quinta-feira, 30 de maio de 2013

Tears in Heaven

Foi há cerca de dois meses que Chiara, a cachorra de raça boxer que foi descrita em post anterior (Procura-se um Amor que Goste de Cachorros), começou a apresentar um comportamento muito diferente. Definitivamente diferente. Chiara sempre foi a manifestação da deusa Ártemis em pessoa; Ártemis é uma deusa grega que representa a eterna meninice, sempre com as suas saias curtas correndo atrás da caça. Ártemis representa o Puer, a criança eterna que habita em nosso Inconsciente e no mundo. Kika era a encarnação desse arquétipo e fazia uma dupla perfeita com Bunny, também uma boxer castanha, uma senhora tranquila e muito disciplinada na vigilância dos limites de nosso território. Chiara era a eterna criança, Bunny era a guardiã ajuizada. Não sabia que essa relação era mais profunda do que supõe nossa vã Psicologia. Bunny morreu no início de 2012. Chiara ficou muito triste. Trouxemos uma nova amiguinha para ela, uma bebê chamada Scarlett, que está nesse exato momento deitada ao meu lado enquanto escrevo. Kika não recuperou mais a antiga meninice. Tornou-se o cão dominante, a chefe respeitável da matilha. Após alguns meses da morte da Bunnyinha, desenvolveu um tumor perigoso para cachorros, um Mastocitoma, exatamente no lugar em que crescera o mesmo tumor na Bunny alguns anos antes. Ela foi operada com sucesso e teve recuperação rápida. Como ela sempre foi muito magra e vigorosa, tinha uma boa esperança que seria mais longeva, pois boxers são cães maravilhosos mas frágeis geneticamente, o que prejudica seu tempo de vida. Um ano depois, outro tumor apareceu.
Chiara começou a ficar indisposta e com medo de descer escadas. Estava descorada e sem brilho, sinais que um médico não consegue ignorar. Os exames detectaram uma massa no Abdomen, que era um Tumor de Ovário, também operado com sucesso. Há uma corrente na Oncologia que questiona o efeito inibidor do tumor primário sobre a doença que está se espalhando pelo corpo. Quando o tumor primário, a Matriz da doença, é removido, pode ocorrer o florescimento das metástases, daí a combinação da quimioterapia após a remoção desse tumor. Não deu tempo. A doença se espalhou rapidamente pelo corpo e nossa querida bichinha passou a ser uma paciente de cuidados paliativos. Tivemos algumas semanas para beijá-la, mimá-la e aproveitar cada minuto com ela, o que deveríamos fazer em todos os dias de nossa vida, mas não fazemos. Estamos sempre muito preocupados com o futuro para nos ocuparmos do milagre de cada dia. Chiara nos deu mais esse presente: cada dia em que ela acordava, melhor ou pior, era um pequeno milagre em que poderíamos aproveitar mais um pouco de nossos sentimentos compartilhados. Quando a noite chegava e o desconforto respiratório piorava, ela me olhava com olhos tristes e de medo. Eu dava o corticóide que melhorava o quadro, mas prometia que ela não seria humilhada pela doença. Enquanto ela tivesse prazer em estar com a gente e pudesse aproveitá-lo, estaríamos juntos.
Como costuma acontecer nesses períodos de perda, fiquei sem carro quando um motoqueiro destruiu a minha lanterna traseira. Como moro em Cotia, estava quase optando por dormir naquela Segunda Feira fria no consultório, seria mais fácil. Minha mulher me pediu para voltar e logo descobri por que. Quando fui deitar, percebi que Chiara estava parada diante de sua caminha, com medo de deitar e sufocar. Estava lá há muito tempo. Foi a hora de cumprir a minha promessa. Coloquei-a no carro para levá-la a uma clínica distante e rezei para ela dormir sem sufocar, que eu daria meia volta e tentaria esticar mais um dia de sua vida. Não aconteceu. Tive a esperança que a veterinária dissesse que não, ainda tinha lenha para queimar. Não tinha. Eu só conseguia lembrar de uma passagem no documentário sobre George Harrisson, em que a sua esposa dizia que ele ficou muito incomodado com a morte de John Lennon, pela forma como ele não pôde se preparar para deixar o seu corpo. Nós ocidentais somos muito ruins com esse assunto. Os orientais percebem que esse momento é muito importante e que a pessoa deve ser ajudada e orientada para deixar o corpo com os mesmos cuidados de um parto. Foi isso que me permitiu manter a calma e a sanidade na situação. Expliquei para ela o que estava acontecendo, preparei-a para deixar o seu corpo, que não tinha mais serventia e falei para ela continuar seu caminho sem se apegar a nada, nem ao meu amor. Quando ela suspirou, disse para ela que estava tudo bem. Estranhamente para nossa época de Ciência materialista, acredito em tudo o que eu vivi com ela naquele momento.
Acredito que estamos todos indo em alguma Direção, mesmo sem perceber. E sinto a Chiara brincando nos campos do Senhor, com a gordinha Bunny em seu encalço.

