segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Falar e Calar

Achei um livro que andava perdido. O teólogo Jean Yves Leloup escreveu sobre uma seita cristã, criadora de um movimento, o Hesicasmo. O livro fala sobre essa seita e seu legado. Ele próprio subiu ao Monthe Athos, onde conheceu um famoso Staretz, um místico cristão ortodoxo, que lhe ensinou o Quietismo e, depois, a Prece do Coração. Já escrevi sobre Leloup em outros posts. Como Jung, ele procura recuperar o significado profundo do Cristo nesse mundo sem princípio orientador. Jung dizia que “Os deuses viraram doenças”. Engano dele. Os deuses viraram marcas. As pessoas olham para uma Ferrari como se vissem um Unicórnio ou um raio de Zeus. As marcas são objeto de desejo e admiração, a ânsia pela capacidade de consumo, o ideal, e adentrar o mundo do luxo é fazer parte do Monte Olimpo.
Somos todos objetos de consumo. Há um ou dois anos fui a um Congresso em que não recebi um crachá de identificação onde não estava escrito “Médico” como usual, mas “Prescritor”. Esse é o auge do consumo. O médico interessa nos estandes por sua caneta e carimbo. Alguns laboratórios oferecem carimbos Pret a Porter nos Congressos. Vemos uma fila de colegas dobrando a esquina, esperando pelo mimo que custa menos de quarenta reais em qualquer esquina. Carimbo, caneta e receituários são o que importa. Se está escrito “Prescritor” então teremos moças bonitas e sorridentes dando brindes, sacolas e cafezinhos gourmet para o visitante. Tudo pelo sua receita.
Os ideais do Hesicasmo que Jean Leloup aprendeu no Monte Athos começam por “Foge” e depois “Cala”. Os místicos buscam os lugares desérticos para fugir do barulho e da angústia da cidade. Procuram ouvir a harmonia da vida, que está mais perto do barulho do vento mexendo nas árvores do que no carro cantando os pneus nos semáforos. Um paciente observou que eu gosto de fazer consultório em ruas escondidas e meio tétricas à noite. Espero que sejam ruas calmas, não assustadoras. Mas gosto mesmo delas, talvez porque nós, os terapeutas modernos, sejamos aparentados desses terapeutas de Alexandria e da Antiguidade, onde o silêncio era o ativador natural dos processos de cura. Na medida em que as terapias vão se tornando terapias de resultados, onde os terapeutas estão se tornando técnicos com o apito na boca preenchendo formulários e checklists que atestem a melhora ou a piora do freguês, digo, do paciente, vamos perdendo contato com a Origem. No começo, a cura era o silêncio.
Talvez o silêncio do consultório seja dos últimos lugares para onde as pessoas possam Fugir e Calar. Antes da caneta, do carimbo ou dos diários comportamentais, o consultório pode ser um local para onde se foge para ouvir a própria boca silenciada. Ou a fala que saia do imenso palavrório espocando das bocas. Uma fala que venha do coração, como o jovem monge tentou aprender nas montanhas.

domingo, 15 de dezembro de 2013

O Divã do Dr House

Estava revendo um episódio da terceira temporada de House. O hilário e irritável personagem fica completamente desconcertado quando uma jovem paciente lhe pede para conversar. Mas conversar sobre o que? Sobre o tempo? Isso. Sobre a temperatura ou o resultado do último jogo. House fez o possível para fugir da tarefa, inclusive, literalmente, fugir do Hospital e matar serviço dentro de um parque. Tudo para fugir dessa coisa esquisita, que é uma conversa.
Há um bom tempo, participei de uma Banca para escolher o grupo de residentes do Instituto de Psiquiatria do HC. Um dos entrevistadores perguntou para o candidato se ele apreciava a Psicoterapia como forma de tratamento. O rapaz respondeu meio assim: “Claro que aprecio: Psicoterapia, bate papo, tudo é válido...”. Depois de divulgada a lista de aprovados, fui com alguns candidatos e futuros colegas comer uma pizza e avisei ao rapaz que se chamasse psicoterapia, bate papo, de novo, iria ter problemas comigo. Psicoterapia envolve alguém que Escuta e outro que Discursa e expressa as suas angústias, medos e o que mais quiser colocar para fora de seu peito. A Escuta possibilita em si, uma melhora para o Sujeito, que pode observar/organizar internamente suas grandes questões. Não é bate papo. Já falei que Placebo era a pqp no último post, não vou repetir a malcriação, com uma frase do tipo “bate papo é a pqp”. Mas, repito, não é bate papo, embora existam muitos papos de boteco extremamente terapêuticos.
A moça do episódio havia sofrido uma das piores violências que se podem impor a um ser humano, o estupro. House dá uma de Freud manquitola e tenta estabelecer uma Escuta, sobretudo, quer que a moça fale sobre o episódio traumático. Ela se recusa, não quer falar sobre isso. Quer falar sobre o tempo. Ou sobre o noticiário. Gostei muito da interpretação da jovem atriz. Ela está no episódio todo crispada, sempre com os olhos marejados e argumenta com o médico como uma roteirista adulta, não como uma menina violentada. O divertido foi a estranheza em iniciar uma conversa sem objetivo nenhum. As conversas terapêuticas sempre procuram descascar mais e mais as cebolas de nossas dores. A moça só queria papear e se sentir normal, longe da dor e do absurdo da vida. O papo que se segue é cabeça: falam sobre Deus, sobre eternidade e sobre significado da vida, ou a sua ausência de significado. A moça acredita em Deus e acredita que as coisas tenham realmente significado. House se desespera e fala da estupidez humana e que Deus, se existe, é um sádico e um ausente.
O final da conversa se dá no mesmo parque que House usava para fugir da conversa. Ela fala que sentia nele uma ferida profunda, como se tivesse passado por uma violência semelhante. Ele fala sobre os abusos de seu pai. Ela, finalmente, pode falar sobre o estupro que sofrera e chorar no ombro improvável do Dr Gregory House. O bate papo termina em Psicoterapia de melhor qualidade. A dor revelada, reexaminada e, se tudo der certo, transformada.
Nessa época em que muita gente séria acredita que a Psicoterapia é uma indústria de enganação e de “Bate Papo” infrutífero, que agoniza diante dos remédios e manipulações de genes, esse episódio me tocou (é na verdade um episódio bobo, melodramático e falsamente psicológico, portanto, delicioso) no âmago dessa grande questão: a sessão de psicoterapia deve mudar muito no decorrer dos anos, como tudo muda nessa vida, mas não vai acabar nunca. Nesta época que as pessoas não conversam mais pessoalmente, só por e-mail, ou que ninguém está disposto a ouvir, só a falar, o espaço terapêutico pode ser um dos últimos lugares onde alguém se dispõe a ouvir, em profundidade, o que o Outro tem a falar e a calar.

domingo, 8 de dezembro de 2013

Placebo é a Mãe

Estava lendo uma matéria publicada na Carta Capital, se não me engano, já que a matéria foi impressa por um amigo que queria me provocar, no bom sentido de uma provocação: aquela que estimula o debate. A jornalista se baseou em dois livros que atacavam a atual epidemia de doenças, diagnósticos e tratamentos psiquiátricos. Na primeira metade da matéria, discutiu-se longamente o efeito dos medicamentos, notadamente os antidepressivos, comparando-os com os placebos. Na verdade, chega a propor que uma grande parte dos efeitos dessas medicações sejam Placebo, isto é, reações que derivam na crença que as pessoas tem nas medicações. Na segunda parte, a argumentação era mais devastadora: se os medicamentos psicotrópicos mudam o funcionamento cerebral, então quem garante que uma parte importante das atuais doenças psiquiátricas não sejam causadas pelos medicamentos em si, em vez de melhoradas por eles?
Eu poderia inverter a brincadeira e a provocação: e se fizéssemos um levantamento de quantas pessoas adoecem e morrem pelos efeitos colaterais da hipermídia? Os meios de comunicação estimulam muito mais os sentimentos tóxicos do que os bons. Exploração do Medo e do Desejo é o que vemos em todos os lados. As pessoas estão cada vez mais medrosas e cada vez consomem com mais ferocidade, graças aos estímulos onipresentes da Mídia. Essa matéria mesmo está estimulando o leitor a acreditar numa máfia de avental que está à espreita nos consultórios para prescrever remédios desnecessários, que vão te fazer engordar e ficar sem libido e dos quais você nunca vai se libertar. E o pior: apesar dos bilhões de dólares gastos na indústria dos transtornos psiquiátricos, as pessoas estão cada vez mais doentes e infelizes. Podemos retrucar que, apesar de estarmos na época de maior disponibilidade e acesso à informação, as pessoas nunca foram tão preguiçosas intelectualmente e desinformadas do que acontece em nosso mundo. Estou fazendo esse exercício apenas para demonstrar que essa coisa de ficar apontando dedos não leva o debate muito longe.
Nesta semana atendi o retorno de uma moça, empregada doméstica, cuja patroa cansou de ver sofrendo com crises de Pânico e sofrimento recorrente por meses. Em vez de trocar de empregada, teve a bondade e a compaixão de pedir a indicação de um psiquiatra e mandar a moça para uma consulta. Ela tinha passado por consulta em hospital público e a médica deu-lhe um remédio que já havia tomado, para tomar antes de dormir. O remédio em questão não deve ser tomado à noite, porque atrapalha o sono. Muitos dos sintomas, então, eram causados pela privação do sono. Trocando o horário da medicação, ela já melhorou bastante. Depois de alguns meses, a patroa está querendo marcar consulta, pelas melhoras que está vendo em sua empregada. Uso este exemplo para responder às questões levantadas nesta matéria: venha o jornalista, que nunca tratou nem unha encravada, observar o que aconteceu na vida dessa moça quando tinha crises de Pânico todo dia, e agora. Placebo é a pqp. Se não é para pressupor que os médicos são sociopatas e os pacientes idiotas e crédulos, a melhor medida de qualquer diagnóstico e tratamento é de extrema simplicidade: o paciente tem um sintoma que lhe causa incômodo e atrapalha toda a sua vida; ele dirige-se a um profissional que deve conhecer a natureza do quadro e do tratamento para melhorá-lo. Inicia-se um tratamento que visa aliviar os sintomas e devolver o paciente â sua vida normal. Se isso não acontecer, troca-se o profissional, a abordagem, os medicamentos. Até o paciente se sentir melhor.
Acredito, sim, na mitificação da doença e no uso exagerado de medicamentos em quase todas as especialidades. Em Psiquiatria, padecemos, como em outras especialidades, de profissionais que prescrevem demais, prescrevem de menos, prescrevem errado. Mas as doenças são melhor e mais facilmente identificadas e vida das pessoas melhora com os tratamentos, que ninguém é burro de usar uma medicação cara que não traga nenhum benefício.

domingo, 1 de dezembro de 2013

O Amor nos Tempos dos Aplicativos

Uma novidade na indústria da pegação é um aplicativo que permite localizar e interagir com pessoas selecionadas por perfil e interesses, o Tinder, que vai encher ainda mais os consultórios de terapeutas e consumir toneladas de lenços de papel. Ligando o tal radar, as pessoas tem acessos a imagens e perfis, trocam mensagens e se encontram. Os caras querem arrumar uma transa com alguém perto, sem esforço. As mulheres podem ter a mesma intenção, teoricamente, mas não é isso que ocorre. Normalmente ficam decepcionadas de um jeito ou de outro, ficando ou não, transando ou não. Hoje somos todos objetos de consumo, o que inclui o consumo sexual. O excesso de interesse no que é exterior faz as pessoas, de ambos os sexos, perderem a compreensão do que é fazer contato, afetiva e fisicamente. A sexualidade e a sexualização parecem uma manifestação de desespero e de isolamento, uma busca de contato que termina em não-contato.
As meninas arrumaram um novo aplicativo para a sua pouco disfarçada frustração: um tal chamado Lulu, onde avaliam os caras e expõe os seus defeitos. Uma menina suicidou-se no Piauí quando seus vídeos íntimos caíram na Web. Já estou esperando pelas consultas de urgência com esse aplicativo, tentativas suicidas incluídas. Sobretudo, fico imaginando o que vai acontecer depois do revide. As meninas vão colocar que o cara é galinha, não liga no dia seguinte e se acha melhor na cama do que realmente é. Os caras vão revidar dizendo que a menina, quando tira a roupa, tem gorduras localizadas, peitos caídos ou liga dezoito vezes por dia depois do primeiro encontro. Não é difícil de imaginar quem vai sofrer mais com essa prática idiota, não é mesmo? Sobretudo, quando se expõe a intimidade de alguém ao escárnio e à humilhação públicas, além de mágoas profundas, a resultante é que as pessoas evitem cada vez mais se envolver em qualquer tipo de relacionamento. O final desse jogo é a solidão, para ambos os sexos. O que um homem vai pensar, se ficar nú e receber em uma rede social notas e comentários sobre tamanho e perfomance de seu instrumento? E a menina? O que vai achar de ler comentários sobre o que faz ou deixa de fazer entre quatro paredes? O que vai pensar o seu avô quando ler sobre seu beijo e outras coisinhas que serão comentadas abertamente? E pior do que tudo, se alguém realmente quiser enxovalhar o cara que lhe deu um fora, ou a menina que ficou com o seu melhor amigo? Basta escrever todo tipo de barbaridades, pois as pessoas tem uma estranha tendência em acreditar na palavra escrita.
Diante de toda essa barbárie, esse lixo virtual pode ter um estranho efeito colateral: pode devolver as pessoas às relações profundas. Quanto maior a promiscuidade, maior a chance do linchamento nos aplicativos e nos celulares. A chance de tirar a roupa para alguém que não vai usar a sua nudez, corporal e, sobretudo, afetiva como uma arma de vingança ou agressão vai ser somente quem realmente ama. Já pensou? Esses aplicativos podem trazer de volta à moda o sexo feito com amor, aquele que perdoa um pinto pequeno ou uma celulite na barriga. Pode ser o começo do fim da guerra dos sexos. Ou o início da compreensão do valor da intimidade, pessoal e a dois.

