quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A Relação Abusiva

Lembro de um curso na minha pós que foi particularmente bacana e ilustrativo: como montar uma seita fundamentalista. Não chegamos ao nível de como montar um homem bomba, pois eram tempos anteriores ao 11 de Setembro. Mas a técnica básica nós aprendemos: isolar as pessoas do convívio exterior, de preferência em lugar ermo, sem muitos recursos. Se não tiver luz elétrica, melhor. Importantíssimo é impedir as pessoas de dormir, ou bagunçar todo o ciclo vigília-sono de seus trainees fundamentalistas. Repita, de diversas formas, as mensagens que você queira incutir nos “alunos”: primeiro sugerindo, depois afirmando, finalmente gritando slogans e memes que vão penetrar, de forma cada vez mais profunda, na cabeça das pessoas. Privações são benvindas: privação de comida, de banho, de luz do sol, tudo o que oferece às pessoas orientação, referência. Finalmente, incentive e premie os neófitos que repetirem as mensagens e a ideologia transmitida e questione, isole e humilhe os dissidentes e os questionadores. Em alguns dias você terá fiéis e fanáticos seguidores após uma boa lavagem cerebral.
Venho atendendo alguns casos que me fizeram lembrar dessas aulas. Não estou atendendo nenhum homem bomba, entretanto. Eles não costumam buscar tratamento. As seitas ou os grupos terroristas não são o único lugar onde as pessoas possam passar por isso. O lugar onde pode ocorrer esse condicionamento é na relação abusiva.
A fórmula é muito parecida com as das seitas. Inicialmente, o parceiro da relação abusiva vai tentar isolar a vítima, digo, o cônjuge, de seu meio social. O marido pode implicar com as aulas de dança, ou as tardes no clube; a esposa vai cismar com a pelada de final de semana ou com as Terças Feiras de carteado. Afaste a cara metade de seus amigos e dos interesses que não seja discutir a relação. Uma técnica eficaz é questionar a natureza e a real intenção das pessoas. A família também deve ser afastada, em nome do amor. Os encontros amorosos devem ser ardentes e intensos. Os desencontros também. Uma característica da relação abusiva é essa: quando é bom, é muito bom; quando é ruim, é intolerável.
A relação abusiva usa os pontos fracos do ser amado. Se a pessoa tem medo da solidão, ameace sempre e cumpra, algumas vezes, com o abandono. Uma técnica consagrada é a Dissonância Cognitiva: puna, desmereça e deixe o ser amado a pão e água, durante a maior parte do tempo. Dê afeto, reconhecimento e bons momentos de forma errática, inconstante. Isso faz que a pessoa busque, sem perceber, pelos poucos momentos agradáveis em meio a um cotidiano de cobranças e privações.
Se o leitor já viveu ou está dentro de uma relação com essas características, procure ajuda. Uma relação a dois não é um passaporte para o Paraíso, mas deve ficar, sempre que possível, longe do Inferno. É que ambos os amantes merecem e devem esperar.

