sexta-feira, 31 de agosto de 2012

A Donzela Venenosa

Tem um programa na Rádio CBN em que cronistas fazem comentários sobre assuntos aleatórios. Um deles é o Carlos Heitor Cony, um toque entre divertido e rabugento dentre os outros dois comentaristas. A parte engraçada é que o Cony cita exemplos de casos da Marilyn Monroe ou Getúlio Vargas como se tivessem ocorrido na semana passada. O tempo vai passando e as referências culturais vão se mantendo. Uma vez eu citei uma música da Carmen Miranda para um paciente sexagenário e ele ficou extasiado com a minha cultura geral. Quando eu nasci a Carmen Miranda já tinha partido há muito tempo. Para dizer a verdade, a música citada tinha sido regravada por Caetano Veloso, num show maravilhoso: "Disseram que eu voltei americanizada/Com um burro de um dinheiro/Que estou muito rica...". O fato é que a citação acabou pegando bem e o tiozinho, saturado dessa Psiquiatria em que os médicos ficam horas preenchendo escalas de avaliação, adorou o toque nostálgico, como se tivesse baixado o Carlos Heitor Cony lá na sala.
Faço esse preâmbulo porque vou escrever esse post a pedido de um cliente que pediu para falar um pouco mais da "Prisão Sexual" que se encontrava. Após um divórcio doloroso, conheceu uma moça alguns anos mais nova e se apaixonou. Após um tempo de felicidade, os problemas apareceram, com mudanças de humor, chantagens e abusos da parte da moça que foram levando o relacionamento, apesar de todos os esforços, para um impasse. Infelizmente, então, o relacionamento terminou. Tem uma música belíssima de João Bosco (observem o meu efeito "Carlos Heitor Cony": estou falando de um CD de vinte anos atrás) em que ele descreve como esqueceu da mulher outrora amada, conseguiu superar a separação. Mas quem se lembra da amada dentro do poeta é a Memória da Pele. A metáfora é que a lembrança borbulha na sua cabeça, como o champanhe que tomaram na mesma taça. Bons tempos em que o poeta fazia uma música que fazia o cheiro da mulher amada atravessar nossas narinas, heim? Hoje é tudo cheio de "Ai se eu te pego" para cá e para lá. Os amores estão descritos de forma sempre literal, sem espaço para a Memória da Pele. Pois é essa incrição que faz o homem estremecer de dor de cotovelo quando vê a foto da amada no Facebook (que espia furtivamente) ou recebe uma mensagem diluída no mail list da ex.
Quando ele me pediu para escrever sobre isso, me veio uma referência ainda mais "Carlos Heitor Cony" ainda: uma música dos anos 80, de um obscuro cantor chamado Ritchie, que era "Menina Veneno". Ritchie se inspirou em um trecho de um livro de Carl Jung e seus colaboradores, "O Homem e seus Símbolos", onde era descrito um mito ou lenda, da "Donzela Venenosa", que atacava sexualmente os homens durante a noite, roubando também a sua alma. Ritchie traduziu o mito com os versos "Meia Noite no meu quarto/Ela vai subir/Ouço passos na escada/Vejo a porta abrir (...)/Cortinas de Seda/O seu corpo nú". Veja, uma música brega dos anos 80 parece alta poesia em tempos de "Eu quero tchú, eu quero tchá".
A "Donzela Venenosa" representa a força da Anima, o nome que Jung deu para a nossa Alma, muitas vezes projetada em mulheres merecedoras, ou não, dessa paixão. Como as sereias que arrastavam os marinheiros para a perdição, no fundo do mar. A Donzela Venenosa se aproveita de seu fascínio e sua habilidade, inclusive de envolvimento sexual do parceiro.
Nessa época em que as mulheres chamam para si todo o sofrimento do desencontro amoroso, o homem também sofre em sua pele e sua lembrança a ausência da mulher amada. Como o herói da Odisséia, Ulisses, para se afastar e resistir às sereias, pede para ser amarrado no mastro do navio para não ser arrastado para o canto fatal, o homem deve seguir para longe do amor que o envenena.
Não é um percurso fácil, ainda mais quando as sereias cantam nas redes sociais e nos torpedos.

