domingo, 24 de fevereiro de 2013

Procura-se um Amor que Goste de Cachorros

Um dos posts mais lidos desse blog no ano passado foi escrito com muita emoção diante da morte de uma cachorrinha, da raça boxer, chamada Bunny. Eu sei que Bunny (coelho em Inglês) não é um bom nome para uma cachorra valente e parruda como ela, mas seu nome original era Fanny e não quisemos mantê-lo. Esse nome estava relacionado com a sua casa anterior, onde sabemos que a fofa Bunny não fora feliz. Ela passou oito belos anos conosco e ainda me lembro do jeito como gemia toda manhã ganhando cafuné em sua nuca.
Com a morte da Bunnynha, ficou inconsolável nossa outra boxer, Chiara. Desde que veio para nossa casa uma bebê que acabara de desmamar, Chiara (pronuncia-se Kiara) sempre teve Bunny como a mais velha. Com a ausência da gordinha mais velha, estava comendo mal e não ficava tão animada quando podia entrar em casa, após mais um dia de “trabalho” hostilizando carteiros e transeuntes. Decidimos desrespeitar nosso prazo mínimo de luto, que é de 49 dias. Este é o prazo determinado no Livro Tibetano dos Mortos para a transmigração do espírito do ente querido, para a sua evolução ou reencarnação. Continuei acendendo incenso e mandando nosso amor para Bunny, mas fomos a um canil no Carnaval do ano passado para escolhermos uma companheira para Chiara. Foi assim que encontramos uma filhotinha tigrada, com a cara preta e que já na ninhada parecia muito travessa. Chamamos a pequena de Scarlett, muitos pensam que por causa da atriz e gostosa Scarlett Johansson, mas eu pensei mesmo na música de Lulú Santos para sua mulher, na época, que tinha e tem um nome maravilhoso: Scarlett Moon, ou Lua Escarlate, em tradução livre. Até hoje eu canto para ela essa música, da moça do bando da Lua. Para mim, ela se chama Scarlett Moon, nome muito grande para uma bichinha tão delicada e fofa. Diz a Neurociência Evolutiva que os filhotes tem essa fofice para nos escravizar. Isso vale para quase todos os filhotes mamíferos, que nos evocam essa sensação de fofice e de ternura.
Jung pegou de Platão um termo que se tornou central em sua teoria: o Arquétipo.
Arquétipos são ideias e figuras elementares em todas as culturas e que se repetem nas religiões e nas mitologias: a Grande Mãe, o Grande Pai, A Criança Divina, o Herói, o Velho Sábio. Jung imaginava que essas figuras e imagens eram uma espécie de DNA de nossa psique. Hoje podemos até aproximar os arquétipos de algumas populações ou agrupamentos genéticos em diversas fases de nossa vida. Somos a Criança Divina, o jovem Herói renovando a vida e a Cultura, o Líder mostrando o caminho, o Xamã tentando trazer a mensagem dos deuses. É certo que a nossa cultura tecnicista tenta esvaziar a importância dos arquétipos, ou duvidar de sua existência. Isso não impede a sua manifestação em nosso dia a dia. Mesmo em minhas cachorrinhas de estimação é possível observar as dinâmicas arquetípicas se manifestando.
Chiara, ao contrário de nossa expectativa, não ficou tão feliz com a vinda da nova bebê. Ela sempre foi acostumada a ser a caçulinha da casa. Em termos junguianos, Chiara era a própria manifestação do Puer dentro da família. Era a bebê sapeca, a agitação permanente, a necessidade de ter a atenção e o dengo de todos. Bunny era muito delicada e introvertida e não se incomodava de ceder o palco para Chiara. Scarlett não é assim. Scarlett é uma monstrinha que já aprontou e já bateu todos os recordes de travessuras estabelecidos pela antecessora. Chiara disputou, e disputa, o lugar de Cão Dominante e continua sendo a chefe da matilha. Mas o arquétipo do Puer passou a ser de inteira posse da pequena. Ela é o bebê da casa, ela é a fofa que leva bronca o tempo todo. O estranho foi ver a mudança que se operou na mais velha da casa a partir dessa novidade. Chiara passou a ser o outro arquétipo, o contraponto do Puer, que é o Senex. Tenho certeza que, como nós, Chiara passou por um momento de transição e de luto, para depois assumir a sua nova posição na vida. Ela fez o que às vezes nos custa anos de análise para fazer: aceitar e viver os diferentes ciclos da vida.
