domingo, 29 de setembro de 2013

O Elixir do Amor

Quando Carl Jung rompeu com Freud, sua vida toda virou de ponta cabeça. Ele já havia se desligado da Psiquiatria Suiça, na medida em que optou por acreditar e aplicar o método psicanalítico que se estabelecia na época. Havia, dentro do Inconsciente dos doentes mentais, tensões psíquicas intoleráveis que acabavam se manifestando como sintomas e sofrimento. A Psiquiatria estava, e ainda está, procurando organizar um corpo de saber sobre as doenças mentais e entendê-las, saber como se comportam e qual a melhor forma de tratá-las. A Psicanálise e as posteriores Psicologias do Inconsciente foram rejeitadas para o entendimento das doenças mentais. Jung tomou o partido de Freud. Depois de alguns anos, as diferenças entre os dois também foram se tornando insuportáveis, até o rompimento doloroso e definitivo. Como eu falava no início desse post, esse rompimento foi devastador para Jung. Da noite para o dia ele passou a ser um proscrito pelos seus colegas médicos E por seus colegas psicoterapeutas. Passou a viver numa espécie de limbo, onde, a partir dali, teria que prosseguir inteiramente só. Não é à toa que nessa época Jung tenha ficado tão impressionado e amedrontado, com a trajetória de Nietzche, que também tentou mudar o rumo da Mente Ocidental, também sofreu tensões e dores psíquicas insuportáveis e acabou sucumbindo, após anos de solidão, terminando os seus dias num asilo para doentes mentais.
Jung foi reconstruindo a sua saúde mental e a sua carreira nesse período entre as Guerras Mundiais, mas ainda não tinha encontrado um jeito de entender mais profundamente a própria alma e a Psique Humana. Encontrou nos escritos medievais dos alquimistas os insights que lhe faltavam e, mais do que tudo, a sensação de estar remando na direção certa. Mesmo os seus colaboradores mais íntimos acharam que aquele estudo da Alquimia iria jogar no lixo a pouca credibilidade que lhe restava. Felizmente, Jung ignorou esses conselhos e seguiu a própria intuição, legando ao mundo uma obra gigantesca e ainda mal assimilada.
Outro dia eu estava praticando meu esporte favorito na TV, que é ficar zapeando, quando dei com o filme “O Perfume: A História de um Assassino”. Não é uma delícia quando o título em Português entrega todo o filme, tipo “Apolo XIII: do Desastre ao Triunfo”. Obrigado por entregar o final, pessoal. O “Perfume” é a história de uma Obra Alquímica, ou do desenvolvimento do Quarto Cérebro, se preferirem. Descreve a história de um bebê que passa por abandonos e violências impensáveis e sobrevive graças a um prodigioso sentido de olfato. Trabalhando como quase um escravo, é descoberto e “comprado” por um fabricante de perfumes, onde vai aprender a extrair os óleos e as fragâncias que compõe um perfume. Logo ele se torna o maior dos mestres da Perfumaria, mas não é essa a sua ambição. Ele que extrair a essência máxima do feminino. Eros em estado definitivo. Para isso, ele mata e extrai a essência das jovens que cruzam o seu caminho. Um serial killer do século XVIII. Como um louco atormentado, ele extrai a essência do odor de cada mulher que mata, procurando a essência do Feminino sem sabê-lo.
O filme é ótimo e demonstra, de forma dramática, a busca de um homem tangido por sua Falta e por sua Ferida e o refinamento infinito de seu conhecimento sobre cheiros e processo de retirada de elixires para encontrar o seu Elixir do Amor.
O que Jung descobriu a respeito dos velhos alquimistas tem estranhamente a ver com esse filme. O processo alquímico procurava pelo Elixir da Longa Vida, uma substância tão concentrada, filtrada e infinitamente purificada que ela pudesse, por si só, curar todos os males, reparar doenças e genomas defeituosos. Esse é o Opus Alquímico, que transportamos para dentro de nossos consultórios: o refinamento e a purificação de uma Psique para que ela supere os seus demônios e se torne cada vez mais límpida, cada vez mais indestrutível. Os Budistas tem um tratado, o “Sutra do Diamante” que também tem essa proximidade com a Obra Alquímica, pois busca dar à Psique o estado de pureza e resistência absolutas, como a do diamante. Esse é o trabalho que fazemos, ou tentamos fazer, todo dia, em nossos trabalhos e em nossas vidas. Fazemos isso conscientemente ou não.