domingo, 25 de novembro de 2012

Autismo Virtual

Na década de 40 do século passado, um psiquiatra infantil, uma especialidade nascente na época, chamado Kanner, pegou um termo emprestado à Esquizofrenia, o Autismo, para descrever um transtorno extremamente grave em crianças. Ele usou o termo por observar que as crianças com esse quadro viviam em uma espécie de mundo próprio, com pouco ou nenhum contato ou interesse no mundo exterior. Kanner, influenciado pela Psicanálise da época, acabou levantando uma hipótese que fez muito estrago durante décadas: ele imaginou que o Autismo fosse causado por mães muito duras ou indiferentes a seus filhos: as “Mães Geladeira”. Fico imaginando gerações e gerações de mães se torturando por achar que uma doença que hoje é entendida como um transtorno pervasivo e devastador do desenvolvimento fosse causado por alguma falha em seu afeto ou sentimento pelo filho ou filha portadora dessa condição.
Hoje o autismo é um espectro diagnóstico que abrange muitas causas diferentes, mas nenhuma delas deriva de mães pouco calorosas afetivamente. O que Kanner deve ter notado foi a baixa interação entre a mãe e a criança, muitas vezes derivada da dificuldade da própria criança em se interessar afetivamente pelo mundo exterior.
Não sou psiquiatra infantil e pouco atendi ou mesmo diagnostiquei casos de Autismo em minha vida como médico. Tenho uma opinião que a principal dificuldade ou deficiência de uma criança autista seja a de exploração do ambiente. A presença de um comportamento exploratório é nuclear para todo o nosso processo de aprendizagem. Quem já conviveu com bebês já pode ter observado uma cena inusitada, o bebês brincando e contemplando o movimento da própria mão. Pode passar muito tempo explorando a mistura de visão com a sensação de estar mexendo os dedos, que nessa fase estão completamente desacoplados. Para desenvolvermos qualquer capacidade e aprendizado, precisamos explorar, tentar, errar, tentar de novo, até desenvolver esquemas motores, na infância e mentais, quando adultos, para encontrar saídas para problemas e excelência em nossas capacidades. Uma criança que trabalhe para o tráfico em uma favela pode ter uma capacidade superior a de um arquiteto ou motorista de taxi para construir mapas mentais de caminhos e rotas de fuga dentro dos labirintos de barracos. É um conhecimento muito útil para fugir de perseguidores e salvar a própria vida, além de fazer entregas ou dar recados. A criança pode ser semianalfabeta ou não saber nada sobre a Geografia de seu país, mas domina a Geografia do morro como ninguém. O interesse de fazer parte do grupo, ganhar dinheiro e poder dentro da hierarquia social desenvolve essas capacidades até o nível da mestria.
Há um filme de alguns anos atrás da Pixar - “Wall-E”, sobre um robô obsoleto num planeta Terra que virou um depósito de sucata. A Civilização passou a viver em naves estelares, cada pessoa tem o seu computador e passa o tempo todo em jogos e facebooks interplanetários. As pessoas não se interessam mais por nada que não seja a telinha, estão obesas e sedentárias mas, sobretudo, alienadas dos processos da vida.
A ilusão de que tudo está a distância de um clique pode estar tornando as pessoas mais parecidas do que deviam com a humanidade de Wall-E. O estranho é que nunca tivemos tanta ferramentas para ajudar o nosso comportamento exploratório. Podemos usar as mesmas redes para procurarmos informações, empregos, amor incondicional ou a cara metade, mas isso provoca o efeito paradoxal de sedação de nossa capacidade exploratória, numa espécie de autismo virtual.
Os especialistas, consultores e educadores deveriam virar experts no desenvolvimento dessa ferramenta, fundamental para todo o desenvolvimento da raça humana: a curiosidade.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Dieta do Melão e do Abacaxi


