domingo, 25 de agosto de 2013

O Sonho do Arquétipo

O jovem psiquiatra Carl Jung tentava dar um nexo aos delírios que os pacientes produziam profusamente no início do século passado. Começou a estudar Mitologias e Religiões de todas as partes do planeta, sem ter ideia de onde iria chegar com aquele estudo. Um paciente segredou a ele que sabia como os ventos eram formados: havia um pênis gigantesco que saía do Sol e balançava, produzindo os ventos. Jung havia lido essa mesma ideia em uma Mitologia Arcaica, das mais antigas de nossa história, que á a Mitologia Mitraica. Não havia como o paciente ter tido contato com aquela mitologia, ele nem sabia de sua existência. Foi dessa experiência que Jung descobriu o que seria chamado de Inconsciente Coletivo, um substrato de ideias e formações psíquicas que comunicam todos os seres humanos. Os mitos representam essas ideias originais, de onde saem as metáforas fundamentais de nossa vida e de nossa visão de mundo.
Uma das coisas que a psicoterapia ainda permite é transformar uma vida em narrativa. O que parece uma sucessão de fatos gerados pelo acaso, ao virar uma narrativa, começa a ter coerência interna. Da narrativa podemos chegar aos mitos geradores, às metáforas de cada vida. Isso anda muito fora de moda. Temos hoje uma terapêutica de resultados: os psiquiatras e os psicoterapeutas saem caçando os sintomas e tentam matá-los às pauladas de medicamentos ou de “intervenções pontuais”, de base comportamental/cognitiva. Lembro de um psiquiatra inglês que foi jantar em meu apartamento de solteiro, que observou que determinado grupo do Instituto de Psiquiatria era tão obcecado pelos sintomas que mal conversava com os pacientes. A perda da narrativa e da dimensão mitológica cria esses monstros. Alguns pacientes não podem abrir mão de suas doenças porque são definidos por elas. Ele não é mais o João, mas um Dependente Químico. Ela não é mais a Luzia, é uma Bipolar II. A Mitologia se desloca para a patologia, e tudo pode ser explicado por um sorteio genético infeliz.
O fato é que ainda somos sonhados pelos mitos, querendo ou não. Há um maravilhoso de Borges, em que um bandoleiro gaúcho é emboscado pelos seus comparsas, sendo esfaqueado por cada um deles. A última facada vem de seu filho de criação, que ele olha com espanto e diz: “Peró, hombre?”, antes de suspirar o último suspiro. Borges termina o conto dizendo que aquela facada ocorreu para que uma cena se repetisse. A alusão é à cena em Júlio César, poderoso Imperador Romano, emboscado no Senado às facadas, olha espantado para seu filho de criação, Brutus, após receber dele o golpe fatal: “Até tu, Brutus?”. Repetimos inconscientemente essas cenas mitológicas. Para quem acha essa conversa junguiana um pouco esquisita, vamos falar de um mito moderno, vivido por Steve Jobs. O filme sobre a sua vida está para chegar e eu já discordo a priori da escalação de Ashton Kutcher para o papel principal, mas esta é outra história. Eu já mencionei esse tema em outro post, mas tudo bem, depois de 400 posts a gente acaba se repetindo um pouco, mesmo.
Steve Jobs, como o Édipo Rei, não conheceu o seu pai biológico e foi dado à adoção por sua mãe, que estava muito ocupada com a sua carreira universitária. O primeiro casal chamado à fila de Adoção curtiu o moleque, mas na última hora preferiu adotar uma menina. O próximo casal era de origem muito simples, a mãe biológica tentou vetá-los. Queria que aquele bebê tivesse uma carreira universitária, como ela. Estranhos caprichos, aliás, está dando o filho para adoção e quer dar pitacos na sua carreira. Os pais de Steve Jobs prometeram que fariam de tudo para levar aquele moleque à Universidade, coisa que cumpriram, mas o jovem Steve, não. Passou seis meses na Faculdade e foi embora, construir computadores na garagem de casa. Com vinte e poucos anos era um dos donos da Apple e tinha alguns milhões de dólares na conta. E sem diploma. Nada mau. Édipo, que significa “Pés Inchados” foi abandonado na montanha para morrer, por ordem de seu pai, Laio. Um oráculo previra que aquele menino iria matar o seu pai e desposar a mãe, Laio resolveu cortar o mal pela raiz (ou pelos tendões, no caso). Édipo foi encontrado com os pés machucados e criado por um casal de camponeses muito simples, que limparam as suas feridas e lhe deram um lar de amor e dignidade. Mas não curaram a sua ferida profunda. Édipo compensou a sua deficiência com uma inteligência brilhante. Foi ela que lhe permitiu derrotar a Esfinge e subir ao trono de Tebas, onde, sem o saber, desposou a sua mãe, a bela Jocasta.Quando descobriu o que ocorreu, arrancou os próprios olhos. Morreu prematuramente, engolido pela terra. Steve Jobs usou a sua inteligência e sua intuição gigantesca para construir, destruir e depois reconstruir a sua empresa e Império. Dizem que confiar demais no seu intelecto ou sua energia foi um dos fatores de sua morte prematura, pois tentou derrotar o Câncer com Meditação e mentalizações. Mal sabia ele que estava morrendo para que uma cena se repetisse.