domingo, 26 de maio de 2013

Compaixão e Chocolate Quente

O leitor desse blog, Fábio, fez um comentário sobre o post sobre o Olhar de Compaixão: como diferenciar a verdadeira Compaixão com as suas primas tortas, a Pena e Leniência?(Não foram essas as palavras, mas acho que resumem bem a questão). No post eu falava sobre um sonho lancinante descrito num livro de Bel César: No mesmo, ela estaria condenada à morte e passaria por uma espécie de Via Crucis: primeiro sentaria em suas próprias fezes, depois nas fezes de outras pessoas, depois deixaria um bilhete agradecendo “a todos que testemunharam a sua vida com compaixão”. O sonho pode ser lido em infinitos recortes, é lindo e arquetípico, ou seja, fala de coisas que tem a ver com psique do sonhador mas também com a psique coletiva, ou seja, todos nós. Fiz um paralelo com a formação de um terapeuta, que precisa, antes de mais nada, se haver com as próprias fezes, sentar sobre as próprias feridas e os próprios medos, antes de poder escutar o Outro. Sentar sobre as fezes alheias é uma característica complexa do ofício, significa tomar para si as dores do Outro, aguentar as agressões e o amor contido em tantas frustrações que a vida reserva ao nosso Ego grandioso. A parte em que ela deixa um bilhete de agradecimento é particularmente bonita: nossa trajetória na vida é quase sempre solitária, temos que arcar com a responsabilidade de nosso desenvolvimento e ai de quem quer transferi-la para outra pessoa, para um grupo ou um guru carismático. A tarefa é pessoal. O Outro faz parte dela, claro, e o terapeuta testemunha essa singularidade, testemunha o Mistério de cada vida e as escolhas ou fugas que fazem parte de cada caminho. Testemunhamos e somos testemunhados, no sonho ela agradece quem fez isso com olhos de compaixão. Mas o que seria a tal da compaixão?
Há um monge e místico cristão que muito gosto e já devo ter citado em outro post desse blog, Jean Yves Leloup. Ele escreveu uma biografia também lancinante: “O Absurdo e a Graça”. Nesse livro ele aborda a sua biografia como místico, que começa no seio de uma família pobre e com sérios problemas de afeto. Segundo Leloup, nessa família ele havia “nascido para morrer”. Minha impressão é que ele foi daquelas crianças que a mãe desejou muito abortar mas não teve os meios, ou a coragem de fazê-lo. Isso tem conserto, essa fantasia acompanha algumas gestações e pode ser reparada pelo amor pelo bebê que venceu essa fantasia. Não foi o que aconteceu entre ele e sua mãe. Eles nunca conseguiram esse encontro. Isso garantiu a ambos uma vida em que sempre andaram às turras, sempre em desencontro e culpas, como tantas relações familiares. A sua infância passou bem longe das infâncias felizes: chegava a sumir de sua casa por alguns dias, sofreu de abusos e fomes e decretou para si mesmo que nesse mundo selvagem não havia nenhuma ordem intrínseca, nenhum Deus. Parecia que ele cumpriria a sua sina de morrer cedo, no meio do abandono, até um dia em que teve uma experiência de Compaixão: faminto, vagando nas ruas de sua cidade, foi chamado pelo garçom de um bistrô: uma senhora, que Jean Yves nunca conheceu, deixou pago para ele dois croissants e um chocolate quente. Ele sente na sua boca até hoje o gosto desse café da manhã inundando a boca de um rapaz faminto. Essa foi a sua Primeira Comunhão, a experiência do amor gratuito que nunca tinha vivido. No coração do Absurdo, que é o estado de solidão diante da Vida, a Graça, que veio de uma pessoa que testemunhou a sua condição com compaixão. Desde aquele dia, Jean Yves virou um peregrino e caiu no mundo procurando por quem lhe ensinasse sobre Deus.
Compaixão, portanto, não é ter peninha de ninguém, nem perdoar o imperdoável. Compaixão é testemunhar a ferida de alguém e oferecer para esse alguém uma boa xícara de chocolate quente, ou um pão na chapa bem feito. Compaixão é testemunhar a existência do Outro, que é única e importante em sua singularidade. Por isso que, como no sonho da Bel, testemunhamos e somos testemunhados, em meio ao Absurdo.