domingo, 22 de setembro de 2013

O Erro Fundamental

Um dos últimos filmes do mestre japonês Akira Kurosawa foi produzido e financiado por alguns admiradores americanos, Steven Spielberg dentre eles. “Sonhos” de Kurosawa é um dos maiores filmes que eu já vi e consta, como o nome já sugere, de sonhos que o mestre teve e transformou em filmes, em episódios. No primeiro, um Kurosawa menino é alertado por sua mãe que não pode passear no bosque, onde a Grande Raposa passeia com seu séquito e não pode ser vista por olhos humanos. O menino, claro, não obedece a ordem, vai até os bosques e presencia, maravilhado, o desfile da Grande Raposa e sua comitiva. O que ele não esperava é que o tal desfile iria parar, quando os seres mágicos percebem o olhar do intruso. O menino volta correndo para casa, mas não pode mais entrar. Como ele cometeu aquele erro maior, estava agora sem um lar. A moça aponta para ele um arco-íris. No final do mesmo há um pote de ouro. Ele só poderá voltar para casa de posse de seu pote de ouro. A criança chora. Fim do primeiro filme.
Não acho que “Sonhos” tenha sido um sucesso comercial. Provavelmente, mal se pagou. Ser fiel à estrutura de um sonho não é algo muito filmável, mas o homem, já nos últimos anos de sua vida, não estava mais preocupado nem com vaias nem aplausos. Esse sonho, particularmente, fala de um tema mitológico recorrente, que é o “Pecado Mortal”, ou o “Erro Fundamental”. O tema que se repete é de um herói, ou uma heroína, muito senhores de sua capacidade que, em algum momento, comete um ato imprudente, por orgulho, por um Ego inflado, por tentar se equiparar ou ludibriar os deuses. Adão e Eva caíram na conversa da serpente para tomar para si o Fruto da Árvore do Conhecimento. Como o garoto do filme de Kurosawa, eles são impelidos pela curiosidade e pela fantasia se serem mais espertos que os seres divinos, que prontamente percebem a tentativa de logro. Adão e Eva saem do Paraíso da Inconsciência e entram no mundo da Realidade, onde existem o Bem e o Mal, a Vida e a Morte. Javé indica o próximo fruto proibido, que é a Árvore da Vida. Procuramos por ela desde então.
Na Odisséia, Ulisses começa a sua volta para a sua Ítaca, depois de uma magnífica vitória da Guerra de Tróia. Foi dele a ideia de “presentear” (dando origem à expressão “presente de grego”) os adversários com um cavalo de madeira gigante, onde ele e outros guerreiros ficaram escondidos para, durante a noite, abrir os portais que fechavam as fortalezas troianas. Os gregos venceram uma guerra de dez anos, voltando ricos para casa. Ulisses estava bonito na foto. Estava indo para casa com ouro, com um exército vitorioso e muita história para contar. Até que alguém teve a brilhante ideia de fazer um último saque, na ilha de Ísmaro. Lá foram os comandados de Ulisses saquear os bens, levar as mulheres, eliminando os homens. Uma prática comum na época e na vida corporativa de nosso tempo. Poderiam ter ido embora com mais este pé de meia. Mas não. Quiseram fazer uma última festinha. Foram atacados no meio da festa pelos habitantes da ilha vizinha, que não eram bestas e já sabiam que a melhor defesa é o ataque. Voltando para o mar, enfrentaram uma tempestade, as velas se rasgaram e eles se perderam em alto mar. Um pequeno erro, gerado pelo orgulho e inflação de Ego, que custou a Ulisses uma jornada para dentro do Desconhecido.
Todo dia fazemos parte dessas jornadas, que começam com um evento fortuito, um pequeno erro, e muda a direção da vida de uma pessoa. A sua vida é arremessada para o alto mar e a pessoa vai ter que procurar, dolorosamente, pela trilha perdida. Uma briga com o chefe, uma puladinha de cerca, um investimento temerário e as coisas desmoronam como um castelo de cartas, para nós humanos, ou para Eike Batista. Um pequeno peteleco, e tudo desmorona.
Estamos acostumados pelas escolas de catecismo a lamentar pelo Erro Fundamental de Adão e Eva, que reproduzimos em alguns momentos de nossa vida.Bobagem. O erro arquetípico nos coloca em busca do arco íris e do pote de ouro. Quem não procura por eles, fica na margem da própria vida. Como quem vive sentado encima do medo de errar.