Esses são os arquétipos: a representação das diferentes fases de nosso desenvolvimento diante de dois deuses muito lindos (e implacáveis): o Tempo e a Vida.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Quentin Tarantino e o Espelho

Hoje estava ouvindo no rádio um debate no programa Talk Show da CBN, com especulações sobre o Oscar, que terá a sua cerimônia amanhã. Nessa época da sociedade do espetáculo tudo o que vale ou tem validade é o espetáculo em si, portanto eu entendo essa cerimônia muito mais como um espetáculo autopromocional da indústria do cinema do que como uma premiação com alguma credibilidade. Isso sou eu falando de forma analítica e lúcida. Por baixo desse jovem senhor existe um torcedor que gostaria de ver seu time ganhando, mesmo sabendo que os caras por trás dos bastidores estão fabricando os resultados. Fiquei, portanto, algumas vezes irritado com o debate dos “especialistas”. Para começar com um babaca que foi ao debate e saiu logo dizendo que não havia assistido a três dos principais candidatos ao Oscar. Estava fazendo o que nesse programa, cara pálida? Vivemos num mundo encharcado pela autoindulgência, os achismos e as opiniões despejadas com pouca reflexão em todos os lugares. O cara se propõe a ir a um programa que vai debater os indicados ao Oscar e não viu três dos filmes candidatos à estatueta. Se fosse um debate mediado pela Capitão Nascimento, ele já ouviria um “Pede para sair!!” explodindo os seus tímpanos. Finalmente, um dos debatedores, com um forte colorido de petulância, afirmou que Quentin Tarantino era o grande ausente das indicações para Melhor Diretor, pela sua “incrível liberdade narrativa” em “Django Livre” (título brasileiro. O original, em tradução livre, é “Django Desacorrentado”). Uma palavrinha sobre isso: “Django Livre” é uma bosta de filme. Quem está escrevendo isso é um fã de carteirinha de Quentin Tarantino, então vou desenvolver o tema.
Os rapazes de outro programa de rádio (passar tanto tempo no trânsito me dá realmente um expertise sobre os programas de rádio) observou que “Django Livre” era o terceiro filme dessa fase Tarantínica da “vingança dos oprimidos”: “Kill Bill” é a vingança da mulher abusada, “Bastardos Inglórios” é a revanche dos judeus contra os nazistas e “Django” é o herói arquetípico negro, matando os brancos racistas do Mississipi. Discordo. Kill Bill é um pastiche de mangás ultraviolentos, um gibi gigante de uma heroína buscando vingança em um improvável macacão amarelo. “Django” tem uma filiação clara aos “Bastardos Inglórios”, com a vingança, sim, dos oprimidos diante de seus opressores.
Aqui em casa temos uma séria questão conjugal envolvendo Quentin Tarantino. A minha mulher o classifica como um lixo violento com ares de Cult. Temos vários debates infrutíferos a respeito do assunto. Tarantino é um criador pop, uma metralhadora de referências. Basta observar a trilha sonora do “Django” que mistura músicas assobiadas de filmes Western Spaghetti misturados com raps, hip hops e uma salada de referências musicais. Tarantino zomba de opressores e oprimidos, cria paradoxos de assassinos profissionais engraçados e humanos e vilões pândegos, incompetentes, sentimentais, como Leo di Caprio nesse filme. Ele mostra o ridículo do racismo e da violência justamente criando cenas de ultraviolência e de banalização humorística da morte. Posso afirmar que Tarantino tem uma questão importante com a mortalidade e dela se defende com um mecanismo psicanalítico contrafóbico, tornando a morte banal, ridícula, coreografada. Mas se “Django” repete todos os componentes de seu antecessor, o “Bastardos Inglórios”, por que eu gostei tanto de um e tão pouco do outro?
