sábado, 30 de março de 2013

Jesus não tem Dentes no País dos Banguelas

Gostei tanto do filme "As Aventuras de Pi" que estou lendo o livro. No filme e no livro, o personagem principal, com evidente desagrado de seu pai, que se vê como um indiano moderno, portanto livre das ilusões e preconceitos das religiões, se converte ao Cristianismo e depois ao Islã. Pi fica apaixonado pela história e Mitologia de Jesus e a revelação do profeta Maomé. Como hundú, também tinha sido criado no Hinduísmo. Como não podia deixar de ser, Pi, agora no livro, um dia recebe a visita dos líderes de cada religião: o seu mestre hindú, um padre católico e um sacerdote da Mesquita. Óbvio que chegam à casa onde todos se orgulhavam de seu ateísmo, gerando um efeito cômico. Os três religiosos começam um debate, disputando a alma do garoto. Numa dessas falas, o hindú comenta que diacho de religião é essa, onde os homens açoitam o seu Deus e o matam na Cruz. Com Krishna, Ganesha, isso nunca aconteceria. Pi afirma, para escândalo de todos, sobretudo de seu pai, que para amar a Deus ele não precisa seguir apenas uma religião, mas tudo o que toca o seu coração. Em vez de ter ido para o Canadá, Pi poderia ter vindo ao Brasil, onde muita gente se diz católica, mas vai receber passe no Centro Espírita, joga rosas brancas para Iemanjá e ouve o sermão do pastor na TV.
O fato é que não é fácil para as pessoas entenderem a imagem de Jesus, que se torna o Cristo depois de sua morte na cruz. O próprio Jesus demorou a entender, e clamou no Gethsemani se aquele cálice poderia ser afastado de Si. Há uma cena em outro filme que eu adoro, este mais antigo, que é "A Última Tentação de Cristo". Neste filme, Judas não é o vilão da história e não merece ser malhado em Sábado de Aleluia. Ele é um amigo e um braço forte ao lado de Jesus. Numa cena ele se impacienta com Jesus e pede para ele finalmente se decidir, uma vez que no começo fala que veio trazer o Amor, depois a Espada e agora vem falar que tinha que morrer, que história é essa? Jesus observa que Deus não conta tudo para ele de uma vez, mas vai Se revelando na medida que Jesus pode entendê-lo. E para Judas ficaria o pior papel: teria que trair o Seu amigo.
Esse blog já está chegando ao seu terceiro ano, e nos dois anteriores eu falei sobre o simbolismo da morte do Filho do Homem na cruz. Prometi não fazê-lo nessa Páscoa, mas acho que não vou cumprí-lo. Gosto da cena do livro, pois não é a primeira vez que ouço essa incompreensão sobre o Mistério e, ainda mais, sobre a própria imagem e simbolismo de Jesus agonizando na Cruz. Alguns séculos antes, um príncipe hindú, Sidarta, descobriu que a natureza essencial de nossa experiência neste mundo é o sofrimento. Jesus toma o sofrimento para Si, para transformá-lo. Muitos psicanalistas poderiam ver na imagem do homem torturado na cruz a tendência cristã de glorificação da dor. E olha que não falta quem faça do sofrimento a sua coroa de glórias, sendo o sofredor cristão, ou hindú, ou budista ou islâmico. Mas o Mistério é o de viver essa dor que está no âmago de nossa experiência encarnada e renascer de uma forma que ultrapassa toda a Dor.
Estava ouvindo uma paciente que está terminando a sua Via Crucis moderna, representada por um longo tratamento de quimioterapia, provavelmente seguido pela radioterapia. Após toda essa viagem, sofrida como a jornada de Pi, ela teve um sonho, onde nascia de sua irmã mais velha, hoje uma senhora bem idosa, uma criança maravilhosa e estranhamente perfeita para um parto tão inusitado. Ela fica maravilhada com a beleza do bebê, mas percebe que ele já tem dentes, e um de seus dentes tem uma cárie muito feia, que vai precisar de cuidados. Obviamente que o bebê representa o nascimento de uma Criança Divina, como as suas células que renascerão renovadas depois do tratamento. Naquela beleza, ainda há uma cárie a ser cuidada, ou seja, ainda estará lá a fragilidade que lhe causa muito medo. A cárie representa a Morte, a mortalidade que está posta o tempo todo na Jornada Noturna do tratamento. A tal cárie vai mantê-la atenta, todo o tempo, à própria fragilidade e à necessidade de manter a vida através do Cuidado pleno, atento. Estranhamente, é dessa fragilidade que surge o Mistério. A imagem da Crucificação, seguida da Descida ao Reino dos Mortos e a Ressurreição são vividos todos os dias nos corredores dos hospitais, nas máquinas de Hemodiálise ou nas mesas de Cirurgia. Por que não dizer, também nas lágrimas dos divãs. No filme e no livro, Pi vai enfrentar a Dor, a Desesperança e a Morte. Como um bom cristão. E hindú. E islamita.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Continuum

