domingo, 30 de setembro de 2012

Tocáveis

Um filme francês estourou surpreendentemente na bilheteria, ganhando o circuito das grandes redes, um feito para poucos que conseguem atravessar as barreiras do cinemão americano. O filme é “Intocáveis”, o que sugere mais um remake da saga de Elliot Ness contra Al Capone, mas não é nada disso. O filme conta sobre o encontro improvável de dois deficientes: um social e outro físico. Um imigrante, recém saído da prisão, passa por uma entrevista para cuidar de um tetraplégico, um homem rico que nada sente abaixo da linha do pescoço. Daí a delicadeza do título. De certa forma, a marginalidade física e social não permite a ambos o toque humano. São solitários, isolados do mundo, uma fonte de sofrimento bem comum em nossos dias. Driss, um senegalês abusado, quer apenas provar que passou por entrevista e foi reprovado, para continuar recebendo o seu Seguro Desemprego. Um diálogo ácido entre eles se dá quando Phillipe, o rico cadeirante, pergunta a Driss como é viver dependendo dos outros. Ele responde de primeira: “Me diga você”, pois ele está cercado de enfermagem e serviçais. Quando Driss aceita trabalhar para Phillipe, a relação vai ser pautada por esse constante embate de homens inteligentes e feridos, sempre dispostos a sacanear um ao outro, o tempo todo. O que poderia descambar para um dramalhão ou um filme edificante acaba criando cenas engraçadíssimas do óbvio contraste entre eles e suas vidas, com o negão (desculpe, o afrodescendente) pintando e bordando naquele mundo empolado dos aristocratas. Como todo processo terapêutico, ambos saem transformados do encontro, mas isso eu vou deixar para quem ainda não viu poder saborear no cinema.
Estou lendo um paper sobre os avanços da neurobiologia e suas implicações para a psicoterapia. Uma, evidente, vem sendo observada na multiplicação dos cursos de Coaching e na influência que isso vai começar a ter nos próximos anos. O termo representa Treinamento, o Coach é o Treinador, o Coachee é a pessoa a ser treinada. Como tudo nessa vida, isso pode trazer um trabalho positivo, de intervenção estruturada nos sistemas de crenças disfuncionais, ou pode abolir a subjetividade humana. Você parte do mesmo princípio de todas as Psicologias, de que você é fruto de uma família e uma sociedade que incutem uma série de crenças compartilhadas e formas de ver o mundo. Pode parecer louco para nós que um menino de quinze anos detone uma carga de explosivos em seu corpo, matando dezenas de inocentes, por acreditar que aquilo é melhor para o seu povo e para o seu Deus. Isso está estabelecido em seu sistema de crenças. Menos dramáticos são nossos hábitos, que criam uma rede de funcionamentos quase impossíveis de se mudar. Um deles é a crença que vamos continuar ganhando peso gradativamente no decorrer de nossas vidas se continuarmos com o mesmo padrão alimentar, e não mudamos esse padrão. Parece impossível fazê-lo. O Coaching vai tentar mudar essas características através do desenvolvimento de outras alternativas de interpretação dessas crenças. Talvez um menino bomba pudesse ser ensinado a vencer os invasores através da educação de outras crianças e do ensino do amor que está descrito no belo Alcorão. É difícil, mas é possível. A neuroplasticidade mostra que podemos modificar essas redes neurais, num sistema de aprendizagem.
O que me incomoda nessa aparente onipotência de Logos, o Cérebro racional tão longamente desenvolvido e glorificado em nosso tempo, é a ingenuidade, tantas vezes abordada nesse blog, de se achar que podemos fazer alguma mudança em nossa vida só pelo viés da racionalidade. Querem um exemplo? A partir de amanhã vou começar novo regime, vou me exercitar mais e assistir menos televisão. Essa é a decisão correta e racional de se tomar, é só aplicá-la. Fácil, não?
O encantador no filme francês, o que talvez explique seu sucesso inesperado, é a descrição de como o afeto, os encontros de alma, podem ser o impulso para o enfrentamento de nossos medos mais profundos. Driss e Phillipe desafiam, um ao outro, o tempo todo, a enfrentar os próprios medos e as próprias limitações, para modificar, a partir do desencontro e também do desconforto, os seus padrões. Esse não é um sistema que pode ser programado, ou controlado por Logos. É a força inerente à vida, que Logos não pode captar.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Do Medo e Memória