“Bastardos Inglórios” é uma sinfonia para o ator alemão Cristopher Waltz. Diálogos longos, intermináveis, onde ele despeja astúcia, elegância, ironia em sua caça às suas vítimas. É o grande personagem desse filme. Os diálogos são espertos, a tensão crescente, a ironia com o nazismo é inclemente. Django tenta repetir a fórmula: lá estão os diálogos infindáveis, a violência banalizada e a redenção do oprimido na figura de um negro altivo, arrogante que, de escravo humilhado vira um atirador exímio, imbatível. Tudo dentro do figurino delirante de Tarantino. O problema é que dessa vez, o pastiche foi demais, a necessidade de rir do próprio narcisismo tornou o filme bobo, pretensioso, longo demais, maneirístico demais. A tal “liberdade narrativa” que se referiu o tal especialista, virou uma caricatura de estilo. E de autoindulgência. Tarantino sempre riu de sua própria megalomania. Vai ganhar algum Oscar secundário, como de Roteiro Original, mas dessa vez, perdeu a mão.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Do Amor e do Caos

Freud formulou um modelo de princípios antagônicos. Por exemplo, logo nos seus trabalhos iniciais já descrevia o ser humano dividido entre o Princípio do Prazer e o Princípio da Realidade. Mário de Andrade construiu um anti herói arquetípico para nós, brasileiros, Macunaíma, um ser movido exclusivamente pelo Princípio do Prazer: folgado, preguiçoso, avesso ao trabalho, esperando ser alimentado e cuidado sem precisar dispender nenhum esforço. Macunaíma está no noticiário todo dia, nos mensalões, obras superfaturadas e dólares na cueca. Esse é o Princípio do Prazer em contraponto ao Princípio da Realidade, manifesta nesta época em São Paulo pelas enchentes e o abandono legado pela administração macunaímica de Gilberto Kassab.
Freud também opôs, já numa fase mais adiantada de sua obra os princípios da vida e da morte, Eros e Tânatos, como formadores de nosso ser psíquico e da nossa vida. Falou mesmo de um Instinto de Morte, que se manifesta de forma inconsciente mas muito palpável no dia a dia, em motoristas bêbados em alta velocidade, em tiroteios nos botecos, em comportamentos de risco e descuido que vemos e temos quase todo dia. A morte é tão reverenciada e cortejada quanto temida.
Eu, particularmente, gosto dos princípios que estão na Teogonia, Mito da Criação dos gregos que foi abordado no penúltimo post: o Caos e Eros. O Princípio da Criação versus o Princípio não da Destruição, mas o da absoluta desorganização, o Caos. A própria eclosão da vida é um princípio que contraria a tendência natural da desorganização. Até hoje a Ciência tenta entender o evento absolutamente raro e estatísticamente impossível da criação da vida em nosso planeta. A Lei da Entropia descreve que todos os sistemas físicos tendem à desorganização; há a necessidade de uma carga imensa de energia para organizar e estabilizar um sistema de uma única célula. A tendência é que ele volte, sempre, para o Caos.
Os chineses chamam esse princípio organizador de Chi, a energia vital que mantém nosso organismo coeso. Quando termina a Energia Vital, o sistema todo se desorganiza e vem a morte. As diversas doenças representam o desequilíbrio no Chi. Na Medicina Ocidental, falamos de Homeostase, a capacidade de nosso organismo se manter equilibrado com o ambiente e com o funcionamento necessário para a sobrevivência. A doença vem da sobrecarga que o tempo e os estressores ambientais depositam em nosso organismo, gerando o desequilíbrio.