domingo, 24 de novembro de 2013

A Ação e a Graça

Hoje fui a uma bonita e singela cerimônia em um Templo Presbiteriano, antecipando o Dia de Ação de Graças, que será na Quinta Feira dessa semana que agora se inicia. Uma amiga fez uma pequena coreografia para essa cerimônia e a apresentou como parte da mesma. Por um momento, fiquei meio transportado para um tempo em que a dança cerimonial fazia parte do processo de preparo da terra para a semeadura, depois da gratidão da colheita. Fico sempre desconfortável com qualquer pregador que faça promessas em nome do Senhor e que faça predições para colheitas melhores ou piores. Ouvi os oradores falarem sobre a gratidão que deve ser manifesta em todos os momentos e de como Deus deve se sentir quando não agradecemos por seus dons. Lembrei de um autor que dizia que, ao contrário de um Deus que nos fez à Sua imagem e semelhança, nós é que construímos a imagem de um Deus à nossa imagem humana. Um senhor barbudo que se incomoda com a nossa absoluta e consistente ingratidão. Lá vou eu pegar o bonde andando e querer ficar na janelinha. Já estou dando palpite no Thanks Giving.
Não acho que a Ação de Graças envolva agradecer pelas bênçãos, como um Oscar da divindade. A dança me lembrou a oferenda das Primícias, isto é, a Oferenda dos frutos da terra que cultivamos, desde o Gênesis, com o suor de nosso rosto. Oferecemos esse fruto como a celebração de uma alegria. Alegria da realização, que não pode prescindir do braço, do suor humano e da enxada. O que se oferece nas Primícias é o reconhecimento de que o trabalho e o cansaço deram os seus frutos. A dança das vestais, preparando a terra para a fecundidade, é a manifestação de uma relação verdadeira entre o Homem e o seu Criador. A relação não é de gratidão, nem de troca. O que o homem deposita nas primícias é a sua esperança. Essa é a terra bem preparada para o plantio: a terra prenhe de esperança daquele que planta e que quer colher. Penso que a verdadeira fé representa apenas a nossa capacidade de esperar que aquilo que semeamos com nossa esperança e suor um dia venha a dar seus frutos. Colocar a esperança no cesto e na dança é um gesto perigoso. O que chamamos de Deus não é um senhor grisalho que vai nos prover em todas as necessidades, ou que vai regar só a terra dos justos. Ele está na vida e no seu Mistério. As esperanças nem sempre serão atendidas e o esforço não será recompensado como imaginamos. Ainda assim, é bom colocar os frutos na mesa e pensar que eles são bons, porque honestos e verdadeiros.
Feliz Dia de Ação de Graças, mesmo para quem não dá a mínima para a data e nem sabe quando ela virá. Que não paremos de plantar, sangrar e colher.

sábado, 23 de novembro de 2013

Entrevista com os Vampiros

O vampiro Edward é uma fraude arquetípica. Ele é completamente o antivampiro. Atencioso, apaixonado, e sobretudo, capaz de atenção e entrega plenas para a mesma mulher, por toda eternidade. Bella é a garota sem graça disputada por um Vampiro e um Lobisomem na saga Crepúsculo. Escolhe desposar o Vampiro, com medo das pulgas. Edward continua fiel, apaixonado e pronto a morrer pelo seu amor. É uma fraude arquetípica porque é exatamente a inversão do que representa o Vampiro na psique e na vida da mulher. O Vampiro é o Andrógino, o masculino pouco diferenciado, o homem que seduz, suga a energia e a vida da moça para depois voltar para o mundo das sombras. Não há nenhum dia no consultório dos terapeutas em que a figura desse Vampiro não apareça, entre lágrimas e decepções. A mulher liga, manda mensagens, implora por sinais quando ele desaparece sem dó, buscando outros pescoços. O Vampiro é um homem imaturo, que quer o desejo e sobretudo o olhar de muitas, mas foge quando a mulher precisa de alguma presença humana, algum cuidado ou sinal de afeto. Quando está presente, ele é um homem apaixonado e intenso. Quando some, seu silêncio é gelado e implacável. Esse é o motivo de eu chamar Edward de fraude arquetípica.
Ganhei o livro da amiga Andréa Perdigão, “Descaso do Acaso”. A personagem principal, Cíntia, é uma jornalista de 38 anos que procura viver em paz com a sua solidão de mulher pós moderna, assediada por amigas e casais que querem apresentá-la ao “Mr Right”, ou o arquétipo por trás do vampiro, que é o do Príncipe Encantado. Cíntia reafirma que não acredita nesse Príncipe, não acredita em livros de autoajuda e sobretudo, passou longe de todos os livros da saga “Crepúsculo”. Ela recebe de sua editora a tarefa difícil de entrevistar pessoas sobre o tema da Felicidade. Cíntia se recusa a acreditar que o Acaso vai lhe proteger enquanto estiver distraída, mas vai sendo atraída por esse Acaso, como um vampiro que vai se instalando gradualmente em sua vida. Todos os seus entrevistados, depois de reafirmar a própria Felicidade, passam por acidentes e tragédias pessoais. Um casal de amigos apresenta um homem recém separado, Caio, que ela reluta em se entregar mas acaba, como Bella da saga Crepúsculo, irremediavelmente apaixonada. Uma sequência de pequenas coincidências vão conduzindo a sua vida exatamente para onde ela jurou que não iria.
Caio não é o vampiro Edward, nem o seu sucessor, o Christian Grey do “Cinquenta Tons de Cinza”. Não é um milionário em busca do amor verdadeiro. Tem dúvidas, está devastado por uma separação recente. Cíntia é a própria heroína pósmoderna tentando desesperadamente lidar com esse homem ferido: tem medo de sufocá-lo com a sua carência ou o peso imenso de sua espera. A idade que Andréa deu à sua personagem também é dramática, pois é a fase em que o tique taque do tempo aparece em sua urgência. Cíntia não tem filhos, não menciona essa lacuna no livro, mas sabe que Caio pode ser uma das últimas chances de ser mãe.
“Descaso do Acaso” fala de um mundo mais cru e menos encantado do que as comédias românticas ou as sagas de vampiros amorosos e lobisomens delicados. Cíntia é a mulher do nosso tempo, tentando lidar com o homem que recebe mas não percebe a sua generosidade. Um homem que se abre e se retrai com a mesma facilidade. E que tem medo de olhar nos olhos da mulher e dizer a sua verdade. Será que ela vai conseguir capturar esse bicho medroso? Será que vai, mais uma vez, constatar a ausência desse homem na vida da mulher descolada e independente?
Quem acompanha esse blog vai ter que comprar o livro, disponível no site da Livraria da Vila (e em todas as livrarias) para descobrir as respostas. Ou se abrir para novas perguntas.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Planeta das Macacas

Estava lendo um estudo em Neuroeconomia. Tudo o que se coloca um “Neuro” ou uma “Neurociência” na frente ganha imediatamente uma aura de respeitabilidade, mas esse é outro assunto. No tal estudo os pesquisadores introduzem a um pequeno grupo de macaquinhos um sistema de trocas: pequenas moedas ou fichas são trocadas por bananas e outras guloseimas símias. Depois de meses em que o nosso pequeno primo evolutivo aprende o valor numérico das fichas, ou seja, quanto mais fichas, mais bananas, vai que um pequeno e safado primata oferece uma ficha para a macaquinha jovem e irresistível. Ela depois de um tempo entende que a troca é por uma transa, rapidinha. Essa é a confirmação científica de que essa é realmente a profissão mais antiga do mundo. O sujeitinho passou fome mas não abriu mão da pegação. E a menina passou a ser remunerada pelos seus dotes.
A Revolução Sexual foi libertária para a mulher, mas tirou dela o poder que a pequena macaquinha descobriu com as suas fichas. O poder do não. O macho da espécie não precisa mais impressionar, declamar poesias, impressionar a fêmea para conseguir, depois de muito esforço, provar do néctar de seu sexo, ou de uma “prova de amor” (quando eu era moleque, lia tudo o que caía em minhas mãos, inclusive uma coleção de revistas femininas das casas das tias. Lá as moças ainda falavam se deviam ou não oferecer uma “prova de amor” para o namorado. Imagina só).
Outro dia eu dava a minha tradicional zapeada na TV a Cabo e me deparei com um documentário meio ginecológico de mulheres falando de sua sexualidade. Close up numa moça bonita que declara, solenemente, que evita dar para o cara nos primeiros encontros. Discutia o poder do não, para fidelizar o cliente, digo, o homem. Muda a câmera, close up na sua irmã gêmea, que declara que a regra é boba, a vida é curta e se ela quer dar de primeira, dá e acabou. Acabou emendando que a irmã passou meses para liberar para um cara, quando finalmente chegou o grande momento, o cara falhou. Muita expectativa para o rapaz. ( Na série do GNT, “Surtadas na Yoga”, uma moça comenta com a outra que as mulheres exigiram tanto que os homens sejam mais sensíveis que eles viraram um bando de mariquinhas. Acho que a moça fez suspense e o cara, na hora H, virou uma mariquinha).
As mulheres de hoje parecem a indústria fonográfica: não sabem direito mais o que e como vender. Perderam o poder da espera, do interesse gerado pela interdição. Amor e sexo em tempos de internet, que canseira. Pois o macaquinho acima citado tinha que passar fome para poder ganhar uma transa extra, já que a mocinha sabia que tinha o que ele queria, e não iria liberar de graça. Será que as feministas leram sobre esse estudo? Talvez seja a hora das revistas femininas darem uma boa olhada nessas pesquisas. Só para constar: estou com a primeira gêmea. Para ganhar a moça, precisa gastar as suas fichinhas.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Mente Plena

No último Congresso comprei um livro sobre Terapia Cognitiva e Mindfullness. Até agora tem sido uma decepção, já que tem mais Terapia Cognitiva do que Mindfullness, o verdadeiro motivo da compra.
Midfullness é uma forma de Meditação que exercita a mente presente e a atenção plena, duas coisas muito caras a esse escriba que vos tecla. Muito dos quadros psiquiátricos derivam de nossa capacidade, relativamente nova em termos evolutivos, de prever e antecipar o futuro. Isso permite que o Cérebro Racional inunde nosso Subcórtex, ou o Cérebro Emocional, com cenários possíveis de medo e ameaças. Até o comercial de seguros nos avisa que a vida moderna nos apresenta situações de risco, da moto tirando fina de nossa lateral a doenças, violência, acidentes e todo tipo de pesadelo que torna nosso radar algo sempre ativado, mesmo quando deveria estar desativado. Um dos efeitos colaterais desse estado é nosso estado de mente que a Psiquiatria chama de “Ansiedade Antecipatória”, isto é, um estado de atenção permanente às ameaças que podem vir do futuro. Na verdade, nem é um estado de atenção, mas de permanente desatenção. Temos basicamente dois tipos de Atenção Voluntária: uma Difusa, outra Focal. A Difusa é uma espécie de radar 360 graus, sempre detectando ameaças que podem ocorrer no ambiente. É um bom tipo de Atenção para se ter num campo com predadores escondidos ou numa patrulha no Afeganistão. Em nosso dia a dia, é uma atenção constantemente ativada pelo excesso de estímulos. É a atenção ativada pelo funcionário ao seu lado, respondendo um e-mail, ouvindo música no MP3, atualizando seu aplicativo do celular para encontrar garotas e curtindo uma foto no Instagram. Tudo ao mesmo tempo, com qualidade proporcional. A Atenção Focal está meio fora de moda, mas pode ser observada em uma criança completamente absorta em uma tarefa, como acabar de pintar uma figura; ou observe um gato à espreita de um pássaro no jardim: esses são exemplos quase perfeitos de Mindfullness. Uma Atenção Plena, absoluta à uma coisa só, com todo o seu Ser. Nada acontece à sua volta, nada invade o Pensamento. Só há o objeto da Atenção no meio do campo perceptual e nada mais à sua volta.
Mindfullness é estar inteiro no que vemos e fazemos. A tarefa mais difícil para atingi-la é cessar o infindável diálogo interior e a torrente de pensamentos que fica inundando nossa mente, o tempo todo, criando cenários sobre como deveria ser o futuro, o que gostaríamos de ter, as tarefas do dia seguinte, encontrar o amor verdadeiro e o pior, procurar por alguém que finalmente nos dê Atenção. A mesma Atenção que desperdiçamos no meio de várias mídias e vários pensamentos sobre o Futuro.
A forma mais desenvolvida e de fácil transmissão de Mente Plena, ou Cheia, o que seriam formas de tradução de Mindfullness seria o treino de Presença, de inteireza em tudo o que se faz. Pretendo estar presente nesse blog e na tarefa de desenvolvê-lo. A Atenção Plena é a continuidade desse estado de presença. Nos vivemos na era dos recalls, o que significa que muita gente comete erros terríveis fazendo as coisas sem a Atenção necessária, fruto da atenção excessivamente difusa ou diluída na displicência. Atenção plena é um artigo em falta e eu garanto que é uma grande vantagem competitiva, seja para quem quer ser bem sucedido na profissão ou na busca de um grande amor. Todo mundo quer atenção, mas pouca gente é capaz de oferecê-la em intensidade, para si e para o Outro.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Adeus Também Foi Feito pra se Cuidar