Ontem estava na praia, participando de forma involuntária da conversa de algumas tias da barraca ao lado. Não dava para não saber do que falavam, já que o faziam em tom de voz progressivamente alto e exaltado. Não, não estavam brigando. Estavam contando casos de sua vida cotidiana. Soube que uma delas iria ser madrinha de casamento de um sobrinho que a detesta. A noiva, entretanto, a adora. A sua irmã, mãe do rebento, não havia sido comunicada sobre o casamento. A sua irmã, segundo ela, “é uma pessoa horrível”. Não era possível, dada a proximidade das barracas e dificuldade de encontrar outra longe da conversa, deixar de notar a quantidade de cerveja e petiscos que animavam o já animado convescote. Pastéizinhos, sequinhos mas com pouco recheio, segundo uma senhora com formas avantajadas, salgadinhos, lula frita e sorvetinhos. Outra senhora conclamava o grupo a iniciar, na Terça Feira, a dieta do Melão e do Abacaxi. Por que não do Mamão e da Jabuticaba, minha senhora? Uma outra segredava, já depois de algumas latinhas de cerveja, que fora amante do marido por muitos anos e que ainda ficava insegura se ele “iria assumi-la” de verdade. Um velho professor me dizia que não há pior negócio na vida de um homem do que transformar a amante em esposa e a mocinha parecia confirmar a regra. Falava das intimidades do casal em um tom audível em um raio de cinco metros de barracas. Era a mais jovem do grupo e pode-se dizer que a tal insegurança não estava fazendo bem à sua forma, entre alguns pastéis e um pacote de Doritos. Aderiu entusiasticamente à ideia da dieta do Melão e do Abacaxi, antes de pedir mais alguma porção de frituras de praia, naquele óleo de boa aparência.
Eu li com interesse o capítulo sobre autoengano em um livro de Neurociência Cognitiva. Qual seria a circuitaria límbica responsável pela capacidade das pessoas serem completamente sem noção a respeito de seu próprio comportamento? O comportamento alimentar, por exemplo? O capítulo foi uma decepção. Fala do autoengano como uma capacidade quase ilimitada que temos de contar uma historinha para nós mesmos que vai apaziguar, temporariamente, as nossas culpas. Pode-se notar isso com muita clareza na barraca ao lado. A mocinha que conta para si mesmo uma historinha de que, agora que é “a oficial” e não a amante, deve ser amada por seus predicados todos (?) e não só por um rostinho bonito. A outra que enxugou algumas latinhas de cerveja, mas vai começar a dieta após o feriado. Vai enxugar alguns quilinhos com vistas às Festas do final de ano. A sua curva de ganho de peso deve ser progressiva nos últimos anos, mas ela é boa pessoa, ao contrário de sua irmã, que “é horrível”.
O autoengano é um mecanismo baseado me nossa capacidade, dada pelo nosso Córtex Pré Frontal, de traçar e projetar cenários para o futuro, possibilitando ignorar um presente pouco promissor. É como um mecanismo do jogador que já apostou e perdeu tudo, mas continua jogando baseado na visão de que a sorte vai virar e ele sairá da atual situação para a riqueza e o reconhecimento que nunca teve na vida. Ou do desempregado que recusa a proposta de emprego, após meses fora do mercado, porque “agora quer dar um upgrade na carreira e não vai aceitar qualquer coisa”. É fundamental para os mecanismos de autoengano essa capacidade de criar uma narrativa e um cenário para o seu futuro onde tudo vai dar certo.
Quem está lendo esse post poderia argumentar que esse mesmo mecanismo de projetar futuros improváveis e se lançar em jornadas temerárias são a base de todo o progresso humano, de todo ser visionário que acreditou no inacreditável e o fez acontecer, geralmente com muito sacrifício. Pois essa é a diferença fundamental entre o visionário e o autoenganador: o primeiro se lança no futuro que projetou. O último fica esperando o dia em que a sorte vai mudar, ou que a dieta do Melão e do Abacaxi vai funcionar, sem necessidade de mudança de seus hábitos alimentares e padrão de consumo de pastéis de praia.