Acho que é por isso que a Alquimia descreve a Obra como um Opus contra Naturam, uma obra contra a natureza. Sempre achei isso uma ideia estranha: se estamos na natureza e fazemos parte de seu corpo, como podemos realizar uma Obra contra ela? Engraçado que pelos princípios da Entropia da para entender a intuição dos alquimistas pré e pós medievais: a obra alquímica, como a obra de nossa vida, é a luta para transformar o Caos em Criação, a tendência à bestialidade em humanidade. Deve ser por isso que seja necessário tanto dispêndio de energia para mudarmos velhos hábitos e velhos sistemas de comportamento. Vou dar um exemplo mais fácil, para esse post não ficar tão complicado: é muito mais “fácil” uma alimentação desregrada, ou soltar as amarras da voracidade, do que aprender a comer de forma consciente, regrada. Toda vez que vamos começar um regime, cutucamos as áreas da voracidade e do caos que repousam em nosso Cérebro, lá onde ainda residem a fúria e a destruição de nossas ganas de paleoprimata. É mais fácil, sempre, destruir do que construir.
Em todas as Mitologias, Deus é o princípio criador que se opõe às Trevas. É o Princípio do Amor que não se opõe ao Ódio: se opõe à dissolução no Caos.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

"É Psicológico"

Já mencionei em outro post que a Medicina encontrou um novo fantasma na máquina nos últimos anos. Aliás, dois: Stress e Virose. Sempre que os sintomas tem origem e curso obscuros e o médico faz pouca ou nenhuma ideia do que se trata, lá vem a hipótese: “É Stress”; “Deve ser uma virose”. O paciente vai para casa com alguma receita inócua e cara de paisagem. O tal do Stress substituiu um antecessor, mais psicanalítico e mais ofensivo, que é o “É psicológico”. Esse era ainda mais fantasmagórico. Significava que o sintoma era uma espécie de invenção inexistente desse território pouco explorado do “Psicológico”. Era um encaminhamento clássico: “Os seus exames estão normais. Você não tem nada. Vai para o psiquiatra”. Não era propriamente um encaminhamento, era quase uma acusação velada: “Você está aqui de frescura enquanto eu estou querendo curar as pessoas que estão realmente doentes. Vai procurar um médico de mentirinha para tratar sua doença de mentirinha”. Lembro nos longínquos anos 90, quando fui em missão de paz implantar um serviço de Psiquiatria de Interconsulta no Hospital Universitário. Digo missão de paz porque a Psiquiatria e as outras artes Psi não eram muito bem vistas pela direção. Logo de cara um colega da Cirurgia veio observar que meu crachá estava errado, porque estava escrito “Médico” na parte de cima. Piadinha entre especialidades. Tive vontade de falar que o psiquiatra abandonava a Medicina para tratar das esposas dos cirurgiões, mas, veja bem, eu estava em missão de paz. Quebrar a cara de um colega logo na primeira semana não seria um bom começo. Ri amarelo da piadinha. Alguns meses depois, o mesmo simpático colega veio me pedir para ver um amigo dele, que estava no Pronto Socorro em Abstinência Alcoólica. Caso complicado de estabilizar e mais complicado ainda de se ver numa pessoa querida. Acabei, depois de algumas horas, diminuindo a sua agitação psicomotora. O meu colega me olhava sem graça, mas evidentemente com uma gratidão comovida. Era a Psiquiatria desbravando a terra de Marlboro.
Apesar dos pesares, há uma grande evolução conceitual do “É Psicológico” para o “Deve ser por Stress”. Não parece, mas tem. O “É psicológico” é de um freudismo primitivo. O “Stress” já é mais neurofisiológico.