sábado, 24 de agosto de 2013

O Quilão

Quem me conhece sabe que sou grande apreciador de Restaurantes Por Quilo. Tenho a impressão, influenciado pela Medicina Chinesa( que eu sapeio de vez em quando), que nos buffets por quilo podemos construir um equilíbrio entre cores e sabores, bem ao gosto da Medicina Taoísta. Salgado, Doce, Amargo, Apimentado e Azedo são tipos de estímulo que nossa língua percebe em diferentes regiões gustativas. Nossa alimentação ocidental tem uma grande ênfase no Salgado e no Doce. O resto entra como tempero ou como bebida, mas passamos do Salgado da refeição para o Doce da sobremesa. Excessos de doces e farináceos estão na base de nossa atual epidemia de Obesidade, mas esse é outro assunto. Os restaurantes por quilo tem espaços para saladas, legumes e pratos quentes. Dá para equilibrar gostos, cores e grupos alimentares, o que favorece a saciedade. Para quem duvida, eu proponho um teste bem simples: quando bater aquela fome fora de hora, tente atingir a saciedade comendo só doces, ou, em outro momento, faça um lanche com equilíbrio de sabores. Nos meus consultórios eu faço pequenos lanches, nessas horas, com grãos, como amêndoas e nozes, chocolates amargos com alto teor de cacau, maçãs azedas ou damascos, além de um chá forte ou picante. Os gostos estão aí: o salgado dos grãos, o picante no chá, doce e amargo no chocolate escuro, o azedo na fruta. Tenho a impressão que o Cérebro recebe uma informação sensorial mais rica e entende que não vai faltar comida. Isso desliga o alarme da fome. O doce, pelo contrário, parece estimular o Cérebro a querer mais, mais, mais. Quem já devorou caixas de bombons e teve que encarar a ressaca moral do dia seguinte sabe do que estou falando.
A parte ruim dos restaurantes por quilo são as filas, sobretudo, alguns tipos que ficam na fila. Eu costumo imaginar que uma forma de Danação ou Purgatório, para este pecador aqui, seria uma eternidade na fila do Restaurante por Quilo. Os tipos mais difíceis são, sem dúvida, os obsessivos. Olham, observam, pegam cada folhinha de alface com uma incrível e meticulosa precisão. Os membros mais gordinhos de nossa pequena confraria parecem demorar calculando os pontos da refeição, suas calorias e estratégias alimentares. Tenho uma paciente que diz que salada deve engordar muito, pois os pratos cheios de vegetais e saladas estão geralmente nas mãos dos gorduchinhos. Outra galera que retarda a fila são os funcionários querendo esticar o almoço. Tudo eles fazem de maneira lenta, inclusive montar seus pratos. Esses eu ultrapasso, dou trancos, piso nos sapatos. Tem paciente me esperando e a pessoa pode revisar doze bifes para poder escolher um deles. Gosto mais dos “caminhoneiros” sem culpa, que fazem pratos imensos sem considerar que estão num restaurante por quilo, não no PFão da esquina. Esses derrubam batatas de suas pirâmides e colocam Estrogonofe de Camarão encima do Arroz, Feijão e Farofa. Nenhum prurido gastronômico. Existem as magrinhas que fazem pratos que são critério para diagnóstico de Anorexia. As gordinhas sexy, que fazem um prato balanceado e depois devoram o pudim de leite da sobremesa e ainda batem um picolé na fila do pagamento.
Continuando a metáfora da Danação Eterna, a fila do pagamento é outra via de expiação de pecados. Fico enternecido com as velhinhas e velhinhos que adoram puxar papos com o Caixa. Enternecido e enlouquecido, de acordo com o número de pacientes que me aguardam no consultório. Prefiro pesadores e caixas mau humorados, que não olham nos seus olhos e fazem a sua função rapidamente. Não que isso intimide as velhinhas, que perguntam da família toda e podem fazer um tratado sobre as variações de temperatura e clima. Nesta fila, reclama-se do calor, do frio, da chuva e da secura. Desesperador é quando o caixa se anima e pode passar uns três minutos narrando as peripécias de ter sido pego, em pleno Domingo, por uma frente fria anunciada em todas as mídias. Impressionante, ele exclama diante do olhar admirado de vários tiozinhos. E a fila... Empaca .
Gosto muito de ler sobre os benefícios das meditações, e posso observá-los nas filas de restaurante por quilo. Inspirar, expirar. Longamente. Senão posso, num acesso de loucura, correr para o Mac Donald’s ao lado, onde também há filas, mas as duas em uma, pagamento e formação do prato. Respira que a fila está acabando. Nessa hora, dá pau na maquininha de vale refeição e o Caixa não sabe o que fazer. A velhinha comenta que o tempo está para virar. Eu tomo uma inspiração profunda.