domingo, 26 de agosto de 2012

Ciência Pop e Academia de Bolso


Hoje aconteceu uma coisa inusitada: o entregador deixou a Folha de São Paulo na minha porta. E olha que eu sou assinante desse jornal. Na verdade, aqui em casa assinávamos os dois grandes jornais. Eu gosto da Folha, minha mulher do Estadão. O problema começou quando cancelamos a assinatura do Estadão. Os caras continuaram entregando. Esperamos um tempo, até que uma moça de um desses Call Centers terceirizados ligou reclamando que não estava sendo pago o Estadão. Avisamos que a assinatura havia sido cancelada, por favor parem de entregar. Ela grunhiu alguma coisa e desligou. O jornal continuou sendo entregue. Ligamos para reclamar da entrega indevida, dessa vez caímos em outro Telemarketing onde funcionários mal remunerados passam o dia ouvindo desaforos. Prometeram que iriam corrigir o erro. Aí começou o inferno. Podemos concluir, cientificamente, que há 3 entregadores diferentes nessa região. Como eu cheguei à essa conclusão? Fácil. Um está entregando só a Folha, um está entregando só o Estadão e outro está entregando os dois. Todo dia de manhã temos a agradável ou desagradável surpresa, mas o fato é que temos o efeito “Shuffle” dos tocadores de Mp3 em nossa porta. Estou pensando, a título de curiosidade científica, em parar de pagar a Folha para ver o que acontece. Vivemos hoje reféns na selva dos Call Centers. Reclamar não adianta, a reclamação nunca chega a quem é devido. Então que tal tirar proveito desses oceanos de incompetência e desinteresse humanos para ver se fico alguns anos recebendo jornal de graça na minha porta? O máximo que pode acontecer é haver um clarão de inteligência nesses verdadeiros navios negreiros corporativos e eles pararem de entregar os jornais aqui em casa, o que, no momento, me parece uma possibilidade remota. Nesse caso, vou recuperar a alegria de ir até a banca com a minha cachorrinha para comprar o jornal de Domingo, junto com aquelas coleções inúteis que eles vendem. Asinatura digital nem pensar, que sou um homem do século passado. Gosto de manchar os dedos na tinta.
Todo esse preâmbulo foi para destacar uma matéria na Folha sobre o fenômeno Pop dos jornalistas e cientistas que se transformaram em uma espécie de autores de autoajuda de alto nível, tornando os artigos e o saber elitizado algo mais fácil e acessível ao público não especializado. Verdadeiros padres Marcelo da Ciência, discorrendo sobre assuntos que não conhecem muito bem, mas tem um bom palpite. O expoente dessa Ciência Pop é o jornalista Malcom Gladwell que eu já citei em alguns posts e que curto muito, aqui entre nós. Não acho que ele seja mal embasado e faz afirmações que doem nos calos de muita gente. Uma delas é sobre um estudo sobre a aplicabilidade e os resultados das mamografias no diagnóstico do Câncer de Mama. Ele levanta, com razão, a diferença importante de avaliação dos diferentes serviços e radiologistas na interpretação do mesmo exame, gerando falsos positivos e falsos negativos. Levanta inclusive a diferença de sensibilidade entre a polpa digital, em bom Português, a ponta dos dedos, tem uma sensibilidade muito maior do que o olhar que precisa vencer todo tipo de artefato para identificar nódulos verdadeiros ou falsos. Lógico que os especialistas não vão dar pulos de alegria a respeito do assunto. Em Psiquiatria já fomos vítimas recentes dessa Ciência Pop: um jornal inglês publicou na matéria de capa uma Metanálise sobre os estudos de eficácia de antidepressivos. O jornalista propagou, baseado em um estudo, que os antidepressivos funcionam como placebo em pelo menos metade dos quadros depressivos, os leves e moderados. São claramente necessários e eficazes apenas nos casos mais graves e com traços genéticos definidos. Pronto. Lá vou eu passar algumas semanas rebatendo os cientistas do Dr Google. Pacientes que tiveram uma mudança radical em sua qualidade de vida após o tratamento de quadros depressivos leves e que foram interpretados como “frescura” ; “falta de tanque de roupa para lavar” (dois diagnósticos leigos bastante comuns) queriam mandar e-mails furibundos para o jornalista. Mas, quer saber, esse artigo jornalístico, de um cara muito disposto a desmascarar o establishment psiquiátrico, levantou uma boa lebre. Alguns quadros depressivos leves respondem bem tanto a antidepressivos como a exercício físicos. Nos casos mais leves, esses medicamentos são uma espécie de Academia de bolso. É mais fácil a pessoa tomar a pílula do que calçar o tênis; é chato reconhecer, mas é assim.

sábado, 25 de agosto de 2012

Liderança e Redes Neurais


Outro dia comecei a receber torpedos enviados por engano ao meu celular. O meu número é peculiar, cheio de noves e setes e não é incomum alguém digitá-lo errado. Os tais torpedos era de uma certa moça que cumprimentava a Cléo por ter atingido as suas metas. O e-mail era assinado por uma tal Claudia. Depois de algumas felicitações e mensagens erradas interrompendo as minhas consultas, acabei mandando uma mensagem avisando que eu não deveria estar no mail list de seu celular. Não sou a Cléo, nem mesmo depois da meia noite. A moça ignorou a minha advertência. Continuei recebendo as convocações para reunião no Shopping Eldorado e outras mensagens de bom dia e de afeto caloroso de minha suposta “Líder”: desde de palavras de incentivo, do tipo “Vamos arrebentar”, até afagos do tipo “Equipe linda!”. Imediatamente perdi a minha própria subjetividade e passei a ser um cara plural, diluído na “Equipe linda!”, que eu não sabia qual era nem o que fazia. Comecei a bolar uma série de maldades escritas para a minha “Líder” afim de demovê-la de me mandar novas mensagens de incentivo. Poderia dizer que as suas técnicas motivacionais eram primárias e que, provavelmente, muitos membros da equipe, se tivessem mais de doze anos de idade, a achariam uma chata, como eu achava. Poderia me identificar como psiquiatra, o que deixa sempre as pessoas muito intimidadas, como se o psiquiatra pudesse sempre revelar as suas neuroses, suas taras e pontos fracos e avisar que mandaria uma ambulância do resgate para imobilizá-la se continuasse recebendo aquelas mensagens. Poderia optar pela paranóia, dizendo que eu iria passar as informações para as equipes concorrentes se não fosse excluído. Finalmente acabei mandando uma mensagem educada, falando que sou o Marco Antonio e não a Cléo, que estava recebendo as mensagens que ela enviava à sua equipe de forma indevida e que por favor ela retirasse o meu número de sua lista. Não houve resposta, mas Claudia dessa vez escutou os meus apelos e não recebo mais as palavras de incentivo de minha “Líder”. Às vezes sinto falta de seus elogios e incentivos, mas foi ruim enquanto durou. Esses torpedos levantam uma questão sobre a natureza da liderança e da motivação. Garanto que a Claudia tem uma equipe mais feliz e motivada do que uma líder paranóica e autoritária teria. Mas essa é a natureza da liderança?
Para a empresa, o líder é aquele cara que consegue fazer uma equipe cumprir as tarefas. Se ele vai usar métodos mais ou menos elogiáveis, não há problemas. Entregue o que tem para entregar que ninguém vai mexer uma palha contra o gerente, supervisor ou coordenador.
De vez em quando, vem algum palestrante contar uma piadas, um “causo” (ou, no jargão corporativo, um “case” de sucesso) e alguma dinâmica de grupo que fará as pessoas saírem da palestra abraçadas e cantando “Andança” (me desculpem os menores de 40. “Andança” era uma música sensacional para acampamentos – Me leva amooorrr...). No dia seguinte, volta o chicote no lombo da galera. Bater meta ou morte, e não me venha com esse papo de autoestima.
A verdadeira liderança é de uma pessoa que estabelece um trabalho transacional, negociando com o andar de cima e mantendo coeso o andar de baixo. A circulação de informação e o estabelecimento de relações de confiança são fundamentais nesse processo. Puxar o saco de quem está acima e descer o relho em quem está abaixo é a garantia de uma equipe desmotivada e doente. Uma equipe é uma estrutura em rede, quando uma parte não funciona, todo o grupo sofre. Um líder precisa ter a visão da rede e do que deve fazer para mantê-la funcionando, pois vai enfrentar sempre crises internas e externas, criando visão para achar os atalhos e encontrar os caminhos. A Claudia consegue mandar estímulos positivos, para a Cléo e para a equipe. Ela erra um pouco na mão ao escrever “Equipe linda!”, caindo no piegas e parecendo aquelas tias gordas puxando as nossas bochechas: “Como cresceu!”. Se ela tem a visão da rede e consegue criá-la, então está no caminho.