Já mencionei em outros posts, relativos à dificuldade de se criar uma visão orgânica, panorâmica, do que seja o adoecer humano, a história dos hindus cegos que tentavam descrever pela palpação, um elefante: um disse que o elefante era uma orelha gigante, outro disse que era uma rabo, uma tromba e assim por diante. Cada um seria capaz de defender seu ponto de vista (sem trocadilho) até a morte. A história é uma metáfora de nossa visão sempre parcial das coisas, a nossa cegueira é a nossa visão em túnel, ou a tentativa de explicar coisas complexas de uma maneira simplista. Sir Bernard Shaw, teatrólogo e pensador inglês, disse que para toda questão complexa há uma resposta simples... que está errada.
O último post traduziu uma visível irritação desse escriba com essas supersimplificações com ares de Ciência. A fonte de inspiração foi um Seminário em local bastante agradável, onde uma séria e bem intencionada colega desenvolvia os estudos sobre a Insônia, mal que afeta cada vez mais pessoas, ou, pelo menos, é muito mais vista e diagnosticada na medida que damos mais atenção a essa queixa. Quase a metade da população vai ter problemas com o sono em algum momento de sua vida. Essa colega em questão descreveu que a Insônia, antes vista como um sintoma, ou um complexo sintomatológico, geralmente ligada aos quadros ansiosos ou afetivos, hoje está ganhando vida própria e se emancipando, virando uma doença em si. Já temos institutos e especialistas voltados para o diagnóstico e tratamento dos Transtornos de Sono, sejam os que ocorrem durante o sono em si, sejam os que se manifestam durante o dia. Há problemas em iniciar, manter ou completar os ciclos de sono durante a noite, o que é secundário a várias doenças e causas orgânicas. Quem dorme mal vive menos, tem mais doenças crônicas como Hipertensão e Diabetes, sofre mais acidentes e prejuízo de capacidades intelectuais durante o dia. Ou seja, pela aula da moça, todos deveriam correr para uma Clínica de Sono e fazer uma Polissonografia.
A aula foi correta, bem fundamentada e baseada em evidências de pesquisa. O que me incomoda tem a ver com a história do elefante. Lá vamos ficar falando da tromba e vamos perder de vista o elefante. Não há dúvida que estudar e entender melhor o sono é lição de casa para todo psiquiatra ou neurologista que preza a sua clínica. Mas o que estamos recebendo são as vítimas de nossa civilização inflamatória. Existe um continuum, uma continuidade entre ansiedade, fadiga, depressão, aceleração, insônia, obesidade e todos os males que tentamos tratar, nem sempre com bons resultados. Na época de hipermídia, somos hiperestimulados o tempo todo a consumir, correr, buscar algo que nos falta e nem sabemos que falta. Esse é grande miolo de todas as questões, psicanalíticas, médicas, antropológicas: vivemos num mundo torturado pela sensação de falta e pela busca desesperada do alívio dessa falta. De um sapato novo a uma namorada nova, tudo, tudo virou um objeto de consumo. O consumo é rápido, pouco recompensador e aumenta a fome. A comida dos fast foods são sempre docinhas e gordurosas, para estimular justamente a satisfação rápida e a atraso da sensação de saciedade. Tudo com o objetivo de consumir-se mais, mais, mais.
A colega dizia que vivemos numa sociedade privada de sono. Não. Vivemos numa sociedade privada da sensação de saciedade. Temos uma alimentação inflamatória, um trânsito inflamatório, um sono inflamatório. O resto é consequência: os estressores geram a ansiedade, a ansiedade aumenta a ânsia de gratificação, a ânsia de gratificação gera o abuso de comida e substâncias, isso vai gerar o ganho de peso, a fadiga, a depressão, a insônia. É tudo um continuum.
O triste é que, se o leitor e a leitora forem procurar ajuda, vão receber exames para ver cada pedaço do elefante. E cada especialista vai dizer que a sua fração do elefante é a mais importante.