Freud descreveu o Inconsciente nos final do século XIX. Pela primeira vez há História foi proposto que fatores de origem mental, ou psicológica, poderiam gerar sintomas físicos. Emoções e instintos reprimidos por nossa civilização neurótica podiam causar sintomas sem base orgânica, como desmaios, paralisias e até cegueira. Memórias traumáticas, ódios reprimidos e taras ocultas poderiam causar sintomas de evolução e curso imprevisíveis, insondáveis. Imagino que muito da antipatia que ainda existe pelos psiquiatras e pelos “psis” em geral deriva dessa fantasia que os profissionais dessa área tem uma espécie de visão de raio X para identificar as neuroses ocultas debaixo do nosso verniz de civilização. Mas esse é outro assunto. O fato é que o tal “Psicológico” também repousava nesse conceito de uma motivação inconsciente para os sintomas. Algo como: “Não é que você tenha uma palpitação ou uma sensação de aperto no peito, mas isso deve derivar de uma causa psicológica reprimida”. Para o paciente que sentia o coração saindo pela boca, não era muito confortadora a ideia de passar anos no divã para descobrir a causa daquilo. Nessa semana um cliente novo perguntou umas 3 vezes na consulta se o tratamento seria prolongado. Falei que iria tratar o seu quadro clínico e quando melhorasse faríamos um seguimento de alguns meses, depois ele teria alta e um abraço. Não precisaríamos buscar suas motivações edípicas se ele não quisesse. Mas poderíamos trabalhar os seus estressores, que estão pesados demais. Percebem a evolução? Se a Psique são várias camadas de uma cebola, podemos tratar as camadas de cima e as mais profundas, mas devemos começas pela casca.
O problema de se falar “É stress” para o paciente é que os colegas não tem noção que devem procurar não pelo stress, mas pelos estressores e a forma de lidar e equacionar os mesmos. Mas o termo dá ao paciente a noção de que há uma sobrecarga e ela deve ser tratada. É uma evolução. Modesta, mas é uma evolução.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Os Deuses e o Invisível

Os deuses nas Mitologias, inclusive a cristã, se dividem em três, representando fases, princípios complementares, formas de manifestação do que não se manifesta, do reino do Invisível. Uma tríade fundadora e importante para mim é a da Teogonia, que funda uma das mais ricas e criativas das Mitologias, que é a Grega. O mito começa como o Genesis, pela separação entre o Céu e a Terra, depois de um início onde tudo era o Caos e o Vácuo. Em nossa atual mitologia, que é a Ciência, esse Vácuo é o estado de potencial absoluto que precede o Big Bang. O Big Bang é a formação da primeira polaridade, entre vácuo e matéria/energia, ou, na visão dos gregos, entre o Céu e a Terra, entre Urano e Gaia. Urano fecunda a Terra e dela saem seus filhotes, que ele não deixa sair à luz. Urano para mim sempre representou a dinâmica dos casos mais graves de psicose: uma psique que não consegue se diferenciar do inconsciente e todos os seus pequenos brotos de desenvolvimento são engolidos pela força irresistível da Mãe Devoradora. Urano representa essa indiferenciação. Mas, como toda opressão, um dia vai chegar ao fim. Gaia esconde de Urano um de seus filhos, Cronos, que cresce e espera a hora exata para destronar seu Pai, castrando-o e jogando seus testículos no mar. Da espuma dessa união entre o deus castrado e o mar, nasce Afrodite, princípio do Amor e de União. Será que os gregos intuíram exatamente o momento na evolução em que a reprodução passa a ser sexuada, marca do organismos mais complexos e das variações genéticas infinitas que vieram culminar em nós, humanos? Afrodite representa o fim dessa fase evolutiva e o início das forças de atração e repulsão que regem a formação da vida?
Cronos não foi um pai muito melhor do que Urano. Em vez de empurrar os seus filhos para o ventre materno, o que já não tinha funcionado com Urano, pegava os filhos de sua esposa, Réia, e devorava-os, um por um. Cronos sempre me lembrou as famílias e as estruturas perversas, que negam aos seus membros a individualidade. Na hora de se diferenciar e criar vida própria, o filho tem a sua cabeça devorada pela estrutura. Vejo isso todo dia, em estruturas familiares em que toda a independência, econômica, ideológica, existencial, é atacada como errada, pecaminosa, herege. Como o Capitalismo, por exemplo, grande representante de Cronos em nosso tempo. Todo mundo está preso em sua rede e quem sair é um maldito, ou um terrorista.