sábado, 17 de novembro de 2012

Cinquenta Tons de Hades

Estou aqui curtindo o feriadão na praia. Trouxe livros de Neurociência, Psicoterapia Xamânica e uma edição especial do Mente e Cérebro. Bom material para blogar, pois esse blog já viu de tudo, de futebol a pães na chapa. Mas acabei comprando o livro que anda frequentando os nossos divãs, o “Cinquenta Tons de Cinza”. A família aqui reunida e acostumada com a leitura técnica, viu com grande estranheza esse que vos tecla na espreguiçadeira lendo um livro que parece reserva de mercado das luluzinhas. Será que o papai está virando o fio depois de velho? Os moleques tacharam o livro de pornografia e minha mulher chamou-o de erotismo de revista Contigo. Caramba. Um fenômeno editorial dessa monta e já amealhando tantos ataques?
Uma nova confissão: o que me interessa é tentar entender o que essas autoras Sub-Crepúsculo tem que conseguem tocar no Inconsciente Feminino Coletivo. Como que um livro em que uma menina virgem, estudante de literatura inglesa, se envolve com um milionário esquisito que vai lhe proporcionar uma relação de dominação e abuso, psicológico e sexual, pode ser tido e havido como um herói romântico, quase o homem ideal? Como a heroína dessa fábula moderna, Anastasia Steele, fala o tempo todo: Puta merda! Mudaram os príncipes ou mudaram as princesas?
A personagem principal é uma Perséfone. Para quem não conhece um dos mitos mais antigos e mais reveladores da Psique Feminina, lá vai: Deméter é uma deusa virgem, que rege os ciclos da Natureza e do plantio. Zeus, que não perdoa nenhum rabo de saia, tenta seduzi-la. Ela foge o quanto pôde, até se transformar um uma vaca para fugir do assédio. Zeus a percebe e se transforma em um Touro. O final da história é que Deméter dá a luz a uma filha, fruto desse quase estupro, que é Core. A menina vira a felicidade de Deméter. Protegida pela mãe, Core vive num mundo infantil e protegido, colhendo flores e vivendo idilicamente em comunhão com a Natureza. Zeus, sempre ele, fica incomodado com a puerilidade de sua filha. Pede ajuda a Hades, deus do Mundo Inferior, que deixa as profundezas do Tártaro para raptar a filha de Deméter. O chão se abre e o Ser das Profundezas rouba a menina. Deméter passa a vagar pelo mundo, procurando em vão por sua filha. A terra seca, as lavouras se perdem e os homens sentem fome e amaldiçoam os deuses. Zeus fica preocupado com essa perda de Ibope dos deuses olímpicos e vai encher o seu irmão nos infernos, de novo. Como é muito comum na Mitologia Grega, uma solução ambígua é promovida: Hades libera a menina, que já não é uma menina, se vocês me entendem: agora ela é Perséfone, Rainha do Mundo Inferior. Antes de devolvê-la para a Mami, Hades oferece uma romã para a moça. Ela come sem saber que seu ato a deixa presa para sempre ao Mundo Inferior. A partir daí, ela passa dois terços do ano com a mãe, deusa da agricultura e um terço (os meses do inverno e da entressafra) com Hades, deus dos Ínferos e, imagina-se, um gostosão.
Anastasia, heroína da saga, também passou a vida com a presença onipotente se sua mãe. O seu pai morreu quando era um bebê e o homem que reconhece como pai é um frágil sujeito, diluído na fieira de maridos que a mami colecionou. Ela é uma mulher bonita, desejada, mas que consegue se esquivar completamente de sua própria sexualidade. Sente-se feia, desajeitada e intimidada com homens poderosos. É virgem aos vinte um anos (qualquer semelhança com Bella, da saga Crepúsculo, não é mera coincidência). Conhece por acaso o bilionário sadomasoca Christian Grey (Grey em inglês quer dizer cinza, daí o trocadilho do título, “Cinquenta Tons de Grey”). Como Perséfone, Anastasia vai ser raptada pelo Deus dos Ínferos pósmoderno: bilionário, poderoso, com a beleza de um deus grego, absolutamente obcecado por ela, estudante de classe média, mal vestida e completamente alheia ao mundo inferior que o seu Hades vai revelar (o rapaz, além de todos esses predicados, é bastante bem dotado, para desespero do público masculino).
Grey tem vários pontos em comum com o vampiro Edward. O principal é a sua capacidade de enxergar em uma menina comum, alheia à própria beleza e sexualidade, uma deusa maravilhosa. Grey é obcecado por Ana assim como Edward é desesperado por Bella. Eles representam arquétipos adormecidos no homem pósmoderno, cada vez mais desprovido de sua própria masculinidade. Christian Grey é um Hades ferido e apaixonado, que não permite que Perséfone deixe o seu Reino. Pior ainda, ele descobre que seu Reino não vale nada sem Perséfone, digo, Ana. Isso num mundo em que os homens trocam facilmente uma noite de amor pelo controle dos videogames.
E.L. James, autora da trilogia, é ou não é um gênio, heim meninas?

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Indiana Jones e o Dalai Lama