domingo, 19 de agosto de 2012

Neuroplasticidade e Psicoterapias


Outro dia estava lendo os comentários desse blog e fiquei assustado com um Anônimo que comentou um post sobre livros de autoajuda, particularmente “O Segredo”. O cara (vamos assumir de forma sexista que aquele tipo de imbecilidade cabe melhor num homem) entrou nos comentários e espinafrou todo mundo. O autor, que era um babaca metido que estava atacando os livros de autoajuda. E uma das pessoas que comentaram o post também levou uns coices aleatórios. Confesso que fiquei mexido. Esse blog quase secreto teria caído na boca do povo e já começava a atrair malucos aleatórios da internet? O meu consultório começaria a receber trotes ameaçadores? E, para mim o pior, eu estava sendo atacado pela interpretação exatamente oposta ao que estava escrito: o post não atacava o livro (que eu não li, eu vi o filme), antes mostrava que ele tinha as suas aplicações práticas. Depois eu acabei entrando em outros blogs e outros comentários e pude observar que esse fenômeno das metralhadoras giratórias é bastante comum: os caras não entendem o que está escrito e já saem atacando o autor, a humanidade, os políticos, com várias e tresloucadas teorias da conspiração. Foi um alívio. Alguém tinha entrado aleatoriamente no blog e distribuído coices aleatórios. Feliz ou infelizmente, o visitante não apareceu mais.
Os livros desse tipo destacam o valor dos Sistemas de Crença como criadores invisíveis de nossa realidade. Posso citar uma pequena fábula edificante a respeito disso: “Havia em determinada cidade distante um barqueiro antigo e sábio, que ajudava silenciosamente as pessoas e famílias que iriam tentar a vida em um lugar inteiramente novo. Durante a travessia, vinha uma dessas pessoas em trânsito e perguntava ao barqueiro como era aquela cidade, como eram as pessoas de lá. O barqueiro, como um psicanalista, respondia a pergunta com outra pergunta: Como eram as pessoas da cidade que eles tinham deixado? Ah, eram ótimas pessoas, alegres, bondosas, tínhamos muitos amigos. O barqueiro coçava as barbas brancas e respondia que as pessoas dessa cidade eram exatamente iguais aos antigos amigos. Eles provavelmente seriam muito felizes por lá. Algum tempo depois, outra família o procurava com as mesma pergunta, que ele, mais uma vez, respondia da mesma forma: como eram as pessoas de sua cidade anterior? Eram pessoas falsas, negativas, fofoqueiras, que tratavam muito mal os forasteiros. O barqueiro balançava a cabeça e dizia que as pessoas dessa nova cidade eram exatamente iguais e que eles teriam dificuldades, com certeza".
Essa pequena história ilustra a importância do sistema de crenças das pessoas na apreciação da realidade. Além das crenças, podemos dar um destaque às expectativas, o que também ajuda a criar o que será a nossa realidade. Tem até um nome para isso, que é Profecia Autorrealizável.
Não há nenhuma forma de psicoterapia que não investigue e atente para esses sistemas de crença e de autoprofecias. Uma relação tensa com a mãe pode se reproduzir em hostilidades e incompatibilidades com as mulheres ou, em outro extremo, pode levar um sujeito a virar um assassino serial de prostitutas. Um pai espancador pode se reproduzir em maridos violentos ou indiferentes, ou na preferência pela relação com homens casados. As experiências antigas e mais profundas marcam a interpretação e a expectativa com que nos dirigimos à realidade.
Nas últimas décadas houve uma descoberta tão fundamental para a Neurociência como para as Psicoterapias, que foi a Neuroplasticidade. Dependendo dos estímulos, é possível manter, ampliar e, sobretudo, modificar as capacidades de seus neurônios de combinar entre si em novas redes neurais. Isso quer dizer que dá para ensinar truques novos para o cavalo velho, desde que o cavalo colabore e não seja muito escoiceador. Podemos e devemos identificar os padrões disfuncionais e modificá-los, mesmo que isso demore e consuma muitos lenços descartáveis e lágrimas.
Segundo esse novo conhecimento, o barqueiro poderia responder para a primeira família que continuem cultivando o hábito de serem cordiais e amigáveis com as pessoas, mas nunca confiar cegamente em sua bondade. À segunda família, ele pode sugerir que nessa nova vida eles devem trabalhar para mudar o seu padrão de medo e hostilidade com as pessoas, finalmente sendo mais objetivas em separar o joio do trigo e não prejulgarem uma cidade por meia dúzia de experiências negativas. Pode ser que o barqueiro seja arremessado para fora do barco, mas essa é a tarefa das psicoterapias, acreditar que os Sistemas de Crença podem ser alterados, para melhor.