Réia também ocultou do esposo devorador um de seus filhos, Zeus, que depois de crescido também derrubou seu pai do poder, com métodos mais suaves. Cronos é enviado para uma ilha, onde vai ser reeducado e virar um Pai Senex, um Pai de Sabedoria. Zeus passa a me lembrar as estruturas neuróticas: é o mais poderoso dos deuses, mas não põe a cara com seus irmãos, Poseidon e Hades. Precisa mesmo é lutar contra os Titãs libertados das entranhas da Terra, mas essa é outra história. Zeus quer espalhar a sua semente, representa um psincípio criativo e fecundante. No Genesis, Zeus está no “Crescei e multiplicai-vos” que Elohim permite aos seus filhos, Adão e Eva. Zeus também não é lá grande figura paterna, mas espalha os seus filhos pelo mundo, inclusive com as mortais. Zeus permite a diversidade e o crescimento de todas formas de vida, e permite aos deuses um lugar no Monte Olimpo. Zeus sabe que os deuses precisam do homem e de suas fraquezas para existirem. No seu reinado há a percepção entre a interpenetração entre o mundo dos homens, dentro do tempo e do espaço e o mundo dos deuses, que é invisível e existe fora do tempo. Não sabia ele que isso inauguraria uma das maiores divisões da alma humana: aqueles que acreditam que só existe esse mundo, de Cronos, onde nós ainda vivemos, onde a Realidade e o Tempo são lineares, onde disputamos os frutos da Terra e descuidamos dela, porque acreditamos que temos pouco tempo, o tempo de nossa permanência aqui, como seres biológicos. Não acreditamos que existe um não tempo, que muitas vezes irrompe em nosso mundo e nossa vida como manifestações do Imanifesto.
Essa é a briga entre os que acreditam e não acreditam numa ordem de coisas fora do tempo. Os leitores desse blog já sabem qual o time que eu pertenço nessa questão.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

O Lado Não Tão Bom, da Vida

Talvez eu devesse comentar a grande notícia do dia, que é a renúncia do papa Bento XVI ao seu pontificado, bem no início da Quaresma. Mas vou pular esse assunto. Ele alega a idade avançada e a saúde combalida. Um sujeito que assume o Pontificado aos 78 anos poderia imaginar que uma hora a idade iria pesar. Deixo então as teorias de conspiração aos teóricos do assunto. Imagino que as fofocas serão muitas. De resto, essa renúncia faz sentido como um mandato tampão, que visava impedir um papa mais moderno e mais investigativo, pode-se assim dizer. A poeira baixou e após um papado pífio, o cardeal Ratzinger pode pedir o boné. Mas não é sobre isso que vou falar.
Estava matando a minha curiosidade nesse Carnaval sobre os filmes que aparecem nos divãs e nos prêmios. Estava muito curioso sobre esse “O Lado Bom da Vida”(Silver Linnings Playbook), que rendeu prêmios de melhor atriz para a jovem Jennifer Laurence e indicação para o Oscar para o queridinho das comédias Bradley Cooper. Algumas críticas favoráveis e um tema psiquiátrico no meio da conversa e lá fui eu dispender algumas horas do feriado para ver o filme, que conta a história de um paciente bipolar não diagnosticado que está saindo de alta hospitalar após internação forçada e judicial de oi. O personagem de Bradley Cooper encontra a mulher no banho transando com um professor, ao som da música de seu casamento. Ele sai da internação com duas obsessões: a música, que não para de tocar na sua cabeça e a ideia prevalente de refazer o seu casamento, o que é improvável já que há um mandato de restrição contra ele, da parte da ex. No meio do caminho, ele encontra com uma moça, também bipolar, que apresenta comportamento sexual compulsivo. Veja que, para uma comédia romântica, é um tema espinhoso. O pai do sujeito é representado por Robert de Niro, que faz um pai obsessivo compulsivo, jogador patológico que acredita que o filho maluquete pode lhe dar sorte em suas apostas. Não é um retrato em molduras douradas da América, pode-se assim dizer.