domingo, 15 de setembro de 2013

Elena e As Sereias

Durante a sua longa e dolorosa jornada de volta à Ítaca, Ulisses desceu aos Infernos, enfrentou todo tipo de monstro. Várias vezes ele teve que atravessar, literalmente, passagens com seres monstruosos. Numa delas, as fragatas de Ulisses teriam que atravessar mares infestados não de tubarões, mas de seres ainda mais terríveis, as Sereias. Esses seres mitológicos, metade peixe, metade ninfas, emitem um canto indescritível que arrastam os marinheiros para o fundo do mar. Ulisses tampou os ouvidos de todos os tripulantes com cera de abelhas, e pediu para ser amarrado ao mastro, para não se atirar nos braços da morte. Foi só assim que ele atravessou esses mares, já que não ouviram os seus gritos implorando para ser solto.
Assistindo o filme-exorcismo de Petra Costa, “Elena”, o que me veio foi exatamente a Jornada Noturna de Ulisses. O filme descreve a busca da diretora pela memória de sua irmã, que dá título ao filme. Sabemos pelas resenhas que Elena se suicidou há mais de duas décadas. O filme será sobre a busca da memória, de uma irmã que morreu quando a diretora tinha sete anos.
Petra descreve a fase negra de sua mãe, que passou toda a sua adolescência com a sensação profunda, aterradora, de falta de significado na vida. Chegou a cogitar, seriamente, por fim á própria vida se não encontrasse seu caminho. Tentou ser atriz mas não seguiu na profissão. Na Minas Gerais dos anos sessenta, ela encontrou o seu marido, casou e lutou contra o regime militar. Foi salva de ir pegar em armas no Araguaia com a gravidez de Elena. Petra nasceu quando Elena já era uma pré adolescente que sonhava com o Teatro e a Dança. O sonho que a sua mãe não conseguiu realizar (em terapia sabemos que é sempre muito perigoso aos filhos os sonhos não realizados de seus pais), Elena começou a perseguir. Entrou para um grupo, o Boi Voador, aos 17 anos. Depois de um tempo, foi tentar a sorte na América. A solidão e a distância de sua família a jogaram em sua primeira Depressão. E pensar que nessa época eu já carimbava as minhas primeiras prescrições psiquiátricas. Com a separação de seus pais, Elena volta a Nova Iorque com a sua mãe e sua irmã. Foi lá que a sensação de vazio e de falta de sentido foram se tornando mais devastadoras. Um dia, após uma briga feia com sua mãe, saiu pela noite da Big Apple jurando que daria cabo de sua vida. Voltou depois de algumas horas, passou pelo psiquiatra, tomou medicamentos. O colega achou que suas variações de humor fossem causadas pela Bipolaridade. Elena se suicidou com um coquetel de medicamentos e álcool. Não usou psicotrópicos para isso e pelo que entendi demorou para ser atendida. Não há nenhum Pronto Socorro do mundo que não receba em todo plantão uma meia dúzia de mocinhas que tomam meia dúzia de Tylenóis e vão para o PS com cara de suicidas. Será que eles interpretaram a chegada de Elena dessa forma? Não sei.
Petra passou pela mesma jornada noturna quando estava às portas de escolher o mesmo caminho de sua irmã morta. Petra queria ser atriz e começou a ser tragada pelo mesmo silêncio que quase engoliu a sua mãe e dissolveu a sua irmã.
Petra descreve, em carne viva, como foi percebendo, tomando consciência, entrando e saindo da morte de sua irmã. Várias vezes, de diversas formas. O filme talvez seja uma operação alquímica de Separatio. Petra separa a sua trajetória das dores e das perdas de sua mãe e irmã. Nas cenas finais, ela sai de uma água uterina e respira. Profundamente. Ela respira um ar que é seu, uma angústia que é sua. Não tem mais que carregar as angústias de Elena, as mesmas que deram fim à sua vida.
Como na jornada de Ulisses, passamos por vários momentos em nossa vida em que ouvimos o canto doce das sereias, prometendo libertação e alívio de nossa maior angústia, que é o Devir. Pulamos do barco, por medo de não atravessar os estreitos nem ultrapassar as tempestades.
Não posso dizer que recomendo esse filme aos leitores desse blog. Só digo que é muito bom ver um filme quase caseiro (e nacional) chegar a esse nível de expressão, em tempos de “E aí, Comeu?”.’