domingo, 24 de março de 2013

Eu e a Medicina Baseada em Evidências

Ontem recebi um e-mail de uma amiga que lê esse blog. Queixava-se do atendimento que seu neto recebeu diante do diagnóstico de uma suposta Hipertrofia Adrenal, Congênita. Vagaram por consultórios de médicos de grife, ouvindo os prognósticos mais aterrorizantes e os exames mais meticulosos. Matou a charada um velho pediatra que falou que as alterações dos exames eram devidos a transferência de hormônios para a o bebê de sua mãe, e que iriam se normalizar com o tempo. O bebê não tinha nada.
A Medicina Baseada em Evidências é a nova e grave doença que acomete a cabeça já não muito pensante dos médicos. A ideia inicial não é tão ruim: em vez de sair fazendo diagnósticos com base em achismos e umbigadas de velhos clínicos parecidos com pajés, a Medicina Baseada em Evidências busca, como o nome diz, amparar qualquer diagnóstico e conduta em exames, sintomas e achados que possam ser demonstrados empiricamente. Esse palavrão quer dizer que o diagnóstico deve se basear em sinais palpáveis, sobretudo laboratoriais ou em exames de imagem, coletados na prática, na busca científica de dados. Podemos até morrer, desde que os exames atestem que isso está acontecendo. Somos detetives colhendo provas que respaldem nossas teses e condutas. Isso deve criar um médico mais cuidadoso em fazer seus diagnósticos e previsões do que pode ser um futuro melhor ou pior para o paciente. Ou seja, nada contra. Antes de se fazer as inferências, é bom que os fatos estejam do seu lado. Qual é o problema, então?
Há alguns meses eu encaminhei uma paciente para um colega, com um quadro de alteração motora. O diagnóstico estava evidente para um psiquiatra. A paciente passou por uma maratona de exames exaustivos, invasivos e assustadores para que a hipótese inicial fosse confirmada. Essa é uma Medicina caríssima, meticulosa, que procura a máxima acurácia antes de tomar alguma conduta. O que acontece, pelo o que posso notar, é que esse quadro obsessivo de coleta de dados leva a uma séria distorção de raciocínio. Se você ouve um tropel ao longe, estando aqui no Brasil, você pode imaginar que seja um tropel de cavalos. Se estiver no Nordeste, é justo imaginar que seja um tropel de jegues. Mas imagine que a cavalgada seja de zebras ou, no limite, de camelos. Pode ter ocorrido uma fuga de um circo, ou de um zoológico e você está ouvindo a bicharada correndo ao longe. Você pode buscar a verdade, saindo de casa, com cuidado para não ser atropelado, e verificar que está passando um grupo de cavalos, ou de jegues, batendo os cascos contra o asfalto. Pode igualmente fazer uma varredura direto do satélite para ver se há um tropel de zebras na região. Os procedimentos podem trazer os mesmos resultados, embora o rastreamento via satélite seja mais completo e inacreditavelmente mais caro. A grande questão é: ao ouvir o tropel nós vamos pensar no que? E quanto vamos gastar para descartar que o tropel é de zebras?
Estamos tentando eliminar os achismos, estamos erradicando a vida inteligente. O diagnóstico é dedutivo, se baseia em inferências e isso implica em riscos. Se o médico não se arrisca, inclusive ao risco de estar equivocado quanto ao seu diagnóstico, o que ele deve fazer o tempo todo, a minha paciente pode passar meses com seu problema recrudescendo sem receber nenhum medicamento, pois isso pode atrapalhar a coleta de evidências. Na próxima, vou encaminhá-la para um daqueles clinicões, que batem o olho no paciente quando passa pela porta e já se diz: é isso. E, quase sempre, está certo. E não precisa de varredura via satélite quando ouve um tropel.