Há uma passagem curiosa do Dalai Lama, que estava sendo entrevistado por um grupo de psicanalistas. Eles tentavam “salvar”o Desejo, numa tentativa de aproximação entre o Budismo e a Psicanálise moderna. Freud construiu um edifício teórico em torno da recuperação do Ser e de sua capacidade desejante. O Budismo, pelo contrário, traz em suas nobres verdades a existência do Sofrimento como condição comum de nossa passagem por esse planeta esquisito. Para interromper esse ciclo eterno de desejo-frustração- dor, Buda sugere a interrupção do desejo. Vamos combinar que são dois sistemas de crença difíceis de serem harmonizados. O Dalai Lama lembrou, finalmente, de um desejo que não vai trazer o Sofrimento. Os psicanalistas se apressaram em perguntar qual seria esse desejo: o Desejo de Renúncia, respondeu Sua Santidade.
Eu pessoalmente fui contra a realização do quarto filme após a trilogia de Indiana Jones. O terceiro filme da série, “A Última Cruzada” é disparado o melhor de todos e nunca deveria ter sido sucedido por aquele pastelão de soviéticos e ETs que é “Indiana Jones e a Caveira de Cristal”. Há uma cena nesse filme (“A Última Cruzada”) que talvez trouxesse uma luz a esse debate. Para quem não lembra ou não era nascido, Indiana Jones passa o filme todo procurando por duas coisas: o seu pai e o Santo Graal. Ele vai descobrir que seu pai, Dr Jones, foi feito prisioneiro de nazistas. Os inevitáveis nazis querem encontrar o Santo Graal e precisam do conhecimento do Jones pai e dos músculos do Jones filho para darem cabo da tarefa. Posso escrever vários posts sobre esse filme, se os leitores quiserem e se manifestarem. A cena que eu vou pinçar, em particular é das mais importantes do filme: o templo onde está escondido o Santo Graal (Cálice onde Jesus celebrou a Última Ceia e que recolheu o sangue vertido na cruz) começa a desmoronar, é aquele corre corre. A vagaba alemã, que pegou os dois membros (no bom sentido, é claro) da família Jones escorrega e está caindo no precipício. Indiana Jones, como bom herói que é, joga-se para salvá-la. Ela é pega pela mão e enxerga o Graal repousando numa fenda. Tentando alcançá-lo, ela cai no precipício. A terra se move e Indiana Jones também escorrega, sendo pego por seu pai (Sean Connery, impagável nesse filme). Quando ele se vira, lá está o Graal. Indiana tenta alcançá-lo, já escorregando. O seu pai alerta para o perigo. Está por um dedo. De repente, ouve-se uma voz grave: “Indiana!” Ele responde sem pensar: “Sim, senhor”. “Deixa para lá”. “Mas pai”. “Deixa”. Indiana obedece e seu pai consegue puxá-lo para longe do perigo. No final ele pergunta a seu pai, que buscara pelo Santo Graal durante toda a sua vida, o que ele ganhou depois de tanta busca, para deixar o Graal no deserto. “Iluminação”, respondeu o velho Dr Jones.
Acho que esse é o Desejo de Renúncia que o Dalai Lama mencionou. Na vida, estamos todos procurando pelo Santo Graal de cada um: dinheiro, sucesso, poder, amor incondicional, atenção, mensalão, por aí vai. Muitas vezes parece que estamos a um dedo de alcançar o que sempre desejamos e buscamos e, de uma forma estranha, a vida diz que não, ou a coisa desejada escorrega entre os dedos. Dr Jones sabe que seu filho precisa abrir mão da Ânsia, que é o Desejo cego e insaciável que os budistas tem razão, é o pai de todo Sofrimento. O Graal não é algo que se possa agarrar, pois está em nosso mundo interno.
Indiana Jones é um herói ocidental, obstinado, emputecido (Harrison Ford está sempre com cara de emputecido quando veste o personagem). A coisa mais difícil para ele é desistir de algo que custou tanto a ser encontrado. Quando ele abre mão e deixa ir, sente-se estranhamente iluminado, leve. Tenho a impressão que essa é a tarefa tanto dos budistas quanto dos psicanalistas: deixar o Ego despreocupado de sua eterna insatisfação, sua eterna e dolorosa ânsia. Na hora que abrimos mão dessa tirania, uma luz se manifesta.