Não é incomum as pessoas virem a um consultório de Psiquiatria ou qualquer outra especialidade Psi com uma grande tensão e algum azedume. Uma vez a mãe de uma paciente querida, conhecida por seu mau humor, estava na recepção. A paciente veio alegremente apresentar o seu psiquiatra para ela. Essa senhora rosnou para o psiquiatra, no caso, esse que vos tecla, dizendo algo como: “Oi. Eu sou a mãe. A culpada”. Respondi de batepronto: “Culpada, não. Fornecedora”. Até hoje não sei se o seu olhar perplexo significava que ela tentava entender se aquilo era uma brincadeira, o que eu queria dizer com aquilo, se devia ou não me mandar para aquele lugar, etc. O fato é que a filha foi empurrando a senhora para fora do consultório antes que o caldo entornasse. O psiquiatra manteve um sorriso amigável, reforçando a confusão. A senhora irritável não voltou mais à minha recepção. Se estiver lendo esse post, deixe-me esclarecer: foi uma brincadeira. A senhora nem é culpada nem fornecedora. Mas pare de se levar tão a sério. Isso não faz bem para o Fígado.
As mães se queixam que os filhos só lembram das coisas ruins de sua infância. E elas tem razão. Eric Kandel ganhou um Nobel de Medicina pesquisando um molusco gigante, a Aplysia, que aprendia, rapidamente, a encolher a sua cauda se sentisse a mão do pesquisador se aproximar, após tomar alguns pequenos choques durante um tempo. Kandel descobriu muita coisa sobre mecanismos de Memória estudando esses belos moluscos, uma delas o próprio experimento deixa muito claro: uma função óbvia da Memória é aprender e evitar sobre mecanismos de injúria e risco para o ser vivo que tem a obrigação de escanear e aprender sobre tudo o que possa trazer risco à sua vida. Lembramos, sim, melhor das experiências desagradáveis do que das boas. Quanto mais profundos e primitivos são essas memórias de medo, mais isso vai perturbar o funcionamento futuro daquele ser. Uma amiga que trabalha com Proteção de cachorros estava chorando quando um cachorrinho teve que ser sacrificado, depois de ficar amarrado no mato e sob a chuva por cerca de três dias. O medo, muito mais do que a fome e o maus tratos causaram uma lesão definitiva no bichinho. Ele tronou-se agressivo, hiperagitado, destruía tudo o que estivesse na sua frente. Três famílias tentaram adotá-lo, mas foi completamente impossível. O bichinho virou um pequeno sociopata, principalmente por um medo impossível de dominar que ele internalizou.
Com o bicho homem, o medo pode também causar um grande estrago. Qualquer um pode constatá-lo, não precisa ser da área. Saber aprender com ele e transformá-lo é um grande X da questão terapêutica. Talvez seja um dos motivos que os manuais de Neurolinguística não conseguem erradicar do mundo o comportamento irracional, os medos profundos e injustificados que estão plantados em nosso Cérebro Emocional. É por isso que é necessário tempo e habilidade para operar nesse campo minado.

domingo, 23 de setembro de 2012

Estresse e Interneurônios

Estava lendo um paper sobre o papel dos interneurônios GABAérgicos na gênese de doenças psiquiátricas graves. Não é preciso fugir desse post, eu vou explicar. Nossas redes neurais e quase toda a função de nossas células nervosas é um balanço extremamente complexo entre excitação e inibição. Temos aceleradores e breques à disposição para quase todo nosso leque de experiência. A Medicina Chinesa e o Taoísmo intuíram isso milênios antes da Ciência Moderna, dando nome de Yang para as funções masculinas e aceleradoras e de Yin para as funções femininas e acolhedoras, relaxantes, inibidoras. Há uma substância, o GABA, que responde por muitas funções Yin em nosso Cérebro.
Quando, dentro de nossas redes neurais, há um desequilíbrio maior ou menor dessas funções, os problemas começam a acontecer. Em casos mais graves, esse desequilíbrio entre excitação e inibição pode levar a doenças como a Esquizofrenia e o Autismo. Os Interneurônios constituem uma rede quase infinita de pequenos Relês que mediam a neurotransmissão, como amortecedores dessa excitação, um resfriador ou acelerador dependendo da ocasião.
Fico me perguntando se essa rede de Excitação/Inibição não responde na verdade por vários fenômenos de nossa vida prática. Tenho acompanhado a odisséia de um amigo que tem uma criança com desadaptação severa ao ambiente social, sobretudo o escolar, gerando reações violentas e autistas-like em situações de estresse. O excesso de informações, os deboches, as reações sociais complexas como as ironias, duplos sentidos, tudo isso fica dando voltas dentro de seu Cérebro Emocional gerando comportamentos disruptivos e violentos. A criança está perdida numa floresta de neurologistas, psiquiatras, pedagogos e psicoterapeutas de várias linhas, e parece faltar a todos esse entendimento: a criança não tem um instrumental de entendimento de situações complexas, emocionais e intelectuais. Não consegue, igualmente, entender essas situações e criar sistemas de aprendizagem para melhorar a sua perfomance. Isso deve atrapalhar ainda mais a ação dos seus interneurônios que tentam esfriar o sistema para encontrar a melhor solução. O resultado é, diante de pequenas contrariedades, explosões agressivas que estão se tornando cada vez mais perigosas. Qual seria a solução? Antes de mais nada, assumir que a criança tem uma limitação e parar de empurrá-la para a selva da Inclusão, muito linda no papel, mas uma verdadeira tortura para a criança que tem um déficit de desenvolvimento, se o processo não for muito bem conduzido. Depois, tentar criar estratégias para ele compreender melhor as interações sociais e o processo de aprendizagem, em um ambiente mais relaxado. Aprender numa escola menos solicitante e jogar futebol quase todo dia. Reconstruir sua capacidade de tolerar a frustração, passo a passo. Em nossa época, onde tudo está acelerado e as pessoas querem resolver tudo com um click em seu mouse, não é fácil encontrar quem faça esse trabalho.
Tenho a impressão que as pessoas vão ser cada vez mais avaliadas no futuro por sua capacidade de compreender, processar e atuar em situações de estresse e frustração. Hoje há um termo psiquiátrico que foi incorporado pelo senso comum quando a pessoa fracassa na gestão do estresse: o surto. Ouvimos cada vez mais: “Ele surtou na reunião”: “Toda vez que eu estou em TPM eu surto com a minha equipe”. Surto deveria ser um termo reservado a situações psiquiátricas severas. Hoje está incorporado em nosso dia a dia em situações onde nosso sistema de resfriamento e processamento emocional e cognitivo falham e uma pessoa pacata pode jogar o carro em corredores de uma maratona, sem motivo aparente.
Os consultores motivacionais devem parar de recomendar aos clientes estressados que relaxem ou joguem golfe. O melhor é ensinar as pessoas a usarem melhor os seus interneurônios GABAérgicos.