domingo, 19 de maio de 2013

O Ego e o Labirinto

Uma leitora pediu para eu me estender no assunto de Ego. A frase do penúltimo post que gerou a pergunta é que passamos metade da vida para termos um Ego e a outra metade para nos livrarmos dele. É uma frase bacana, mas irreal, claro. Só deixam de ter um Ego os psicóticos graves, os pacientes em coma ou os grandes iluminados. Se você, leitor e leitora, conseguir se livrar completamente de seu Ego, não vai haver nada em sua Psique que possa contar a história. O Ego não pode ser eliminado, mas pode ser deslocado de sua posição central. Essa é a questão.
Vamos ao meu exemplo preferido de Ego inflado e suas consequências trágicas: o presidente do querido São Paulo Futebol Clube, Juvenal Juvêncio. Juvenal parte do princípio, para ele inquestionável, de que ele é o cara mais experiente, mais vitorioso e mais astuto que já ocupou o gabinete da Presidência desse clube. A estrutura que ele montou é perfeita e o técnico é uma figura decorativa, pois com a Estrutura que ele proporciona qualquer um com um mínimo de preparo vai ser campeão. Esse Ego demorou muito tempo para se formar. Jujú esteve à frente de algumas das maiores glórias que o tricolor já obteve, principalmente quando é o Diretor de Futebol. Quando é o Presidente, seu Ego cuidadosamente esculpido perde um pouco o controle e comete um engano muito comum aos Egos, que é o Egocentrismo. Com o novo fiasco do tricolor nos campeonatos desse ano, Jujú mandou 7 atletas para a geladeira, pois um Ego algo inflado precisa de culpados para depositar sua frustração. Como qualquer um pode ser culpado, menos ele e a incrível Estrutura que ele montou, então técnicos, jogadores, funcionários, adversários, diretores de federação, todos devem pagar pela sua mágoa, menos ele. Ter convicção em sua capacidade, tomar decisões difíceis, pleitear o sucesso depois de muito investir e muito se preparar, são tarefas de um Ego bem estruturado. Examinar os próprios erros e perceber que repetir os mesmos erros geralmente leva aos mesmos resultados é tarefa de um Ego mais maduro, capaz de abrir mão dos próprios dodóis e se debruçar sobre as críticas para separar o joio do trigo. Isso demanda um Ego que consiga colocar-se e colocar os próprios erros em perspectiva. Sobretudo, incluir-se, sempre, na cadeia de responsabilidades. Descer da sua torre de Onipotência e procurar pelas alianças, em vez de castigar e ameaçar novos bodes expiatórios.
Quando Saulo de Tarso, também conhecido como São Paulo, escreve: “Já não sou eu quem vive, mas é o Cristo que vive dentro de mim”, está descrevendo um processo de sacrifício de seus primados egóicos, para a sua consciência conseguir se ampliar para além dos limites estreitos de nossos apegos. Esse é o Ego que deixa o centro da ribalta e sabe que é uma pequena parte de tudo o que acontece e que não pode, nem deve, impor os seus caprichos para a Vida, mas ser um bom bailarino que dança conforme a música inaudível dessa maestrina. Podemos entender a música da Vida em alguns momentos, mas não podemos querer controlar seu repertório.
Tirar o Ego do centro de nossas preocupações e angústias, torná-lo um intermediário entre o mundo Consciente e Inconsciente, essa sim é uma tarefa para a vida toda. Para isso, leva vantagem quem sabe fazer perguntas e se questionar, todo dia. Não é fácil e exige prática. Mas dá para fazer.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