Um assunto importante em qualquer consultório de Psiquiatria e Psicologia é a separação. Muitas caixas de lenços de papel são consumidas no processo, ou nos processos de separação. Fico me perguntando se não deveria haver uma espécie de cuidado que um casal poderia ter com ele. Normalmente, as separações não são consensuais. Algumas, a minoria, terminam em tragédia. Sempre há o parceiro (a) que toma a iniciativa e o outro (a), renitente, que faz de tudo para evitar que a relação termine. Uma vez atendi um homem que me pediu, meio embargado, para ser submetido a um Exame Psíquico completo para decidir se estava mentalmente são para decidir pelo divórcio. A mulher o manteve anos dizendo que queria sair da relação porque era imaturo, neurótico, fixado na mãe ou com qualquer problema edípico para querer ir embora. Deixou de aventar apenas uma pequena mas importante hipótese: a de que ele não a amava mais. O homem quase pediu um Atestado de Sanidade para poder arrumar as malas e ir para a casa da mãe, o que seria entendido como mais um sintoma de fixação edípica. Reassegurei que estava em condições psíquicas para tomar a sua decisão qualquer que fosse. Ele saiu pálido de alívio pela minha porta e nunca mais voltou. A esposa deve tê-lo conduzido a outro Psiquiatra, imagino.
Uma das coisas que eu me pergunto é se não poderia haver alguma etiqueta ou acordo de bom comportamento durante uma separação. Até judeus e palestinos tem métodos de negociação e de construção de quase acordos. Isso não ocorre entre casais. Uma coisa particularmente incômoda é quando um dos parceiros declara que não quer mais, quer terminar tudo. O outro, ou a outra, pede, implora por uma nova chance. Reconhece os erros e tenta se transformar em uma semana em tudo que deixou de ser no decorrer dos anos. O parceiro, ou parceira, renitente tenta de tudo, o outro se fecha em copas. Este pedaço é particularmente difícil. Uma pessoa tenta, de toda forma, retomar contato, saber o que está acontecendo, se agarrando nos cabelos, nos pelos, no pijama, nos seus pés, como nos versos atrozes do Chico. O outro fica em silêncio. Esse é o ponto. Este silêncio. Temendo magoar ainda mais a pessoa ferida ou, mais provavelmente, temendo alguma nova cena, o desespero de um lado encontra o silêncio do outro. Eu fico me perguntando, sabendo que não há resposta para a pergunta: será que não dava para cuidar um pouco do outro, ou da outra, que está sendo abandonado (a)? Que requinte de crueldade, deixar o trabalho de elaboração para o outro, sem ajudar em nada, sem colocar com clareza o argumento mais irrespondível, que é: Estou indo embora porque não amo mais, não quero mais ficar. Fica aquela linguagem cifrada, aquele “não é você, sou eu” que acrescenta mais um abandono ao abandonado (a), que é o abandono do silêncio ou da desculpa esfarrapada. Em outras palavras: será que daria para cuidar da pessoa que está sofrendo, tomar essa responsabilidade? Por enquanto, não. A nova modalidade é despejar a pessoa no consultório do terapeuta ou do psiquiatra, quase com a plaquinha: “Fique com ele, ou com ela, doutor, que estou saindo fora”. Como deixar um beagle na porta do Instituto Royal.

domingo, 3 de novembro de 2013

Esculpir a Vida

Ontem dei uma entrevista sobre um assunto particularmente difícil, que são as Trindades Mtológicas. Não sou um mitólogo, como Joseph Campbell nem como Jung. Falar sobre trindades é falar sobre algo bastante abstrato, e o abstrato anda muito fora de moda. Mas alguma coisa muito boa surgiu na conversa.
Os primeiros deuses que se tem notícia, eram todos relacionados com os elementos e os homens pré históricos criavam deuses diante do medo desses elementos. O Sol era uma divindade. O Trovão. O Bisão e outros animais. A Terra. O Mar. Nas pinturas rupestres ainda podemos ver o assombro e o respeito desse homem, escondido nas cavernas e pintando o que via e o que lhe assombrava: a alegria pelo nascer do Sol e o terror com o cair da Noite. Ainda na mitologia grega, ou na Umbanda, podemos testemunhar a presença dessas divindades que parecem porta vozes desse mundo natural, onde o homem não se sentia separado da Natureza nem o seu Senhor.
Com o passar dos séculos ou dos milênios, os deuses e as mitologias foram ganhando rostos humanos, com o barbudo Zeus trovejando os seus raios ou o pequeno Davi derrotando o gigantesco Golias. Cada povo começou a criar para si a sua própria Mitologia. Se eu tenho medo da tribo vizinha, vou pedir ao meu deus da Guerra que me dê coragem. Se eu vencer o meu inimigo, ele vai adorar o meu Deus e eu vou queimar os seus ídolos. Bin Laden falou em entrevista há poucos anos que a Guerra Santa termina quando o último infiel se converter a Alá. Como podemos ver, o que parece ter acontecido há milênios ainda bate à nossa porta e à nossa Psique.
Falei de uma trindade que me é muito cara, e que já mencionei nesse blog, em post anterior: Bhrama, Vishnu e Shiva. Bhrama constrói, Shiva destrói e Vishnu tenta eternamente equilibrar esses dois princípios. Bhrama antes de virar cerveja, era o princípio da Criação e do Potencial Puro. Hoje ele receberia o apelido de Vácuo Quântico. Tudo pode surgir e se materializar, a partir de Bhrama. Mas ele precisa de Vishnu para materializar essa potência. Como os deuses precisam do homem para existirem e serem amados. Era uma vez um jardineiro, que cultivou o jardim com amor e paciência, adubou as plantas, matou os parasitas e arrancou as ervas daninhas. Uma mulher que passava pelo local ficou maravilhada diante da beleza do jardim e louvou a Deus por ter criado plantas tão maravilhosas. O jardineiro não se conteve e respondeu: “Moça, a senhora precisava ver isso aqui quando era só Deus que estava tomando conta...” . Bhrama está em toda criação, em todo potencial que a Vida tem de se multiplicar. Mas é Vishnu que vai trazer o Incriado para o estado de Manifestação. Como a mão sábia e paciente do jardineiro, Vishnu vai fazer o trabalho duro de dar forma para essa criação. Uma característica de pessoas talentosas, mas imaturas, é saber que tem o potencial, tem a possível capacidade de receber e dar forma à Criação, mas não fazem o trabalho sujo da materialização. Tudo é potencial, mas para o potencial ganhar vida é preciso banhar a terra com o suor e com a dor dessa Materialização. Foi isso que o jardineiro, em sua simplicidade maliciosa, quis dizer para a senhora.
Finalmente, chegamos em Shiva, Shiva é o deus da Destruição. Ele pode parecer ao desavisado como aquele moleque invejoso que vê os meninos fazendo um belo castelo de areia e que aproveita quando eles vão se banhar para chutar a obra e destruí-la. Mas não é isso, não. Shiva destrói o que está velho, o que já está estagnado e produz o eterno movimento da vida, que não pode existir sem a Morte. Costumamos imaginar que Shiva é o Mal, ou o próprio Demônio destruindo e atrapalhando os planos da Criação. A Morte hoje é o grande mal, uma doença que nossa Técnica promete erradicar deste mundo. Isso seria uma pena, pois não há ciclo de Criação que possa se desfazer da Destruição. Nem Vida que possa se aperfeiçoar sem a Morte.
O Bem e o Mal andam entrelaçados, dentro e fora de todos nós. Usar isso para Criar o Novo é tarefa para poucos, pois chutar o castelo de areia é realmente mais fácil do que dar forma a ele. Talvez seja essa a tarefa de uma vida: dar forma à areia amorfa, esculpir uma vida dia após dia e depois deixar que o mar venha e comece todo o processo de novo. Deixamos na areia uma marca invisível, para que as mãos que vierem criem formas cada vez mais complexas na areia informe.

domingo, 27 de outubro de 2013

O Sorriso do Self

Está aparecendo, de maneira tímida mas consistente, dentro do horizonte árido dos Congressos de Psiquiatria, uma tendência a incluir estudos sobre técnicas de Meditação como formas de tratamento dos quadros e doenças psiquiátricas. As evidências da literatura estão se avolumando e os congressos, financiados e mantidos em grande parte pela Indústria Farmacêutica, acusam suavemente essas evidências na parte final das aulas.Falamos dos medicamentos e ah, a propósito, Meditação do tipo Mindfullness também ajuda os pacientes. Assim como quem não quer nada.
Do ponto de vista puramente concreto, podemos localizar com margem de erro pequena que parar durante menos de meia hora pelo menos duas vezes ao dia para prestar atenção na respiração e silenciar nossos aflitos diálogos interiores já produz, em si, uma melhora, usando a droga mais eficaz e barata para melhorar o metabolismo e o funcionamento de nossas células nervosas: o Oxigênio. Uma respiração mais profunda, consciente e usando mais o Diafragma e menos a musculatura das costelas já produz, em si, melhora na produção de neurotransmissores e endorfinas, como uma boa corrida ou alguns minutos numa sauna. Os alvéolos se abrem, a troca gasosa se otimiza e o Cérebro recebe uma cota generosa de Oxigênio, além da sensação de calma e plenitude que acompanha essa “droga” e a respiração profunda. Um neurocientista também observaria que as áreas do Subcortex desenhadas para processar o medo, que estão sempre ativadas em nossa vida moderna, seja quando necessário seja quando não necessário, são subitamente bombardeadas pela mensagem e a imagem de tranquilidade e Não Medo. Algumas meditações sugerem a imagem de um sorriso percorrendo os órgãos e as nossas emoções. Podemos observar nas imagens e esculturas orientais que representam a expressão impassível e o sorriso quase imperceptível dos yogues e meditadores. A expressão de paz impassível é perturbadora para quem vive em nosso ritmo, ou disritmo.
Jung descreveu entre as suas estruturas inconscientes o Arquétipo do Self. Nossas traduções brasileiras chamam o Self de Si Mesmo. A tradução não parece grande coisa. Self não parece a tradução de algo em si, mas do reflexo do próprio Ser que se esconde de nosso Ego medroso. Self é o reflexo do mundo ou da divindade que habita de um jeito profundo nosso Ser Psíquico. Por isso que eu chamo o Self de Self, não de Si Mesmo. Self é o nosso centro, ou o Velho Sábio que aparece em nossos sonhos apontando o caminho.
Imagino que os estados mais profundos de Meditação permitem à nossa Psique o descolamento dos pensamentos, preocupações e ruminações infinitas de nossa Mente Pequena, amplificando, em cada Inspiração/Expiração os limites de nosso Ser. Vamos chegando perto, roçando, lambendo a Mente Grande que está lá, mas não a alcançamos.
Isso dificilmente vai aparecer na tela de uma Ressonância Magnética, então, tecnicamente, não existe.

sábado, 26 de outubro de 2013

DNA e Psique

Há poucos meses tive um post deste blog traduzido e colocado em uma rede junguiana pela Luciana. Como o assunto era sobre Neurociência, veio um gringo me espinafrar que eu era mais um pseudo junguiano me vendendo para a Ciência Materialista. Adorei o ataque e o respondi em outra postagem, mas o debate acabou por ali. Ontem fui assistir um curso aqui no Congresso Brasileiro, em Curitiba, e me senti exatamente como o gringo que havia me espinafrado. Havia um proeminente e simpático psiquiatra junguiano que falaria sobre Psicoterapia e Ativação/Desativação de populações genéticas através do trabalho analítico. Que tema legal. O curso foi bacana e bem avaliado pelo aluno que vos escreve essas mal tecladas linhas. Mas o último da espécie, o último dos moicanos junguianos, além de mim, é claro, levou uma sapatada na minha avaliação. Não que isso vá fazer grande diferença.
Vou desenvolver a minha crítica em algumas postagens, para não ficar a coisa no terreno da birra. É muito difícil fazer uma transposição de Jung para a Ciência Empírica. O livro mais concreto que ele escreveu, “Tipos Psicológicos”, serve até hoje de base para testagens e avaliações de capacidades e limitações do perfil de funcionários, na Psicologia Organizacional, avaliados por escalas como MBTI. Esse foi um livro transposto para a nossa vida diária. Nem todos os conceitos do velho são assim.
Arquétipos são um conceito incorporado na Cultura, assim como termos como Complexos, Extrovertido, Introvertido e assim por diante. O meu colega fez um paralelo entre os Arquétipos e o nosso DNA. Jung também fez uma aproximação, como se os Arquétipos fossem uma espécie de Genoma Psíquico. A ideia do Pai, da Mãe, do Herói, da Divindade Benéfica e a Diabólica, tudo isso se repete em todas as culturas e mitologias. O colega afirmou que os tais arquétipos são representados pelos nossos genes. Errado, cara pálida. Errado. Arquétipos são a Ideia que vai ativar essa ou aquela população genética. Quando no meio de um processo terapêutico, uma esposa infeliz, oprimida por um marido dominador e narcisista, resolve enfrentá-lo e mudar a sua vida, está desativando as populações genéticas do Medo e da Submissão Aprendida para ativar as redes neurais de Indignação e Confronto, que ainda assim serão carregadas de medo. O Arquétipo não está no gene, como o que vai determinar a cor dos olhos. O Arquétipo é um campo informacional que pode ou não ser ativado por nossos campos psíquicos. Ele está muito mais próximos dos campos morfogenéticos de Rupert Sheldrake do que dos microscópios e das pipetas. Eles influenciam na expressão dos genes, não são o DNA nem os RNAs mensageiros.
Conheço bem essa aventura de tentar aproximar Carl Jung da Ciência Biológica. A gente fica frequentemente perdido no meio do caminho, mesmo. Mas vamos continuar tentando, nós os moicanos aqui no Congresso.