sábado, 22 de setembro de 2012

Meditação e Finalidades

Foi a partir do final do século XIX e início do XX que a influência da cultura oriental passou a se mais documentada, sobretudo essa estranha (para nós, ocidentais) prática de ficar sentado, na posição de lótus, esvaziando a mente de pensamentos por horas a fio. Uma atividade chamada Meditação. Qual a finalidade disso? Essa pergunta já é um grande X da questão entre as duas culturas: um pensamento finalista, ou intencionalista e o outro que procura, o tempo todo, afastar a mente das amarras da intenção.
Há uma cena no belíssimo filme “Sete Anos no Tibet” em que Brad Pitt faz um papel de um alpinista alemão famoso, que se esconde no Tibet durante a Segunda Guerra para não ficar prisioneiro das forças inglesas, demonstra as suas habilidades de escalada para uma jovem tibetana. Ele está com uma queda por ela e a disputa com um amigo, que também está preso lá pelo mesmo motivo que ele. Lá vai o cara todo pimpão tentando demonstrar que o gostosão lá é ele, olha como eu escalo o morro, olha como manejo as cordas, sou atlético, etc, etc. A moça olha para ele de forma neutra e responde que aquele tipo de demonstração só o faz parecer mais bobo. As pessoas de lá estavam sempre tentando domar o Ego, em vez de glorificá-lo. Pois, nós, ocidentais, tentamos sempre glorificar o Ego com as imagens de herói projetadas nas mídias, ou da mulher escultural, perfeita, que serve de enfeite ao herói. A moça do Tibete dá um fora no Brad Pitt e fica com seu amigo feioso, mais puro de coração. Convenhamos, uma escolha que a levaria à avaliação psiquiátrica desse lado do mundo. Aqui temos mais uma peça do quebracabeça: a Meditação é uma forma de acalmar o Ego, tirá-lo de cena, senão ele fica o tempo todo, correndo em círculos atrás de seus pensamentos. Mas a dúvida ainda resiste: para que serve isso?
Eu li em um livro sobre um mestre Zen que foi dar aula nos Estados Unidos sobre a Não Mente e a Meditação. Um jornal local fez uma reportagem sobre o mestre e suas aulas. A matéria dizia que a sua Meditação era perfeita para o Relaxamento e a redução das tensões da vida moderna. Um dos anfitriões americanos traduziu essa matéria, pensando agradar o mestre. Qual não foi a sua surpresa quando o mestre falou que aquela reportagem era “muito cruel”. Já se vai meio século que o Mestre achou que essa leitura era muito cruel e nós, ocidentais não sabemos onde está essa crueldade. A Meditação continua sendo comparada ou indicada como um Relaxamento do Corpo e da Atividade Mental que traz benefícios de modular as tensões de nossa civilização adrenérgica. Mas por que será que o homem achou essa leitura cruel?
Na Neurociência, estuda-se há décadas a interação entre as experiências e o meio ambiente sobre a expressão genética. Vários países, de diferentes culturas, tem protegido a relação da mãe com os bebês nos primeiros meses de vida. Estudos mostram que o simples reconhecimento do rosto ou da voz da mãe já produzem uma descarga de Endorfinas no Cérebro Emocional do bebê. Isso vai ter influência na capacidade de estabelecer conexões sociais agradáveis e confiar na vida. Ontem um paciente relatava o terror, na sua infância, de quando fazia uma arte e ficava fechado no quarto, esperando pela punição, muitas vezes física, que a sua mãe iria determinar. Essa rede neural, hoje, faz com que ele seja mandado embora sistematicamente de seus empregos, simplesmente por esperar da figura de autoridade uma punição severa por um erro banal. O ambiente relaxado e protetor da psicoterapia permite que ele revisite a cena, compreenda os seus efeitos na construção do software defeituoso que atrapalha a sua vida pessoal e amorosa. Podemos dizer que a sua mãe sabia que estava fazendo aquele estrago no futuro de seu filho? É claro que não. Estava tentando domar um menino levado, mas usou os seus próprios medos na tarefa. Os resultados não foram bons, então.
O que eu posso dizer ao Mestre Zen é que a meditação e os estados de mente relaxada tem, sim, efeito terapêutico e liberador de Endorfinas e Serotonina. Isso é muito importante para nós, ocidentais assustados. Como o bebê que reconhece o sorriso da mãe, podemos “usar” a Meditação para reeducar nossos Cérebros adrenérgicos demais. Eu sei que a percepção do Sábio oriental é que a Meditação é uma prática de alargamento de Alma e de Consciência. É muito mais do que um banho de Endorfinas. Mas nós somos mais jovens, cultural e espiritualmente. Precisamos saber para o que serve e como usar a coisa. Isso pode ser um bom começo. Podemos sorrir mais e acreditar mais na vida. Isso poderia diminuir muito nossa violência interna e externa. Vamos praticar.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