O Olhar e a Compaixão

A minha cabeceira está sempre cheia de livros e é óbvio que alguns eu começo e não termino, outros eu curto mas não dou sequência, outros são antigos e ficam aqui como bons amigos, que podem ser abertos em algum momento. Um deles é de Bel Cesar, que faz uma aproximação entre a Psicologia Budista e a nossa. Não consigo terminá-lo, talvez pelo esforço da autora em compilar a maior quantidade de saber budista num livro só. Acho a aproximação entre Budismo e Psicologia um negócio muito delicado, que deveria se fazer de forma mais lenta. A maior impressão que seu livro me provocou foi o relato de um sonho da própria autora, que uma amiga junguiana sugeriu que ela relatasse, por ser um sonho coletivo, ou seja, um sonho daqueles que os xamãs reuniam toda a galera da tribo para ouvi-los, ao som do crepitar das fogueiras. Vou resumir o sonho aqui: “Sonhei que havia sido condenada à morte e antes de ser executada passaria por vários sacrifícios em várias salas (quadrantes). Os suplícios seriam testemunhados por algumas pessoas, que sabia que estavam presentes mas não podia vê-las. Na primeira sala, fui forçada a defecar, completamente nua e sentar sobre as minhas próprias fezes. Suportei a humilhação para acabar logo com aquilo. Passei para outro quadrante, onde fui obrigada a sentar sobre as fezes de outra pessoa. Uma voz interior me diz que eu podia me limpar antes de sentar sobre as fezes dos outros. Penso que se eu estiver limpa, não vou me sujar nas fezes de outras pessoas. Deixo uma carta para ser lida após a minha morte, em que agradeço às pessoas que testemunharam a minha vida com compaixão. Passo para um corredor, onde sou morta com uma pancada na cabeça”.
Caramba. Que sonho. Bel usou esse sonho para falar da sensação de vergonha, de fragilidade exposta publicamente, do olhar das pessoas que testemunham a sua Via Crucis. Não é um olhar indiferente e ela agradece a quem olhava para tudo aquilo com compaixão. Ontem um pivete atirou mais uma vez em um garoto de vinte e dois anos que lhe estendeu o celular sem resistir. Outro rapaz de idade semelhante foi morto algumas quadras depois, após levarem a sua mochila e celular. Muita gente já perdeu a capacidade de reagir a isso. A hiperviolência cria essa falta de sensibilidade. Ela agradece quem testemunha seu sacrifício com compaixão. O sonho é o próprio Mito Crístico, vivíssimo na alma da psicoterapeuta budista. A tarefa profunda do nosso percurso nesse planeta estranho: aprender a sentar em nossas próprias fezes, depois nas fezes do Outro, depois a violência sem motivo. Caros e fiéis leitores, eu sei: esse vai ser um daqueles posts ininteligíveis, com meia dúzia de page views. Mas agora não tem como voltar atrás. Vou até o fim.
Sentar sobre as próprias fezes é o primeiro passo no caminho do terapeuta. Significa analisar e penetrar nas próprias entranhas, em nossas feridas, nossos medos e ódios. Não adianta jogar para os outros, nem pedir para alguém fazer a tarefa por nós. A limpeza que ela percebe, no próprio sonho, está na capacidade de compreender e incorporar a relação com essas fezes psíquicas. Significa conhecer a nossa Sombra, o que está em nossos demônios, nós que nos achamos tão legais e puros. Se as nossas fezes estiverem bem elaboradas, aí o terapeuta pode sentar sobre as fezes alheias. Haja terapia e supervisão. O melhor e o pior do humano aparece em nossos sofás. A pancada na cabeça, por tráz, é a face do mal em nosso tempo: a pancada vem do nada, sem motivo, dar um tiro na traqueia de um semelhante apenas porque ele tem um celular bacana. Porque ele é um playboy e eu tenho a arma.
A parte para mim arrepiante do sonho é a gratidão aos que testemunharam a vida da terapeuta com compaixão. Uma das forças da terapia é o olhar do psicoterapeuta (vantagem dos junguianos, que não usam divãs) que testemunha as cenas bonitas e atrozes que saem do baú das memórias daquele que vem contar, mais uma vez ou pela primeira vez, a sua história. O engraçado é que a terapeuta, ao testemunhar a outra vida, acaba recebendo o olhar do Outro que está à nossa frente. Testemunhamos e somos testemunhados. Se tudo correr bem, com compaixão.

