O sábio Taoísta não é um maluco esotérico tentando decifrar presságios, é antes um ser profundamente conectado aos movimentos do Tao. Mas o que é o Tao? Não pode ser nomeado nem explicado, diz Lao Tsé. O Tao é uma percepção do Imperceptível, então ele se manifesta indiretamente. Como o Inconsciente Coletivo. Um critério é o das Coincidências Significativas. Um desejo alinhado com o Tao, ou com a “Ordem Implícita”, costuma ser carregado de coincidências positivas. No futebol, por exemplo, tem o ditado que a sorte beneficia os campeões. O Barcelona cria um campo psíquico de vitória. Os santistas devem lembrar no gol de Fábregas no Santos, na final do Mundial do Japão. A bola bateu e rebateu em todo mundo, até cair no pé do espanhol, que colocou a bola no único cantinho que não tinha ninguém para alcançá-la. Sorte de campeão ou campo psíquico propício? Para o nosso raciocínio, não há diferença.
É lógico que num Universo Darwiniano, como o que vivemos, tudo é regido pela probabilidade cega, nada tem uma ordem profunda, é o entrechocar de prótons e elétrons produzindo mutações aleatórias, de genes ou de condições atmosféricas. Não há “Ordem Implícita”, apenas o deus supremo do Materialismo, o Acaso. Um filhote estranho é o Determinismo. Já que não há uma ordem invisível, então o que existe é a capacidade de operarmos e controlarmos a Matéria. Não há campo psíquico, há a Intenção e a Técnica. Os resultados são conhecidos e visíveis.
O fato é que não precisamos de autorização de ninguém para constatarmos essas estranhas e significativas coincidências que nos conduzem, como uma mão invisível.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Invisível

Desde que o mundo é mundo que os homens se dividem em quem acredita apenas no Visível e aqueles que acreditam no Invisível. Durante boa parte de nossa evolução humana, os poetas do Invisível eram ampla maioria, com todo um Universo de mitos, lendas e seres invisíveis que se metiam na vida dos homens: gnomos, elfos, almas penadas. Desde o Iluminismo que a balança passou a pender para o lado Materialista. Tudo que estava fora do elemento físico passou a ser taxado de crendice, superstição, ocultismo. As Religiões viraram clubes dominicais onde as pessoas revivem ou recontam velhas histórias e velhos mitos, que ainda sustentam toda a cultura e a ordem social, mas encontram nos cientistas sempre um nariz torcido. Não acreditar em nada que seja medido, testado, comprovado, virou a verdadeira Religião, que conta já com a sua própria Inquisição.
Há alguns meses eu contei nesse Blog que encontrei com um velho e conhecido colega, hoje um ótimo pesquisador e um profissional sério, conceituado. Ele cruzou comigo num Congresso e me perguntou se eu "ainda era um junguiano", como se isso fosse uma doença da juventude que em algum momento encontramos a cura. Essa é a tal Inquisição. Ou você acredita no Método, ou está fora.
Na Física pelo o pouco que eu sei, essa divisão existe e é antiga. Os metafísicos também são caçados e alvejados pelas setas do deboche. Da mesma forma que Galileu teve que engolir a sua teoria diante do tribunal da Inquisição para não morrer na fogueira, alguns metafísicos levam a sua vida sem falar muito em suas crenças, tocando a sua vida no mundo dos fenômenos mensuráveis.
Jung, psiquiatra suiço que nunca quiz que houvesse um movimento junguiano, descobriu, ou renomeou esse substrato de invisível que está na base de nossa vida.
Chamou isso de Inconsciente Coletivo, uma espécie de elo que nos une a todos. Quando uma criança de três anos é atropelada por um jet ski que um garoto de catorze anos foi fuçar, todos somos, de certa forma, afetados. Todos imaginamos o que vai ser do mundo com essa permissividade e impunidade cada vez mais entranhada em todos.
Os Físicos ainda falam em uma Ordem invisível no meio da característica caótica e imprevisível do mundo. Podemos chamar essa Ordem Profunda e Invisível do nome que preferirmos: Tao, Self, Anima Mundi, Deus.
Tem um pequeno texto de Borges que fala sobre essa Ordem Invisível. Conta essa história que um artista passou a vida inteita pintando, esculpindo, produzindo às cegas o que saía de seu coração. Quando ele morreu, foi dado a ele o presente de poder ver lá das alturas toda a sua obra. Olhando lá do céu ele pôde perceber que toda a sua arte, pintura e escultura reunida formavam o contorno de seu rosto.
Vivemos, então, pintando, sem saber, o contorno de nosso rosto. A Ordem Invisível vai juntando esses pedaços, em cada minuto de nossa vida. Acreditemos ou não nisso.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