sábado, 18 de agosto de 2012

Édipo e Jonas


Ontem estava relendo o gibi “Entendendo Jung”, do qual gosto muito, mas não sei se recomendo. Esse gibi faz parte de uma série da Editora Leya, e parece que vai tentar facilitar o acesso de não iniciados a autores e conhecimento especializado. Tem um gibi sobre Freud, Física Quântica, Filosofia e agora um número sobre Jung. Apesar de ter a aparência de facilitar a vida do leitor, esses gibis não dão mole não. O saber é comprimido nas páginas e o leitor tem que se virar para acompanhar o ritmo. Eu fui lendo o material assim como quem vai degustar um gibi da Turma da Mônica, depois de um tempo estava com a sensação de ter comido uma feijoada teórica, de tão empanturrado de conceitos. O que dá para sentir é a enormidade da obra do psiquiatra suíço, que não dá para enfiar em um gibi. Mas para quem quer tomar contato, pode ser uma boa leitura.
Ontem acabei fazendo uma leitura junguiana de um Mito muito caro aos freudianos, que é o Édipo. Lógico que usei essa leitura para dar mais uma espetada em Juvenal Juvêncio, presidente do outrora glorioso São Paulo Futebol Clube. Lembrei de uma conversa alcoólica e canábica que tive na faculdade, com um japa dado a conversas briacas e filosóficas. Ele fez, depois da quinta cerveja, uma leitura sobre um filme dos anos 80, “Angel Heart”, ou “Coração Satânico”. Nesse filme, um detetive procura pelo autor de uma série de crimes bizarros na Nova Orleans dos anos 40. A trilha sonora é maravilhosa e o filme também. O japa observava, naquela conversa, que o filme é o próprio mito de Édipo, pois o detetive vai procurar pelo assassino para no final descobrir que é ele próprio o autor dos crimes. Juvenal, de tanto procurar por culpados pelos fracassos sucessivos do São Paulo, talvez encontre o causador da desgraça quando olhar o espelho. Mas o mito de Édipo não serve só para o tricolor.
Jung estranhava muito a literalidade de algumas leituras de Freud. Entender o Complexo de Édipo como um desejo inconsciente e incestuoso pela mãe, além de uma rivalidade assassina pelo pai, era um pouco excessivo para ele. Essa é uma velha querela entre as linhas e não vou me aprofundar na mesma. Vou antes falar do significado simbólico de matar o Pai e desposar a Mãe. O gibi que citei acima fala sobre isso de uma forma bacana, citando a história bíblica do profeta Jonas.
Jonas é convocado por Deus para levar a Sua Palavra para os seus inimigos. Ele não gosta nem um pouco da tarefa e faz uma viagem de navio em outra direção, diferente da apontada pela divindade. No meio do caminho, o navio naufraga e Jonas é engolido por uma baleia. Lá ele vai ter tempo para refletir profundamente sobre o significado de seu infortúnio. Ele havia traído o Desígnio que a vida tinha lhe imposto. Tinha matado o seu Deus interior e por isso estava preso dentro daquela situação terrível. Quando tomou consciência de seu erro e entendeu simbolicamente a sua prisão, Jonas foi entregue pela baleia, são e salvo, para cumprir a sua tarefa.
Esse Mito, ou Fábula, representa melhor o drama de Édipo e, mais ainda, o drama interno de nosso desenvolvimento. Em vários momento de nossa vida, perdemos o contato ou afrontamos o nosso Pai Simbólico. Édipo mata o seu pai, Laio, sem saber que era seu pai, apenas para não dar passagem a seus cavalos numa estrada. Ele desposa a própria mãe, Jocasta e tenta ser um Rei justo e adequado. Quando tudo começa a dar errado, Édipo vai ao Oráculo, os terapeutas da época, para conhecer o seu Orgulho, sua Arrogância e, mais ainda, a sua Ferida. Édipo arranca os próprios olhos para recuperar a sua Visão Interior, não para pagar os seus pecados.
Na vida, tomamos várias vezes os caminhos errados, fugimos do que nosso sentimento de missão e de sacrifício nos pede. O Casamento Incestuoso significa tomar o caminho mais fácil e trapacear a própria vida. É o que representam os mitos de Édipo e de Jonas. É por isso que, depois de muito penar, alguém vem bater em nossa porta e pergunta: por que tudo está dando errado? E como eu faço para sair de dentro dessa baleia?
O Casamento Incestuoso também significa o período da vida em que ficamos mergulhados na Noite Escura, onde nada vai para a frente enquanto não houver a reflexão e a correção do rumo, em um nível profundo. Em outro registro, o processo permite o desenvolvimento da Visão Interior, o que Jonas descobriu sem precisar arrancar os olhos. As pessoas não sabem, mas é isso que as traz à terapia.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Pés Inchados