domingo, 12 de maio de 2013

Agarrar e Repelir

Uma coisa engraçada com o Ego é que passamos metade da vida para ter um e a outra metade para nos livrarmos dele. Sei que a brincadeira é um pouco hermética e psi, mas vou tentar explicar melhor esse ponto. Uma parte importante do trabalho clínico é reparar e fundamentar a nossa Base Egóica. Já falei sobre isso em post recente. A maturidade tem muito a ver com a capacidade de tolerar frustrações, esperar o tempo das coisas, adiar a satisfação imediata de nossos impulsos. Não é um artigo fácil de se vender. Chutar o trinco do galinheiro é bem mais fácil. E voa pena para todos os lados. Passamos a vida toda dando uma polida no Ego, e lá vem aqueles malditos carequinhas budistas, com seus sorrisos de Mona Lisa, dizer que o tal do Ego não existe e é a fonte de todo sofrimento. E o pior, com toda razão. Mas é importante de se lembrar: para relativizar o Ego é preciso ter um Ego.
Estou lendo um livro dessa série de monges carecas mandando a gente esfriar as nossas ânsias. Ele escreveu algo que ajuda um pouco nessa nossa tarefa de fortalecer e relativizar o Ego ao mesmo tempo (Esses caras adoram os paradoxos, a Física Moderna também): uma grande porcentagem de nosso sofrimento deriva dos impulsos de agarrar/reter ou de ter aversão/fugir. Há algum tempo uma cliente antiga me mandou e-mail perguntando se já podia espaçar as consultas, com vistas à sua alta. O primeiro exame do trabalho é, lógico, sobre quais seriam as contraindicações da conduta: os pontos que ainda não estão sedimentados, as conquistas não realizadas, o momento pessoal difícil. Nós terapeutas temos esses instintos de mãe de querer manter os filhotes por perto. Dar alta por e-mail também é algo que arquearia as sobrancelhas de Tio Sigmund. A resposta foi sim, é claro. E por e-mail. As terapias devem ter começo, meio e fim, como todas as relações humanas. Algumas se estendem por mais tempo, mas o trabalho de encerramento é tão importante quanto uma psicoterapia longa e bem cuidada. Mas a vontade de agarrar é grande.
Recentemente a Folha deu destaque para o livro de uma eminente psicanalista (cujo trabalho e trajetória admiro), que escreveu uma carta tão longa ao filho que virou livro. O seu “bebê” tem 30 anos e sussurrou para a repórter que cortou relações com a mãe para ter um pouco de sossego. Ela não para de ligar o dia inteiro. Um “causo” bacana para contar no Dia das Mães (e dos Floristas). Veja que os terapeutas, com décadas de experiência de mandar os seus pacientes abrirem as asas e voarem para longe dos divãs, também tem as mesmas dores de verem os rebentos irem embora, de preferência com boas sementes de amor e de esperança. (As mães e os pais psicanalistas tem o direito a todos os vexames e chantagens com os filhos que analisamos na clínica. E tenho dito).
A outra fonte de sofrimento é a aversão. Esse mesmo carequinha descreveu um aluno de suas aulas de meditação que chegou ao centro em cadeira de rodas, com uma dor importante nos pés. Com o passar das meditações, ele foi trocando a cadeira de rodas pelo andador e pela bengala. A dor continuava forte, o que mudou foi a sua atitude com relação ao sofrimento. Ele parou de amaldiçoar a dor, a velhice, os remédios e a vida. Essa é a questão com relação a aversão e o medo: acabamos atraindo sempre o que tentamos repelir, ou evitar. O melhor é encarar as tarefas que a vida oferece, todo dia, com um sutil sentimento de neutralidade. Falar é fácil, viu, seu monge?