O Quarto Cérebro

Eu sei que esse blog anda cheio de revelações bombásticas sobre o seu autor. Recentemente confessei de público que estava curtindo o BBB e até escrevi dois posts sobre ele. Repercussão zero. No churrasco de Domingo, fiz a revelação chocante para a minha família e até apostei em Fael para ganhar essa edição. Repercussão menos que zero. Ninguém sequer sabia quem era Fael. Diante de tanta indiferença, passo aqui para uma nova revelação: estou fazendo um bolo pronto, desses de Supermercado.
É coisa meio boçal de se fazer: junta dois ovos, meia xícara de óleo, duas de leite, bate com a colher até ficar com uma consistência pastosa, unta a fôrma e derruba a massa. Quarenta e cinco minutos depois, tira do forno e (rufar dos tambores): Tcharam! O bolo está pronto, cheio de grãos integrais, botei uma bola de sorvete encima, meu filho curtiu. Tudo muito óbvio, um psiquiatra mediano que acha o constructo da Depressão Bipolar uma grande cagada (assunto para outro post) consegue dominar o processo após ler as instruções umas doze vezes, mais ou menos. Hoje de manhã, enquanto escrevia outro post para esse concorridíssimo blog, deixei o bolo no forno mais tempo do que o necessário, queimando-o embaixo e encima. Tentei me convencer que ainda dava para comer, mas não deu. Nem com bola de sorvete. Quem curtiu foi a minha cachorrinha, Chiara, que anda muito borocoxô com a partida da Bunny (vide o post com esse título, de Janeiro), acabou comendo um bom pedaço do miolo do bolo, cheio de grãos e com pouco açúcar mascavo. Quase falei do Big Brother para ela, mas estava mesmo concentrada no pouco de bolo salvo. O resto foi para o lixo.
O fato é que mesmo uma coisa que demanda poucos neurônios em boa forma para se fazer, como um bolo pronto, de Supermercado, demanda alguns aprendizados. Se colocar muito leite, a massa fica mais fácil de bater, mas fica sem gosto quando pronta, além de meio mole. Se o bolo é tirado na hora certa, fica mais macio, senão seca mais rápido durante a semana. Se deixar esfriar completamente antes de tirá-lo da fôrma, é mais fácil removê-lo, então é melhor não ter candidatos famintos ao bolo na hora em que ele sai do forno. Vejam só que belo sistema de aprendizagem e de tentativa e erro, apenas para aprender a fazer um bolo pronto. Posso dizer que estou ficando bem melhor nessa pequena tarefa doméstica, apenas montando esse pequeno sistema de aprendizagem.
Não há nenhuma coisa que desenvolvamos em nossa vida que não obedeça a esse sistema que parece simples mas é extremamente complexo de repetição e aprendizagem. Já falei disso em outras ocasiões, mas não canso de repetir. O interesse gera a tentativa, a tentativa gera o erro, o erro gera o aprendizado. As pessoas mais sensíveis ao erro passam menos tempo tentando e mais tempo fugindo dos próprios erros. Se o bolo queimar, optam por comprar um bolo da padaria, apenas para evitar a frustração.
Uma parte importante do trabalho de um terapeuta é lidar com esses bloqueios. Eles são antigos, profundos e parecem bestas para quem vê de fora, mas insondáveis para quem os vê de dentro. Bloqueios afetivos, profissionais, sexuais, uso inadequado de substâncias, tudo depende da capacidade de entender o bloqueio e regravar no Cérebro outras experiências, mais favoráveis, inscrevendo um novo modo de fazer aquilo que antes parecia impossível.
Os medicamentos são usados quando os bloqueios são causados e piorados por disfunções de nossa neurotransmissão e esgotamentos de recursos e energia. Incrível como ainda chegam pessoas aos nossos consultórios com um profundo sentimento de fracasso e aquela frase: “Nunca pensei que um dia eu estaria aqui”. Às vezes, eu respondo: “Você não sabe o que estava perdendo”.