Uma passagem belíssima da Mitologia é quando Édipo, Rei de Tebas, desesperado, procura um vidente cego, Tirésias, para perguntar o que está trazendo desgraça para o Reino. As colheitas perdidas, a seca, os bichos morrendo, Édipo se pergunta: mas o que está dando errado? Tudo que estava no manual de boas práticas ele tinha feito: derrotou a Esfinge com grande coragem e astúcia. Desposou a bela rainha Jocasta, que já estava um pouco passadita mas ainda dava um caldo. Contratou os melhores marketeiros e consultores, fez um MBA em gestão pública, pagou o mensalão de Tebas para os senadores e os resultados continuavam uma desgraça. O que estava rolando? Tirésias, sem tablets e sem banda larga, consultou os deuses e trouxe o veredito, implacável: o causador da desgraça és tu, Édipo. Tu és o nó que falta desatar. Mas como assim? Estou fazendo tudo direito, aplicando todos os checklists, trazendo os melhores consultores e ainda assim os resultados não aparecem. O que mais me resta fazer?
Tirésias, que não era de passar a mão na cabeça de ninguém, revelou para o Rei de Tebas que ele matara o seu pai biológico, Laio, em uma estrada que levaria o herói para a sua glória e desgraça. Logo depois, Édipo derrotou a Esfinge e desposou a bela e madura rainha, que teve o seu filho roubado décadas antes. O filho roubado és tu, meu Rei. Estás partilhando o leito com tua própria mãe.
Édipo poderia ter ignorado a consultoria e chamado alguma mega auditoria, tipo da Price, para ouvir um parecer depois de várias e várias apresentações em Power Point, recheadas de termos em Inglês. Mas ele sabia, de alguma forma em seu coração, que o velho Tirésias estava certo. Édipo, que quer dizer “Pés Inchados”, acariciou as suas cicatrizes, fruto do atentado que sofrera quando bebê, quando cortaram os seus tendões e o abandonaram às feras, percebeu onde a sua ambição o levara. Numa ação inédita na vida corporativa ou na política, arrancou os próprios olhos e passou a vagar pelo mundo. O leitor pode se perguntar: mas Édipo cometeu o supremo crime, o Parricídio e o Incesto, sem ter conhecimento da própria culpa. Mas o Mito revela: não há perdão para a Inconsciência. O que fazes inconscientemente pode destruir o teu lar, o teu povo, a tua semente.
A Diretoria do São Paulo, estranhamente, fez as coisas certas nesse ano: contrataram bons reforços e trouxeram um técnico bom e respeitado. As condições para o treinamento e recuperação dos atletas são as melhores do Brasil. Ainda assim, o time coleciona vexames. Nessa semana, o seu maior ídolo, Rogério Ceni, foi respingado desse ridículo, fazendo um gol contra. Como na história trágica do rei de Tebas, apesar de tudo o que possa fazer está sendo feito, os resultados e as derrotas humilham os justos. Daí a pergunta que não quer calar: onde está Édipo, heim Juvenal? Onde está doendo os calos da Nação Tricolor? Uma dica: pergunte á sua pedicure.

domingo, 12 de agosto de 2012

Da Alma e da falta de Alma

Estou aqui esperando a final do Vôlei Masculino. Vou sentir saudade dessa dose diária de esporte matinal, mesmo com tantas e repetidas frustrações brazucas. Não sei portanto o resultado do time de Bernardinho, mas não é sobre isso que vou escrever. Vou falar sobre a derrota do time de Futebol e a vitória do time de Vôlei Feminino e o que isso importa para a nossa vida.
Os garotos do futebol perderam para um time pior, tecnicamente. As meninas do Vôlei venceram uma seleção melhor do que a nossa. As duas situações foram muito parecidas, não sei se as pessoas perceberam: em determinado momento o time melhor passou, de um estado em que sentia que a vitória seria algo totalmente natural, para outro estado em que o time perdeu a sua alma e não conseguiu mais encontrá-la.
Vou falar uma coisa sobre os consultores motivacionais. Eles cobram fortunas para dar palestras onde várias técnicas são utilizadas para mobilizar as emoções da platéia, baixar as suas defesas e liberar emoções catárticas, para todo mundo sair no final abraçados e cantando música de acampamentos. Emoções baratas, sempre com o objetivo da direção mandar algum recado para a patuléia. Os consultores motivacionais tentam mas não entendem o conceito de alma. E os psiquiatras, será que entendem?
O que aconteceu com seleção feminina de Vôlei não pode ser criado em laboratório, nem em palestras motivacionais. O time morreu e ressuscitou durante a competição. Pegou um grupo fortíssimo na primeira fase (basta notar que dos 4 primeiros colocados, 3 saíram do grupo do Brasil na primeira fase), quase ficou de fora. Era um time xôxo, medroso, sem alma. Ontem, a baixinha e enfezada Fabí (que na hora da comemoração mandou os críticos calarem a boca, berrando para as câmeras) descreveu a reunião e o pacto que o grupo fez para recuperar a alegria de jogar. Desde então, alguns pequenos milagres ocorreram, como vencer times fortes e que estavam melhores na competição, como a China e a Rússia. Ontem, o time foi atropelado pelas americanas no primeiro set e, de novo, resolveram que iriam virar uma pessoa só. Novamente o time virou uma muralha psíquica, salvando pontos impossíveis, botando a bola no chão de qualquer jeito. O grupo encontrou o estado psíquico de unidade e concentração potenciada pela alegria. As americanas murcharam e foram sentindo, progressivamente, que tinham perdido.
O time de Futebol, bem, o time de Futebol. Só o dinheiro que o São Paulo ganhou vendendo o Lucas, reserva do time do Mano, já compra metade do time do México. A sensação que o time brasileiro tinha, de que o time tem um elenco muito bom e que o jogo iria se resolver naturalmente, que já nos custou tantas derrotas, ontem custou mais uma. O time levou uma cacetada logo aos trinta segundos e foi perdendo a alma como as americanas no Vôlei. Cada cruzamento errado, cada passe perdido ou cada chute para fora foram causando uma profunda tristeza no time.
Um time que nunca virou um time. Isso fez TODA a diferença.
Os palestrantes corporativos enchem os ouvintes de frases de efeito e "tem-quês": tem que vibrar, tem que motivar, tem que fazer as coisas sem procastinar, com seu entusiasmo de silicone. Não conseguimos muita coisa com os "tem-quês": nem emagrecer, nem fazer exercícios, nem ganhar medalhas.
Nosso Cérebro Racional precisa da força multiplicadora/aglutinadora do Cérebro Emocional. Essa foi a diferença entre vitória e derrota, ontem e sempre.