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Good, Will Hunting

Os leitores desse blog devem ter notado que eu curto uma TV a Cabo. A TV a Cabo é como um Congresso de Psiquiatria: muita porcaria, muita redundância, várias reprises entediantes e, de vez em quando, uma apresentação legal, desconcertante, um debate que vale a pena, um documentário incrível. Eu gosto de garimpar congressos, livrarias e programas de TV a Cabo. Outro dia encontrei um amigo no Congresso, ele me viu antes e não conseguiu me alcançar. Foi direto até a livraria, onde me encontrou. Não foi difícil de adivinhar.
Pois estava garimpando a TV a cabo ontem, bem naquele horário que a música do Fantástico desencadeia o blues de final do Domingo, quadro depressivo sazonal e que começa quando soam os primeiros acordes da música do Fantástico, antigamente chamado de “O Show da Vida”. Pois a TV a Cabo me salvou também dessa. Estava vendo, de novo, o “Gênio Indomável”, “Good Will Hunting”, o filme que lançou, no final dos anos 90, Matt Damon e Ben Affleck ao estrelato. Já escrevi posts sobre esse filme e talvez até algum diálogo da Vovó; a velha meio adocicada tentava explicar para a netinha o trocadilho com o nome do personagem principal, Will Hunting, um jovem órfão, vindo de um lar disfuncional, com o pai alcoólatra e espancador (enquanto estava vivo). Will tinha tudo para ser mais um jovem do South Boston a seguir o comportamento violento de seu pai e terminar no sistema prisional americano, não fosse por uma característica peculiar: ele é portador de habilidades especiais, antigamente chamado de superdotado (Superdotado é um adjetivo mais utilizado na divulgação de filmes pornô hoje em dia). Will é um gênio matemático natural, que trabalha como faxineiro em uma Universidade renomada. Ele resolve um problema extremamente complexo deixado na lousa da disciplina de Matemática avançada. Ele tem uma capacidade prodigiosa de leitura e aprendizagem e, como muitos portadores dessa capacidade intelectual assombrosa, tem dificuldade de adaptação às regras de pessoas que pensam mais devagar que eles. Ele é um solitário e tem amigos da classe operária se Boston que não são exatamente brilhantes.
Esse personagem de Matt Damon se envolve em mais uma encrenca, recebe como sentença a obrigação de se submeter a tratamento psicológico. Ele vai desestruturando todos os que tentam tratá-lo, em cenas bem engraçadas. Até cair nas mãos de um psicoterapeuta fracassado, deprimido e com métodos muito esquisitos. Robin Williams faz esse terapeuta incrivelmente triste. Já falei isso no post sobre o filme “Brilho de Uma Mente Sem Lembranças”: só os comediantes deveriam fazer os papéis de deprimidos (lembre de um Jim Carrey incrivelmente triste nesse filme). Incrível a tristeza desse personagem do engraçadíssimo e por vezes chato Robin Williams. O embate terapêutico entre os dois é um ponto alto do filme. Em um desses diálogos, o pequeno gênio conta de um encontro que teve com uma garota especial e divertida. Ele não ligou no dia seguinte, como tantos caras depois de um primeiro encontro, para desespero das meninas. O terapeuta esfrega os olhos e sussurra: “Você é um amador, caramba”. Na relação terapêutica, o terapeuta vai dar o testemunho de ter amado profundamente uma pessoa, uma mulher que ele viu morrer depois de poucos anos de casamento. Ele dá o seu testemunho do risco de se amar alguém. Não que terapeutas devam se usar como exemplos para a vida de qualquer pessoa, mas nessa relação romanceada, até que vale o exemplo. Amar é, sobretudo, correr riscos. Risco do amor acabar, do outro ir embora, ou adoecer. Mas nada em nossa vida resuma mais o significado de nossa passagem por esse mundo do que a nossa capacidade de amar e correr o risco de perder o que amamos.