Tentando tirar graça desses temas pesados, o filme é pouco ou nada engraçado. Pode ser classificado como mais um filme adoçado em que todos os malucos em questão são transformados e salvos pela força do amor. Jennifer Laurence faz a menina bipolar que vai curar o seu comportamento sexual compulsivo e restauras a autoestima perdida do herói através de sua esperteza e determinação, usando para isso todos os meios. Pelo andar do post, pode-se imaginar que eu não gostei do filme, o que não é verdade. Achei o filme sobrevalorizado, sim, mas também corajoso de criar uma comédia açucarada bem no meio da falência da família americana e da fantasia narcísica que funda essa família.
O filme me leva à reflexão dessa miséria gerada pelo “wishful thinking”, da cultura do “Pensamento Positivo”. Todos os personagens estão procurando, aos pedaços, alcançar os seus objetivos improváveis através dessa tal “positividade”. A menina quer ganhar um concurso de dança para o qual não tem formação ou preparo. O cara quer encontrar a linha prateada da transformação de toda a sua agressividade e desespero; o velho pai quer fazer fortunas em apostas em jogos de futebol americano ou em qualquer assunto que pode gerar aposta. O final quase feliz critica mas mantém a farsa do pensamento positivo, sobretudo a ideia que tudo podemos alcançar com os pensamento corretos. Um budista na direção diria que a cura começa quando paramos de alimentar, o tempo todo, nossas obsessões que queremos realizar e vivemos, em profundidade, cada momento de nossa vida. Deixamos de lado nossa obsessão com o passado que se perdeu e com o futuro ideal, que só vai se cumprir nas comédias românticas.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Para Tudo se Acabar na Quarta Feira

Já falei no Carnaval passado que não sou exatamente um folião. Acho os desfiles um espetáculo brega colossal. Mas o bom mesmo é acompanhar nos portais da internet as notícias dos quase famosos, aspirantes a famosos e famosos a caminho do anonimato. Leio hoje que a Vice Miss Bumbum brigou na escola de samba e se recusou a desfilar. Iria ficar em um local de pouco destaque no carro alegórico e ainda iria inalar a fumaça do caminhão. Foi chamada de vadia, o assessor tomou uns sopapos e foi fazer exame de corpo de delito. Eu, pessoalmente, nem sabia que havia uma Vice Miss Bumbum. Pela foto, acho que pode concorrer ao título de Miss Silicone.
Gostaria mesmo que alguém me explicasse porque o Mestre Sala e a Porta Bandeira (nesses tempos de abolição do hífen, será que vamos ter que escrever Mestressala e Portabandeira? Fica muito feio) andam vestidos de Luís XV e Maria Antonieta, com perucas e adereços da corte francesa antes das guilhotinas.
Outro pedaço interessante é o esforço que a mídia faz para dar o "currículo" do quase famoso: ex panicat tem um monte, ex BBB não cabem num carro alegórico e a já citada vice Miss Bumbum. Onde está a Miss Bumbum, a legítima campeã?
Foi o artista pop Andy Warrhol que falou que todos teriam direito aos seus quinze minutos de fama. Não pensou em quinze segundos de fama. As micro celebridades vão sendo consumidas rapidamente, os BBBs devem fundar uma associação dos esquecidos, o Carnaval vira cada vez mais uma festa organizada e produzida pela equipe da Revista Caras.
Os mecanismos da Memória exigem repetição e relevância. Para gravar uma nova memória, é necessária a síntese proteica e a formação de caminhos associativos que te levem até o conteúdo armazenado. A vice Miss Bumbum saiu chorando da concentração da Escola de Samba porque não seria vista na parte da traseira do carro alegórico (juro que isso não foi um trocadilho). Ela, como outras mocinhas que caminham para a luta pela exposição, qualquer exposição de mídia que permita vender mais cerveja ou amortecedores de caminhão, luta desesperadamente por Atenção, por alguma atenção. Nem sabe que ela está buscando a Memória, ficar gravada em alguma Memória como ex alguma coisa. Ela pretende não ser esquecida. Pois agora ela tem esse blog para eternizá-la.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

A Deusa da Balada

Hoje acabam as “férias do blog”. Continuarei os textos em forma de diálogo em outro espaço. A tragédia de Santa Maria, que hoje completa uma semana, me puxou de volta para os textos em primeira pessoa.