sábado, 11 de agosto de 2012

Ciclos Arquetípicos

O encontro analítico é cheio de momentos duros, dramáticos, dolorosos, como um lugar de emoções humanas concentradas. Há também lições, citações e "causos" que servem ao serem contados, tanto para o terapeuta como para o paciente.
Outro dia ouvi um desses "causos" ou citações mágicas. Essa vinha de um artista plástico cujo nome eu não sei, mas sei o seu apelido, que é Boi. Boi disse para a sua aluna que um artista tem três grandes fases em sua vida. Na primeira, ele é uma criança, faz as suas pinturas, os seus desenhos e quer mostrá-los para os adultos, sobretudo os seus pais. As pinturas nas paredes, nos quadros da escola, nas gavetas dos avós, são as primeiras exposições dos artistas. Quando ele vai crescendo, não é mais suficiente o reconhecimento da família e dos colegas. O artista precisa mostrar o seu trabalho para o mundo, conhecer os seus pares, receber influências. Ele leva o seu trabalho para o mundo e quer que o mundo perceba o que está expressando. O artista pode passar a vida inteira querendo ser visto e ouvido pela sua família e pelo mundo. Mas a fase realmente madura é quando é visto não mais pela sua família ou pelo mundo. O artista atinge a maturidade quando passa a ser visto pela sua obra. Os seus olhos estão refletidos pela sua obra. O que ele é, o que ele faz e tem se condensa no mesmo lugar e o enxerga.
Há então as três fases: a fase em que o artista é visto pela família, pelo mundo e por sua obra.
Nosso desenvolvimento psíquico também pode estar contido nessas fases. Os junguianos costumam chamá-las de Ciclos Arquetípicos. No primeiro Ciclo, temos o Ciclo Parental. A criança se revela e é revelada pelo olhar da família, da escola, do meio onde é criado e de onde recebe a primeira e por vezes definitiva impressão a respeito de quem é e o que veio fazer nesse mundo. Muito do que se faz nos consultórios tem a ver com esse ciclo parental. Acabei de responder um e-mail malcriado de uma mãe exasperada com o comportamento de seu filho. Como todo filho de uma mãe intrusiva, o rapaz faz tudo exatamente necessário para deixá-la desesperada e impotente. Ela vem para cima do terapeuta, que devolve o coice. Ela se preocupa com seu desenvolvimento da mesma forma que o mantém filhinho da mamãe. Não dá.
A função do ciclo parental é dar ao nosso bebê mamífero e descendente de paleoprimatas alimento, proteção e educação para esse indivíduo poder buscar o seu destino e sua identidade. É um percurso acidentado, cheio de incertezas e caminhos que, embora semelhantes, são muito diferentes. Cada um vai fazer esse percurso de forma individual e vai encontrar o próprio caminho para chegar à vida adulta. Mas tem muita, muita gente que vai ficar a vida toda mostrando os desenhos para a mamãe e vivendo da graninha do papai, não importa quantas horas gastas no divã ou nas salas de Coaching.
O segundo ciclo é o que toma a maior parte de nossa vida, se tudo der certo. Construir uma carreira, um lugar no mundo para si e para o seu genoma é a tarefa desse segundo ciclo, que é o Ciclo Heróico. Não é á toa que há uma mitologia enorme sobre heróis, super heróis, guerreiros que vão enfrentar a selva de concreto que chamamos de vida. É uma fase de construção e reconstrução, permanentes, de suas obras. Mostramos os desenhos em congressos, reuniões e planilhas com resultados bons ou ruins, fases de sucesso e de fracasso. Muita gente desiste no meio do caminho e tenta voltar para a fase anterior, quando tudo era certeza e proteção. Esses casos também são um porre, aqui entre nós.
O terceiro ciclo é o mais complexo, que é Fase da Maturidade. Os desenhos não são mais expostos nas paredes nem nas galerias. O artista se sabe artista e sabe que a sua obra é construída tanto interna quanto externamente. Ele é antes de sua obra, mas a sua obra olha para o seu coração.
Não é comum vermos nos consultórios as pessoas cheias de tempo e de dias, sem medo nem da morte nem da vida. É raro de se ver, mas é lá que tentamos chegar.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Aprendizagem e Repetição