domingo, 17 de março de 2013

Pensamentos Reverberantes

Já escrevi nesse blog sobre a minha afinidade com o Dr House, série estrelada por Hugh Laurie durante oito temporadas. Apesar de completamente delirantes do ponto de vista médico, os episódios eram divertidos, instigantes e a capacidade do Dr House de ficar girando o caso em todas as direções até encontrar um salto de entendimento onde um diagnóstico explicava tudo o que estava acontecendo, era muito legal. Em um dos episódios, não lembro em qual temporada, House e sua equipe investigam uma paciente com um traço característico e raro: ela é uma mnemonista, uma pessoa que lembra de detalhes de tudo o que aconteceu em sua vida. A mnemonista em questão estava rompida com toda a sua família, pois lembrava de cada briga, cada frase injusta, cada cena de maus tratos que os pais e sua irmã tinham praticado em sua vida. Sendo uma pessoa com Memória absoluta, ela poderia citar uma briga que tiveram no dia 7 de Outubro de 1996 que terminou com alguma frase muito ofensiva. É lógico que a sua irmã não tinha nenhum traço de memória dessa briga.
Tão importante quanto a nossa capacidade de recordar é a capacidade ainda maior de esquecer, colocar em algum canto esquecido de nossas redes neurais alguns fatos, lembranças que não vem ao caso ou que é melhor deixar de lado. Freud descobriu o efeito destruidor de algumas memórias reprimidas que exerciam um efeito tóxico em nosso comportamento, como um vírus em nossos softwares mentais. Jung agrupou essas memórias em Complexos e descreveu o efeito parasitário desses complexos em nossa vida. As psicoterapias são muitas vezes formas de desenterrar esses softwares defeituosos e construir outros, melhores, mais calcados no aqui/agora, menos relacionados a brigas que tivemos há algumas décadas.
A moça do episódio de House padece do defeito oposto às amnésias neuróticas. Ela não pode se relacionar com ninguém pela sua incapacidade em colocar de lado todas as besteiras, injustiças e impropriedades que cometemos com nós mesmos e com quem vivemos e amamos. A equipe de House vasculha o Cérebro e as suas áreas da Memória para entender se um tumor ou uma cicatriz de alguma infecção estava criando aquela super memória. Não encontram nada. No final do episódio, a sua doença não tem nada a ver com a sua capacidade de memória. A sua capacidade infinita de Memória tem a ver com um quadro obsessivo grave, que a faz ficar revendo, repetindo, reeditando todas as lembranças desagradáveis de sua vida. Um TOC da Memória. House a encaminha para a Psiquiatria, para receber medicamentos para desacelerar esses circuitos neurais reverberantes. A sua Memória deixaria de ser perfeita, mas ela talvez voltasse a se relacionar com seus injustos semelhantes.
Nessas décadas todas de Psiquiatria eu me pergunto como, a despeito de termos avançado uns cinquenta anos em vinte, com um entendimento inimaginável quando eu me formei sobre o Cérebro, os Neurotransmissores, a Psicofarmacologia. Apesar de todas esses recursos e capacidades de intervenção, as pessoas estão cada vez mais loucas, mais aceleradas, mais ansiosas e deprimidas. É como ter uma Ferrari no trânsito de São Paulo. Com certeza, um dos culpados são esses circuitos reverberantes, onde as pessoas passam muito tempo remoendo, reverberando e ruminando os mesmos e disfuncionais pensamentos. Como a personagem de House, a constante repetição desses pensamentos criam pessoas aceleradas, ressentidas, e o que é pior, infelizes em meio a uma farmacopeia rica para aliviar esses sintomas. Como essa personagem temos que dar o passo de deixar para traz esses pensamentos reverberantes. Do contrário, ficamos presos dentro deles, por muitos anos.