domingo, 20 de outubro de 2013

Penélope, a Tecedeira

Há uma passagem, se não me engano no segundo filme da trilogia “Matrix”, quando Neo, o personagem vivido por Keanu Reeves, vai falar com a melhor personagem da série, que é a vidente chamada Oráculo. Ele está tendo um sonho recorrente que a sua companheira, Trinity, está trocando tiros com os perseguidores. Ela leva um tiro no flanco e cai de um prédio, em queda livre. O sonho termina. Neo pergunta se Trinity vai ou não morrer, se aquele é um sonho premonitório. Oráculo olha para ele com uma expressão que faz com que saiba a resposta. Neo já decidiu, antes de nascer, o que vai acontecer e está lá para entender as razões de sua escolha. Dizem os kardecistas que a nossa Alma já escolhe antes de encarnar quais as dificuldades e os aprendizados que terá nessa vida. A passagem do filme lembra bastante essa ideia. Será que escolhemos as dificuldades que vamos passar e qual aprendizado terá nossa Alma Imortal?
Já escrevi em outro post sobre uma das minhas personagens preferidas de uma outra saga: a “Odisseia”. A personagem é a esposa de Ulisses, Penélope. Vou falar sobre ela de novo.
Como as sagas de herói, naquela época e nos dias de hoje, o destaque sempre foi o herói brilhante, valente, sacando a sua espada para enfrentar os monstros e os inimigos. Penélope aparece no início da sua jornada, quando seu marido está prestes a partir para a guerra. Penélope espera pelo marido por vinte anos. Os pretendentes consideram que seu marido está morto, o trono está vago e a bela viúva deve escolher um deles. Eles comem, bebem e dissipam as riquezas da casa de Ulisses, desrespeitando o seu lar. Ulisses terá uma longuíssima jornada cheia de dores e provações para voltar para casa. Penélope, pelo contrário, não vai para lugar nenhum. Essa é, justamente, a sua maior e incrível virtude. A mãe de Ulisses se deixa morrer de tristeza e seu pai, Laerte, retira-se do reino para levar uma vida de camponês. De um jeito ou de outro, desistem, fenecem, não conseguem sobreviver à longa espera. Penélope segura a onda. Cria o filho, Telêmaco, sozinha. Espera quando ninguém mais esperaria. Sente, em algum lugar de seu ser, que Ulisses não está morto. Astuta, ela alega que vai escolher o novo marido depois que terminar a mortalha de seu sogro, Laerte, que já está idoso. Ela tece o manto durante o dia e o desfaz à noite. Como ninguém quer desagradá-la, esperam por um tempo ilimitado pelo fim da peça. Euricléia, a fiel governanta de Penélope, cuida dos recursos, para não deixar que toda a riqueza seja dissipada.
Já escrevi no último post que muita gente acha que a Mitologia seja uma história da Carochinha ou livros para fazer as crianças dormirem. Somos, na verdade, participantes desse drama, como farsa ou tragédia, em nossas vidas e divãs. O executivo que espera, pacientemente, por uma oportunidade, gastando todas as suas economias enquanto aguarda, resiliente, que as propostas indecentes virem uma verdadeira chance. A mulher que, em nome do fim do amor, abandona um casamento e uma situação confortável e se lança numa vida difícil, com um ex marido hostil e uma pensão apertada. Será que, como Neo, acabamos escolhendo os caminhos mais difíceis em algum lugar de nosso Inconsciente?
Penélope representa o tecido da espera, mesmo quando não há mais nada a esperar. Continuamos tecendo, tecendo e esperando que a sorte vire. O poeta dizia que quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Penélope mostra a maior da coragem esperando e tecendo. Custe o que custar.

domingo, 13 de outubro de 2013

Cada Vida, Um Mistério

Campbell disse em uma de suas inúmeras entrevistas que os personagens da Mitologia estavam naquele exato momento em alguma estação de metrô, esperando o próximo vagão. Isso quer dizer que todos nós, sem excessão, vivemos dentro de histórias, de mitologias pessoais, como os personagens das velhas epopeias.
As pessoas em sua maioria, terapeutas inclusive, costumam achar que as velhas histórias da Mitologia não passam de histórias da Carochinha, feitas na aurora dos tempos, quando não havia TV a Cabo e os homens se divertiam inventando lorotas em torno da fogueira. Outro dia estava vendo o documentário sobre os seis títulos brasileiros do São Paulo, o “Soberano”. Careca descreveu o épico gol de empate na prorrogação contra o Guarani, na final do Brasileiro de 86. Para ele, Pita subiu no terceiro andar e desviou a bola epicamente, ela quicou na entrada da pequena área, ele encheu o pé como se não houvesse medo nem amanhã, levando a decisão para os pênaltis, vencida pelo tricolor. Wagner Basílio, um dos piores beques que já vestiram o manto sagrado tricolor, participou diretamente da vitória: foi ele que deu o chutão que acabou na cabeça de Pita e no chutaço de Careca. Mas não é dele que vou falar. Vendo o documentário, posso afirmar que esse Pita que subiu no terceiro andar e deu um passe magistral só existe na mitologia pessoal do grande Careca. Pita subiu todo torto, mal raspou a cabeça na bola e os deuses do futebol, que naquela noite sorriam para o São Paulo, fizeram a bola cair bem ao feitio do gênio da camisa 9 ( se fosse o Luís Fabiano, já teria sido expulso ou estaria machucado, pois o rapaz é pouco afeito aos momentos em que o time precisa dele. e bactéria chamada Affinococcus acaba por acometê-lo. Mas essa é outra história).
Apesar do exagero da narrativa mitológica, como acima demonstrado, não há nenhuma vida que não seja percorrida, todo dia, pelos mitos. Tenho mencionado muito isso nos últimos posts. Sobretudo no tema da Jornada Arquetípica, a que começa com um pequeno evento, um erro, chamado por mim de Erro Fundamental, que arremessa o candidato a herói em seu caminho, em sua peregrinação por essa vida estranha. Uma das coisas que me ajuda a acordar e continuar atendendo, estudando, atendendo, estudando, é essa certeza de que cada vida tem o seu Mistério. Mesmo as vidas trágicas, ou malogradas, ou as pessoas que se agarram a seus medos para não se moverem em nenhuma direção, ainda assim, essa vida tem o seu Mistério e não cabe nem ao médico nem ao terapeuta julgar aonde esse mistério vai dar. O terapeuta deve, antes de mais nada, ser aquele que está ali e lá fica, mesmo quando a maioria das pessoas já teriam desistido ou saído correndo dali.
Uma moça tinha acabado de terminar um casamento que não deveria ter ocorrido. Uma menina mimada como tantas que existem por aí, pequenas ninfas perdidas pelo Facebook e Youtubes, vivendo na inconsciência patrocinada por seus pais cheios de grana mas mendicantes de ideias. Ela resolveu fazer uma cirurgia plástica para celebrar a nova fase de sua vida. O procedimento não deu certo, mudou seu rosto, ela detestou. Foi em outro cara, ficou pior. Em desespero, queria ir para a mesa de novo e aí a coisa ficou realmente complicada, porque os médicos começaram a farejar o perigo. Operar a moça de novo era sinônimo de encrenca. Fisioterapias, tratamentos estéticos, medicamentos e cremes, nada traria de volta o seu rosto antigo. Contei para ela do Erro Fundamental, da ganância do último saque que lançou Ulisses no mar e o fez atrasar em dez anos a sua volta para casa. Esse erro é terrível, as consequências, no caso dela, mais terríveis ainda, mas aquilo também seria uma oportunidade de aprender a esperar, a cuidar de sua saúde estética tanto quanto de sua saúde mental. Pela primeira vez na vida, ela teria a chance de iniciar uma jornada, pois quem tem um desejo, tem um caminho. Ela não teria o seu rosto antigo de volta, mas talvez encontrasse um rosto ainda mais bonito. Ela me olhou com descrença, prometeu pensar no que eu falei. A sua mãe ligou no dia seguinte cancelando o seu retorno. Ela nunca mais voltou e deve continuar a sua peregrinação de cirurgião em cirurgião, procurando pelo rosto que não existe. Ou que talvez nunca tenha existido. Cada vida, um Mistério.

domingo, 6 de outubro de 2013

A Verdadeira Face

Está para estrear a segunda temporada de “Sessão de Terapia” na TV a Cabo. Já mencionei que gosto mais da versão americana dessa série, em outro post. Lá, a série se chama “In Treatment” (em tradução livre, “Em Tratamento”). O nome também é melhor, pois dá uma ideia da característica de trabalho progressivo que representa uma psicoterapia. Para um mundo que quer tudo na velocidade de um click, o processo de psicoterapia pode ser um dos últimos redutos da lentidão. O processo é longo e doloroso e os resultados, incertos. Segundo a Psiquiatria vigente, é um bate papo muito caro sem base científica. Mas não é esse o assunto desse post.
Há uma cena em “In Treatment” em que Alex, piloto da Força Aérea Americana, jovem arrogante e com algumas dúvidas sobre a sua vida e sexualidade, resolve confrontar e “desmascarar” o terapeuta. Ele descobre que Paul, o psicoterapeuta vivido por Gabriel Byrne, está sendo traído por sua mulher, a sua filha está de caso com um delinquente que deveria ajudar, e o próprio terapeuta está meio apaixonado por uma cliente que Alex está, como poderia dizer sem chocar, está “pegando”. No meio de todo aquele vomitório, Alex pergunta a Paul quantas cabeças ele ainda vai ferrar para encontrar o que está procurando? A cena termina com Paul catando o seu paciente pelos colarinhos, manobra terapêutica muito pouco ortodoxa, embora algumas vezes necessária (Estou brincando. Ou não estou?).
A parte boa dessa cena tão dramática quanto inverossímil é que Alex reconhece que o Terapeuta é mais uma pessoa na luta, na busca profunda por conforto, amor e, sobretudo, significado. Ele pode ser um companheiro de viagem, mas não um guia no safári do Inconsciente. Terapeutas tem assuntos pessoais que não conseguem resolver, crises conjugais e dificuldades como todo mundo. O que é bom que um psicoterapeuta saiba é que ele é um buscador de significados para si, para o Outro e para a vida. As pessoas ficam sempre fantasiando como deve ser horrível ficar o dia inteiro sentado ouvindo problemas e, algumas vezes, os desaforos, dos Alex da vida. Para quem fala sobre essa fantasia eu quase sempre respondo que meu único paciente realmente difícil é o Marco Spinelli. Sujeitinho chato e repetitivo, além de pretensioso. E o pior é que ele nem me deixa tratá-lo.
Estamos todos de passagem por essa vida. As correntes terapêuticas dizem que estamos à procura de liberdade sexual, espontaneidade, poder, grana, amor e cura de nossa eterna sensação de que algo está faltando (não necessariamente nessa ordem). Um junguiano acrescentaria que estamos em busca de Significado e, se tudo der certo, de Sentido.
Já mencionei em outro post o microconto de Borges (Jorge Luis Borges, escritor argentino) em que ele descreve um artista que passou toda a sua vida pintando, esculpindo, expressando o que atravessasse seus dedos e sua alma, com a sua arte. Quando ele morreu, foi dada pelo Criador a oportunidade de vislumbrar de cima toda a sua obra espalhada pelo planeta. Quando o artista olhou com atenção, viu que toda a sua obra, reunida e olhada de cima, tinha o contorno de seu rosto. Os terapeutas, como o Paul, não estão dispensados dessa busca, nem sabem como encontrar os contornos de nossa face verdadeira, sem nossos medos e mesquinharias de praxe. Paul está nessa busca,e esse é o maior presente, a maior dádiva que tem para oferecer para quem senta no sofá à sua frente. Ele não sabe disso claramente, mas nada vai ajudar a cura de outras feridas quanto a honestidade e a coragem de cuidar de suas próprias dores e saber que, nessa vida, somos todos peregrinos.