A Nova Adolescência

Na minha formação como Psiquiatra, dei a preferência por uma especialização que na verdade é uma não especialização, que é a Psiquiatria de Interconsulta, ou Hospitalar, se preferirem. Um psiquiatra no hospital geral é, antes de tudo, um generalista. Atende a menina que tomou os remédios da mãe porque brigou com o namorado, no PS, e o velhinho que, por conta de uma Infecção Urinária está confuso na UTI. É uma Psiquiatria de Interface e os leitores desse blog já devem ter notado que eu adoro as questões que estão na interface de Psiquiatria, Psicologia e Neurociência. O IBAMA está concluindo estudos para me tombar, já que a tendência, nas últimas décadas, é de hiperespecialização. Outro dia fiquei novamente emputecido com essa tendência. Uma pessoa muito próxima estava iniciando um tratamento à base de Hormônios Tireoidianos e passou a apresentar taquicardias eventuais, seguidas de desconforto ansioso. Ao apresentar a queixa para a médica Endocrinologista, foi encaminhada ao Cardiologista para investigação. O quê, Cara Pálida? A taquicardia é um sintoma desencadeado pelo uso do Hormônio Tireoidiano, o quadro coincidiu com o aumento da dose, e agora vamos passar pela floresta de testes cardiológicos por conta de efeitos colaterais perfeitamente manejáveis? Não foi ao Cardiologista, o quadro se estabilizou gradativamente e eu, psiquiatra, tive que explicar os efeitos colaterais da medicação endocrinológica. Continuo um psiquiatra de interfaces, não é mesmo?
Uma coisa que vem me impressionando é o que está acontecendo com essa geração Facebook, que está chegando à casa dos vinte anos. É uma geração de excessos: excessos de Internet, de games, de Álcool, de intensidade. Acho que levaram a sério o mito apocalíptico da vez, que é prevê o final do mundo agora em Dezembro. Tudo é vivido com pressa e intensidade e os resultados dessa velocidade acompanhamos todo dia no noticiário. Acidentes, bebedeiras, overdoses. São todos os pós adolescentes que atropelam corredores de rua, bebem até o coma alcoólico e caem de ribanceiras? Não, é claro que não. Mas há um estranho deslocamento dos quadros antes vistos pela Psiquiatria da Adolescência nessa geração, como se a Adolescência agora estivesse de estendendo até os trinta anos (ou mais). Nossa Geração Autoestima, hedonista e narcísica, exacerbou a busca incessante do excesso e do compulsivo, gerando comportamentos que deixam os pais desnorteados.
No Prólogo de minha Dissertação de Mestrado, eu fiz uma alusão a uma deusa grega, protetora dessa transição da infância para a idade adulta, Ártemis. Ela é uma deusa sempre menina, sempre jovem, sem plástica nem uso de hormônios esteróides. Ártemis anda sempre com uma saia curtinha, é a precursora da minissaia, para poder correr mais rápido. É eximia no manejo do arco e flexa. Hoje em dia, Ártemis seria a deusa das Redes Sociais e da volta para casa depois das baladas, onde o risco de acidentes é 8 vezes o normal. Essa pequena deusa tem sido muito invocada nesse consultório. Ela protege o jovem na jornada que separa a infância da idade adulta. Ajuda o jovem a passar pela noite escura na selva sem se contaminar pela bestialidade das feras.
Ártemis anda muito ocupada com essa geração, filmando baladas e sexo e colocando no Youtube, capotando carros ou fugindo de Blitz, para serem metralhados na esquina.
A parte mais difícil é trazer os pais para a posição de pais. Estamos numa época em que todos querem permanecer ou voltar, para a adolescência. Envelhecer é o maior pecado. Que a pequena deusa Ártemis ilumine e proteja os jovens e suas famílias em sua jornada e que nada destrua esse caminho. Salve, Ártemis.

domingo, 16 de setembro de 2012

Insight

Havia um chefe no Instituto de Psiquiatria que submetia alguns escritos a nós, escravos, para ouvir a nossa opinião de escravos. Em um de seus escritos, ele dizia que algum dia descobriríamos a Neurociência do Insight e como produzí-lo. Insight significa, em tradução livre, uma visão interior, uma capacidade de enxergar as experiências de uma forma mais ampla e libertadora. Isso não pode ser reproduzido em laboratório. No dia a dia do consultório, é razoavelmente comum ouvir alguém ter essa pequena epifania nas situações mais estranhas. Uma frase de um amigo numa mesa de bar pode dar essa visão amplificada e nova para uma situação. Geralmente uma frase que já foi dita e repetida uma dezena de vezes em terapia, mas que muda completamente de figura com algumas cervejas e o momento afetivo vivido no boteco.
O Insight é uma experiência sincrética. Não dá para reproduzí-lo com um modelo experimental clássico. Foi isso que eu respondi para o meu chefe. A frase dele, portanto, era uma bobagem. Mas o que é uma experiência sincrética?
Esse palavrão significa que é um momento em que Emoção e Cognição se fundem, gerando uma nova visão da vida ou de um problema. Vou voltar a uma cena do "360" de Fernando Meirelles, não porque tenha achado o filme excepcional, mas, antes, essa cena é excepcional. Está descrita no post anterior. Anthony Hopkins faz um personagem carregado de imensa tristeza, que vaga pelo país procurando pela filha desaparecida. A cena transcorre em uma reunião do AA, em que ele descreve exatamente a experiência do Insight. Aliás, duas.
Na primeira, ele conta que encontrou um padre vigoroso em uma reunião do AA, anos antes. O padre notou que sua dependência do Álcool tinha destruído sua energia e ele parecia um cara imprestável e pouco confiável. O homem, um alcoólatra convicto da inexistência de um Deus, agarrou o tal padre em completo desespero e suplicou, suplicou pela oração mais suscinta, mais direta para atingir o coração de Deus e tirá-lo daquele sofrimento. O padre olhou fundo em seus olhos e respondeu que a oração mais suscinta para atingir o coração de Deus é "Fuck it!". Em tradução livre, "Foda-se". Nesse momento, foi como tivessem retirado uma tonelada das costas desse homem. Ele olha para os poucos participantes da reunião e fala: "Já pensou, ouvir uma oração dessas da boca de um padre?". Como eu gostaria de dar uma interpretada dessas, ainda mais dentro de uma batina. Vivemos presos às angústias do que será o futuro, ou às culpas do passado, do que fizemos ou deixamos de fazer até chegar a esse ponto. Essa "oração" é realmente bonita, porque coloca o personagem fora da ruminação infinita dos "Por Quê?" e nos lança para a única coisa que temos, que é o Aqui/Agora.
O segundo Insight para esse personagem é ter conhecido uma jovem brasileira, interpretada por uma jovem atriz chamada Maria Flor. Ela tinha ficado de encontrar com ele para o jantar, em um Aeroporto bloqueado pela neve. Quando ele chega, ela havia saído com um rapaz que acabara de conhecer. Ela deixou uma nota se desculpando, mas tinha obedecido a esse impulso, porque "Só se vive uma vez". Essa frase também abriu um mundo para o personagem de Tony. Ele fala, emocionado, que a sua busca pela filha desaparecida terminava ali. Se ela quisesse encontrá-lo, sabia onde procurar. Se estava morta, então estava morta. Ele promete viver a vida, em sua simplicidade, um dia de cada vez, porque "só se vive uma vez". Os visitantes desse blog podem notar que eu curti muito a cena, não é mesmo?
O Insight é o evento, a frase, a emoção aleatória que faz a Consciência saltar, de uma visão mais limitada para outra mais ampla. Ela nos liberta do nó do medo do futuro e da culpa do passado, em um só movimento.
O meu chefe no HC não mais submeteu os seus escritos para eu ler. Ele também criticava o meu estilo "muito literário" de escrever. Como se pode perceber, isso não mudou um milímetro nesse vinte anos que me separam daquela conversa. O Insight não pode ser reproduzido pela Neurociência. E meu estilo continua literário. "Fuck it".