Ontem eu ouvia no rádio do carro entrevistas com familiares que foram buscar pertences das vítimas do incêndio. Um pai falou sobre a sensação de irrealidade que uma perda dessas provoca. Mesmo assim ele sentia a necessidade de compartilhar todas as suas sensações com outros pais, outros filhos, outras bandas que tentam ampliar a sensação de euforia com pirotecnia em locais fechados. A única coisa que pode dar sentido a esse não sentido é alertar, espalhar pelo mundo todo essa dor em vazio que ele estava sentindo. Uma dor que ultrapassa em muito o limite das lágrimas. As lágrimas não podem expressá-la. O tio de uma menina de 27 anos que trabalhava como caixa da boate Kiss observou que aquela era a última noite de trabalho de sua sobrinha. Ela precisava de 35 reais para pagar o conserto da bicicleta de seu filho de onze anos. Entre lágrimas ele murmurou que a sua sobrinha havia morrido por 35 reais.
Eu estava voltando de viagem quando ouvi no rádio a notícia pavorosa. Passei o último Domingo colado na TV, coletando informações, tentando entender o que havia acontecido, que mão invisível determinou quem conseguiu sair e quem perdeu a vida naquela câmera de gás que virou uma casa noturna no interior gaúcho. Foi lá, mas poderia ter sido em qualquer lugar. Os donos da boate ou os moleques que soltaram os fogos são genocidas, assassinos irresponsáveis e merecem o linchamento moral e o horror da opinião pública? São os bodes expiatórios de nossa inconsciência? Essa tragédia, como outras, repousa em um mecanismo de defesa tão antigo como universal: o autoengano. O discurso inconsciente que cria uma sensação agradável de “comigo não vai acontecer”. As tragédias ocorrem só com aqueles personagens distantes dos noticiários. Não há risco em pegar o carro do namorado e guiar pelas ruas, ambos bêbados. Não tem problema dirigir com seu bólido a 130 km por hora dentro de uma rua pequena. Soltar rojões em ambientes fechados? Sem problemas. Colocar um isolamento acústico com uma espuma que, ao ser queimada, solta gases tóxicos e causa morte instantânea em quem estiver no recinto? Mas eu não sabia, meu Deus. O revestimento parecia tão bom e sobretudo, barato.
Ano passado eu invoquei num post a deusa da Adolescência, Ártemis e pedi a sua proteção a essa molecada que atravessa essa noite de iniciação e que pode se perder no excesso, no desespero de aproveitar cada momento. Parece que a balada é o templo onde se celebra essa passagem, essa euforia de que sou jovem e não preciso ser escravo do trabalho, nem das responsabilidades, nem preciso trabalhar em dois empregos para pagar a bicicleta quebrada de meu filho. Pensando bem a adolescência é o lugar em que todos querem estar; as mulheres de cinquenta e tantos anos querem se vestir como suas filhas, os gordinhos carecas da minha geração querem pegar as ninfetas e o mundo quer se transformar à noite, numa gigantesca, infinita balada onde todos se divertem e todos os excessos são perdoados.
Ártemis era a deusa da caça, conhecida pelos romanos como Diana. Como um Peter Pan da Mitologia Grega, nunca envelhecia. A sua imagem é sempre de uma menina, ou moça, empunhando o seu arco e flecha. Nos tempos antigos um jovem começava a ser adulto passando uma noite escura na selva, tentando trazer a caça para o seu bando. Uns conseguiam atravessar essa noite, outros se perdiam na selvageria, ou no medo e não passavam pela prova. Hoje, nossos jovens vão atravessar a sua noite de iniciação dentro das baladas infinitas. Oramos por eles em sua jornada, que sejam protegidos e completem a travessia, com o arco protetor da deusa.