domingo, 29 de setembro de 2013

O Elixir do Amor

Quando Carl Jung rompeu com Freud, sua vida toda virou de ponta cabeça. Ele já havia se desligado da Psiquiatria Suiça, na medida em que optou por acreditar e aplicar o método psicanalítico que se estabelecia na época. Havia, dentro do Inconsciente dos doentes mentais, tensões psíquicas intoleráveis que acabavam se manifestando como sintomas e sofrimento. A Psiquiatria estava, e ainda está, procurando organizar um corpo de saber sobre as doenças mentais e entendê-las, saber como se comportam e qual a melhor forma de tratá-las. A Psicanálise e as posteriores Psicologias do Inconsciente foram rejeitadas para o entendimento das doenças mentais. Jung tomou o partido de Freud. Depois de alguns anos, as diferenças entre os dois também foram se tornando insuportáveis, até o rompimento doloroso e definitivo. Como eu falava no início desse post, esse rompimento foi devastador para Jung. Da noite para o dia ele passou a ser um proscrito pelos seus colegas médicos E por seus colegas psicoterapeutas. Passou a viver numa espécie de limbo, onde, a partir dali, teria que prosseguir inteiramente só. Não é à toa que nessa época Jung tenha ficado tão impressionado e amedrontado, com a trajetória de Nietzche, que também tentou mudar o rumo da Mente Ocidental, também sofreu tensões e dores psíquicas insuportáveis e acabou sucumbindo, após anos de solidão, terminando os seus dias num asilo para doentes mentais.
Jung foi reconstruindo a sua saúde mental e a sua carreira nesse período entre as Guerras Mundiais, mas ainda não tinha encontrado um jeito de entender mais profundamente a própria alma e a Psique Humana. Encontrou nos escritos medievais dos alquimistas os insights que lhe faltavam e, mais do que tudo, a sensação de estar remando na direção certa. Mesmo os seus colaboradores mais íntimos acharam que aquele estudo da Alquimia iria jogar no lixo a pouca credibilidade que lhe restava. Felizmente, Jung ignorou esses conselhos e seguiu a própria intuição, legando ao mundo uma obra gigantesca e ainda mal assimilada.
Outro dia eu estava praticando meu esporte favorito na TV, que é ficar zapeando, quando dei com o filme “O Perfume: A História de um Assassino”. Não é uma delícia quando o título em Português entrega todo o filme, tipo “Apolo XIII: do Desastre ao Triunfo”. Obrigado por entregar o final, pessoal. O “Perfume” é a história de uma Obra Alquímica, ou do desenvolvimento do Quarto Cérebro, se preferirem. Descreve a história de um bebê que passa por abandonos e violências impensáveis e sobrevive graças a um prodigioso sentido de olfato. Trabalhando como quase um escravo, é descoberto e “comprado” por um fabricante de perfumes, onde vai aprender a extrair os óleos e as fragâncias que compõe um perfume. Logo ele se torna o maior dos mestres da Perfumaria, mas não é essa a sua ambição. Ele que extrair a essência máxima do feminino. Eros em estado definitivo. Para isso, ele mata e extrai a essência das jovens que cruzam o seu caminho. Um serial killer do século XVIII. Como um louco atormentado, ele extrai a essência do odor de cada mulher que mata, procurando a essência do Feminino sem sabê-lo.
O filme é ótimo e demonstra, de forma dramática, a busca de um homem tangido por sua Falta e por sua Ferida e o refinamento infinito de seu conhecimento sobre cheiros e processo de retirada de elixires para encontrar o seu Elixir do Amor.
O que Jung descobriu a respeito dos velhos alquimistas tem estranhamente a ver com esse filme. O processo alquímico procurava pelo Elixir da Longa Vida, uma substância tão concentrada, filtrada e infinitamente purificada que ela pudesse, por si só, curar todos os males, reparar doenças e genomas defeituosos. Esse é o Opus Alquímico, que transportamos para dentro de nossos consultórios: o refinamento e a purificação de uma Psique para que ela supere os seus demônios e se torne cada vez mais límpida, cada vez mais indestrutível. Os Budistas tem um tratado, o “Sutra do Diamante” que também tem essa proximidade com a Obra Alquímica, pois busca dar à Psique o estado de pureza e resistência absolutas, como a do diamante. Esse é o trabalho que fazemos, ou tentamos fazer, todo dia, em nossos trabalhos e em nossas vidas. Fazemos isso conscientemente ou não.

domingo, 22 de setembro de 2013

O Erro Fundamental

Um dos últimos filmes do mestre japonês Akira Kurosawa foi produzido e financiado por alguns admiradores americanos, Steven Spielberg dentre eles. “Sonhos” de Kurosawa é um dos maiores filmes que eu já vi e consta, como o nome já sugere, de sonhos que o mestre teve e transformou em filmes, em episódios. No primeiro, um Kurosawa menino é alertado por sua mãe que não pode passear no bosque, onde a Grande Raposa passeia com seu séquito e não pode ser vista por olhos humanos. O menino, claro, não obedece a ordem, vai até os bosques e presencia, maravilhado, o desfile da Grande Raposa e sua comitiva. O que ele não esperava é que o tal desfile iria parar, quando os seres mágicos percebem o olhar do intruso. O menino volta correndo para casa, mas não pode mais entrar. Como ele cometeu aquele erro maior, estava agora sem um lar. A moça aponta para ele um arco-íris. No final do mesmo há um pote de ouro. Ele só poderá voltar para casa de posse de seu pote de ouro. A criança chora. Fim do primeiro filme.
Não acho que “Sonhos” tenha sido um sucesso comercial. Provavelmente, mal se pagou. Ser fiel à estrutura de um sonho não é algo muito filmável, mas o homem, já nos últimos anos de sua vida, não estava mais preocupado nem com vaias nem aplausos. Esse sonho, particularmente, fala de um tema mitológico recorrente, que é o “Pecado Mortal”, ou o “Erro Fundamental”. O tema que se repete é de um herói, ou uma heroína, muito senhores de sua capacidade que, em algum momento, comete um ato imprudente, por orgulho, por um Ego inflado, por tentar se equiparar ou ludibriar os deuses. Adão e Eva caíram na conversa da serpente para tomar para si o Fruto da Árvore do Conhecimento. Como o garoto do filme de Kurosawa, eles são impelidos pela curiosidade e pela fantasia se serem mais espertos que os seres divinos, que prontamente percebem a tentativa de logro. Adão e Eva saem do Paraíso da Inconsciência e entram no mundo da Realidade, onde existem o Bem e o Mal, a Vida e a Morte. Javé indica o próximo fruto proibido, que é a Árvore da Vida. Procuramos por ela desde então.
Na Odisséia, Ulisses começa a sua volta para a sua Ítaca, depois de uma magnífica vitória da Guerra de Tróia. Foi dele a ideia de “presentear” (dando origem à expressão “presente de grego”) os adversários com um cavalo de madeira gigante, onde ele e outros guerreiros ficaram escondidos para, durante a noite, abrir os portais que fechavam as fortalezas troianas. Os gregos venceram uma guerra de dez anos, voltando ricos para casa. Ulisses estava bonito na foto. Estava indo para casa com ouro, com um exército vitorioso e muita história para contar. Até que alguém teve a brilhante ideia de fazer um último saque, na ilha de Ísmaro. Lá foram os comandados de Ulisses saquear os bens, levar as mulheres, eliminando os homens. Uma prática comum na época e na vida corporativa de nosso tempo. Poderiam ter ido embora com mais este pé de meia. Mas não. Quiseram fazer uma última festinha. Foram atacados no meio da festa pelos habitantes da ilha vizinha, que não eram bestas e já sabiam que a melhor defesa é o ataque. Voltando para o mar, enfrentaram uma tempestade, as velas se rasgaram e eles se perderam em alto mar. Um pequeno erro, gerado pelo orgulho e inflação de Ego, que custou a Ulisses uma jornada para dentro do Desconhecido.
Todo dia fazemos parte dessas jornadas, que começam com um evento fortuito, um pequeno erro, e muda a direção da vida de uma pessoa. A sua vida é arremessada para o alto mar e a pessoa vai ter que procurar, dolorosamente, pela trilha perdida. Uma briga com o chefe, uma puladinha de cerca, um investimento temerário e as coisas desmoronam como um castelo de cartas, para nós humanos, ou para Eike Batista. Um pequeno peteleco, e tudo desmorona.
Estamos acostumados pelas escolas de catecismo a lamentar pelo Erro Fundamental de Adão e Eva, que reproduzimos em alguns momentos de nossa vida.Bobagem. O erro arquetípico nos coloca em busca do arco íris e do pote de ouro. Quem não procura por eles, fica na margem da própria vida. Como quem vive sentado encima do medo de errar.

domingo, 15 de setembro de 2013

Elena e As Sereias

Durante a sua longa e dolorosa jornada de volta à Ítaca, Ulisses desceu aos Infernos, enfrentou todo tipo de monstro. Várias vezes ele teve que atravessar, literalmente, passagens com seres monstruosos. Numa delas, as fragatas de Ulisses teriam que atravessar mares infestados não de tubarões, mas de seres ainda mais terríveis, as Sereias. Esses seres mitológicos, metade peixe, metade ninfas, emitem um canto indescritível que arrastam os marinheiros para o fundo do mar. Ulisses tampou os ouvidos de todos os tripulantes com cera de abelhas, e pediu para ser amarrado ao mastro, para não se atirar nos braços da morte. Foi só assim que ele atravessou esses mares, já que não ouviram os seus gritos implorando para ser solto.
Assistindo o filme-exorcismo de Petra Costa, “Elena”, o que me veio foi exatamente a Jornada Noturna de Ulisses. O filme descreve a busca da diretora pela memória de sua irmã, que dá título ao filme. Sabemos pelas resenhas que Elena se suicidou há mais de duas décadas. O filme será sobre a busca da memória, de uma irmã que morreu quando a diretora tinha sete anos.
Petra descreve a fase negra de sua mãe, que passou toda a sua adolescência com a sensação profunda, aterradora, de falta de significado na vida. Chegou a cogitar, seriamente, por fim á própria vida se não encontrasse seu caminho. Tentou ser atriz mas não seguiu na profissão. Na Minas Gerais dos anos sessenta, ela encontrou o seu marido, casou e lutou contra o regime militar. Foi salva de ir pegar em armas no Araguaia com a gravidez de Elena. Petra nasceu quando Elena já era uma pré adolescente que sonhava com o Teatro e a Dança. O sonho que a sua mãe não conseguiu realizar (em terapia sabemos que é sempre muito perigoso aos filhos os sonhos não realizados de seus pais), Elena começou a perseguir. Entrou para um grupo, o Boi Voador, aos 17 anos. Depois de um tempo, foi tentar a sorte na América. A solidão e a distância de sua família a jogaram em sua primeira Depressão. E pensar que nessa época eu já carimbava as minhas primeiras prescrições psiquiátricas. Com a separação de seus pais, Elena volta a Nova Iorque com a sua mãe e sua irmã. Foi lá que a sensação de vazio e de falta de sentido foram se tornando mais devastadoras. Um dia, após uma briga feia com sua mãe, saiu pela noite da Big Apple jurando que daria cabo de sua vida. Voltou depois de algumas horas, passou pelo psiquiatra, tomou medicamentos. O colega achou que suas variações de humor fossem causadas pela Bipolaridade. Elena se suicidou com um coquetel de medicamentos e álcool. Não usou psicotrópicos para isso e pelo que entendi demorou para ser atendida. Não há nenhum Pronto Socorro do mundo que não receba em todo plantão uma meia dúzia de mocinhas que tomam meia dúzia de Tylenóis e vão para o PS com cara de suicidas. Será que eles interpretaram a chegada de Elena dessa forma? Não sei.
Petra passou pela mesma jornada noturna quando estava às portas de escolher o mesmo caminho de sua irmã morta. Petra queria ser atriz e começou a ser tragada pelo mesmo silêncio que quase engoliu a sua mãe e dissolveu a sua irmã.
Petra descreve, em carne viva, como foi percebendo, tomando consciência, entrando e saindo da morte de sua irmã. Várias vezes, de diversas formas. O filme talvez seja uma operação alquímica de Separatio. Petra separa a sua trajetória das dores e das perdas de sua mãe e irmã. Nas cenas finais, ela sai de uma água uterina e respira. Profundamente. Ela respira um ar que é seu, uma angústia que é sua. Não tem mais que carregar as angústias de Elena, as mesmas que deram fim à sua vida.
Como na jornada de Ulisses, passamos por vários momentos em nossa vida em que ouvimos o canto doce das sereias, prometendo libertação e alívio de nossa maior angústia, que é o Devir. Pulamos do barco, por medo de não atravessar os estreitos nem ultrapassar as tempestades.
Não posso dizer que recomendo esse filme aos leitores desse blog. Só digo que é muito bom ver um filme quase caseiro (e nacional) chegar a esse nível de expressão, em tempos de “E aí, Comeu?”.’