domingo, 11 de novembro de 2012

Cadeados e Bocas

Circulou como assunto top na web a história do médico que “receitou” para uma paciente rechonchuda meia dúzia de cadeados: cadeados para a boca, a geladeira, a carteira e por aí vai. A moça, que pelas fotos exibidas não é boa com cadeados nem com dietas, mostrou-se boa marketeira do próprio infortúnio, bombando na internet e nas redes sociais com a sua “prescrição”. As opiniões logo se dividiram, o médico declarou que foi mal interpretado, mas acabou afastado de suas funções e vai responder a sindicância no CRM. A moça, quem sabe, pode chamar a atenção de algum Reality Show de emagrecimento. Talvez, aí, ela vai ter o que nem ela nem o médico dispunham no Centro de Saúde: equipe multiprofissional, suporte medicamentoso, atenção especializada. Milhares de outras (e outros) pacientes vão continuar penando de dieta em dieta, vendo a sua curva de ganho de peso apontando inelutavelmente para cima. O pior da situação é a sensação de que ambos os participantes são vítimas do evento.
O médico mencionou que a sua filha fez uma Cirurgia Bariátrica. Talvez daí a sua exasperação com o tema. Praticamos uma Medicina que leva de goleada das doenças que envolvem voracidade e saciedade. Obesidade, Transtornos Alimentares, Dependências de Substâncias, Alcoolismo, onde há um componente compulsivo, os resultados são muito ruins. É mais fácil curar o Câncer do que a Obesidade. O colega deve ouvir todos os dias as queixas dos pacientes, que não conseguem emagrecer e só fazem engordar. A ANVISA da presidente Dilma proibiu o uso das substâncias outrora mais utilizadas para o emagrecimento, deixando profissionais e pacientes sem opção.
O colega “prescreveu” os cadeados pela angústia de ouvir as pessoas se queixando do ganho de peso como se comer não fosse um ato voluntário. As pessoas descrevem o ato de comer, compulsivamente ou não, como um ato que ocorre fora do comando da consciência. O profissional é cobrado implacavelmente, como alguém que não consegue ajudar o paciente no processo de emagrecimento. Deve ser isso que motivou o colega a prescrever cadeados: comer é um ato voluntário que demanda escolha e uso de alimentos e líquidos. Se a pessoa vai comer com seu Cérebro de Paleomamífero ou com seu Néocortex, vai depender de sua escolha própria. Simples assim. Simples assim?
A moça tem hábitos alimentares profundamente arraigados, com excessos de farináceos e derivados do leite, gorduras e carbohidratos consumidos abundantemente. Ao contrário do que se pensa, não basta “fechar a boca” para emagrecer. Os cadeados estão mal indicados, pode-se assim dizer. O consenso é que ela não pode e não deve parar de comer. Deve, antes, comer direito. Diminuir as porções, aumentar os vegetais, verduras, legumes e esquecer que existem os refinados, como açúcar e farinhas brancas. O seu organismo precisa ser convencido que pode emagrecer. E isso é para o resto da vida.
O Fantástico submeteu, há dois anos, os seus apresentadores a um processo de dieta restritiva e exercícios, para provar que “todos podem emagrecer”. Zeca Camargo e Regina Ceribelli ficaram magrinhos e sarados, dando entrevistas para a Contigo. Hoje eles estão com um sobrepeso mais grave do que antes do “desafio”. Como em todas as dietas restritivas, o resultado foi o efeito sanfona e o ganho de peso.
O médico e a paciente devem lidar com a frustração e a impotência que o assunto nos evoca. Não adianta prescrever cadeados nem alimentar a vitimização. O assunto é complexo e merece ser olhado de frente.