Carnevale

Essa época para mim é sempre de descanso. Sempre me imagino nos retiros de meditação, uma espécie de antítese do Carnaval. Um tremendo folião.
O pouco que sei sobre o significado do Carnaval é que esse nome deriva de Carne Vale, uma festa de comilanças e bebedeiras antes de um período de abstinência, que é a Quaresma. Esse período antecede a festa da Páscoa, uma preparação para o mistério de Morte e Ressurreição do Filho do Homem. Não deveria haver consumo de carne na Quaresma, então o Carne Vale eram festas para comer e beber tudo o que se tinha de direito nesses quatro dias que antecedem a Quaresma. Lógico que foram incorporados diversos rituais pagãos de embriaguez e fertilidade e talvez a sombra arquetípica de um deus grego, Dioníso, que após a embriaguez e o êxtase costumava fazer suas vestais estraçalharem os participantes da orgia. Esse estraçalhar deve estar manifesto no rasgar da fantasia no último dia da folia.
Estava ouvindo uma entrevista de um carnavalesco do Rio (engraçado como nessa época o título de “carnavalesco” dá ao seu proprietário um certo ar acadêmico, como se fossem usar becas e defender teses sobre o carnaval e quem tem ou não tem o samba no pé). O tal carnavalesco respondeu a uma pergunta sobre o enredo de sua escola, que iria falar do iogurte. Eu soube pelo repórter que o enredo havia sido comprado por um patrocinador, coisa que deve ser feita desde que o rei Momo é rei Momo, mas que essa escola particularmente fez às claras, assumindo publicamente o jabá. Disse o tal sujeito que seria uma boa ocasião para desmistificar e mostrar que se podia fazer bom Carnaval com um tema pautado. Eu só gostaria de saber quem pautou a escola de samba paulista que fez um enredo homenageando essa figura maiúscula de nossa cultura, Roberto Justus. Quem teve essa idéia, meu Deus?
Carnaval é para ser visto e se vender ao olhar do outro. As mulheres com seus peitos de bexiga (silicone francês de última geração), Roberto Justus vestido de rei no carro alegórico, as moças gorduchas tentando caber nos biquínis, tudo pede pelo olhar do Outro que está atrás das câmeras. Essa é a grande disputa na sociedade do espetáculo, a disputa pelos fragmentos de atenção que distribuímos, esgazeados pela profusão de bundas e plumas disputando nossos olhos entediados.
Lembro de uma entrevista de Gilberto Gil há alguns anos, feita logo após um desfile de um bloco baiano, ele estava muito emocionado por se sentir apenas um pedaço, uma partícula ou uma gota naquele mar de gente. Os seus olhos estavam marejados pela emoção de ser só mais um naquelas ondas e poder se sentir parte da emoção que unia as pessoas. Uma experiência de uma condição humana, de ser parte da massa, em suas aflições e visões compartilhadas. Era o famoso recuperando o seu anonimato, uma espécie de antítese do que é o carnaval. Nele, todos os anônimos buscam seus quinze segundos de fama. Acho que o verdadeiro deus do Olimpo por traz do Carnaval não seja mais Dioniso. Carnaval é a festa de Narciso.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Os Memes e os Complexos

A obra de Jung trouxe algumas contribuições para o nosso senso comum, com palavras que hoje fazem parte de nossa vida diária. Uma delas é o Complexo, definido como uma série de imagens, emoções e lembranças vinculadas a um determinado tema, ou idéia, ou Meme, que produz alterações em nosso comportamento e em nossas emoções.
Ontem foi comemorado o “Valentine’s Day”, o dia dos namorados americano. É tema de muitas comédias românticas, geralmente mostrando as moças sem namorado devorando caixas e caixas de chocolates pela falta de namorado e, mais do que isso, pelo sentimento de exclusão do Dia dos Namorados. O tema vira um Complexo, uma série de lembranças e associações com a presença ou ausência de namorados. Parece brincadeira, mas as datas que lembram ou tocam em complexos envolvendo solidão e exclusão são as mais perigosas para o risco suicida. São datas tensas para os psiquiatras.
Os Complexos de Jung estão dando lugar aos Memes. Memes, como eu já descrevi no post anterior, são imprintings de idéias que passam a ter vida própria e tentam de tudo para serem transmitidas, como vírus se espalhando pela mídia. Recentemente, um comercial de uma família, acho que alagoana, onde todos da família tinham amado determinado lançamento, menos a sua filha, que estava no Canadá. “Menos Luísa, que está no Canadá” virou hit do Twitter, notícia de jornal e transformou Luísa numa celebridade instantânea, apenas pelo humor involuntário do comercial meio jeca. Isso é um Meme.
Os Complexos se escondem em nosso Inconsciente, para comandar nossos atos mais do que gostaríamos. Os Memes lutam para serem propagados, replicados, considerados pelo maior número de pessoas. As dores, as tristezas, as micro frases que instalamos em nossos Twitters familiares, ou profissionais, podem causar muito estrago. Ambientes tóxicos produzem imprintings definitivos e feridas profundas. Um casal que se odeia, ou uma mãe que convoca as filhas para a sua guerra particular contra o marido, tudo isso pode plantar Memes de sofrimento e de angústia, que vão se manifestar na vida amorosa de suas filhas depois de décadas. Engraçado que temos uma cultura que tenta obsessivamente evitar o sofrimento e criar alegrias fugazes, mas não tomamos a medida óbvia de cultivar a gratidão pela vida em si. Acompanho alguns pacientes que superaram doenças oncológicas e situações de risco para a própria vida. Após a jornada de cura, conseguem encontrar a alegria da vida em si, do simples fato, milagroso, de acordar e testemunhar a Vida.
Podemos, é uma possibilidade e uma opção, transmitir os Memes de gratidão e elaborar os Complexos, em vez de vomitá-los nos outros.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Sobre Príncipes e Memes