domingo, 8 de setembro de 2013

A Maçã da Discórdia

Tenho falado nesses últimos posts de uma história particularmente cara a esse escriba, que é “A Odisséia”, épico grego escrito por Homero. Falei da jornada arquetípica do herói, Ulisses, distante muitos anos de sua terra natal, onde era rei e feliz com a amada Penélope, mas não o sabia. Nossa mitologia e nossas neuroses são tão helênicas quanto da mitologia bíblica. Ainda hoje tentamos resolver em nossas psiques os dilemas que enfrentaram os gregos. Pouca gente sabe, entretanto, como começou a encrenca que deu origem à Guerra de Tróia e à viagem de Ulisses.
Tudo começou no casamento do mortal Peleu com a deusa do mar, Tétis. Grande acontecimento no mundo da Mitologia. Éris, a deusa da Discórdia, foi barrada no baile. Parece lógico deixar de convidar uma deusa responsável pela discussão, fofoca e separação entre as pessoas, assim como é difícil imaginar uma cerimônia de casamento sem esses componentes. Éris não gostou nada nada de ter sido excluída. A sua vingança foi muito elegante: lançou no meio da festa uma maçã dourada, onde estava escrito: “Para a Mais Bela”. Hera, Athena e Afrodite imediatamente se candidataram a ficar com a maçã dourada. A primeira lição psicológica desse casamento: quando tenta-se reprimir a discórdia, ela volta com o triplo da força, bem no lugar onde menos se desejava. Hera, Athena e Afrodite representam características importantíssimas do Feminino que não podem ser dissociadas: Hera é a Grande Deusa, esposa de Zeus, a deusa do amor conjugal, a mais poderosa das deusas; Athena é a sabedoria, a capacidade de traçar estratégias com serenidade e lógica implacável; Afrodite é o princípio máximo da volúpia, do desejo, da paixão. Quando esses princípios atuam em conjunto, temos o Feminino em seu esplendor. Foi exatamente o que Éris quebrou quando lançou a sua maçã (para quem não sabe, a expressão “pomo da discórdia” deriva dessa passagem mitológica). As deusas, tomadas pelo desejo de possuir a maçã, pedem para Zeus decidir quem era a mais bela. Zeus é o mais poderoso dos deuses olímpicos, o senhor dos raios e trovões, mas não é besta. Não iria se meter em assunto desses. Recusou a tarefa, sabiamente. As deusas escolhem um mortal, o troiano Páris, que bem que tenta se esquivar da tarefa, mas, no final, acabou entrando na gelada. E sua escolha tem grandes implicações para a humanidade, até os nossos dias.
Páris poderia ter escolhido a Grande Esposa, os atributos da mulher companheira, que ajuda a construir a vida ao lado de um homem, se optasse por Hera. Escolhendo Athena, teria ao seu lado a Sabedoria e a Estratégia e poderia ser um rei conquistador e invencível. Mas como resistir à Afrodite? Afrodite ofereceu a Páris a mais bela de todas as mulheres, Helena, belíssima esposa do Menelau, que entrou para a história como corno, mas era um grande general. A escolha de Páris se parece com a escolha de muitos homens, sobretudo de uma certa idade, que trocam a esposa companheira por uma bela e jovem Afrodite. O rapto de Helena deu origem à Guerra de Tróia. Tudo por um rabo de saia.
Até hoje padecemos da escolha de Páris. Ou pior, ainda estamos presos àquela maçã. As esposas se queixam das jovens e peitudas Afrodites caçando seus maridos. As estrategistas e sábias ficam perdidas na selva de superficialidades que é nosso mundo da hipermídia. As pequenas Afrodites ficam perdidas entre lipoesculturas e toneladas de silicone, pois todo o seu poder de atração vai ser varrido pelo tempo. Os três princípios, ou atributos fenotípicos, segundo a Epigenética, quando separados, perdem a sua força e o Feminino acaba virando uma Panicat chacoalhando os quadris diante de câmeras em ângulo ginecológico.
Ulisses vai ter dez anos perdido em mares arquetípicos para encontrar em Penélope a beleza madura, a sabedoria e o companheirismo do Feminino. Ele vai ter que recuperar o estrago feito por Éris e sua maçã.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