domingo, 4 de novembro de 2012

Faça um Pedido ao Silêncio

Para quem acompanha esse blog, mencionei a existência de Cinco Cérebros há uns três posts. O termo é apenas para fins didáticos. O Quinto Cérebro está mesmo em nossas redes Neurais? Boa pergunta. O materialismo científico considera a Mente um produto de nosso Cérebro. Percepção, Processamento de Informação, produção de Pensamentos e interpretação do mundo, tudo isso deriva de nosso substrato neural.
Estou digitando isso enquanto na Tv a Cabo está passando um documentário sobre a ascensão de Adolf Hitler ao poder a partir dos escombros da derrota alemã na Primeira Guerra Mundial. Um estudante medíocre, um pintor que passava fome pelas ruas de Viena, um militante obscuro dos partidos de ultradireita alemã, toda a trajetória de Adolf Hitler sugeria um percurso de fracasso e obscuridade. Quando ele se juntou a um grupo radical Nacional Socialista, cultivando o ódio aos opressores que haviam vencido a guerra. A crise econômica era dramática, os bancos eram geridos por ricos donos do dinheiro, de origem judaica, que exorbitavam os juros em tempos de hiperinflação. Esse homem medíocre, sem particular capacidade intelectual e cultural aprendeu a “sintonizar” com algo que estava fora de sua Mente e também fora da Mente dos alemãs. Hitler encarnou um arquétipo messiânico. Ele aglutinaria um povo humilhado, faminto e canalizou todo o ódio e toda derrota contra o povo judeu, com os resultados que já conhecemos. Hitler foi um homem medíocre e odioso que sintonizou com uma Mente que estava fora dele. Os junguianos chamam essa Mente de Inconsciente Coletivo. Um substrato que está circulando dentro das cabeças de todos e de nenhuma pessoa, ao mesmo tempo. Hitler relatou que é como se ele soubesse, antes de falar, o que iria dizer e as pessoas queriam ouvir.
O Quinto Cérebro na verdade não está dentro do Cérebro. É a mente que, em momentos de crise, acaba se manifestando como um ser vivo, uma pessoa que acaba sintonizando com a voz do Inconsciente Coletivo, sendo uma parte de algo muito maior do que uma vida comum.
Para usar um exemplo menos desagradável, posso voltar a Michael Jordan. Michael passou um tempo longe das quadras de basquete, meio enfadado de já ter conquistado tudo que um atleta poderia conquistar em um esporte de alto nível. Foi jogar beisebol por duas temporadas, sem bons resultados, pois seu Quarto Cérebro precisaria de algumas décadas de prática para chegar ao mesmo nível que tinha nas quadras. Jordan voltou ao Chicago Bulls jogando muito bem, mas sem o nível de antes de sua curta aposentadoria. Demorou um tempo para ele voltar à espiral de aprendizado e excelência que apresentara antes da interrupção. Quando ele marcou pela primeira vez uma pontuação excepcional, afirmou que “o jogo estava fluindo” através dele como antes. Para ele, era como se ele não jogasse, mas “fosse jogado”.
Esse é o Cérebro não local. Pode ser chamado de Espírito Santo, Atman, Prana ou Supraconsciência. Tem muito mais nomes para acrescentarmos. É uma Mente fora de nossa mente, que pensa em nossos pensamentos e inspira alguns de nossos atos. Esse quase Cérebro é o substrato silencioso e invisível que a Ciência afirma ser fruto de nossas inseguranças e medos. Para a ciência, essa ordem intrínseca nem chega a existir.

sábado, 3 de novembro de 2012

James Bond em Tebas

Ontem fui assistir o novo filme de 007, “Operação Skyfall”. Adoro essa fase Daniel Craig do personagem, depois de anos de canastrice e humor tipo chanchada de Pierce Brosnan. O fato é que vamos dar um tempo na Neurociência nesse post. Vamos voltar a Jung, que já estou cheio dos quatro Cérebros.
O James Bond de Craig é um herói ferido. Encontra o amor no primeiro filme dessa nova fase, “Casino Royale”, vê a amada traí-lo e morrer afogada na sua frente, sem poder salvá-la. No segundo filme, “Quantum of Solace”, Bond é um vingador enfurecido, insone, que não hesita em sacrificar amigos e Bond Girls para perpetrar a sua vingança contra os matadores da mulher amada. Nos dois filmes ele passa a maior parte do tempo levando pito de M, inesquecível na pele de Judi Dench. A relação do filho rebelde com a mãe supostamente rigorosa, mas que acoberta e deixa o traquinas fazer o que bem entende, fica bem clara nesses filmes da saga Bond. M está sempre ralhando com Bond enquanto o filhinho rebelde trucida suspeitos e usa as mulheres para atingir os seus objetivos.
Este novo filme brinca muito com essa característica chauvinista e old fashioned do Bond de Daniel Craig. Ele é chamado de tiozinho pelos superiores e o seu apoio nerd, G, que lembram a Bond que ele não é mais o mesmo. Um tiro no ombro no início deixa o seu braço trêmulo. Ele é reprovado em todos os testes e, mais uma vez, acobertado por M. Ele vai voltar à ação para protegê-la, pois dessa vez o Serviço Secreto está sob ataque para atingi-la. Ela está exposta e fragilizada, acusada de estar, também, superada.
O filme vai mostrar o embate arquetípico entre os dois filhos da Mãe poderosa: os dois foram feridos por ela. Um vai usar a sua ferida para se voltar contra a mãe Inglaterra na figura da chefe do MI 6. O outro, que foi igualmente rifado por M, 007, vai protegê-la e caçar o irmão monstruoso.
Esse é um tema já visto na tragédia grega. Na Trilogia Tebana, de Sófocles, é muito conhecida a história do Édipo Rei, já mencionada em posts antigos desse blog. Édipo cumpre o seu destino trágico, matando o seu pai e desposando a própria mãe de forma não intencional. Édipo arranca os próprios olhos e passa a vagar pelo mundo guiado por Antígona, filha de seu casamento incestuoso. Na última peça da trilogia, “Antígona”, Édipo já foi engolido pela terra. Tebas passou a ser governada por Creonte, tio de Antígona. Ela enfrenta publicamente Creonte, pois ele proibiu o sepultamento de seu irmão. E esse é o ponto de James Bond. Após a morte trágica de Édipo, os seus filhos se dividem. Um se junta aos inimigos de Tebas e tenta derrubar o rei Creonte. O outro toma a defesa da cidade mãe. Os irmãos se matam mutuamente na batalha, um golpeando o outro. Creonte quer sepultar o aliado como um Herói de Guerra e deixar o outro aos cuidados dos urubús. Esse é o embate que está no novo filme de James Bond. Para o Serviço Secreto, James Bond e Silva, os irmãos arquetípicos da Mãe Incestuosa, Jocasta, digo, M, estão mortos. Ambos vão voltar da morte para honrar e encontrar, profundamente, a sua própria identidade perdida. Faltou ao filme uma Antígona para dizer que Bond e Silva, o arquivilão, são faces da mesma moeda.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Vídeogames e o Quarto Cérebro