sábado, 16 de março de 2013

O Papa é Pop

No filme italiano “Habemus Papam”, após várias votações do conclave, os cardeais finalmente elegem o herdeiro do trono de Pedro. O novo papa se dirige à sacada onde o povo enlouquecido está pronto para recebê-lo. Na hora de dar o passo que vai separar a sua vida de sacerdote para a de Pontífice, ouve-se um grito de pavor. Todos acorrem. O novo papa está congelado diante da janela. Recua e grita: “Não posso, não posso”. O anúncio do “Habemus papam” – “Já temos um Papa” termina em anticlímax. O novo papa não pode assumir o seu cargo, não se sente o homem certo para tamanha responsabilidade. Um famoso psicanalista é chamado para socorrer o pobre homem, mas não pode perguntar algumas coisas ao Pontífice: nada sobre a sua infância, muito menos sobre a sua sexualidade. O Papa é um ser suprahumano, não pode ter fraquezas, nem traumas, muito menos dúvidas. E ninguém pode deixar as dependências do Vaticano. O psicanalista organiza campeonatos de vôlei entre os cardeais, o Santo Padre foge e se junta a uma trupe de teatro, pois na sua terapia descobre que sempre quis ser um ator, não um padre. Nanni Moretti, que escreveu e dirigiu o filme se aproveitou da renúncia de Bento XVI para dizer que seu filme tinha antecipado a crise da Igreja Católica, com o homem dentro da batina sendo esmagado pelas gigantescas pressões que o nosso tempo impõe aos nossos líderes. Fui a um simpósio hoje em que um colega brincou em sua aula que se nosso papa demissionário tivesse tomado uns remedinhos, talvez segurasse melhor as pontas.
Um papa argentino nem Nostradamus conseguiria imaginar. Maradona já saiu comemorando. A Argentina tem Messi e o papa Francisco. Tem também um governo que nem o papa pode fazer milagre. O fato é que o homem começou com o pé direito. Ao contrário do papa da comédia de Nanni Moretti, o novo condutor da Igreja fez um discurso brincando com a sua origem, foi de busão com os outros cardeais para o seu hotel e fechou a conta vestido de Papa. Prometeu que vai espiritualizar e aproximar a Igreja de sua origem pobre, de um menino-Deus nascido em um estábulo. Escolheu também o nome de um dos santos mais populares do Catolicismo. Eu sou Marco Antonio por homenagem e promessa para Santo Antonio. Não sei muito sobre Santo Antonio, meus preferidos mesmo são Francesco e San Juan de La Cruz, dois místicos da pesada que entraram fundo dentro do que um junguiano chamaria de Consciência Crística. Não posso me esquecer de Saulo de Tarso, que veio a ser São Paulo, um grande marqueteiro de Jesus e da experiência mística do Cristo.
Francesco foi um homem que teve uma mudança profunda, abrupta de sua personalidade. Se vivesse nos dias de hoje estaria em algum hospital psiquiátrico com diagnóstico de Bipolar. Francesco descobriu uma consciência cristã radical: que o rico é aquele que dá, não o que retém, e que o dar, o se entregar, é uma escolha profunda, diária.
O novo papa é bem humorado (ao contrário do seu predecessor), é leve e quer levar a igreja para perto dos necessitados. Vai rever os escândalos financeiros e os padres com desvios sexuais. Vai precisar de muito mais do que um bom psicanalista. O último papa alegre, reformista e que queria lavar a roupa suja da Igreja, não durou um mês no cargo.
Habemus Papam. Queremos continuar com ele.