domingo, 9 de setembro de 2012

Ajuda

Há uma cena no novo filme de Fernando Meirelles, “360”, particularmente forte: Anthony Hopkins faz o papel de um pai procurando por uma filha desaparecida, que acaba conhecendo uma jovem brasileira voltando para o Brasil de coração partido, após uma separação. O filme mostra essas vidas se entrelaçando, com filmagens em Viena, na França, na Inglaterra. A cena com Tony é particularmente forte, pois o seu personagem está em uma reunião de Alcoólicos Anônimos, contando a sua história. O ator revelou que ele usou elementos de sua vida pessoal para fazer a cena, já que passou muitos anos em tratamento e passou por muitas reuniões do AA como aquela do filme. Eu assisti à cena sabendo desse detalhe, que a produção do filme deve ter vazado para atrair atenção, claro. Na cena, ele descreve o quanto odiava aquelas reuniões em seus dias de alcoolista mais grave. Odiava os depoimentos, o clima baixo astral e, sobretudo, odiava as partes dos Doze Passos em que ele, um ateu, tinha que reconhecer que era impotente em vencer a Dependência sozinho, ele precisava da ajuda de um Ser Superior e Espiritual para enfrentar a compulsão. Como um ateu, que acreditou a vida toda em seu Ego e sua capacidade de fazer tudo baseado em sua força de vontade, como esse homem poderia reconhecer a sua impotência diante do Álcool e confiar em um Ser Superior? Essa foi a questão que deve ter unido ator e personagem naquela cena.
Há uma passagem no Novo Testamento que me ocorreu assistindo a essa cena. Um centurião romano vai pedir ajuda a Jesus, pois sua filha está muito doente em casa. O que chamou a atenção foi a forma que o soldado pediu por essa ajuda: “Eu não sou digno da Tua Presença em minha morada, mas se dizes uma palavra ela estará curada”. Jesus responde que ele já pode voltar para a sua casa, que a sua filha já está recuperada, pela força de sua fé.
Quando enfrentamos uma dificuldade, uma doença, tentamos equacionar o problema com as ferramentas do Ego: procuramos por diagnóstico, por algum remédio ou algum bisturi que conserte o que está quebrado. O que eu quero dizer é que a atitude é sempre de combater o que achamos que seja o mal. Não é incomum que esse enfrentamento acabe piorando o problema: a moça que não consegue um companheiro, quanto mais se preocupa com o assunto, mais acaba inconscientemente afastando as pessoas, sobretudo do sexo masculino, pois o medo de se desapontar supera qualquer outro sentimento e esse medo sempre acaba atrapalhando tudo. Toda semana começamos uma dieta ou tentamos perder peso, mas no final de semana caímos em tentação em algum churrasco ou exageramos na sobremesa. O que eu quero dizer é que as coisas que o Ego se propõe tem um determinado alcance, o que depende de mudanças profundas de hábitos para darem certo. Criar o hábito de fazer exercícios, mudar a alimentação, enfrentar uma dependência (e somos dependentes de muitas, muitas coisas) é difícil e essa dificuldade é bastante relatada nesse blog, sob diversos ângulos diferentes.
O centurião consegue retirar o Ego da frente e se abre para a Ajuda, que é misteriosa. “Eu não sou digno da sua Presença” tem o mesmo efeito do Passo que o personagem de Anthony Hopkins detesta no filme: é saber que precisamos de ajuda, de uma ajuda misteriosa quando todas as ferramentas da vontade acabaram falhando, ou se esgotando. Pode parecer algo simplesmente Metafísico ou uma carolice de junguiano, mas talvez exista um fundamento também neural para essa “manobra”.
Havia um emprego onde eu atendia uma quantidade excessiva de pacientes em um curto período de Ambulatório. A tentativa de ser completamente eficaz ou dar um nível de atendimento próximo ao do meu consultório, onde tinha um tempo muito maior para cada atendimento, me deixava tenso, com dor de cabeça e, pior, errando mais do que o normal. Comecei a fazer uma manobra cognitiva, ou uma pequena oração dependendo do ângulo que se olha: imaginava que, sozinho, não conseguiria ajudar ninguém. Precisava de alguma ajuda, de uma forma diferente de atender. Deu certo. Os atendimentos ficaram mais leves, o tempo parecia se esticar nas consultas e a tal “ajuda” vinha. Isso pode ser o Espírito Santo, mas pode também ser um Cérebro que funciona de um jeito completamente diferente quando esvaziamos as expectativas e pedimos ajuda.