domingo, 18 de agosto de 2013

Eros,Ágape e Cáritas

Estava zapeando como sempre os programas da TV por assinatura, quando me deparei com um programa chamado “Decifrando Milagres”. Adoro dar uma olhada nesse tipo de programa, além dos documentários sobre avistamento de discos voadores ou mistérios das pirâmides. No programa, havia uma completa mistura de alhos com bugalhos, pois mostrava uma médium curadora argentina, Giras da Esquerda de Candomblé, em São Paulo e uma imagem de menino Jesus que é objeto de culto no México. Não sei se o objetivo era mostrar os exóticos latinos e suas crendices, mas acabei parando a zapeagem e vendo o programa. A parte que me encantou foi sobre a mística argentina, Martha Rosenberg. Essa senhora loira e um pouco emperuada, disse ter recebido a visita de Jesus, que lhe avisou que, a partir daquele momento, ela teria o Dom da Cura. Apareceram no dorso de suas mãos e pés os Stigmata, as feridas de Jesus após a sua crucificação. Acho que foi a maneira de Jesus demonstrar que não estava brincando. Uma imagem de Jesus que trouxe para a sua parede começou a verter sangue. Ela pensou que o visitante estava de brincadeira, pois além de não acreditar em nada daquilo, ela é judia, como é que falaria em nome de Jesus? Mas o visitante não pareceu se impressionar com aquilo. O documentário mostra as sessões com Martha num bairro simples de Buenos Aires. Há uma consagração e oração, depois filas de pessoas que a abraçam longamente e trocam palavras amorosas. Algumas relatam as curas e as mudanças de evolução de suas doenças com a médium argentina, que os espíritas classificariam como médium ouvinte, pois recebe as instruções de seus guias através de vozes assoprando em seu ouvido.
Ela passou a comer e beber muito pouco, dormir menos ainda, desde que passou a ser instrumento desse dom. E o sangue sai caprichosamente de seus estigmas de quando em quando. É lógico que a equipe do programa foi entrevistar o seu psiquiatra, para saber que papo é esse de vozes assoprando coisas. A própria Martha foi procurá-lo para saber se aquilo tudo não era um surto esquizofrênico e se não estava precisando, mesmo, era de uma internação. O médico ficou gaguejando diante das câmeras para afirmar que a senhora não era Esquizofrênica e que as suas vivências místicas não estavam no escopo da Ciência. Pelo menos isso. Outros colegas diriam que ela é uma Bipolar, em Hipomania, com um quadro delirante místico e de grandeza. Um médico de Pronto Socorro colheu exames de suas feridas para constatar que aquilo era sangue mesmo (não me diga) e levantar a hipótese que as mesmas eram feitas pela senhora. O que dá para ver com as imagens é que as feridas são redondas, de bordas delimitadas e profundas, às vezes em carne viva, outras vezes porejando sangue. Para aquilo ser uma fraude ela precisaria de um uma equipe de fraudadores e de uma deficiência de coagulação, o que não é impossível, mas estranho. Ninguém conseguiria entender aqueles fenômenos sem colocar em Martha a pecha de farsante ou maluca. O que as pessoas que recebem seu abraço descrevem é uma incrível energia amorosa que se desprende dela, gerando algumas curas. Martha continua afim de se livrar da tarefa e do fardo, mas continua, como aquelas coisas que continuamos a fazer a despeito de seu desconforto, só porque sabemos necessárias.
Felizmente eu não fui entrevistado e infelizmente, não sou o psiquiatra de Martha (acho que essa gripe que me afeta há cinco dias já estaria bem melhor nesse caso). Os místicos cristãos dividem em três tipos o Amor que podemos sentir: Eros, o mais popular, Ágape e Cáritas. Sobre Eros já falei bastante nesse blog. Ágape e Cáritas é que são elas. Ágape é um amor que ultrapassa o prazer de Eros. É o amor incondicional de um pai por seu filho, o amor de alguém que esquece de si em função da entrega para o outro. Uma tipo de Amor muito raro em nossa geração autoestima. Mais raro é o Amor que flui dos abraços de Martha ou das palavras das pessoas que estabelecem o contato com essa frequência, que chamamos de místicos, ou de mistificadores. Cáritas é a energia amorosa absoluta, que tira o sono e a fome de Martha. Se isso é uma doença psiquiátrica, eu bem que gostaria de tê-la. Desde São Paulo no caminho de Damasco que ouvimos histórias de pessoas comuns que tem o encontro de nosso Ego comum com a Grande Personalidade, ou outro centro de consciência, que vai passar a emanar essa energia amorosa. Isso é loucura? Loucura é viver só às custas de nossa Mente Racional, achando que ela basta para entender a vida.