O Tempo das Coisas

Posso não ser o melhor terapeuta, mas sou com certeza um bom contador de histórias. Frequentemente as situações que aparecem na prática clínica já apareceram antes na Mitologia ou no Cinema, que é a nossa fonte moderna de novas mitologias ou de mitos antigos requentados. Tenho falado nos últimos posts num Mito que me é particularmente caro, o da Jornada Arquetípica, particularmente a Jornada de Ulisses na “Odisséia”.
Lamento estragar o final da história, mas Ulisses se ferra o tempo todo em sua Jornada de volta a Ítaca. Depois de ganhar a Guerra de Tróia ele tinha tudo para voltar nos braços da torcida, mas acabou arrumando uma treta com Poseidon, deus dos Mares. Quando o seu único meio de transporte é por via aquática, não é boa idéia ser um desafeto do cara. Ulisses demorou vinte anos para voltar para casa, entre o período da Guerra e a sua Odisséia para voltar para a Ilha onde era Rei e tinha mulher e filho esperando por ele. Depois de várias escolhas desastradas e muitas, muitas perdas, eis que Ulisses perde tudo: seus amigos, o caminho de casa, seu exército, sua fragata. Ele vai dar, semimorto e náufrago, em uma bela ilha. Lá, ele é resgatado de seu sofrimento por mulheres belíssimas e pensa que está nos Campos Elíseos, não o bairro de São Paulo, mas o lugar dos bem aventurados, o Paraíso dos justos e dos guerreiros. Mas não era o caso. Ulisses não estava morto, mas tinha chegado a um lugar maravilhoso, que é a Ilha de Calipso, deusa maravilhosa, que logo se tomou de amores pelo náufrago. No filme “As Aventuras de PI”, um bom exemplo de uma Jornada Arquetípica, o náufrago Pi finalmente, (depois de experimentar as perdas e o sofrimento de fazer inveja ao Odisseu) decide se entregar para a própria morte. Pi se entrega para a fome e a cegueira e encomenda a sua alma ao seu Deus. Ele se despede de seu companheiro de viagem, o tigre Richard Parker. Quando acorda, encontra uma ilha toda coberta por uma planta doce, peculiar e por um monte de suricatos, que vão alimentar o náufrago e o tigre. Parece uma versão bastante piorada da Ilha de Calipso. Mas voltando à Odisséia: apesar de toda folga, todo o descanso e a vista repleta de mulheres maravilhosas, Ulisses não tarda em perceber que a sua jornada não chegou ao fim. Ele está em um lugar seguro, agradável, com uma belíssima vista de mulheres que são verdadeiras deusas. Ainda assim, ele sente saudades de casa. Tem a cara de pau de achar que vai voltar para casa depois de vinte anos e vai encontrar a esposa e o filho cheios de amor por ele. O incrível narcisismo dos homens.
Ao final do dia, Ulisses vai até a praia e fica olhando para os céus, procurando nas estrelas o caminho da bela Ítaca. Ele sabe que se reclamar com a bela e possessiva Calipso não vai sobreviver para contar a história. Um home que recebe a graça de se deitar com uma deusa não pode querer entrar numa de discutir a relação. Ulisses está num beco sem saída: o lugar é legal, a namorada é uma deusa mas o seu lugar não é ali. Como resolver o impasse?
Athena, deusa que esteve sempre ao lado dos gregos e de Ulisses durante a Guerra de Tróia, finalmente é tocada no seu coração de olímpica para interceder por Ulisses. Ela chega em seu pai querido, nada menos que o superpoderoso Zeus e faz chegar o recado que Ulisses estava pronto. O tempo tinha se cumprido. Zeus manda o seu filho, Hermes, para ele costurar um acordo com seu irmão Poseidon, para Ulisses finalmente poder voltar para casa. Depois de sete anos na praia, esperando, os deuses finalmente conseguiram ouví-lo e ajudá-lo.
Essa parte do Mito me lembra do conselho de Jesus “Peças e recebereis, bata e a porta se abrirá”. Não vem com um manual de instruções de quanto tempo vamos ter que pedir, nem o quanto vamos bater até a porta se abrir. No caso de Ulisses, foram sete anos de súplicas até a deusa resolver se mexer. Em alguns casos, pode demorar mais.
Gosto de pensar que esse mito como um todo, mas, particularmente nesse trecho, quando falamos em uma jornada estamos falando de uma longa travessia. Nesses tempos em que queremos tudo para ontem e à distância de um toque no I-Pad, o tempo de Ulisses na Ilha de Calipso representa, para mim, o Tempo das Coisas. O tempo entre desejar algo e a jornada que temos que fazer para encontrar o caminho. Sempre que, como Ulisses, eu me vejo perdido no meio do caminho, é só parar para descansar e olhar as estrelas. Elas mostrar-me-ão a direção de casa.