Os vídeogames e sua metástase temível, os jogos online, colonizaram os corações e mentes das crianças, adolescentes e adultos que passaram por eles. Já não é possível ficar perto deles sem notar algum tipo de conexão, com tablets, smartphones, i-pods e quejandos. Como que essas drogas altamente indutoras de abuso e dependência capturam mais e mais adeptos?
Estava falando no último post do Cérebro de Réptil, o Primeiro Cérebro, que mantém as nossas funções vegetativas, fundamentais para o desenvolvimento e manutenção da vida. Falei também do Segundo Cérebro, também chamado para fins de compreensão de Cérebro Emocional. É um Cérebro visto em Mamíferos ou Paleo Primatas, que coordena as nossas reações de Medo, de Desejo, de busca pela adaptação ao meio ambiente e sobrevivência.
O Terceiro Cérebro, ou, didaticamente, o Cérebro Racional, é bem mais jovem evolutivamente mas permitiu aos hominídeos o domínio desse planeta como raça dominante. As capacidades básicas desse Cérebro, que é o Planejamento das Ações, a Execução, a capacidade de Avaliação dos Resultados e Correção dos Erros não é inédita entre os Primatas, mas estendeu-se ao infinito com a aquisição da Linguagem Falada e Escrita. Não é à toa que os quadros de transtornos de desenvolvimento tem uma evolução dramaticamente melhor ou pior se o paciente desenvolve a capacidade de Linguagem.
Falei no último post sobre Michael Jordan, que de jogador de basquete mediano na escola tornou-se o maior jogador de todos os tempos assim que encasquetou que queria sê-lo. O treino, a repetição e as curvas de aprendizagem progressivas, com uma capacidade de Concentração inacreditável, levaram Michael a um entendimento complexo e uma leitura ampla e instantânea do jogo e da ação do adversário, levando a uma perfomance difícil de repetir. Ele estava usando sem saber o Quarto Cérebro, que talvez faça a integração simultânea de várias camadas e estruturas cerebrais. Passar do Terceiro para o Quarto Cérebro é como passar desse meu notebook para um computador quântico. Estranhamente há pouca gente estudando essa passagem. Ainda pensamos nos gênios como seres estranhos que nascem do nada, como saltos da Natureza que são aleatórios e inexplicáveis, não fruto do trabalho e do suor de pessoas que se apaixonaram pela sua área de atuação e atingiram a completa excelência.
Os videogames e os jogos online estão escravizando nossos jovens com essa paixão em dominar esquemas motores e perceptuais complexos, na tentativa de atingir a excelência e a maior pontuação. Para isso, integram um sistema de recompensa/punição/aprendizagem que tem esse efeito em quem joga. Dominar o repertório de manobras, conhecer os atalhos e os bugs do jogo é a via de comunicação e pertencimento dessa comunidade virtual. Ouço meus filhos gritando nos headsets com colegas australianos, japoneses e europeus em mais um jogo online. A derrota não vai gerar depressão nem luto, mas vai antes, levar a mais excitação e novas tentativas de atingir a excelência no jogo. Está na hora de aprendermos com esses caras.