sábado, 4 de maio de 2013

AutoEmbaço

De vez em quando eu me meto a ler os livros hoje um pouco fora de moda de Carlos Castañeda. As suas experiências psíquicas psicodélicas com um feiticeiro e xamã foram uma verdadeira febre nos anos sessenta e setenta, época da geração hippie e da contracultura. Hoje eles não são tão conhecidos e sempre que vou falar sobre algum ensinamento do mago Don Juan para o seu protegido, Carlos, em alguma consulta, tenho que fazer um longo preâmbulo para explicar a sua história. Como estou fazendo agora, aliás. Mas não vou me estender em seus ensinamentos. Vou falar de um conceito apenas. Don Juan tentava ensinar o seu pupilo, um antropólogo argentino radicado nos Estados Unidos e encharcado de nossa cultura materialista, a “Cessar o Diálogo Interior”para entrar em um estado mental apropriado para explorar outras formas de consciência. Gostaria de ver o velho bruxo em nossos consultórios, tentando ensinar as pessoas a diminuir esse verdadeiro palavrório interno que nunca parece cessar.
Estava acompanhando um trabalho que mostra o efeito devastador desse “Self-talk”, que eu traduziria como blábláblá interno que produz sintomas e pior, destrói vidas. É como um livro da autoajuda às avessas. Um livro de autoembaço. Tinha vontade de escrever um livro de autoembaço, que iria se chamar “Os Sete Hábitos das Pessoas Altamente Infelizes”. Difícil seria selecionar apenas sete, mas seria um assunto para discutir com meu editor, preferencialmente quando tiver um. Mas um dos hábitos criadores de infelicidade na certa seria a Automaldição. Querem um exemplo? Fácil. “Estou consciente que nunca vou emagrecer”; “Os homens são todos assim”; “Pobre não tem sorte”; “A culpa é do meu marido”; “Eu nasci para ser sozinha”. A lista é interminável.
O fracasso é um cobertor curto, mas protetor. Se o fracasso puder ser projetado numa causa externa a nossa vida, melhor ainda. Eu chamo de cabides de infelicidade. Maridos e esposas são cabides quase perfeitos. Basta pendurar toda a infelicidade no Outro: “O meu marido me impediu de trabalhar”; “A minha mulher gasta todo o dinheiro no shopping”. Além do diálogo interior obsessivo, temos a recriminação circular do outro ou de nós mesmos como uma modalidade eficaz de se atingir a infelicidade. Não sei por que se consumir tanta literatura, tantas comédias romântica s sobre a busca da felicidade se gastamos tanto tempo e tanto diálogo interior para o aperfeiçoamento da infelicidade.
Uma coisa que é difícil de se ensinar e, sobretudo, de aprender, é que a responsabilidade por nossas escolhas e desencontros é pessoal e intransferível. Henry Ford disse que se você pensa que consegue, ou que não consegue, provavelmente está certo em ambos os casos. Ele nunca escreveu livro de autoajuda.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Francesco e o Coração de Fogo