Estou lendo um livro bacana sobre as partículas de Mente que andam soltas por aí. Após os genes, que há centenas de milhões de anos estão tentando se multiplicar e perpetuar, de alguns milênios para cá passaram a existir os Memes, partículas de idéias, mitos e sistemas de crença que vivem pelo planeta a procura de multiplicação e perpetuação. Como os genes, que se espalham como vírus, temos idéias e sistemas de crença virais que querem se propagar de cabeça em cabeça. Quando alguém te pergunta na rua se você “aceita Jesus como seu único salvador”, nenhum dos dois pode saber mas está imprintando um Meme potente, que teve em Saulo de Tarso, depois chamado de São Paulo, um grande precursor e divulgador. O primeiro marqueteiro cristão, que teve a lucidez de ir pregar para os gentios, já que o povo da tribo não conseguia assimilar os ensinamentos de Jesus. Aliás, outro Meme que me ocorre é o Meme racista que classifica os judeus de “assassinos de Jesus”. Quem matou Jesus foram os romanos. Como sou descendente de italianos, então posso dizer que tenho vínculo genético com os soldados e o sistema que crucificou o rabino de Nazaré. Devo ser classificado como “assassino de Jesus”? Esses são os memes, espalhados todos os dias, para o bem e para o mal.
O fato é que, desde a invenção da linguagem, quem detém o Meme predominante também detém o poder. Desde os xamãs que reivindicavam um contato direto com o Divino para ficarem com as mais bonitas moças da tribo que temos pessoas que propõe para si serem mais especiais que as outras e é desse sistema de concentração de poder e exclusão social que chamamos de Civilização.
Essa introdução serve para descrever um pouco dos temas principais desses posts, em que a Psiquiatria a Psicologia Analítica e a Subjetividade Pós Moderna se misturam em textos que podem falar de doenças, de futebol e, recentemente, do Big Brother.
Ontem falei de um quadro grave e cada vez mais prevalente, que é o Transtorno Borderline (ou Limítrofe) de Personalidade. Para quem não leu, são pessoas que se caracterizam pelo o que a Psicologia chama de ausência de base egóica. Traduzido para o Português, a falta dessa base faz com que a pessoa sinta-se sempre patinando, precisando de atenção e da presença do Outro para sentir-se existente. Isso se traduz por sentimentos de vazio e baixa autoestima e desespero para conseguir e manter um relacionamento, bem como pelo desespero de não conseguí-lo, gerando violência e autoagressão, algumas vezes suicídios. O quadro é mais predominante em mulheres, mas os homens estão começando a abraçar as características desse quadro, sempre de forma mais violenta. Mas o que isso tem a ver com os Memes? Somos bombardeados desde sempre por imagens, músicas, fotos e filmes com os Memes do Casal Feliz, ou pior, do “Felizes para Sempre”. Quando a vida se mostra como ela é, portanto, Real, as pessoas começam a perceber que a vida não é o que se mostra nos comerciais de Perú Sadia. Algumas refazem as suas expectativas e se movem, outras ficam presas no desespero de não conseguir realizar os projetos que aprenderam nos contos de fada e nos comerciais de perfume.
A Psiquiatria e a prática clínica são pautadas e reagem a essa subjetividade imposta, normalmente para vender mais. Somos donos ou vítimas dos Memes. Não há posição intermediária.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Vazio Afetivo e Transtorno Borderline de Personalidade

A Psiquiatria vem tentando nos últimos anos sair de um diagnóstico categorial para um diagnóstico dimensional. Isso significa deixar a descrição pura e simples de doenças e quadros clínicos, o que pode levar a várias doenças parecidas com nomes diferentes, apenas para o autor tentar dar o seu nome para uma determinada doença, uma forma meio estranha de se atingir a Imortalidade. Procura-se então descrever os transtornos como espectros sindrômicos; esse palavrão quer dizer que há uma diferença de grau e de expressão na população de determinados sintomas. Dos sintomas leves aos quadros muito graves. Quando a esposa chega em casa e vê a tampa da privada levantada, pode gritar com o marido que imagina que o mundo inteiro tem e usa um pênis para fazer xixi, ou pode tentar acertá-lo com o tampo da privada, numa tentativa de pintocídio. A diferença do grau da resposta pode ser determinada pela distância entre estar cansada/mal humorada após um dia de trabalho ou estar com uma irritabilidade assassina, decorrente de uma doença. Nem sempre é fácil fazer a distinção, e é isso que os psiquiatras tentam fazer todos os dias: traçar um limite entre um quadro transitório e uma doença instalada.
Falamos muito nesse blog sobre os Quadros Obsessivos Amorosos, um nome que eu inventei para a preocupação e o comportamento cada vez mais obsessivo das pessoas com seus sucessos e sobretudo com seus fracassos amorosos. Há um extremo desses quadros obsessivos amorosos, não tão engraçado: os Transtornos de Personalidade do tipo Borderline.
Hoje somos assaltados por histórias e notícias de pessoas que cometem abusos ou violências impensáveis quando se sentem rejeitadas pela pessoa amada. Basta qualquer pessoa medianamente informada para lembrar de espancamentos, perseguições e assassinatos cometidos em nome do Amor. Muitos desses episódios tem homens ou mulheres com traços Borderline de Personalidade. O Transtorno Borderline se caracteriza por uma Hipersensibilidade na relação interpessoal; a pessoa tem um horror impressionante a qualquer tipo de rejeição ou abandono, real ou imaginária. Quando a relação está apenas começando, o Borderline de plantão enche o ser amado de checagens e questionamentos para saber se está pensando/planejando abandoná-lo(a). Isso pode virar um inferno de cobranças e perseguições. O quadro fica pior quando o objeto de amor finalmente se esgota e quer se separar da pessoa, nesse momento já desesperada e obsediada pelo desespero: a perseguição pode nesse ponto se transformar em tragédia e lemos sobre isso todo dia nos tablóides.
Outra característica dos Borderline é a mudança abrupta de estado afetivo. É muito comum que as pessoas vivam aterrorizadas perto de alguém assim, pois nunca se sabe quando ela vai explodir ou gargalhar. Aliás ela pode passar do riso à cólera em alguns segundos, deixando abismada a outra pessoa, que não sabe o que esperar. Mas talvez o achado mais dramático na vida dessas pessoas seja a sensação horrível de vazio e tédio com a própria vida. Essa sensação de vazio que pode viriar crises intensas de angústia. A espiral da angústia pode gerar comportamento de autoagressão e automutilação. Não é incomum a tentativa suicida.
O Transtorno Borderline está muito vinculado a um senso de Ser, de valor próprio muito danificado na vida e formação do sujeito. Achar alguém que a ame ou aceite é uma questão de vida ou morte, pois a pessoa não se sente existente se não for reconhecida e amada pelo Outro.
A Psiquiatria pode encontrar todo tipo de medicamento para auxiliar a pessoa a lidar melhor e transformar os seus sintomas. Mas nenhum remédio pode oferecer a esse paciente a sensação de que a sua vida vale a pena, independente de seu sucesso ou fracasso amoroso. Esse senso nós temos que contruir todo dia e oferecê-lo a nossos filhos: o senso de que nossa vida tem um valor interno, antes que o mundo exterior nos diga o que acha de nós.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Big Brother e a Biruta