sábado, 8 de setembro de 2012

O Deus que Lava Pratos

Há um filme antigo, “O Fio da Navalha” sobre a busca espiritual de um homem da alta sociedade inglesa que vai até a Índia encontrar a sua jornada interior. O filme é antigo e vez ou outra acaba passando na TV a cabo, eu assisto um pedaço e volto a zapear, hábito masculino que as mulheres adoram. Uma cena que me ocorreu antes de iniciar esse post foi o personagem principal, interpretado por um jovem Bill Murray, conversando com um hindú, ambos encima de um barco a remo, sobre um belo lago. O hindú está lavando os pratos e eles estão tendo uma conversa sobre a natureza de Deus. O homem de pele escura e bata cor de creme observa que os ocidentais constroem igrejas, catedrais e espaços portentosos para encontrar com Deus. Para ele, Deus estava em cada prato que ele estava lavando, em cada pequeno movimento da bucha e da água do lago. O personagem de Bill Murray respondeu, de bate pronto: “Você pode então lavar as minhas panelas, Sr Bispo?”
Uma coisa que os neurobiólogos, psicanalistas e materialistas em geral dizem é que a ideia de Deus é uma forma de construção universal do homem aterrorizado diante da vida e da morte. Sobretudo da morte. O homem criou assim uma vida depois do final de nossa vida biológica e um Ser Supremo que protege os bons e castiga os maus. Uma espécie de Ordem intrínseca no meio do inescrutável destino. Desde a Renascença que a subjetividade humana tem eliminado de nossas equações a presença de alguma causa motriz não Física. Deus e as divindades foram exilados para o campo da Metafísica e da crendice popular. A nossa vontade de trancendência virou um sintoma neurótico.
Outra fonte inesgotável de sintomas neuróticos está apontado por aquele hindú no filme. Esperamos que as nossas boas ações sejam recompensadas. Esperamos pelo grande sucesso e reconhecimento, as moças esperam pelos happy endings das comédias românticas. Quando a recompensa não vem, tentamos com mais força. Ou muita gente passa a viver em um mundo seco, sem ordem ou esperança, onde somos comandados por genes egoístas e instintos primitivos. Outros se entregam para a sensação de absurdo e de vazio. Construímos grandes catedrais e elas são fonte de turismo e de lucros. Pensamos que vamos encontrar uma resposta dentro ou fora delas, ou a sensação de finalmente encontraremos algum sentido quando os objetivos forem cumpridos. Isso gera mais frustração. Por isso gosto tanto dessa passagem do filme.
Os budistas dizem que a primeira das nobres verdades é a existência do Sofrimento. O sofrimento é parte integrante de nossa experiência encarnada. A sensação de Vazio, de Ânsia, de Medo do Futuro. Aqui é um ponto em que a Ciência Materialista se encontra com a Religião. A angústia diante do futuro é uma fonte inesgotável de medo e de Insegurança, talvez a mãe de todos os pecados e todas as mesquinharias humanas.
O homem lavando pratos sobre águas calmas nos mostra uma tarefa que recebemos sem saber da Divindade Invisível: podemos criar harmonia no mundo caótico, podemos arredondar as pontas e tornar as espetadas menos dolorosas. Podemos começar lavando os pratos.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Mulan e a Filosofia

Sempre gostei de dar aulas de Psicologia Junguiana usando alguns desenhos da Disney, clássicos ou não. Cheguei a escrever um livro que se baseou completamente na Branca de Neve de Walt Disney, justamente por ter atravessado várias gerações, dos meus avós a meus filhos: todo mundo se rende aos figurinos retrô de Branca de Neve e ao charme dos anões. Já tivemos um técnico da seleção com o nome de um dos sete anões, Dunga (infelizmente o apelido não deixou-o mudo, como o personagem).
Nos últimos posts venho abordando, a pedido de um leitor, o tema da Donzela Venenosa, uma figura feminina que representa para o homem o canto da sereia, o estado de quase possessão e fascínio que algumas mulheres exercem sobre os homens, muitas vezes causando a sua ruína. Algumas leitoras se queixaram indagando se as mulheres já pagaram muito o pato da tal Donzela Venenosa. Desde o Genesis que aprendemos que os males do mundo e a expulsão do Paraíso se deram justamente quando Adão resolveu dar ouvidos à sua esposa, inaugurando toda uma era de maridos que fazem bobagem inspirado nas idéias das respectivas. Para piorar a situação, a salvação veio por intermédio de um Homem-Deus quem, apesar das lendas e das fofocas, parece que optou por não se casar. Senão não conseguiria salvar o mundo, afundado em prestações e despesas com os cartões de crédito. E as mulheres? Elas também não são vítimas do Masculino Negativo, o Vampiro, ou a Fera, ou o Agressor? Claro que são.
Hoje apareceu em sonho de uma cliente a imagem dela comendo um pacote de salgadinho que não era seu. Lá dentro havia uma agulha, que ela engoliu inadvertidamente. Tentou arrancá-lo com a mão, conseguiu, mas isso gerou uma infecção. Ela esperava, no sonho, a vinda do médico com o resultado do exame, para saber se ainda havia a infecção. Com as associações livres, chegamos à conclusão que ela comera as batatas de seu pai. A agulha na garganta representava a sua dificuldade de falar as coisas, sobretudo manifestar as suas necessidades, quase transplantadas da Psique de seu pai. No sonho também havia um Andrógino, um homem ambíguo que a seduzia, seduzia até ela ficar completamente envolvida. Esse cara realmente existia em sua vida e tinha esse comportamento. Após o encontro amoroso, ele sumia e passava a tratá-la como mais uma ficante de sua equipe ou pior, uma velha amiga. A infecção na garganta do sonho representa a depressão que essa brincadeira de Gosta-Se Aproxima- Se Envolve-Fica- O Cara Some acabou gerando nela. O preâmbulo aparentemente nada a ver desse post deriva desse momento da sessão, em que lembrei de um desenho dos Estúdios Disney, “Mulan”. Não sei se os leitores assistiram, é um desenho que já tem uns quinze anos.
Mulan é a filha única de uma família chinesa. Ela é moleca e tem uma relação muito especial com os bichos da pequena fazenda de seu pai. Quando tenta se qualificar para um bom casamento, único destino de uma filha de uma família medieval chinesa, o resultado é catastrófico. Mulan tem uma família pequena e amorosa. Um belo dia vem a convocação para o exército: toda família precisa mandar um homem para a guerra com os hunos. O único candidato da família de Mulan é seu pai, que tem uma lesão grave no joelho. Sabendo que ele não resistiria se fosse para a guerra, Mulan se traveste como homem e entra no exército chinês, onde vai começar a sua jornada em busca de sua própria feminilidade. Ela se apaixona por seu oficial, é claro, mas a sua identidade precisa ser escondida, sob risco de morte.
Mulan representa profundamente as questões da mulher pósmoderna. A moça do sonho, ao comer as batatinhas de seu pai, acaba engolindo uma agulha, o que representa a ferida que lhe foi transmitida diretamente. O homem que não consegue falar, não consegue se mexer e nem engolir as dificuldades da vida. Como Mulan, ela teve que se vestir de homem, fazer MBAs e competir no mercado de trabalho. Como Mulan, ela se apaixonou pelo “tenente” de sua empresa, mas teve que engolir o seu desejo para vencer no jogo corporativo. Hoje ela ajuda a velhice de seu pai e ajuda a amparar o seu “joelho” ferido. Claro que ela encontrou o seu Vampiro, o homem de sucesso que promete ser exatamente o contrário de seu pai choroso. É claro que ela comeu o pão que o diabo amassou e pisou nessa paixão. Ela veio para a psicoterapia para tratar a sua “infecção” psíquica. No sonho, já está bem melhorada. Assim espero.
O Masculino e o Feminino Negativos aparecem em nossa vida para testar nossos limites, abrir caminhos e tirar a nossa zona de conforto. É por isso que eu detesto o nome Anima ou Animus Negativo. São relações sofridas mas que, bem trabalhadas, levam uma menina como Mulan a conquistar o mundo. O que vai tornar a experiência positiva ou negativa é o que fazemos com ela.