domingo, 1 de setembro de 2013

O Mito da Jornada e a Jornada do Mito

Na prática clínica, como na vida, damos mais atenção para as más do que as boas notícias. Naquela noite, no consultório do Morumbi, recebi a má notícia da recidiva de um Câncer de uma paciente querida. Ela me pediu uma palavra, e essa é uma situação difícil, procurar palavras exatamente onde as palavras são mais inúteis, ou traiçoeiras. Felizmente este psiquiatra calejado escapou dos clichês e dos lugares comuns. Não que isso faça muita diferença. Numa situação dessas a paciente só precisa desesperadamente saber que não está só naquela situação, que a mesma não é sem saída e que, vamos lá, vamos enfrentar, um dia de cada vez. Mas o que me ocorreu naquele momento é que a metáfora perfeita sobre o que viria pela frente é a da Jornada. O primeiro ciclo de tratamento, que incluiu cirurgia extensa e quimioterapias, havia sido atravessado há cinco anos. Agora teria início uma nova jornada, inesperada, perigosa e sem um roteiro claro ou previsível.
Soube depois que a nossa conversa era ouvida no viva voz, com toda família envolta do telefone. No pressure. Fiquei feliz de não ter minimizado o problema, nem muito menos ter mencionado a necessidade de motivação nem de pensamento positivo, nem essas bobagens que se falam, com a melhor das boas intenções, para as pessoas que estão aterrorizadas nesta situação. O melhor é se falar o básico, mas com uma metáfora que ajude na compreensão do que está acontecendo e do que está por vir. Essa é uma das funções do Mito, além da função de transformar a vida numa narrativa, como postado ontem nesse blog.
O Mito fornece uma espécie de imagem em 3 D do que está acontecendo, e que a pessoa amedrontada pode se espelhar em muitas outras pessoas que passaram pela sensação do medo diante da floresta escura ou do caminho incerto. Talvez a mais incrível jornada mitológica tenha sido a de Ulisses, ou Odisseu. A sua jornada começa em sua maior vitória, na Guerra de Tróia. Foi dele a ideia de construir o Cavalo de Tróia, que, pasmem, não é um artefato para inserir algum vírus no seu computador. Ulisses tinha sido decisivo para os gregos ganharem a guerra, tinha ficado rico com a vitória e iria voltar para a sua pequena Ítaca nos braços da torcida. Mas não foi bem isso que aconteceu. Ulisses passou duas décadas longe de casa, até conseguir voltar para os braços de sua amada e do filho que deixou bebê dentro de casa. Muitos acreditaram que ele estava morto, até a sua mãe morreu de desgosto na certeza que seu filho estava completamente perdido. Só duas pessoas acreditavam que a volta do guerreiro para a sua terra seria possível: o próprio Ulisses e sua esposa, Penélope. Justiça seja feita, o cachorro de Ulisses, só suspirou e morreu quando finalmente ouviu a voz de seu dono, vinte anos depois.
Começar um projeto, ou um tratamento, pode ser uma longa e acidentada jornada. Algumas vezes, uma Odisséia. Por isso é bom conhecer e lembrar do Mito, que pode servir como uma lanterna para os afogados.