Há uma infinidade de pequenas historietas a respeito da vida de São Francisco, um dos santos mais populares da Igreja após um quase um milênio de sua passagem por este planeta esquisito. Numa delas, estava em suas peregrinações com seu grupo de seguidores, pousando em algum lugar muito frio com suas túnicas e sandálias, e fizeram uma pequena fogueira, que, em algum momento, ficou fora de controle e precisou ser controlada, ou apagada, pelos filhos de Francesco. O santo, por sua vez, ficou muito amuado e criticou os seus amigos por terem incomodado o “Irmão Fogo”. Alguns anos depois, o Irmão Fogo retribuiu a sua preocupação, em um momento bastante dramático. Francesco estava perto de sua morte, com múltiplas infecções, uma delas uma conjuntivite purulenta que acabou por cegá-lo. O único tratamento disponível era a cauterização com ferro quente, tratamento aliás que continuou em voga por muitos séculos, até a descoberta dos antibióticos. Francesco pediu ao Irmão Fogo para ser gentil e ele foi. O procedimento transcorreu sem nenhuma dor. Talvez o único prodígio que o monge magrelo pediu para si.
São Francisco não tinha nada de santo ecológico nem de amante de passarinhos, como aparece nas pinturas e nos santinhos. Era, antes de mais nada, um cara de alteridade absoluta, que chamava de irmão o Sol, a Lua, a Morte. Tudo com uma atitude de respeito e reverência. Se estivesse vivendo em nosso mundo seria internado como esquizofrênico ou um bipolar, com delírios de cunho místico. Talvez um yogue dissesse que Francesco foi um raro homem nascido no Ocidente que conseguiu abrir o seu Chakra do Coração, vivendo a experiência do Amor pleno por todos os seres. Já tentei escrever um livro que falasse dele, mas o livro não funcionou. O título seria bem legal, que seria “Perto do Coração de Fogo”, uma paráfrase de um livro de Clarice Lispector, “Perto do Coração Selvagem”. Francesco tinha o coração de fogo, e quem vai a um de meus consultórios nota algumas imagens dele. Dependendo da religião do cliente, ver imagens de um santo católico pode causar algum desconforto, mas é uma pena, é um consultório de um junguiano, não acho que deva ser uma tela branca sem nada que revele alguma característica pessoal do terapeuta. Tinha uma namorada psicanalista que achava isso tudo o ó do borogodó, eu não consigo acreditar em um encontro terapêutico em que a subjetividade do terapeuta não interfira, para o bem ou para o mal. O namoro não vingou com todas essas discussões teóricas.
Vários séculos depois de Francesco ainda temos muita dificuldade em expandir nossos chakras cardíacos, com a experiência amorosa, a experiência de abertura e expansão do Irmão Fogo em nosso mundo interno. São muitas as perdas e as decepções que vão moldando o nosso velho Ego. Lembrando de um post recente, de Sábado agora, apanhamos muito para expandir a nossa Base Egóica. Já a experiência amorosa deve ser uma questão de treino e aprendizagem. Diária. O Papa assumiu uma gigantesca herança e responsabilidade quando adotou o nome de Francisco. Vai precisar aquecer diariamente o seu e o nosso coração.