A minha carreira como palpiteiro de Big Brother começou muito mal. Gostei de uma loirona perua, Fabiana, que eu achei que estava se posicionando bem no jogo. Como é mais velha que o grupo, ocupou o lugar metafórico de mãe, embora seus decotes e vestidos sugiram outro tipo de metáfora. Nas poucas vezes em que assisti a edição da noite com meu filho, achei que ela falava com o coração, criando empatia com o público e o grupo. Julgamento prematuro. Ontem ela salvou-se do Paredão com um cara que meu filho curtia, Ronaldo. Deu um espetáculo de comemoração brega e solitária, gritando que a ”a voz do povo é a voz de Deus”. O grupo não participou da sua euforia e já sabe que ela não fala com o coração. Mas ela continuou gritando sobre a voz do povo. Isso me lembrou uma passagem de Nelson Rodrigues. Eu sei que misturar Nelson Rodrigues com Big Brother é esquizofrenia cultural, mas paciência.
Nelson Rodrigues era filho de um proprietário de jornal, Mário Rodrigues, nas primeiras décadas do século passado. O jornalismo era uma espécie de linchamento injurioso de oponentes e criação romanceada de falsos dramas. Bem, isso não mudou muito desde então. Para uma notícia de um incêndio de uma casa antiga no centro, o repórter inventava um rouxinol, cantando na sua gaiola até ser consumido pelas chamas. Ninguém imaginava que era pouco provável um rouxinol cantar no meio de um incêndio. Dentro desse espírito de folhetim, o jornal de Mário Rodrigues acusou sem provas uma senhora da sociedade de adultério. Provavelmente, com razão. O fato é que a mulher foi até o jornal procurar pelo dono, não o encontrou. Perguntou pelo seu filho mais velho, não estava. O segundo filho estava, e tomou um tiro à queima roupa no abdômen, ferimento letal na época. Morreu dois dias depois. O julgamento foi alguns meses depois, a mulher foi absolvida e carregada nos braços pela opinião pública, que apoiou a lavagem de sua honra em sangue. O jovem Nelson pensou que a Opinião Pública é completamente louca. Pois é, Fabiana. A voz do povo não é a voz de Deus. Ela muda de direção como uma biruta soprada pelo vento, para cá e para lá.
As pessoas que se dispõe a serem expostas em seus medos e seus ridículos nos Reality(?) Shows perdem uma importante perspectiva: o teatro que estão encenando não é para ganhar apoio de seu grupo, fazer conchavos e combinar votos. O fiel da balança é a biruta da opinião pública, virando para um lado e outro toda semana. Ronaldo é estrategista, boa pinta, tinha liderança dentro do grupo. Perdeu-se quando, ferido, atacou quem votara nele, acusando-os de “fazer conchavos” (sobre o que é o jogo, afinal, boas intenções?) e, pior, acusou Fabiana de se esconder atrás de seu filho. Ela retrucou que ele não tem idéia do que é um amor incondicional. Pronto. Ele estava ferido de morte. Saiu um bom candidato, sem entender que o seu diálogo não era com o grupo adversário, nem com a loura teatral, mas com os olhares ocultos além das câmeras.
Estou começando a entender melhor a brincadeira, sem o nariz torcido da classe média alta ou a empáfia dos intelectuais. Mas não faço previsões. Só imagino que ganha quem lembrar que o olhar que vale é de quem não tem voz, que é o povo.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

O "Gente Boa"