sábado, 10 de agosto de 2013

Synchronicity

Jung me ajudou a impressionar uma garota apenas uma vez em minha vida. Estávamos no banco de tráz de um carro e começou a tocar um sucesso do Police, no que eu acho que foi o maior álbum dos anos 80, “Synchronicity”. Estava tocando justamente a música que dava nome ao disco, onde Sting descrevia um monte de cenas, fatos e imagens sem relação entre si e terminava com a palavra Synchonicity, ou Sincronicidade, um conceito formulado por Carl Gustav Jung. Lógico que ninguém no carro tinha a menor ideia do que significava aquela letra, então eu expliquei, com toda a banca de um jovem estudante de Medicina que estava devorando todos os livros de Jung que houvessem pela frente, que Sting estava falando na conexão invisível que existe entre todos nós, o que Jung chamou de Inconsciente Coletivo. Não sei se a loira (sem trocadilho ou demérito às loiras, por favor) entendeu a explicação, mas ela entreabriu os lábios como se estivesse diante do cara mais cabeça que já tinha visto, e eu me dei bem naquela noite. Obrigado, Carl Gustav. Acho que hoje em dia a menina teria olhado para mim com aquela cara de :”Você é doente, Nerd?”. Mas nos anos oitenta ainda dava para impressionar as meninas com esses papos cabeça.
Outro dia estava vendo um programa, ou, melhor dizendo, homens nunca estão vendo um programa. Estão zapeando vários programas simultaneamente, pegando os pedaços de filmes, piadas, comerciais e esportes que nunca chegamos a ver inteiros. Então eu estava zapeando quando parei num programa de Talk Show em que um pequeno grupo de mulheres tentam encaixar um papo cabeça sobre atualidades. Os anos se passaram e minha paciência para papo cabeça também passou, mas me detive em um senhor que descreveu uma sessão de análise em que uma pessoa chorava uma perda, provavelmente uma morte e a incerteza se haveria algo depois de nossa vida biológica. Parei de zapear. Aquilo parece conversa de um junguiano. Ele continuou contando o caso: a conversa se desenrolava sem o terapeuta ter coragem de abrir a boca quando pousou em sua janela um belo pássaro, que ficou parado olhando para eles em longos segundos. Uma intensa sensação de paz tomou conta do ambiente, até o pássaro sair voando. A paciente olhava para a janela, em lágrimas, como se tivesse recebido a visita da pessoa amada que havia morrido. Sabe o que é Sincronicidade? É isso. Um evento que não tem nada a ver com o que está acontecendo, como um pássaro pousando na janela de uma sala de terapia, que enche de significado o que está acontecendo lá dentro. Um psicanalista diria que a pessoa estava procurando, em seu desespero, por algo que desse significado a morte de um ente querido e se agarrou à uma ave na janela para acreditar que a vida e a morte tem algum sentido. Quem já experimentou uma coincidência significativa e a sensação de maravilha, de sentido profundo que ela carrega, já conheceu uma Sincronicidade. Einstein morreu sem saber se o Universo é, ou não, um lugar amigável. Faltou o pássaro em sua janela, para dar essa sensação de que as coisas estão conectadas em algum nível profundo e invisível. Um físico mais jovem, David Bohm, chamou essa ordem de “Ordem Implícita”, justamente por essa característica mágica, fora de nosso campo de percepção, que conecta fatos e vivências dentro de campos de sentido.
A menina hoje diria, no banco de traz daquele Passat verde: “Além de Nerd, é místico.” Pois é. Além de Nerd, junguiano.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O "Mestre"