domingo, 8 de setembro de 2013

A Maçã da Discórdia

Tenho falado nesses últimos posts de uma história particularmente cara a esse escriba, que é “A Odisséia”, épico grego escrito por Homero. Falei da jornada arquetípica do herói, Ulisses, distante muitos anos de sua terra natal, onde era rei e feliz com a amada Penélope, mas não o sabia. Nossa mitologia e nossas neuroses são tão helênicas quanto da mitologia bíblica. Ainda hoje tentamos resolver em nossas psiques os dilemas que enfrentaram os gregos. Pouca gente sabe, entretanto, como começou a encrenca que deu origem à Guerra de Tróia e à viagem de Ulisses.
Tudo começou no casamento do mortal Peleu com a deusa do mar, Tétis. Grande acontecimento no mundo da Mitologia. Éris, a deusa da Discórdia, foi barrada no baile. Parece lógico deixar de convidar uma deusa responsável pela discussão, fofoca e separação entre as pessoas, assim como é difícil imaginar uma cerimônia de casamento sem esses componentes. Éris não gostou nada nada de ter sido excluída. A sua vingança foi muito elegante: lançou no meio da festa uma maçã dourada, onde estava escrito: “Para a Mais Bela”. Hera, Athena e Afrodite imediatamente se candidataram a ficar com a maçã dourada. A primeira lição psicológica desse casamento: quando tenta-se reprimir a discórdia, ela volta com o triplo da força, bem no lugar onde menos se desejava. Hera, Athena e Afrodite representam características importantíssimas do Feminino que não podem ser dissociadas: Hera é a Grande Deusa, esposa de Zeus, a deusa do amor conjugal, a mais poderosa das deusas; Athena é a sabedoria, a capacidade de traçar estratégias com serenidade e lógica implacável; Afrodite é o princípio máximo da volúpia, do desejo, da paixão. Quando esses princípios atuam em conjunto, temos o Feminino em seu esplendor. Foi exatamente o que Éris quebrou quando lançou a sua maçã (para quem não sabe, a expressão “pomo da discórdia” deriva dessa passagem mitológica). As deusas, tomadas pelo desejo de possuir a maçã, pedem para Zeus decidir quem era a mais bela. Zeus é o mais poderoso dos deuses olímpicos, o senhor dos raios e trovões, mas não é besta. Não iria se meter em assunto desses. Recusou a tarefa, sabiamente. As deusas escolhem um mortal, o troiano Páris, que bem que tenta se esquivar da tarefa, mas, no final, acabou entrando na gelada. E sua escolha tem grandes implicações para a humanidade, até os nossos dias.
Páris poderia ter escolhido a Grande Esposa, os atributos da mulher companheira, que ajuda a construir a vida ao lado de um homem, se optasse por Hera. Escolhendo Athena, teria ao seu lado a Sabedoria e a Estratégia e poderia ser um rei conquistador e invencível. Mas como resistir à Afrodite? Afrodite ofereceu a Páris a mais bela de todas as mulheres, Helena, belíssima esposa do Menelau, que entrou para a história como corno, mas era um grande general. A escolha de Páris se parece com a escolha de muitos homens, sobretudo de uma certa idade, que trocam a esposa companheira por uma bela e jovem Afrodite. O rapto de Helena deu origem à Guerra de Tróia. Tudo por um rabo de saia.
Até hoje padecemos da escolha de Páris. Ou pior, ainda estamos presos àquela maçã. As esposas se queixam das jovens e peitudas Afrodites caçando seus maridos. As estrategistas e sábias ficam perdidas na selva de superficialidades que é nosso mundo da hipermídia. As pequenas Afrodites ficam perdidas entre lipoesculturas e toneladas de silicone, pois todo o seu poder de atração vai ser varrido pelo tempo. Os três princípios, ou atributos fenotípicos, segundo a Epigenética, quando separados, perdem a sua força e o Feminino acaba virando uma Panicat chacoalhando os quadris diante de câmeras em ângulo ginecológico.
Ulisses vai ter dez anos perdido em mares arquetípicos para encontrar em Penélope a beleza madura, a sabedoria e o companheirismo do Feminino. Ele vai ter que recuperar o estrago feito por Éris e sua maçã.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

O Tempo das Coisas

Posso não ser o melhor terapeuta, mas sou com certeza um bom contador de histórias. Frequentemente as situações que aparecem na prática clínica já apareceram antes na Mitologia ou no Cinema, que é a nossa fonte moderna de novas mitologias ou de mitos antigos requentados. Tenho falado nos últimos posts num Mito que me é particularmente caro, o da Jornada Arquetípica, particularmente a Jornada de Ulisses na “Odisséia”.
Lamento estragar o final da história, mas Ulisses se ferra o tempo todo em sua Jornada de volta a Ítaca. Depois de ganhar a Guerra de Tróia ele tinha tudo para voltar nos braços da torcida, mas acabou arrumando uma treta com Poseidon, deus dos Mares. Quando o seu único meio de transporte é por via aquática, não é boa idéia ser um desafeto do cara. Ulisses demorou vinte anos para voltar para casa, entre o período da Guerra e a sua Odisséia para voltar para a Ilha onde era Rei e tinha mulher e filho esperando por ele. Depois de várias escolhas desastradas e muitas, muitas perdas, eis que Ulisses perde tudo: seus amigos, o caminho de casa, seu exército, sua fragata. Ele vai dar, semimorto e náufrago, em uma bela ilha. Lá, ele é resgatado de seu sofrimento por mulheres belíssimas e pensa que está nos Campos Elíseos, não o bairro de São Paulo, mas o lugar dos bem aventurados, o Paraíso dos justos e dos guerreiros. Mas não era o caso. Ulisses não estava morto, mas tinha chegado a um lugar maravilhoso, que é a Ilha de Calipso, deusa maravilhosa, que logo se tomou de amores pelo náufrago. No filme “As Aventuras de PI”, um bom exemplo de uma Jornada Arquetípica, o náufrago Pi finalmente, (depois de experimentar as perdas e o sofrimento de fazer inveja ao Odisseu) decide se entregar para a própria morte. Pi se entrega para a fome e a cegueira e encomenda a sua alma ao seu Deus. Ele se despede de seu companheiro de viagem, o tigre Richard Parker. Quando acorda, encontra uma ilha toda coberta por uma planta doce, peculiar e por um monte de suricatos, que vão alimentar o náufrago e o tigre. Parece uma versão bastante piorada da Ilha de Calipso. Mas voltando à Odisséia: apesar de toda folga, todo o descanso e a vista repleta de mulheres maravilhosas, Ulisses não tarda em perceber que a sua jornada não chegou ao fim. Ele está em um lugar seguro, agradável, com uma belíssima vista de mulheres que são verdadeiras deusas. Ainda assim, ele sente saudades de casa. Tem a cara de pau de achar que vai voltar para casa depois de vinte anos e vai encontrar a esposa e o filho cheios de amor por ele. O incrível narcisismo dos homens.
Ao final do dia, Ulisses vai até a praia e fica olhando para os céus, procurando nas estrelas o caminho da bela Ítaca. Ele sabe que se reclamar com a bela e possessiva Calipso não vai sobreviver para contar a história. Um home que recebe a graça de se deitar com uma deusa não pode querer entrar numa de discutir a relação. Ulisses está num beco sem saída: o lugar é legal, a namorada é uma deusa mas o seu lugar não é ali. Como resolver o impasse?
Athena, deusa que esteve sempre ao lado dos gregos e de Ulisses durante a Guerra de Tróia, finalmente é tocada no seu coração de olímpica para interceder por Ulisses. Ela chega em seu pai querido, nada menos que o superpoderoso Zeus e faz chegar o recado que Ulisses estava pronto. O tempo tinha se cumprido. Zeus manda o seu filho, Hermes, para ele costurar um acordo com seu irmão Poseidon, para Ulisses finalmente poder voltar para casa. Depois de sete anos na praia, esperando, os deuses finalmente conseguiram ouví-lo e ajudá-lo.
Essa parte do Mito me lembra do conselho de Jesus “Peças e recebereis, bata e a porta se abrirá”. Não vem com um manual de instruções de quanto tempo vamos ter que pedir, nem o quanto vamos bater até a porta se abrir. No caso de Ulisses, foram sete anos de súplicas até a deusa resolver se mexer. Em alguns casos, pode demorar mais.
Gosto de pensar que esse mito como um todo, mas, particularmente nesse trecho, quando falamos em uma jornada estamos falando de uma longa travessia. Nesses tempos em que queremos tudo para ontem e à distância de um toque no I-Pad, o tempo de Ulisses na Ilha de Calipso representa, para mim, o Tempo das Coisas. O tempo entre desejar algo e a jornada que temos que fazer para encontrar o caminho. Sempre que, como Ulisses, eu me vejo perdido no meio do caminho, é só parar para descansar e olhar as estrelas. Elas mostrar-me-ão a direção de casa.

domingo, 1 de setembro de 2013

O Mito da Jornada e a Jornada do Mito

Na prática clínica, como na vida, damos mais atenção para as más do que as boas notícias. Naquela noite, no consultório do Morumbi, recebi a má notícia da recidiva de um Câncer de uma paciente querida. Ela me pediu uma palavra, e essa é uma situação difícil, procurar palavras exatamente onde as palavras são mais inúteis, ou traiçoeiras. Felizmente este psiquiatra calejado escapou dos clichês e dos lugares comuns. Não que isso faça muita diferença. Numa situação dessas a paciente só precisa desesperadamente saber que não está só naquela situação, que a mesma não é sem saída e que, vamos lá, vamos enfrentar, um dia de cada vez. Mas o que me ocorreu naquele momento é que a metáfora perfeita sobre o que viria pela frente é a da Jornada. O primeiro ciclo de tratamento, que incluiu cirurgia extensa e quimioterapias, havia sido atravessado há cinco anos. Agora teria início uma nova jornada, inesperada, perigosa e sem um roteiro claro ou previsível.
Soube depois que a nossa conversa era ouvida no viva voz, com toda família envolta do telefone. No pressure. Fiquei feliz de não ter minimizado o problema, nem muito menos ter mencionado a necessidade de motivação nem de pensamento positivo, nem essas bobagens que se falam, com a melhor das boas intenções, para as pessoas que estão aterrorizadas nesta situação. O melhor é se falar o básico, mas com uma metáfora que ajude na compreensão do que está acontecendo e do que está por vir. Essa é uma das funções do Mito, além da função de transformar a vida numa narrativa, como postado ontem nesse blog.
O Mito fornece uma espécie de imagem em 3 D do que está acontecendo, e que a pessoa amedrontada pode se espelhar em muitas outras pessoas que passaram pela sensação do medo diante da floresta escura ou do caminho incerto. Talvez a mais incrível jornada mitológica tenha sido a de Ulisses, ou Odisseu. A sua jornada começa em sua maior vitória, na Guerra de Tróia. Foi dele a ideia de construir o Cavalo de Tróia, que, pasmem, não é um artefato para inserir algum vírus no seu computador. Ulisses tinha sido decisivo para os gregos ganharem a guerra, tinha ficado rico com a vitória e iria voltar para a sua pequena Ítaca nos braços da torcida. Mas não foi bem isso que aconteceu. Ulisses passou duas décadas longe de casa, até conseguir voltar para os braços de sua amada e do filho que deixou bebê dentro de casa. Muitos acreditaram que ele estava morto, até a sua mãe morreu de desgosto na certeza que seu filho estava completamente perdido. Só duas pessoas acreditavam que a volta do guerreiro para a sua terra seria possível: o próprio Ulisses e sua esposa, Penélope. Justiça seja feita, o cachorro de Ulisses, só suspirou e morreu quando finalmente ouviu a voz de seu dono, vinte anos depois.
Começar um projeto, ou um tratamento, pode ser uma longa e acidentada jornada. Algumas vezes, uma Odisséia. Por isso é bom conhecer e lembrar do Mito, que pode servir como uma lanterna para os afogados.