No início dos anos 90 eu era Preceptor do Instituto de Psiquiatria, o que significava que eu organizava, dava aulas e notas no curso do quinto ano da Faculdade de Medicina da USP. O curso era bem avaliado, fazendo o professor responsável bater no peito nas reuniões da Congregação, orgulhoso e chamando para si o mérito de um Curso que ele nem sabia do que se tratava. Mas essa é outra história. A lembrança dessa época me ocorreu por um pequeno experimento que fiz com meus alunos. Comecei a testar qual o tipo de preceptor traria os melhores resultados: o Paizão, o Gente Fina, o Colega (afinal, eu era uns três, quatro anos mais velho que aqueles alunos) e, finalmente, o Nazista, o Superexigente. Eu apresentava o personagem junto com o curso, na hora de colocar como seria a avaliação e o que eu esperava deles como grupo. O estágio era composto por doze grupos diferentes que passavam um mês lá comigo, então deu para testar muitas fórmulas com as minhas cobaias. Lamento dizer que o melhor rendimento era nas turmas onde eu era o Nazista e o Superexigente. Melhores provas, melhores trabalhos finais. Felizmente não havia sido lançado “O Monge e o Executivo” ou outro best seller exaltando líderes servidores ou “só o amor constrói”. Obviamente que ninguém saiu do estágio direto para a internação na Psiquiatria, a pressão era dosada e adequada para fazer os caras se interessarem por uma matéria que tradicionalmente gostariam de cabular. Mas lamento dizer que o Chegado e o Gente Boa produzia boas avaliações de minha pessoa e aproveitamento pior da matéria. Que me perdoem os Construtivistas.
Estava lendo sobre formas de manipulação das pessoas usando técnicas de impressão de idéias, algo que deve ser matéria obrigatória em cursos de Publicidade. Um tipo de condicionamento muito utilizado é o condicionamento por Dissonância Cognitiva. Para resumir, esse método cria pessoas dóceis através da pressão e do desconforto. Não conheço mas tenho uma forte impressão que as técnicas ensinadas aos “Vendedores Pitbull” passam por esse tipo de estratégia. É como se a pessoa comprasse por medo do vendedor. A Dissonância Cognitiva toca em um mecanismo evolutivo profundo, o Módulo de Dominação e o de Submissão incrustrado em nosso Cérebro Emocional. Em situações de fragilidade esse módulo é ativado, fazendo o sujeito virar um autêntico fanático em algumas semanas. As lavagens cerebrais passam exatamente por esse princípio: isolamento, privação de sono, estímulos desagradáveis e assustadores até o “discípulo” apegar-se profundamente a um grupo ou a um líder que vão salvá-lo do medo e do horror.
Na prática clínica, ouço muita gente se perguntando por que continuam em relacionamentos disfuncionais e desagradáveis, seja no casamento, seja em empregos onde aceitam maus tratos e humilhações nunca antes imaginadas. Estou lá por coragem ou por covardia? – perguntam. Lamento dizer que por habituação. Ou, se eu tiver que escolher um termo, por covardia. Nosso Cérebro aprende pela formação de hábitos e gosta de um ambiente previsível. Outro dia o Zé Simão (jornalista e comediante da Folha de São Paulo) perguntou para sua empregada o que ela faria com o prêmio da Megasena, ela respondeu que compraria um ônibus só seu, para não ir mais apertada. Essa é a força da habituidade na nossa vida: não chegamos nem a imaginar cenários diferentes, a vida parece ser aquilo, sempre.
Como tudo o que precisamos mudar necessita de Aprendizagem e criação de outros campos cognitivos, o que eu posso sugerir é que as pessoas procurem novas experiências, novos empreendimentos e explorações de possibilidades, começando por reagir a todo tipo de abuso. No final do curso eu apontava para os meus alunos que o aprendizado é um prazer e uma exploração de novas fronteiras. Eles estavam quase completando o curso e não era mais necessário um Preceptor fascista para melhorar o seu rendimento. Eles deveriam ser o líder que estabelece os seus próprios objetivos. Mas concordo que os líderes e os parceiros que mais nos cobram tiram mais de nosso esforço. Deve ser por isso que os líderes e namorados “bonzinhos” acabam se dando mal. E as mulheres "boazinhas" terminam abandonadas. Eu sei que o tema é polêmico e convido os leitores(as) a opinarem.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