sábado, 9 de março de 2013

A Balada do Chorão

Estava cantarolando uma música do Charlie Brown : “Ela achou meu cabelo engraçado/ proibida pra mim, no way/ Disse que não ia ficar/Mas levou a sério o que eu falei...”. O meu filho, que era um bebê quando a banda estourou, imediatamente começou a cantar comigo a música do líder da banda, Chorão, morto provavelmente com um coquetel de cocaína, álcool e analgésicos nesta semana. Talvez não exista uma homenagem maior ao artista e quase poeta do que essa, ficar cantarolando algumas músicas que ele deixou em nossa memória.
Um colega, psiquiatra, escreveu na Folha um texto sobre o aspecto psiquiátrico dessa perda: o uso progressivo e abusivo de substâncias tóxicas, a espiral de mudanças de humor e o sofrimento profundo e solitário do homem que ninguém conseguiu impedir de acelerar em direção do abismo. No final do texto, que tem aquele tom moralista e caga regras da Medicina que praticamos, mencionou a hipótese, para ele quase um fato, que Chorão tivesse uma doença, um Transtorno de Humor Bipolar não tratado, e que as flutuações de humor da doença teriam provocado o sofrimento e a morte do roqueiro.
A Bipolaridade virou uma espécie de diagnóstico onipresente na Psiquiatria. Durante algumas décadas, todos eram esquizofrênicos, hoje são todos bipolares. Isso reflete a nossa época de Cérebros hiperestimulados por mídia, imagens, sons, desejos e substâncias. Vivemos numa era de excessos. Todos estão sob pressão e correndo contra o tempo. O tempo virou o grande inimigo. Precisamos viver tudo com intensidade, aproveitar muito o nosso tempo, pois ele vai passar e o pior pecado será envelhecer.
Chorão cantou uma geração de moleques com o skate debaixo do braço que demorou e demora a amadurecer. Estourou com um CD bacana e durante algum tempo levou nas costas o finado rock brasileiro. Nos anos zero zero até agora, viu o rock ser tomado por uma geração de Emos e a unificação melosa do pop: podemos ouvir sertanejos, roqueiros e sambistas todos entoando versos melosos e simples, gemendo versos pobres para um público que só lê no computador e não decifra textos maiores que um twitt. Quem diria, mas Chorão virou um tiozinho quase intelectual nesse cenário. Mas o sucesso não fez bem nem para o homem, nem para o quase poeta. As suas letras, espertas e irônicas de moleque meio maloqueiro tentando chegar nas patricinhas proibidas para ele, viraram uma ode ao próprio umbigo, à sua luta para chegar onde chegou e a tentativa de recuperar a mulher que ia embora porque “Minha mente nem sempre tão lúcida/Fez ela se afastar/Mas ela vai voltar”.
Acho que o texto do colega foi bem intencionado e tenta aproveitar a tragédia de uma morte que, se não foi um suicídio, tem muitos componentes de um parassuicídio, isto é, uma procura inconsciente e constante pelo comportamento de risco até se encontrar com a morte cortejada . Será que todos esses ícones pop que tem acesso ilimitado a dinheiro, sexo, poder e qualquer tipo de droga lícita e ilícita são portadores da Doença Bipolar? Ou será que a Psiquiatria, como o colega, faz uma confusão dos diabos entre uma doença de forte herança genética e base biológica com a alteração de humor de uma pessoa que adota um estilo de vida de excessos e desrespeito de seus limites humanos? É mais fácil, bem mais fácil, explicar tudo como um Transtorno Bipolar não tratado que causou todo o problema. Venham a nós, psiquiatras, tomem seus Estabilizadores de Humor e nada de mal acontecerá.
Hoje eu dei uma carona para meu filho e ouvimos na rádio o lançamento do último álbum do Charlie Brown. A indústria fonográfica costuma lucrar com a morte trágica dos seus ídolos. Prestando a atenção na letra, Chorão cantava para a mulher que mais uma vez tinha lhe deixado que “em seu novo mundo não haveria mais distância”. Foi uma antevisão de sua morte? Um plano suicida? Uma manifestação de bipolaridade? Tenho uma resposta muito simples: sei lá. Só sei que a vida, e a morte de uma pessoa está muito além das interpretações e dos diagnósticos. E que não somos todos bipolares, só humanos.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Função Transcendente