domingo, 2 de setembro de 2012

Menina Veneno

Nos comentários do post de Sexta Feira, sobre a Donzela Venenosa, tivemos o ponto de vista de um leitor e suas perguntas sobre como superar esse tipo de relação. Uma seguidora desse blog também colocou a dificuldade com o Masculino Destrutivo e seus efeitos nas mulheres. Pronto. A guerra dos sexos chegou a esse blog. Vou tentar responder a algumas dessas questões.
Fico imaginando se a Neurociência Cognitiva vai realmente enterrar de vez a Psicologia. Digo isso porque já criaram um termo para descrever os casos de amor que só trazem sofrimento: a Dissonância Cognitiva. São relacionamentos em que ficamos presos a pessoas e situações de maus tratos por parte do chefe, dos pais ou da namorada. Toneladas de livros de autoajuda sugerem que no Jogo do Amor ganha mais quem pode perder. A Neurobiologia, ou a Neuroantropologia, ou a Neuro Alguma Coisa fala dos algoritmos sexuais: no jogo do flerte, olhamos para nossa posição no Mercado do Amor para escolher a melhor parceira/parceiro. Contam vários fatores: posição social, tamanho da barriguinha, inteligência, etc, etc. As fêmeas procuram por machos fortes e protetores, os machos pelos melhores quadris e caracteres sexuais que não preciso mencionar. O jogo se caracteriza, para os machos, de espalhar seu DNA no maior número possível de fêmeas e para as fêmeas, de capturar o Macho Alfa e fazê-lo procriar e trocar as fraldas das crias. Esse jogo consome literatura, cinema, poesia e uma indústria do Jogo do Amor e dos Algoritmos Sexuais. Será que a discussão sobre o Amor entre homem e mulher vai ser discutido assim nos congressos e nas bancas da Ciência?
Eu costumava dizer que todo homem precisa de uma Vaca e toda mulher precisa de um Vampiro. A Donzela Venenosa representa essa mulher que faz gato e sapato do homem. Exerce a tal Dissonância Cognitiva como ninguém.
No filme sobre o nascimento da Psicanálise, “Um Método Perigoso”, Jung e Freud, com toda a panca de gigantes de nossa Cultura e pioneiros da Alma humana, foram feitos de bobos por Sabine Spielrein, pintada como heroína no meio do clube do Bolinha da nascente psicanálise. A moça seduziu o seu terapeuta, teve um caso com ele, pressionou-o até o limite para largar a família e viver com ela em uma eterna prisão sexual. Uma mulher bela, intensa, sexualmente liberada no início do século XX, vamos combinar, era muita coisa para um Jung só. Ele teve que se desligar da Psiquiatria de Bleuler, a mais avançada do mundo na época, por conta do caso rumoroso. Depois a moça foi reclamar com o papai Freud que o seu filho traquinas, Jung, tinha aprontado com ela. Mais lenha na fogueira da crescente irritação entre ambos, que levou-os ao rompimento. Sabine Spielrein pegou Jung bombando na carreira, fazendo conferências e pesquisas de ponta em todo mundo, depois aclamado como Príncipe Consorte da Psicanálise e deixou-o, mais de uma década depois, banido da Psiquiatria, rompido com a Psicanálise e em quadro de que hoje chamaríamos de uma Depressão Maior, que levou anos para superar. Esse é o serviço da Donzela Venenosa, ou da Anima Negativa: prender o homem em seus encantos, jogar com a sua fragilidade e seu fascínio, exigir sacrifícios que ele não pode fazer e deixá-lo depois como uma manga chupada. Mas esse foi realmente o papel da moça na vida do psiquiatra suíço? É claro que não. A paixão e a prisão sexual que ela proporcionou levou Jung aos limites da própria resistência, tirou-o de sua vidinha protegida e despertou a sua Alma. O caso com Sabine abriu caminhos, deu coragem e expandiu a Consciência do jovem psiquiatra. O rompimento com a Psiquiatria da época e com Freud eram uma questão de tempo, ela apenas foi catalizadora. Uma musa dolorosa.
A Donzela Venenosa, assim como o Vampiro, são figuras arquetípicas de relacionamentos que trazem muito sofrimento, normalmente porque o ser amado não ama o apaixonado, não retribue o seu amor gigantesco, mas também não abre mão de ter aquele amor à sua disposição. Não é preciso ir longe para localizar pessoas sofrendo desse desencontro amoroso. Casamento desfeitos, empregos perdidos e horas e horas no divã são gastos por esses amores que parecem já nascer destinados a não se consumar. Uma pergunta do leitor: como sair dele? Uma resposta clara: não sei. Acho que não saímos desse tipo de amor, ele vai saindo da gente. A percepção que amor não é isso, o sofrimento em si e, sobretudo, a percepção que a Donzela Venenosa, bem como o Vampiro, não desejam o ser que os ama, desejam antes serem amados, ou atendidos, mas não desejam oferecer muita coisa em troca.
Difícil é assumir a perda, o enorme investimento amoroso como prejuízo e seguir em frente, à procura de alguém que realmente saiba o que é amar. Será que a Neurociência vai transformar isso também em teoria?