O deus Mudança

Vanderlei Luxemburgo foi demitido ontem do Flamengo. Foi a sua quarta demissão seguida, ele que foi o maior treinador do país nos anos 90, mas a sua carreira está em franco declínio desde a sua malfadada passagem pela seleção brasileira, no princípio dos anos 00. Ontem deu uma entrevista coletiva atestando essa fase melancólica, tentando atingir os autores de sua demissão. Em um raro momento de sinceridade, descreveu o seu esforço em se reciclar e compreender o atual futebol, onde os clubes são apenas um bonde onde os jogadores sobem e descem, procurando melhores contratos e visibilidade na mídia. O técnico não é mais a estrela, e se trombar com o cara que traz anúncios para a camisa, no caso Ronaldinho, dança. Simples assim.
Luxemburgo pode não saber, mas enunciou nessa reflexão uma grande questão de nossa vida, muito cara ao Budismo: a característica transitória da vida e as transformações constantes que exigem a nossa capacidade de percepção, antes, e adaptação, depois.
Estava vendo um filme francês dirigido por Abbas Kiarostami, cineasta iraniano reverenciado pelos que admiram um cinema reflexivo e hard cabeça. O nome do filme é “Cópia Fiel”. Tudo bem que eu escrevi sobre o Big Brother ainda nessa semana, mas posso encarar um Kiarostami sem susto. O filme começa mostrando um ensaísta e crítico de arte que foi lançar o seu livro na Itália. Ele conhece, após a sua palestra, uma belíssima francesa, personagem de Juliette Binoche, com quem sai para tomar um café. Os dois percorrem pequenas estradas e diálogos longuíssimos, daqueles que meus filhos param para ver um pouco e perguntam: “Que p...de filme é esse?”. Pois durante o café o cara sai para atender o celular e a moça começa a conversar com a atendente do café, que pensa que são casados. Ela aparentemente embarca na mentira e fala sobre o seu suposto marido, que vive para o seu trabalho e é completamente ausente da vida de seu filho e do casamento. Quando ele volta, ela conta de sua brincadeira, ele embarca na mentira todo sem graça, eles saem do café como se fossem casados. Nesse ponto o filme dá uma guinada, os personagens mudam e eles passam a conversar e brigar como um casal que está celebrando quinze anos de casamento, em crise, com a esposa tentando se sentir novamente desejada e o marido irritado no meio de uma DR (discussão de relacionamento) infinita. Durante um bom tempo o espectador fica em dúvida se eles estão brincando ou se o autor está tirando com a nossa cara. Eles terminam como um casal que tenta se encontrar em uma pequena cidade da Toscana. Os mesmos personagens e atores, que estavam dentro de um filme, com uma história e sem maior aviso, passam a desempenhar outros papéis. A parte que interessa a esse post é uma passagem em que o estranho casal se cruza com um outro casal, na hora de seu casamento, contrapondo a esperança e euforia de um casal recém casado com outro já calejado com quinze anos de convivência. Ele coloca para a esposa que o amor continua, ou melhora, mas que muda, as pessoas mudam, os sentimentos mudam. Causa muita infelicidade ficar revivendo, ou tentando reviver, as emoções de vários anos que ficaram para traz. O que mantém o amor é a atenção, ele menciona no meio da briga. Mas as pessoas mudam, a vida muda.
No final de 2011 coloquei no blog um texto de Jorge Luis Borges. Um de seus aforismas dizia que na vida, construímos sobre areia achando que é pedra, e que, de fato, devemos construir como se fosse pedra a areia.
Esse é um "mandamento" difícil de compreender e mais ainda difícil de seguir. Talvez o que possa transformar as areias do tempo seja a capacidade de construir com atenção plena o que vai inevitavelmente se transformar. Difícil é ver as coisas indo embora e perceber que nem estávamos por lá quando poderíamos.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

O Campo da Mente

Pode parecer estranho, mas é fato científico comprovado só há poucos anos a hipótese de que a Mente modifica o Cérebro. Desde que o mundo é mundo que sabemos que nossos pensamentos interferem em nosso corpo, mas havia muita gente duvidando. Ainda. Nossos pensamentos ativam, ou não, determinadas regiões do nosso Cortex ou Subcortex Cerebral, criando áreas mais ou menos ativadas. Pensamentos de medo ou preocupação ativam as áreas do Cérebro relacionadas ao medo, criando redes neurais de medo. Como o medo foi criado evolutivamente para proteger a espécie, as memórias traumáticas são gravadas muito mais profundamente em nossas memórias do que as vivências comuns, do dia a dia. Uma queixa que as mães e os pais podem fazer a respeito das técnicas de psicoterapia é que elas visitam algumas cenas de dor que toda história familiar tem, e não acessa uma profusão de boas lembranças e experiências, que parecem menos importantes. E tem toda razão. Evolutivamente, lembramos melhor de conteúdos que nos sirvam para a sobrevivência, então é mais fácil lembrar da surra do que do beijo.
Somos estimulados nessa época de hipermídia a termos mais e mais medo. Medo vende jornal e enriquece apresentadores de programas popularescos. Quando isso vira uma epidemia de Doença do Pânico e outros transtornos, as pessoas se perguntam por que. Algumas imaginam que é tudo uma ficção criada pela Indústria Farmacêutica e propagada pelos psiquiatras no sentido de se medicalizar todos os sentimentos humanos. Se a velha senhora está chorosa após a morte de seu companheiro de décadas, então manda logo um Prozac junto com o chazinho. A caricatura serve, de fato estamos medicalizando muita coisa, mas o fato é que as pessoas estão cada vez mais fabricando as próprias doenças através das sementes que plantam na própria Mente. O medo do futuro, a raiva contida, os planos frustrados, tudo isso vai ativando mais e mais sofrimento, mais e mais fantasmas dentro da alma humana.
A nossa Mente é um campo quase infinito de registros. Uma quantidade bem menor fica realmente impresso nas pontes de RNA entre os neurônios e uma quantidade ainda menor pode ser recuperado quando precisamos das lembranças. Ontem um cliente querido me falou de ser invadido em alguns momentos por uma sensação de imensa alegria e plenitude, como se tudo estivesse certo. A grama verde, os colegas, a esposa, tudo lhe parece pleno, brilhante, feliz. Eu recomendei que ele não descreva essa sensação para muitos psiquiatras, pois pode acabar internado (rsrsr). Depois filosofamos que esse deveria ser o nosso estado normal de alma: apreciar a incrível beleza das coisas que estão debaixo do nosso nariz e não vemos, tão imbuídos que estamos de nossas tarefas e objetivos. Os estudos da Neurociência demonstram que podemos aumentar a nossa capacidade de prazer estimulando as nossas áreas de prazer. Talvez a alegria de cada dia pode ser semeada. E colhida.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Ok, Você venceu, Big Brother