Há alguns anos eu ganhei de um paciente um livro “Em Busca do Sentido” do psiquiatra Victor Franckel. Não costumo aceitar lições de casa como leituras de livro, filmes ou letras de música. Mas acabei lendo esse livro e pretendo revisitá-lo um dia desses. Para quem não conhece, Victor foi um médico psiquiatra judeu capturado e jogado em campos de concentração desde o início da guerra. Entre os seus pertences que levou para os campos de morte havia um artigo que tinha a intenção de publicar quando aquele período se findasse. Ele não imaginava o que o esperava.
Victor sobreviveu até o final da guerra, quando os campos de concentração foram libertados pelos russos e pelas tropas aliadas. Escapou milagrosamente, inclusive, da “Solução Final”, quando os alemães, já percebendo que seriam derrotados, aceleraram o processo de extermínio dos prisioneiros judeus. O fato de ser médico ajudou muito, pois cuidava das enfermarias lotadas de prisioneiros. Mas o que realmente contou para a incrível resistência de Victor Franckel foi a sua atitude de se manter lúcido, tentando entender o comportamento dos soldados e oficiais alemães, que depois de matar, surrar e humilhar os prisioneiros judeus voltavam para suas casas e amavam seus filhos, educando-os para o bem. Estudava também os colaboracionistas, os prisioneiros que se identificavam com o perseguidor e prendiam, deduravam, traíam seu próprio povo. O psiquiatra Victor Franckel pode ver o melhor e o pior da natureza humana dentro dos campos de extermínio, com um olhar desesperadoramente imparcial. Conseguia ver bondade e maldade nos opressores e nos oprimidos, daí a necessidade de encontrar algum sentido em tudo aquilo. É um livro incrivelmente triste e bonito. Mas como colega desse homem me dava um pouco de coceira a sua necessidade absoluta de uma análise fria e distanciada do que estava ocorrendo, o que provavelmente o salvou da insanidade, mas o fez perder algumas cenas e experiências realmente impressionantes. Numa delas, Victor conversava com uma moça, em estado avançado de magreza e consumida pela desnutrição e infecções. Essa moça estava na véspera de sua morte e confessou para o médico que era muito grata aos alemães pelo que ela vivera naquele lugar. Ele quase caiu da cadeira. Como assim? Ela respondeu que era uma moça mimada, filha de um banqueiro, que vivia uma vida de futilidade e gastança, sem nenhum contato real com a vida. Naqueles anos, ela pôde conhecer a própria natureza, ajudar as pessoas e a si própria e lutar, todo dia, pelo próximo dia. Se não tivesse sido colocada naquele lugar, provavelmente viveria uma vida boba e sem sentido. Não me lembro da reação dele a esse depoimento, lembro só que a distância fria do cientista não foi suficiente para entender aquela fala em sua profundidade.
Outro psiquiatra de língua alemã, Carl Jung, nunca leu nada de Victor Franckel ou se leu, não comentou. Jung não era judeu, nem antissemita, como é acusado até hoje. A perspectiva que ele enxergou a guerra foi de uma espécie de possessão que tomou conta dos alemães, uma verdadeira psicose coletiva, que já havia aparecido em seus sonhos antes da guerra acontecer. Tenho certeza que ele faria uma boa leitura do que falava aquela moça, na véspera de sua morte. Ela viveu na própria pele a Função Transcendente, um salto que a nossa consciência em momentos extremos de tensão. Muita gente pode lembrar de momentos da própria vida em que uma experiência difícil, ou emocionalmente intensa, permitiu à Consciência uma espécie de salto quântico, permitindo uma visão mais ampla e sábia, da vida e de seus ciclos. O que essa moça descreveu em seu leito de morte foi exatamente esse incrível salto de amor e sabedoria que lhe permitiu uma visão ampla e profunda, do significado e mais ainda, do sentido profundo daquele sofrimento em sua vida. Isso não é algo que se possa obter com técnicas ou racionalizações materialistas, nem com o olhar frio do cientista. É um salto que se sente, não que se possa programar. Por isso que uma psicoterapia que se preza não cabe no Método Científico. Os saltos de consciência se dão de forma descontínua e inesperada, diante da escuta atenta do terapeuta. A escuta e o olhar, que permite ou cria o campo psíquico necessário para o salto. Sobretudo, a escuta e o olhar amoroso.