No livro "O Gênio em Todos Nós", de David Shenk, há uma citação de Einstein, que disse: "A questão não é que eu seja muito inteligente. Eu simplesmente me detenho por mais tempo nos problemas". Seria um ato de falsa modéstia de um dos maiores gênios que já passaram por esse planeta? Acho que não.
Vários estudos demonstram que se atinge a excelência em alguma atividade com uma mistura de repetição, persistência e adiamento de recompensa. Crianças com essas características tendem a apresentar, no futuro, melhores resultados acadêmicos. A pichação nas paredes de cursinho: "Mate um japonês e entre na USP" é a manifestação desbocada dessa constatação. A cultura oriental favorece a repetição obstinada, a escassez de recompensa e a ênfase nos resultados. Nosso culto à autoestima das crianças produz um excesso de recompensa por gota de suor nos resultados. Podemos observar a nossa autocomplacência nas eliminações olímpicas.
Comecei esse post nesse tom porque estava ouvindo na rádio que o Senado sancionou lei que vai criar um sistema de cotas para as Universidades Públicas. Metade das vagas serão destinadas a alunos que fizeram o Ensino Médio em Escolas Públicas. Já consigo ver os pais com seus carros do ano pegando os filhos na Escola Estadual, olhando horrorizados para os manos que são os coleguinhas dos filhinhos. Fica fácil, então. Você matricula o seu filho na escola estadual, ele vai lá passar de ano sem aulas e sem professores, e depois o Jarbas leva os moleques para um Cursinho, onde eles vão realmente aprender. Depois é só passar com o sistema de cotas.
A Educação nesse país foi devastada nas últimas décadas por paternalismos e comiseração. Pelo visto, nosso esporte, também. Rios de dinheiro foram despejados na formação de atletas e olha os resultados. Era melhor mandar todo mundo treinar no Cazaquistão.
A excelência depende de repetição, aprendizado e tolerância ao erro. Está na hora de ensinar as nossas crianças a amar o processo de tentativa e erro que precede todo tipo de aprendizagem. Pessoas que desanimam diante da derrota não vão muito longe. Isso tem que ser implantado desde o Ensino Fundamental. Não adianta oferecer uma escola pública que, fora as ilhas de excelência, oferece um ensino de baixo nível, com professores e alunos desmotivados e morrendo de pena de si mesmos. O Estado não dá conta de educar as nossas crianças. Facilitar a entrada na Universidade de quem teve uma base ruim não vai resolver o problema, vai antes agravá-lo.
Einstein, que foi um aluno abaixo do medíocre, mudou o rumo do pensamento humano estudando e aprendendo sozinho, apenas levantando questões que ninguém prestava muita atenção. Ele se dedicou profundamente a essas questões até publicar, trabalhando em uma repartição pública, dois artigos que mudaram o rumo da Ciência, com a Teoria da Relatividade. Ele disse que conseguiu isso apenas se dedicando e errando milhares de vezes. A Lei que passou no Senado e deve ser sancionada pela presidente Dilma provavelmente teria desestimulado seu esforço.