Lamento pelos poucos e bons leitores desse blog, mas vou ter que falar sobre um filme desagradável. Isso torna o post particularmente inútil, entre outros posts inúteis, como aqueles em que eu me dedico a atacar o presidente (?) do São Paulo, Juvenal Juvêncio. Escrever sobre um filme desagradável é convidar o leitor a evitar o mesmo. Mesmo assim, vou escrever sobre ele e sugiro ao leitor que evite esse texto. É o máximo que posso fazer.
O filme é “O Mestre”, que valeu ao bom Joaquin Phoenix a indicação para o Oscar de 2013 de Melhor Ator. Joaquin faz um personagem tão absolutamente repulsivo que era de se esperar que não levasse a estatueta. O filme se passa nos anos 50, após a Segunda Guerra, onde Charlie lutou com japoneses no Pacífico. Ele é um marinheiro que volta ao seu país e passa a ter um comportamento estranho, com episódios de agressividade imotivada, chegando a tentar trabalhar como fotógrafo, mas ataca sem motivo um cliente. Vai trabalhar em plantações de algodão e tenta envenenar um lavrador, novamente sem motivo nenhum. O ator compõe um personagem sempre crispado, a postura encurvada, o rosto com uma máscara de tensão e caretas. O psiquiatra que vos fala já ia diagnosticando algo do espectro da Esquizofrenia, mas o filme segue e nada confirma, ou exclui, a hipótese. Quando o estranho personagem abandona o campo e passa a vagar sem destino, entregue cada vez mais ao abuso alcoólico, ele encontra o sujeito que dá título ao filme, o tal “Mestre”. O Mestre é o líder de uma espécie de seita, também dado a excessos alcoólicos, entre outros hábitos repulsivos. Esse “Mestre” toma o marinheiro perdido como seu protegido e passa a fazer sessões de “Processamento”, que consistem em fazer trabalho de levantamento de traumas, incestos e violências que Charlie teria sofrido ou perpretado. Ele vai entrando e fazendo parte daquele grupo, com adoração e adesão total ao seu líder. Quem o critica ou questiona é prontamente espancado por Charlie (como a torcida uniformizada que vem ameaçando fisicamente os opositores de Juvenal Juvêncio). Tudo parece caminhar para um desfecho trágico, até Charlie aproveitar um dos experimentos do “Mestre” para sumir no mundo. O que vai acontecer depois eu não vou dizer, para não estragar o filme que alguém queira assistir, mesmo alertados que é um filme desagradável.
O filme provavelmente é um relato de algum dissidente da Cientologia de L Ron Hubbard. As técnicas de processamento que o líder usa com o perturbado seguidor, foram e são, praticados pelos membros dessa seita, e visam desatar os nós de traumas passados e libertar seus seguidores de suas aberrações, ou neuroses, medos, traumas para poderem se expressar como seres espirituais e libertos de suas amarras psíquicas e físicas. O retrato do “Mestre” é crú, de um homem vaidoso,dado a explosões inesperadas e bebedeiras incontroláveis. Ele é sempre acompanhado por uma filha fanática e incestuosa, que representa o fabuloso aparato que se revestiu esse movimento nas últimas décadas, sempre tentando transformar o tal “Mestre” em um Semideus que não pode ser contrariado, ou questionado, em nenhuma hipótese.
O leitor deve estar se perguntando, assim como este escriba, qual a necessidade de escrever esse texto, já que ele não recomenda o filme nem vai conseguir mudar a sinuca de bico em que se meteu a diretoria do São Paulo. Acho que o filme muito me impressionou pela potência das cutucadas que os caras dão nos membros dessa seita. Mexer com o Inconsciente das pessoas demanda um cuidado e um respeito absolutos, além de conhecimento de causa. Hoje as pessoas “processam” traumas e mexem nos Inconscientes alheios em Vivências Corporativas, Constelações, Regressões e Workshops de final de semana. Os resultados nem sempre são bons.
Penso que esse filme mostra o nascimento da Cientologia e o germe do que um processo que quase destruiu o personagem principal do filme e outras tantas pessoas, inclusive o “Mestre”, que morreu só em seu rancho, tomando remédios para sua Paranóia progressiva. Escrevo esse texto para lembrar a quem se aventura nesses caminhos e feridas psíquicas para fazê-lo com cuidado e orientação. E, finalmente, sempre, sempre, desconfiar de quem se acha um “Mestre” absoluto, inquestionável. Morrer é parar de fazer perguntas.