domingo, 3 de março de 2013

Complexos

No filme “Um Método Perigoso”, um jovem psiquiatra de nome Carl Jung usa uma aparelho de medição para explorar a Psique humana. Com a ajuda de uma assistente, ele aplica um teste de ler uma série de palavras, pedindo que o examinado diga a primeira coisa que vem à sua mente. Quando o examinado “engasga” com uma palavra, demora mais para fazer a associação ou aumentava a sua frequência cardíaca diante de uma palavra comum, isso normalmente remetia a o que Jung chamou de Complexo.
Hoje essa palavra, como outras descritas pelo psiquiatra suíço, caiu no uso comum. “Ele é muito complexado”; “Ele tem complexo de Peter Pan” e assim vai. Não foi bem isso que Jung dizia a respeito do conceito. Complexo é uma ideia fortemente carregada de afeto, que exerce um efeito inconsciente em nosso comportamento. O corredor Oscar Pistorius virou uma celebridade mundial ao chegar numa final olímpica correndo com duas próteses, uma vez que teve uma má formação congênita que não desenvolveu suas pernas a partir do joelho. Esse home famoso e multipatrocinado era casado com uma modelo belíssima. Os vizinhos relatam uma relação tempestuosa, com violência verbal e física no casal, o que culminou com a morte de sua esposa, trancada no banheiro, que tomou quatro tiros do atleta e paratleta olímpico. Ele alega que foi um acidente, que atirou num suposto ladrão. A opinião pública e de várias pessoas, desconfia da versão. Mas essa tragédia, como muitas outras, é um exemplo triste da ação de um complexo. Por exemplo, um campo emocional inconsciente relacionado ao abandono. A sensação de estar sendo abandonado ou abandonada, desencadeia quase sempre uma reação de altíssimo conteúdo emocional, podendo chegar a agressão e morte. Esse é o Complexo, descrito pelo jovem Jung há cem anos. Uma palavra, uma imagem, uma lembrança podem desencadear uma reação afetiva desproporcional e fora de contexto.
O pesquisador Joseph LeDoux finalmente descobriu, ou redescobriu, o Cérebro Emocional descrito por Jung e por Freud. Uma pequena região, do tamanho de uma ervilha, chamada Amígdala, faz todo o processamento do medo e do comportamento emocional em nosso Sistema Nervoso, o que exerce uma forte e inconsciente influência em nosso comportamento.
Existe uma Memória Emocional e uma Memória Cognitiva, muitas vezes operando em paralelo em nossa psique. Por isso somos muitas vezes assaltados por reações emocionais que não conseguimos controlar. Talvez o exemplo mais extremo desse fato seja a crise de Pânico, quando o Cérebro Emocional cria uma espécie de autonomia e uma descarga adrenérgica violentíssima pode ocorrer quando a pessoa está presa no trânsito de São Paulo, por exemplo. O estímulo constante das áreas do Medo pode desencadear essas crises, que são como um grito de independência de nosso Cérebro de paleoprimata. Não é incomum que alguns paciente fiquem muito decepcionados quando eu digo que estão apresentando crises ansiosas ou crises de Pânico completamente fora de seu controle. O que é pior, a tentativa de controlar essas crises, tornam as mesmas ainda mais incontroláveis.
O trabalho de psicoterapia vai recuperar esses complexos emocionais e colocá-los em novo contexto, o que permite ao paciente elaborar e ressignificar algumas experiências ruins gravadas em sua Memória Emocional. Essa é a essência de vários métodos terapêuticos.
O engraçado é que a Neurociência, na mesma medida que tenta suplantar e desacreditar a obra gigantesca de Jung e Freud, acaba validando conceitos e observações feitas meticulosamente por esses pensadores no início do século passado. Os complexos existem e influenciam nosso Cérebro Emocional. Algumas vezes, podem fazer um homem racional destruir a própria vida e a de outra pessoa, escondida atrás da porta do banheiro.