Mitologias

O mitólogo Joseph Campbell foi a um programa de rádio para falar sobre o assunto de sua vida, a Mitologia e As Mitologias. O entrevistador, um caipira tão bronco quanto metido, saiu falando que os mitos eram histórias da carochinha que não tinham fundo nenhum de verdade. Campbell respondeu ao vivo que a definição estava errada, os mitos falavam de coisas tão verdadeiras e profundas como qualquer relato de nossa vida. O locutor irrompeu quase aos berros, dizendo que eram histórias mentirosas, Campbell bateu boca dizendo que não e eles ficaram vários minutos numa discussão dom tipo: “É mentira!”, “Não é mentira” até chegarem os comerciais. Queria ser uma mosca para estar lá e presenciar essa briga.
Semana passada eu comentei da necessidade que as pessoas tem de transformar a própria experiência numa narrativa. Isso pode ficar dramático na fila do restaurante por quilo, quando o caixa resolve transformar numa longa narrativa a sua saída de casa, pleno Domingão, para participar de um campeonato de bocha, modalidade esportiva da qual é dirigente. Confesso que tive muita vontade de entrar na conversa e lembrar de uma amiga, gaúcha engraçadíssima que acompanhava os torneios de bocha ( uma espécie de Curling dos pobres) do seu marido, com uma camiseta escrita: “Bocha é Adrenalina Pura”. Um protesto singelo das esposas. Acabei me contendo, enquanto o caixa terminava a narrativa interessantíssima sobre o golpe de frio que tomou nas costas durante o torneio de bocha. Qualquer comentário iria atrasar ainda mais a fila e, o que é pior, poderia puxar mais um “causo” e os pacientes esperando no consultório.
O homem é um bicho simbólico. A nossa capacidade de criar narrativas forma também o tecido dos mitos. Nelson Rodrigues dizia que no futebol o replay é burro, pois tira o espaço para a imaginação e a narrativa épica. O Brasil perdeu uma Copa em casa, a de 50, e conta o Mito que o lateral Bigode teria tomado uma tapona na orelha de um destemido uruguaio, sem esboçar reação. Imagino que nada disso aconteceu, mas a imagem mitológica simbolizou a nossa humilhação perante os uruguaios: em pleno Maracanã, levantaram o caneco e ainda ganharam no tapa. Bigode morreu jurando que nunca levou tapa. O que ele não percebeu é que o tal tapa já havia se tornado um mito, e com um mito não se discute. Ele concordaria com o locutor malcriado que dizia ser o mito uma história mentirosa, uma hipérbole da realidade, uma amplificação de nossos heroísmos, nossos medos, nossas vitórias suadas e derrotas mais abjetas. Somos criadores e repetidores de mitos. Vou falar mais sobre isso adiante.

domingo, 25 de agosto de 2013

O Sonho do Arquétipo

O jovem psiquiatra Carl Jung tentava dar um nexo aos delírios que os pacientes produziam profusamente no início do século passado. Começou a estudar Mitologias e Religiões de todas as partes do planeta, sem ter ideia de onde iria chegar com aquele estudo. Um paciente segredou a ele que sabia como os ventos eram formados: havia um pênis gigantesco que saía do Sol e balançava, produzindo os ventos. Jung havia lido essa mesma ideia em uma Mitologia Arcaica, das mais antigas de nossa história, que á a Mitologia Mitraica. Não havia como o paciente ter tido contato com aquela mitologia, ele nem sabia de sua existência. Foi dessa experiência que Jung descobriu o que seria chamado de Inconsciente Coletivo, um substrato de ideias e formações psíquicas que comunicam todos os seres humanos. Os mitos representam essas ideias originais, de onde saem as metáforas fundamentais de nossa vida e de nossa visão de mundo.
Uma das coisas que a psicoterapia ainda permite é transformar uma vida em narrativa. O que parece uma sucessão de fatos gerados pelo acaso, ao virar uma narrativa, começa a ter coerência interna. Da narrativa podemos chegar aos mitos geradores, às metáforas de cada vida. Isso anda muito fora de moda. Temos hoje uma terapêutica de resultados: os psiquiatras e os psicoterapeutas saem caçando os sintomas e tentam matá-los às pauladas de medicamentos ou de “intervenções pontuais”, de base comportamental/cognitiva. Lembro de um psiquiatra inglês que foi jantar em meu apartamento de solteiro, que observou que determinado grupo do Instituto de Psiquiatria era tão obcecado pelos sintomas que mal conversava com os pacientes. A perda da narrativa e da dimensão mitológica cria esses monstros. Alguns pacientes não podem abrir mão de suas doenças porque são definidos por elas. Ele não é mais o João, mas um Dependente Químico. Ela não é mais a Luzia, é uma Bipolar II. A Mitologia se desloca para a patologia, e tudo pode ser explicado por um sorteio genético infeliz.
O fato é que ainda somos sonhados pelos mitos, querendo ou não. Há um maravilhoso de Borges, em que um bandoleiro gaúcho é emboscado pelos seus comparsas, sendo esfaqueado por cada um deles. A última facada vem de seu filho de criação, que ele olha com espanto e diz: “Peró, hombre?”, antes de suspirar o último suspiro. Borges termina o conto dizendo que aquela facada ocorreu para que uma cena se repetisse. A alusão é à cena em Júlio César, poderoso Imperador Romano, emboscado no Senado às facadas, olha espantado para seu filho de criação, Brutus, após receber dele o golpe fatal: “Até tu, Brutus?”. Repetimos inconscientemente essas cenas mitológicas. Para quem acha essa conversa junguiana um pouco esquisita, vamos falar de um mito moderno, vivido por Steve Jobs. O filme sobre a sua vida está para chegar e eu já discordo a priori da escalação de Ashton Kutcher para o papel principal, mas esta é outra história. Eu já mencionei esse tema em outro post, mas tudo bem, depois de 400 posts a gente acaba se repetindo um pouco, mesmo.
Steve Jobs, como o Édipo Rei, não conheceu o seu pai biológico e foi dado à adoção por sua mãe, que estava muito ocupada com a sua carreira universitária. O primeiro casal chamado à fila de Adoção curtiu o moleque, mas na última hora preferiu adotar uma menina. O próximo casal era de origem muito simples, a mãe biológica tentou vetá-los. Queria que aquele bebê tivesse uma carreira universitária, como ela. Estranhos caprichos, aliás, está dando o filho para adoção e quer dar pitacos na sua carreira. Os pais de Steve Jobs prometeram que fariam de tudo para levar aquele moleque à Universidade, coisa que cumpriram, mas o jovem Steve, não. Passou seis meses na Faculdade e foi embora, construir computadores na garagem de casa. Com vinte e poucos anos era um dos donos da Apple e tinha alguns milhões de dólares na conta. E sem diploma. Nada mau. Édipo, que significa “Pés Inchados” foi abandonado na montanha para morrer, por ordem de seu pai, Laio. Um oráculo previra que aquele menino iria matar o seu pai e desposar a mãe, Laio resolveu cortar o mal pela raiz (ou pelos tendões, no caso). Édipo foi encontrado com os pés machucados e criado por um casal de camponeses muito simples, que limparam as suas feridas e lhe deram um lar de amor e dignidade. Mas não curaram a sua ferida profunda. Édipo compensou a sua deficiência com uma inteligência brilhante. Foi ela que lhe permitiu derrotar a Esfinge e subir ao trono de Tebas, onde, sem o saber, desposou a sua mãe, a bela Jocasta.Quando descobriu o que ocorreu, arrancou os próprios olhos. Morreu prematuramente, engolido pela terra. Steve Jobs usou a sua inteligência e sua intuição gigantesca para construir, destruir e depois reconstruir a sua empresa e Império. Dizem que confiar demais no seu intelecto ou sua energia foi um dos fatores de sua morte prematura, pois tentou derrotar o Câncer com Meditação e mentalizações. Mal sabia ele que estava morrendo para que uma cena se repetisse.

sábado, 24 de agosto de 2013

O Quilão

Quem me conhece sabe que sou grande apreciador de Restaurantes Por Quilo. Tenho a impressão, influenciado pela Medicina Chinesa( que eu sapeio de vez em quando), que nos buffets por quilo podemos construir um equilíbrio entre cores e sabores, bem ao gosto da Medicina Taoísta. Salgado, Doce, Amargo, Apimentado e Azedo são tipos de estímulo que nossa língua percebe em diferentes regiões gustativas. Nossa alimentação ocidental tem uma grande ênfase no Salgado e no Doce. O resto entra como tempero ou como bebida, mas passamos do Salgado da refeição para o Doce da sobremesa. Excessos de doces e farináceos estão na base de nossa atual epidemia de Obesidade, mas esse é outro assunto. Os restaurantes por quilo tem espaços para saladas, legumes e pratos quentes. Dá para equilibrar gostos, cores e grupos alimentares, o que favorece a saciedade. Para quem duvida, eu proponho um teste bem simples: quando bater aquela fome fora de hora, tente atingir a saciedade comendo só doces, ou, em outro momento, faça um lanche com equilíbrio de sabores. Nos meus consultórios eu faço pequenos lanches, nessas horas, com grãos, como amêndoas e nozes, chocolates amargos com alto teor de cacau, maçãs azedas ou damascos, além de um chá forte ou picante. Os gostos estão aí: o salgado dos grãos, o picante no chá, doce e amargo no chocolate escuro, o azedo na fruta. Tenho a impressão que o Cérebro recebe uma informação sensorial mais rica e entende que não vai faltar comida. Isso desliga o alarme da fome. O doce, pelo contrário, parece estimular o Cérebro a querer mais, mais, mais. Quem já devorou caixas de bombons e teve que encarar a ressaca moral do dia seguinte sabe do que estou falando.
A parte ruim dos restaurantes por quilo são as filas, sobretudo, alguns tipos que ficam na fila. Eu costumo imaginar que uma forma de Danação ou Purgatório, para este pecador aqui, seria uma eternidade na fila do Restaurante por Quilo. Os tipos mais difíceis são, sem dúvida, os obsessivos. Olham, observam, pegam cada folhinha de alface com uma incrível e meticulosa precisão. Os membros mais gordinhos de nossa pequena confraria parecem demorar calculando os pontos da refeição, suas calorias e estratégias alimentares. Tenho uma paciente que diz que salada deve engordar muito, pois os pratos cheios de vegetais e saladas estão geralmente nas mãos dos gorduchinhos. Outra galera que retarda a fila são os funcionários querendo esticar o almoço. Tudo eles fazem de maneira lenta, inclusive montar seus pratos. Esses eu ultrapasso, dou trancos, piso nos sapatos. Tem paciente me esperando e a pessoa pode revisar doze bifes para poder escolher um deles. Gosto mais dos “caminhoneiros” sem culpa, que fazem pratos imensos sem considerar que estão num restaurante por quilo, não no PFão da esquina. Esses derrubam batatas de suas pirâmides e colocam Estrogonofe de Camarão encima do Arroz, Feijão e Farofa. Nenhum prurido gastronômico. Existem as magrinhas que fazem pratos que são critério para diagnóstico de Anorexia. As gordinhas sexy, que fazem um prato balanceado e depois devoram o pudim de leite da sobremesa e ainda batem um picolé na fila do pagamento.
Continuando a metáfora da Danação Eterna, a fila do pagamento é outra via de expiação de pecados. Fico enternecido com as velhinhas e velhinhos que adoram puxar papos com o Caixa. Enternecido e enlouquecido, de acordo com o número de pacientes que me aguardam no consultório. Prefiro pesadores e caixas mau humorados, que não olham nos seus olhos e fazem a sua função rapidamente. Não que isso intimide as velhinhas, que perguntam da família toda e podem fazer um tratado sobre as variações de temperatura e clima. Nesta fila, reclama-se do calor, do frio, da chuva e da secura. Desesperador é quando o caixa se anima e pode passar uns três minutos narrando as peripécias de ter sido pego, em pleno Domingo, por uma frente fria anunciada em todas as mídias. Impressionante, ele exclama diante do olhar admirado de vários tiozinhos. E a fila... Empaca .
Gosto muito de ler sobre os benefícios das meditações, e posso observá-los nas filas de restaurante por quilo. Inspirar, expirar. Longamente. Senão posso, num acesso de loucura, correr para o Mac Donald’s ao lado, onde também há filas, mas as duas em uma, pagamento e formação do prato. Respira que a fila está acabando. Nessa hora, dá pau na maquininha de vale refeição e o Caixa não sabe o que fazer. A velhinha comenta que o tempo está para virar. Eu tomo uma inspiração profunda.