domingo, 5 de agosto de 2012

Freud, Chinelos e Atos Falhos

Uma das imagens doídas dessa Olimpíada foi a eliminação de uma promissora judoca brasileira, Rafaela Silva. Ela dominava a sua luta contra uma bonita oponente, se não me engano uma húngara, quando deu um golpe no chão que foi interpretado como um Wasari. Lembrando de meus tempos de judô no Tênis Clube, eu sabia que esse golpe praticamente definia a luta a favor da brasileira. Inesperadamente, o juiz chamou as duas lutadoras ao meio do tatame, tirou os pontos de Rafaela e a eliminou da luta. Ela deitou-se aos prantos e ninguém conseguia retirá-la de lá. O japa bem que tentou e eu bem imagino o que ela deve ter sussurrado para ele em bom Português. Só quando a sua adversária atravessou o tatame e tomou-a pela mão, com aquele afeto travado de Leste Europeu, que Rafaela finalmente levantou e se retirou, sempre chorando. Sabíamos que a jovem tinha virado atleta olímpica graças a projeto de incentivo ao esporte implantado na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Rafaela foi eliminada pela aplicação de uma nova regra, que proibia o golpe nas pernas. O replay, implacável, demonstrava que a nossa judoca realmente deu o golpe irregular. No calor da luta, ela cometeu esse ato falho, catando a perna da adversária como fizera nos tatames da Rocinha.
Freud foi um dos maiores e valentes pensadores da alma humana. A sua obra foi sendo colocada em descrédito da metade do século passado para cá, com as descobertas da Neurociência e Psicofarmacologia. Outro dia a Folha publicou um caderno em que metade dele era ocupada por psicanalistas ironizando a ingenuidade onipotente nos Neurocientistas e na outra metade os cientistas refutavam a teoria freudiana como uma colagem de mitologias e teorias tresloucadas, sem base científica. Infelizmente não havia ninguém nas páginas centrais tentando aproximar os dois lados. Quando eu chamo o golpe de Rafaela Silva de Ato Falho, estou usando um conceito freudiano. Freud tentou criar uma teoria abrangente demais, mas vários de seus conceitos são validados em nossa prática clínica. O Ato Falho de Rafaela é uma dessas manifestações.
Ouvi no rádio uma matéria sobre Rafaela Silva, no dia seguinte da traumática eliminação. Ela chorou ao lembrar de uma passagem de sua infância. Ela queria muito um par de chinelos, que o seu pai julgava muito caros. Relutou, mas como um bom pai, deixou de comprar carne no dia e comprou os tais chinelos. Ela foi brincar, radiante com seus chinelos novos, tirou-os para não gastá-los, deixou-os num canto. Quando voltou para pegá-los, não estavam mais lá. Aquela mulata alta e fortíssima se desmanchou em lágrimas quando relembrou a cena de seu pai batendo e jurando nunca mais gastar esse dinheiro com ela. Na hora que o juiz detonou com um movimento de braços o seu sonho olímpico, Rafaela viu mais uma vez os seus chinelos roubados.
As nossas memórias traumáticas criam uma espécie de software defeituoso em nosso Sistema de Crenças e processamentos inconscientes, gerando a repetição, também inconsciente, de cenas e situações semelhantes. Rafaela chorou como a menina que perdeu os chinelos.
A Psicoterapia, freudiana ou não, permite a rememoração da memória dolorosa, em ambiente ameno e acolhedor. A estimulação repetitiva, o relaxamento, a recontextualização madura do evento permitem a construção de novos caminhos neurais para aquela memória, que deixa de exercer os seus efeitos destruidores. Dentro de uma sala de psicoterapia, Rafaela poderia compreender a angústia e o amor de um homem pobre que imagina que a sua menina não deu valor a seu sacrifício. Por que será que é tão difícil para certo establishment científico perceber esse trabalho paciente, amoroso, que se faz nos consultórios como evidentemente curativo e transformador?
Rafaela, espero ver em 2016 um par de havaianas de ouro penduradas no teu peito.

sábado, 4 de agosto de 2012

O Viralata Olímpico

O grande Nelson Rodrigues escrevia em suas colunas nos anos 50 que um problema muito sério dos atletas brasileiros era o seu complexo de cachorro vira-lata (na época, vira-lata se escrevia assim, com hífen). Descrevia a nossa capacidade de afinar nas horas decisivas, embora contando com atletas excepcionais. O Brasil assombrou o mundo em 1958 com um time que tinha um moleque menor de idade com um nome esquisito, Pelé, e outro estranho jogador de pernas tortas e nome igualmente esquisito, Garrincha. A inocência de ambos permitiu ignorar o nosso complexa de viralata, ensacando todos os adversários, inclusive os donos da casa, a Suécia. O Brasil entrou no mapa do planeta e até hoje é conhecido mais por suas chuteiras do que feitos históricos. Passamos de amarelões para grande potência futebolística.
Deve demorar mais algumas décadas para deixarmos nosso complexo de viralata nas Olimpíadas. Ontem estava atendendo e soltei um sonoro PQP na recepção quando soube que mesmo César Cielo tinha sido infectado pela bactéria Affinococus e bebido água atrás de dois moleques que não são recordistas mundiais. Há quatro anos chorou de alegria, ontem chorou de decepção. Hoje, já refeito e orientado pela Assessoria de Imprensa e patrocinadores, destacou que tinha mais uma medalha olímpica em sua coleção, o que era um privilégio. É verdade, Césão. Não é qualquer um que tem duas medalhas olímpicas no cabideiro. Mas não deixe de esterilizar a sua medalha de bronze, ela está contaminada pela temida bactéria. Temos poucos candidatos ao ouro em nosso esporte olímpico, trazer um bronze não é consolo.
Nossos olhos se voltam para o inacreditável presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, Artur Nuzman. O que ele está fazendo por lá? Até Ricardo Teixeira já caiu, quanto tempo teremos que aturar esse senhor? Milhões e milhões despejados em programas de fomento e nada de metas, nada de previsões, nada de resultados? Esse senhor nem vem a público se pronunciar, nem sequer estimar para onde foi a dinheirama. Continuamos atrás do Cazaquistão no quadro de medalhas. Eu ficaria mais tranquilo se soubesse onde fica o Cazaquistão.
Na Olimpíada de Sidney, se não me engano, o incrível Nuzman resolveu levar um gurú motivacional para trabalhar nossos atletas. Ele deu palestras eufóricas, fez o time de Vôlei andar em brasas e prometeu uma chuva de medalhas. O Vôlei foi eliminado nas quartas de final, para a Argentina (!), não ganhamos nenhuma medalha de ouro e nunca mais levaram nenhum gurú antes dos jogos.
O nosso único ouro até agora, conquistado pela menina do judô, Sarah Menezes, teve o agradecimento emocionado da atleta à sua psicóloga, que a ajudou a erradicar o Affinococus do final de suas lutas.
Nossos atletas deveriam ter completa assistência psicológica. Os técnicos também. Os atletas sabem que nas Olimpíadas é sua única chance de ter toda a atenção da mídia. Hoje eu vi Fabiana Murer carregando o país em seu salto com vara. Os atletas ficam pesados e os resultados reforçam as nossas decepções, todo dia. Fabiana vergou sob esse peso.
Nosso esporte precisa de profissionais que ajudem a tirar o peso dos ombros dos atletas. Só assim deixaremos nossos complexos na lixeira da Vila Olímpica.