Devo confessar de público que, depois de doze edições, estou finalmente assistindo o Big Brother. Sempre achei que fosse meio que uma tarefa obrigatória, já que os personagens ficam desfilando nas sessões e eu estou sempre por fora do assunto. Ontem ouvi uma longa explanação sobre como uma cliente gosta de Laisa, a gauchinha porreta, por sua personalidade decidida, etc, etc... Hoje já sei quem é Laisa e como deu um belíssimo pé na bunda de seu bombado ficante, Yuri, em cadeia nacional. Veja só, Big Brother também é cultura. Ontem acompanhei o texto chatérrimo de Pedro Bial sobre a evolução dos hominídeos e seus nomes, do Homo sapiens ao Homo ludens, para concluir que a gorduchinha (parecida com a Welma do Scooby Doo), Mayra, estava sendo excluída com 74% dos votos, pois havia parado de jogar. E quem para de jogar, morre. Lindo, filosófico. O que foi estranho é que durante a votação eles fizeram algumas vinhetas destacando cenas do oponente, Fael, sua simplicidade, sua caipirice, sua generosidade com o amigo. Na sala da "casa mais vigiada do país", Mayra estava com um vestido que a fazia ficar parecida com um bombom Sonho de Valsa, enquanto Fael estava ao lado dos amigos, com um vistoso chapéu de caubói. Não precisa ser psicoterapeuta nem antropólogo para saber quem iria ganhar. O Brasil inteiro votaria com o caubói, inclusive com a cena registrada no Inconsciente Coletivo de outro caubói, que ganhou o jogo há poucos anos. Mas não deixo de registrar que Welma, digo, Mayra, foi operada ontem, sem anestesia.
Quando eu fazia Residência, nos anos 90, lembro de um projeto, muito legal de que participei, no setor de Psicoterapia. O problema é que uma das coordenadoras tinha acabado de chegar de uma pós no exterior e estava empolgada com a idéia de filmar as sessões, para embasar melhor a pesquisa. O futuro junguiano que aqui vos tecla deu cinco pulos na cadeira: se for filmado, não é mais psicoterapia. O grupo me olhou com aquela cara de "fazem isso nos Estados Unidos e na Europa e vem um psiquiatrazinho tupiniquim usando fraldas dizer que está errado". Mas é claro que está errado. Se o paciente está diante da câmera, não está mais se dirigindo ao terapeuta, nem a si mesmo. Ele está falando com o mundo espreitando naquela lente. O terapeuta não está mais ouvindo e criando um campo psíquico acolhedor, está desempenhando o papel de terapeuta compenetrado e cheio de habilidades, para os seus pares que vão farejar cada inflexão de voz "errada". Ou seja, deixa de ser um encontro analítico para virar um Big Brother, um show, um encontro humano de plástico. Felizmente para mim, consegui participar do projeto sem a tal câmera, que não fez nenhuma falta.
Comecei a acompanhar essa pantomima por conta de meu filho, que esse ano tomou coragem e assumiu, diante de toda a família, que adora o BBB. Assisto os resumos com ele, o que é uma delícia. Daqui a pouco tempo ele não vai querer o pai assistindo nada do lado dele, então aproveito. Ele aguenta os meus comentários na medida do possível, só me manda calar a boca algumas vezes. Ontem eu expliquei que a morena estonteante, a Laisa, fica fazendo a sua dancinha matinal, com a sua calcinha de renda cavadíssima, olhando o espelho, não por ser uma narcisista irremediável, mas já está criando uma marca que será explorada em alguns meses em uma edição da Playboy. Há pouca ou nenhuma sinceridade naquilo. Aliás, se adotarmos o critério do Pedro Bial, de eliminar quem não está jogando, então é melhor fazer um paredão gigante e mandar todo mundo para casa. Todos estão com o breque de mão puxado, sem se arriscar, sem se queimar, tentando parecer os mais legais e sinceros possíveis.
Conflitos de plástico, intrigas mornas e troca humana zero.
Vou fazer a minha aposta, mesmo sendo um novato em BBBs: quem vai ganhar é a loura, um pouco mais velha, acho que seu nome é Fabiana. Ela é afetiva, carinhosa, já chamou para si a personagem/arquétipo de mãe da casa e quando fala e se coloca, sempre o faz com o coração. Chora com quem está saindo, vibra com o grupo e não arruma encrenca. É a mais sincera e empática. Só não ganha se todos se unirem para derrubá-la. O meu filho está torcendo pelo Yuri. Façam as suas apostas.