domingo, 18 de agosto de 2013

Eros,Ágape e Cáritas

Estava zapeando como sempre os programas da TV por assinatura, quando me deparei com um programa chamado “Decifrando Milagres”. Adoro dar uma olhada nesse tipo de programa, além dos documentários sobre avistamento de discos voadores ou mistérios das pirâmides. No programa, havia uma completa mistura de alhos com bugalhos, pois mostrava uma médium curadora argentina, Giras da Esquerda de Candomblé, em São Paulo e uma imagem de menino Jesus que é objeto de culto no México. Não sei se o objetivo era mostrar os exóticos latinos e suas crendices, mas acabei parando a zapeagem e vendo o programa. A parte que me encantou foi sobre a mística argentina, Martha Rosenberg. Essa senhora loira e um pouco emperuada, disse ter recebido a visita de Jesus, que lhe avisou que, a partir daquele momento, ela teria o Dom da Cura. Apareceram no dorso de suas mãos e pés os Stigmata, as feridas de Jesus após a sua crucificação. Acho que foi a maneira de Jesus demonstrar que não estava brincando. Uma imagem de Jesus que trouxe para a sua parede começou a verter sangue. Ela pensou que o visitante estava de brincadeira, pois além de não acreditar em nada daquilo, ela é judia, como é que falaria em nome de Jesus? Mas o visitante não pareceu se impressionar com aquilo. O documentário mostra as sessões com Martha num bairro simples de Buenos Aires. Há uma consagração e oração, depois filas de pessoas que a abraçam longamente e trocam palavras amorosas. Algumas relatam as curas e as mudanças de evolução de suas doenças com a médium argentina, que os espíritas classificariam como médium ouvinte, pois recebe as instruções de seus guias através de vozes assoprando em seu ouvido.
Ela passou a comer e beber muito pouco, dormir menos ainda, desde que passou a ser instrumento desse dom. E o sangue sai caprichosamente de seus estigmas de quando em quando. É lógico que a equipe do programa foi entrevistar o seu psiquiatra, para saber que papo é esse de vozes assoprando coisas. A própria Martha foi procurá-lo para saber se aquilo tudo não era um surto esquizofrênico e se não estava precisando, mesmo, era de uma internação. O médico ficou gaguejando diante das câmeras para afirmar que a senhora não era Esquizofrênica e que as suas vivências místicas não estavam no escopo da Ciência. Pelo menos isso. Outros colegas diriam que ela é uma Bipolar, em Hipomania, com um quadro delirante místico e de grandeza. Um médico de Pronto Socorro colheu exames de suas feridas para constatar que aquilo era sangue mesmo (não me diga) e levantar a hipótese que as mesmas eram feitas pela senhora. O que dá para ver com as imagens é que as feridas são redondas, de bordas delimitadas e profundas, às vezes em carne viva, outras vezes porejando sangue. Para aquilo ser uma fraude ela precisaria de um uma equipe de fraudadores e de uma deficiência de coagulação, o que não é impossível, mas estranho. Ninguém conseguiria entender aqueles fenômenos sem colocar em Martha a pecha de farsante ou maluca. O que as pessoas que recebem seu abraço descrevem é uma incrível energia amorosa que se desprende dela, gerando algumas curas. Martha continua afim de se livrar da tarefa e do fardo, mas continua, como aquelas coisas que continuamos a fazer a despeito de seu desconforto, só porque sabemos necessárias.
Felizmente eu não fui entrevistado e infelizmente, não sou o psiquiatra de Martha (acho que essa gripe que me afeta há cinco dias já estaria bem melhor nesse caso). Os místicos cristãos dividem em três tipos o Amor que podemos sentir: Eros, o mais popular, Ágape e Cáritas. Sobre Eros já falei bastante nesse blog. Ágape e Cáritas é que são elas. Ágape é um amor que ultrapassa o prazer de Eros. É o amor incondicional de um pai por seu filho, o amor de alguém que esquece de si em função da entrega para o outro. Uma tipo de Amor muito raro em nossa geração autoestima. Mais raro é o Amor que flui dos abraços de Martha ou das palavras das pessoas que estabelecem o contato com essa frequência, que chamamos de místicos, ou de mistificadores. Cáritas é a energia amorosa absoluta, que tira o sono e a fome de Martha. Se isso é uma doença psiquiátrica, eu bem que gostaria de tê-la. Desde São Paulo no caminho de Damasco que ouvimos histórias de pessoas comuns que tem o encontro de nosso Ego comum com a Grande Personalidade, ou outro centro de consciência, que vai passar a emanar essa energia amorosa. Isso é loucura? Loucura é viver só às custas de nossa Mente Racional, achando que ela basta para entender a vida.

sábado, 10 de agosto de 2013

Synchronicity

Jung me ajudou a impressionar uma garota apenas uma vez em minha vida. Estávamos no banco de tráz de um carro e começou a tocar um sucesso do Police, no que eu acho que foi o maior álbum dos anos 80, “Synchronicity”. Estava tocando justamente a música que dava nome ao disco, onde Sting descrevia um monte de cenas, fatos e imagens sem relação entre si e terminava com a palavra Synchonicity, ou Sincronicidade, um conceito formulado por Carl Gustav Jung. Lógico que ninguém no carro tinha a menor ideia do que significava aquela letra, então eu expliquei, com toda a banca de um jovem estudante de Medicina que estava devorando todos os livros de Jung que houvessem pela frente, que Sting estava falando na conexão invisível que existe entre todos nós, o que Jung chamou de Inconsciente Coletivo. Não sei se a loira (sem trocadilho ou demérito às loiras, por favor) entendeu a explicação, mas ela entreabriu os lábios como se estivesse diante do cara mais cabeça que já tinha visto, e eu me dei bem naquela noite. Obrigado, Carl Gustav. Acho que hoje em dia a menina teria olhado para mim com aquela cara de :”Você é doente, Nerd?”. Mas nos anos oitenta ainda dava para impressionar as meninas com esses papos cabeça.
Outro dia estava vendo um programa, ou, melhor dizendo, homens nunca estão vendo um programa. Estão zapeando vários programas simultaneamente, pegando os pedaços de filmes, piadas, comerciais e esportes que nunca chegamos a ver inteiros. Então eu estava zapeando quando parei num programa de Talk Show em que um pequeno grupo de mulheres tentam encaixar um papo cabeça sobre atualidades. Os anos se passaram e minha paciência para papo cabeça também passou, mas me detive em um senhor que descreveu uma sessão de análise em que uma pessoa chorava uma perda, provavelmente uma morte e a incerteza se haveria algo depois de nossa vida biológica. Parei de zapear. Aquilo parece conversa de um junguiano. Ele continuou contando o caso: a conversa se desenrolava sem o terapeuta ter coragem de abrir a boca quando pousou em sua janela um belo pássaro, que ficou parado olhando para eles em longos segundos. Uma intensa sensação de paz tomou conta do ambiente, até o pássaro sair voando. A paciente olhava para a janela, em lágrimas, como se tivesse recebido a visita da pessoa amada que havia morrido. Sabe o que é Sincronicidade? É isso. Um evento que não tem nada a ver com o que está acontecendo, como um pássaro pousando na janela de uma sala de terapia, que enche de significado o que está acontecendo lá dentro. Um psicanalista diria que a pessoa estava procurando, em seu desespero, por algo que desse significado a morte de um ente querido e se agarrou à uma ave na janela para acreditar que a vida e a morte tem algum sentido. Quem já experimentou uma coincidência significativa e a sensação de maravilha, de sentido profundo que ela carrega, já conheceu uma Sincronicidade. Einstein morreu sem saber se o Universo é, ou não, um lugar amigável. Faltou o pássaro em sua janela, para dar essa sensação de que as coisas estão conectadas em algum nível profundo e invisível. Um físico mais jovem, David Bohm, chamou essa ordem de “Ordem Implícita”, justamente por essa característica mágica, fora de nosso campo de percepção, que conecta fatos e vivências dentro de campos de sentido.
A menina hoje diria, no banco de traz daquele Passat verde: “Além de Nerd, é místico.” Pois é. Além de Nerd, junguiano.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O "Mestre"

Lamento pelos poucos e bons leitores desse blog, mas vou ter que falar sobre um filme desagradável. Isso torna o post particularmente inútil, entre outros posts inúteis, como aqueles em que eu me dedico a atacar o presidente (?) do São Paulo, Juvenal Juvêncio. Escrever sobre um filme desagradável é convidar o leitor a evitar o mesmo. Mesmo assim, vou escrever sobre ele e sugiro ao leitor que evite esse texto. É o máximo que posso fazer.
O filme é “O Mestre”, que valeu ao bom Joaquin Phoenix a indicação para o Oscar de 2013 de Melhor Ator. Joaquin faz um personagem tão absolutamente repulsivo que era de se esperar que não levasse a estatueta. O filme se passa nos anos 50, após a Segunda Guerra, onde Charlie lutou com japoneses no Pacífico. Ele é um marinheiro que volta ao seu país e passa a ter um comportamento estranho, com episódios de agressividade imotivada, chegando a tentar trabalhar como fotógrafo, mas ataca sem motivo um cliente. Vai trabalhar em plantações de algodão e tenta envenenar um lavrador, novamente sem motivo nenhum. O ator compõe um personagem sempre crispado, a postura encurvada, o rosto com uma máscara de tensão e caretas. O psiquiatra que vos fala já ia diagnosticando algo do espectro da Esquizofrenia, mas o filme segue e nada confirma, ou exclui, a hipótese. Quando o estranho personagem abandona o campo e passa a vagar sem destino, entregue cada vez mais ao abuso alcoólico, ele encontra o sujeito que dá título ao filme, o tal “Mestre”. O Mestre é o líder de uma espécie de seita, também dado a excessos alcoólicos, entre outros hábitos repulsivos. Esse “Mestre” toma o marinheiro perdido como seu protegido e passa a fazer sessões de “Processamento”, que consistem em fazer trabalho de levantamento de traumas, incestos e violências que Charlie teria sofrido ou perpretado. Ele vai entrando e fazendo parte daquele grupo, com adoração e adesão total ao seu líder. Quem o critica ou questiona é prontamente espancado por Charlie (como a torcida uniformizada que vem ameaçando fisicamente os opositores de Juvenal Juvêncio). Tudo parece caminhar para um desfecho trágico, até Charlie aproveitar um dos experimentos do “Mestre” para sumir no mundo. O que vai acontecer depois eu não vou dizer, para não estragar o filme que alguém queira assistir, mesmo alertados que é um filme desagradável.
O filme provavelmente é um relato de algum dissidente da Cientologia de L Ron Hubbard. As técnicas de processamento que o líder usa com o perturbado seguidor, foram e são, praticados pelos membros dessa seita, e visam desatar os nós de traumas passados e libertar seus seguidores de suas aberrações, ou neuroses, medos, traumas para poderem se expressar como seres espirituais e libertos de suas amarras psíquicas e físicas. O retrato do “Mestre” é crú, de um homem vaidoso,dado a explosões inesperadas e bebedeiras incontroláveis. Ele é sempre acompanhado por uma filha fanática e incestuosa, que representa o fabuloso aparato que se revestiu esse movimento nas últimas décadas, sempre tentando transformar o tal “Mestre” em um Semideus que não pode ser contrariado, ou questionado, em nenhuma hipótese.
O leitor deve estar se perguntando, assim como este escriba, qual a necessidade de escrever esse texto, já que ele não recomenda o filme nem vai conseguir mudar a sinuca de bico em que se meteu a diretoria do São Paulo. Acho que o filme muito me impressionou pela potência das cutucadas que os caras dão nos membros dessa seita. Mexer com o Inconsciente das pessoas demanda um cuidado e um respeito absolutos, além de conhecimento de causa. Hoje as pessoas “processam” traumas e mexem nos Inconscientes alheios em Vivências Corporativas, Constelações, Regressões e Workshops de final de semana. Os resultados nem sempre são bons.
Penso que esse filme mostra o nascimento da Cientologia e o germe do que um processo que quase destruiu o personagem principal do filme e outras tantas pessoas, inclusive o “Mestre”, que morreu só em seu rancho, tomando remédios para sua Paranóia progressiva. Escrevo esse texto para lembrar a quem se aventura nesses caminhos e feridas psíquicas para fazê-lo com cuidado e orientação. E, finalmente, sempre, sempre, desconfiar de quem se acha um “Mestre” absoluto, inquestionável. Morrer é parar de fazer perguntas.

domingo, 4 de agosto de 2013

Bruta Flor do Querer

Quando teve início a grande crise mundial, que Lula falou que no Brasil no mundo seria um tsunami, mas no Brasil “não passaria de uma marolinha”, eu li um texto, se não me engano, do Calligaris, em que ele dizia que aquela catástrofe econômica era derivada de nossa civilização “O Segredo”, onde os livros de autoajuda propunham, em alguns casos, literalmente, que o Universo seria uma espécie de Gênio da Lâmpada pronto a materializar todos os nossos desejos, desde que mantenhamos a nossa mentalização. Isso aplicado ao mercado financeiro, ou à expansão enlouquecida do crédito, levou a economia americana e, por tabela, do mundo, a nocaute. Os realistas de todas as origens concluem que, infelizmente, querer não é poder.
As rodas pesadas do hipercapitalismo são movidas às custas dessa fantasia coletiva que, se o desejo for canalizado e os esforços mantidos, poderemos ter acesso quase ilimitado aos nossos sonhos. Já está chegando em nossa cultura tipiniquim a divisão entre loosers, os perdedores e os winners, os vencedores, os campeões. A divisão se dá em termos de capacidade de consumo e de poder de compra. As fantasias podem desmoronar como o império de Eike Batista, na hora em que as pessoas percebem a diferença entre Realidade e Simulacro, entre Forma e Conteúdo. Da noite para o dia o antigo Winner passa a ser um Looser, quando cai a sua máscara.
Muitas religiões e escolas místicas alertam para os perigos da ganância, do desejo desenfreado que quebrou várias vezes muita gente e causou a morte e a ruína de outras tantas. Saber conter, ou limitar as ambições enlouquecidas é quase sempre a moral da história, da tragédia grega aos épicos shakeaspeareanos. A grande questão, que aparece sempre nos divãs e na vida é que o desejo, por mais que deva ser conduzido em nossa vida com calma e sabedoria, é completamente imprescindível à mesma. Não dá para fugir de nossos desejos ou esmagá-los em falsas modéstias. Como diriam os Titãs, a gente quer inteiro, não pela metade.
Al Pacino, inesquecível como diabão no “Advogado do Diabo” gritava no diálogo final que Deus é um sádico, pois dá aos homens o Desejo e a Interdição (não foram essas as palavras, mas era essa a ideia). O Desejo e a proibição do Desejo são a nossa dor e a nossa delícia. Desejamos e temos medo da frustração, então ficamos cada vez mais realistas e cada vez mais tristes. O que eu proponho, inclusive em termos terapêuticos, é que temos direito, sim, a estabelecer nossos campos de desejo, e que realizá-los não é nem pecado nem o triunfo da psicanálise, mas é a base de muito de nossa existência. Criar um campo de desejo e de sonho, trabalhar esse campo de desejo e tentar trazer para o Real o que só existe no Invisível é tarefa para um bom tempo de luta, de erro e de aprimoramento. Não adianta mentalizar ou usar a “Lei da Atração” sem esse processo de aprendizado e busca. Mas não dá para viver sem esses campos de desejo. Nem na terapia nem na vida fora dos divãs.