sábado, 1 de setembro de 2012

A Idade das Células

Uma vantagem de se acumular décadas de prática dentro da Medicina é poder acompanhar a vida de uma pessoa por vinte anos, como eu já tenho no meu portfólio. Uma dúvida que não quer calar no consultório é a muito comum: “Se eu tomar essa medicação por muito tempo, isso vai acabar causando lesões em meus neurônios?”. Tenho um caso de uma senhora que já atendo nessas décadas e já ouvi muito essa dúvida, sobretudo porque ela acompanhou, de forma muito dolorosa, a decadência intelectual e a morte de sua mãe em quadro de Alzheimer. A diminuição de sintomas depressivos e ansiosos e os exercícios físicos que, depois de 15 anos pedindo, ela finalmente introduziu em sua rotina, deixaram o seu Cérebro bastante saudável e muito longe de manifestar os sintomas demenciais que sua mãe, na sua idade, já apresentava de forma importante.
De uma vez por todas: o uso de medicamentos, de forma correta e não abusiva, é um fator de neuroproteção. Mas há outros cuidados a se tomar.
O processo de envelhecimento das células conta com alguns fatores, como o estresse oxidativo aumentado, metabolismo celular energético prejudicado, acúmulo anormal de proteínas e organelas danificadas. Já se pode falar hoje me dia em um envelhecimento normal e patológico. Podemos reforçar os processos normais e reduzir o envelhecimento patológico diminuindo os estressores, com exercícios físicos e uma dieta cada vez mais distante da dieta inflamatória e excessiva de nossa pósmodernidade. O ditado antigo que “depois dos 80 anos, envelhecemos todo dia” significa que a progressão da idade deixa as pessoas cada vez mais sensíveis ao estresse oxidativo, à falta de estímulos e ao sedentarismo. Por muito estranho que pareça, a diminuição de aporte calórico aguça o funcionamento cerebral. Nesta semana uma paciente que passou a semana no Spa, com uma dieta muito restrita, descreveu a sensação de abertura afetiva e exacerbação dos sentidos que a falta de comida produziu em todos. Da mesma forma, a entrada excessiva de energia tem efeito contrário. A impressão muitas vezes preconceituosa que as pessoas obesas são mais lentas ou mais preguiçosas pode ter uma justificativa neurofisiológica. Todos conhecem essa sensação de lentificação em períodos de excesso de comida ou ganho de peso. O Diabetes, também uma consequência do ganho de peso excessivo, é mais um fator de envelhecimento de nossas células.
Os exercícios físicos aumentam a produção de BDNF, sigla em Inglês para Fator Neurotrófico Derivado do Cérebro, um peptídeo que promove o aumento dos axônios e de terminais sinápticos, ou seja, faz os neurônios ampliarem as suas conexões e riqueza de trocas. O estresse físico e mental vai deixando os neurônios carecas, as redes neurais repetitivas e as associações pobres. Os exercícios aumentam esse peptídeo, diminuem o estresse oxidativo, rejuvenescem as células. Convenci depois de muitos anos a paciente (citada acima) que se exercitar era a melhor vacina contra o Alzheimer que afetou a sua mãe. Usei o medo como fator motivacional. No amor e na guerra vale tudo, e Medicina é amor e é guerra.
Outro fator de estímulo aos nossos neurônios é a exploração mental do mundo. Encontrar graça nas atividades, buscar novos desafios e manter a exploração de novos projetos é fundamental para nossas células. Quando o idoso decide que a vida perdeu a graça e não há mais nada que possa querer ou buscar, aí não há antidepressivo que dê conta. Não é uma experiência agradável no dia a dia da clínica atender esse tipo de idoso, que eu chamaria de “La vecchiaia é bruta”, em tradução livre do Italiano, “a velhice é uma merda”. É uma pena, pois vários estudos indicam que os idosos podem ter um estado de humor e bem estar maior do que nas outras idades. Aqueles velhinhos serelepes fazendo ginástica e festa nas reportagens de TV estão realmente curtindo as atividades. Outros estudos mostram que diminuir o uso de gorduras saturadas e aumentar o consumo de vegetais também estimulam o aprendizado de novas tarefas.
Uma coisa que me dá um grande comichão, como médico e como psiquiatra, é descobrir porque a lição sabemos de cor, só nos resta aprender, como diria o poeta. Já sabemos de tudo isso, mas a mudança de hábitos necessita de um impulso interno muito intenso. Os médicos devem virar consultores motivacionais, ou incorporar em sua entrevista algumas técnicas de Motivação para mudança de hábitos. Esse é um dos cursos que eu poderia montar para ganhar dinheiro fácil, mas preciso de técnicas de automotivação que me dão muita preguiça.