domingo, 4 de agosto de 2013

Bruta Flor do Querer

Quando teve início a grande crise mundial, que Lula falou que no Brasil no mundo seria um tsunami, mas no Brasil “não passaria de uma marolinha”, eu li um texto, se não me engano, do Calligaris, em que ele dizia que aquela catástrofe econômica era derivada de nossa civilização “O Segredo”, onde os livros de autoajuda propunham, em alguns casos, literalmente, que o Universo seria uma espécie de Gênio da Lâmpada pronto a materializar todos os nossos desejos, desde que mantenhamos a nossa mentalização. Isso aplicado ao mercado financeiro, ou à expansão enlouquecida do crédito, levou a economia americana e, por tabela, do mundo, a nocaute. Os realistas de todas as origens concluem que, infelizmente, querer não é poder.
As rodas pesadas do hipercapitalismo são movidas às custas dessa fantasia coletiva que, se o desejo for canalizado e os esforços mantidos, poderemos ter acesso quase ilimitado aos nossos sonhos. Já está chegando em nossa cultura tipiniquim a divisão entre loosers, os perdedores e os winners, os vencedores, os campeões. A divisão se dá em termos de capacidade de consumo e de poder de compra. As fantasias podem desmoronar como o império de Eike Batista, na hora em que as pessoas percebem a diferença entre Realidade e Simulacro, entre Forma e Conteúdo. Da noite para o dia o antigo Winner passa a ser um Looser, quando cai a sua máscara.
Muitas religiões e escolas místicas alertam para os perigos da ganância, do desejo desenfreado que quebrou várias vezes muita gente e causou a morte e a ruína de outras tantas. Saber conter, ou limitar as ambições enlouquecidas é quase sempre a moral da história, da tragédia grega aos épicos shakeaspeareanos. A grande questão, que aparece sempre nos divãs e na vida é que o desejo, por mais que deva ser conduzido em nossa vida com calma e sabedoria, é completamente imprescindível à mesma. Não dá para fugir de nossos desejos ou esmagá-los em falsas modéstias. Como diriam os Titãs, a gente quer inteiro, não pela metade.
Al Pacino, inesquecível como diabão no “Advogado do Diabo” gritava no diálogo final que Deus é um sádico, pois dá aos homens o Desejo e a Interdição (não foram essas as palavras, mas era essa a ideia). O Desejo e a proibição do Desejo são a nossa dor e a nossa delícia. Desejamos e temos medo da frustração, então ficamos cada vez mais realistas e cada vez mais tristes. O que eu proponho, inclusive em termos terapêuticos, é que temos direito, sim, a estabelecer nossos campos de desejo, e que realizá-los não é nem pecado nem o triunfo da psicanálise, mas é a base de muito de nossa existência. Criar um campo de desejo e de sonho, trabalhar esse campo de desejo e tentar trazer para o Real o que só existe no Invisível é tarefa para um bom tempo de luta, de erro e de aprimoramento. Não adianta mentalizar ou usar a “Lei da Atração” sem esse processo de aprendizado e busca. Mas não dá para viver sem esses campos de desejo. Nem na terapia nem na vida fora dos divãs.