Mitologias

O mitólogo Joseph Campbell foi a um programa de rádio para falar sobre o assunto de sua vida, a Mitologia e As Mitologias. O entrevistador, um caipira tão bronco quanto metido, saiu falando que os mitos eram histórias da carochinha que não tinham fundo nenhum de verdade. Campbell respondeu ao vivo que a definição estava errada, os mitos falavam de coisas tão verdadeiras e profundas como qualquer relato de nossa vida. O locutor irrompeu quase aos berros, dizendo que eram histórias mentirosas, Campbell bateu boca dizendo que não e eles ficaram vários minutos numa discussão dom tipo: “É mentira!”, “Não é mentira” até chegarem os comerciais. Queria ser uma mosca para estar lá e presenciar essa briga.
Semana passada eu comentei da necessidade que as pessoas tem de transformar a própria experiência numa narrativa. Isso pode ficar dramático na fila do restaurante por quilo, quando o caixa resolve transformar numa longa narrativa a sua saída de casa, pleno Domingão, para participar de um campeonato de bocha, modalidade esportiva da qual é dirigente. Confesso que tive muita vontade de entrar na conversa e lembrar de uma amiga, gaúcha engraçadíssima que acompanhava os torneios de bocha ( uma espécie de Curling dos pobres) do seu marido, com uma camiseta escrita: “Bocha é Adrenalina Pura”. Um protesto singelo das esposas. Acabei me contendo, enquanto o caixa terminava a narrativa interessantíssima sobre o golpe de frio que tomou nas costas durante o torneio de bocha. Qualquer comentário iria atrasar ainda mais a fila e, o que é pior, poderia puxar mais um “causo” e os pacientes esperando no consultório.
O homem é um bicho simbólico. A nossa capacidade de criar narrativas forma também o tecido dos mitos. Nelson Rodrigues dizia que no futebol o replay é burro, pois tira o espaço para a imaginação e a narrativa épica. O Brasil perdeu uma Copa em casa, a de 50, e conta o Mito que o lateral Bigode teria tomado uma tapona na orelha de um destemido uruguaio, sem esboçar reação. Imagino que nada disso aconteceu, mas a imagem mitológica simbolizou a nossa humilhação perante os uruguaios: em pleno Maracanã, levantaram o caneco e ainda ganharam no tapa. Bigode morreu jurando que nunca levou tapa. O que ele não percebeu é que o tal tapa já havia se tornado um mito, e com um mito não se discute. Ele concordaria com o locutor malcriado que dizia ser o mito uma história mentirosa, uma hipérbole da realidade, uma amplificação de nossos heroísmos, nossos medos, nossas vitórias suadas e derrotas mais abjetas. Somos criadores e repetidores de mitos. Vou falar mais sobre isso adiante.