domingo, 24 de novembro de 2013

A Ação e a Graça

Hoje fui a uma bonita e singela cerimônia em um Templo Presbiteriano, antecipando o Dia de Ação de Graças, que será na Quinta Feira dessa semana que agora se inicia. Uma amiga fez uma pequena coreografia para essa cerimônia e a apresentou como parte da mesma. Por um momento, fiquei meio transportado para um tempo em que a dança cerimonial fazia parte do processo de preparo da terra para a semeadura, depois da gratidão da colheita. Fico sempre desconfortável com qualquer pregador que faça promessas em nome do Senhor e que faça predições para colheitas melhores ou piores. Ouvi os oradores falarem sobre a gratidão que deve ser manifesta em todos os momentos e de como Deus deve se sentir quando não agradecemos por seus dons. Lembrei de um autor que dizia que, ao contrário de um Deus que nos fez à Sua imagem e semelhança, nós é que construímos a imagem de um Deus à nossa imagem humana. Um senhor barbudo que se incomoda com a nossa absoluta e consistente ingratidão. Lá vou eu pegar o bonde andando e querer ficar na janelinha. Já estou dando palpite no Thanks Giving.
Não acho que a Ação de Graças envolva agradecer pelas bênçãos, como um Oscar da divindade. A dança me lembrou a oferenda das Primícias, isto é, a Oferenda dos frutos da terra que cultivamos, desde o Gênesis, com o suor de nosso rosto. Oferecemos esse fruto como a celebração de uma alegria. Alegria da realização, que não pode prescindir do braço, do suor humano e da enxada. O que se oferece nas Primícias é o reconhecimento de que o trabalho e o cansaço deram os seus frutos. A dança das vestais, preparando a terra para a fecundidade, é a manifestação de uma relação verdadeira entre o Homem e o seu Criador. A relação não é de gratidão, nem de troca. O que o homem deposita nas primícias é a sua esperança. Essa é a terra bem preparada para o plantio: a terra prenhe de esperança daquele que planta e que quer colher. Penso que a verdadeira fé representa apenas a nossa capacidade de esperar que aquilo que semeamos com nossa esperança e suor um dia venha a dar seus frutos. Colocar a esperança no cesto e na dança é um gesto perigoso. O que chamamos de Deus não é um senhor grisalho que vai nos prover em todas as necessidades, ou que vai regar só a terra dos justos. Ele está na vida e no seu Mistério. As esperanças nem sempre serão atendidas e o esforço não será recompensado como imaginamos. Ainda assim, é bom colocar os frutos na mesa e pensar que eles são bons, porque honestos e verdadeiros.
Feliz Dia de Ação de Graças, mesmo para quem não dá a mínima para a data e nem sabe quando ela virá. Que não paremos de plantar, sangrar e colher.

sábado, 23 de novembro de 2013

Entrevista com os Vampiros

O vampiro Edward é uma fraude arquetípica. Ele é completamente o antivampiro. Atencioso, apaixonado, e sobretudo, capaz de atenção e entrega plenas para a mesma mulher, por toda eternidade. Bella é a garota sem graça disputada por um Vampiro e um Lobisomem na saga Crepúsculo. Escolhe desposar o Vampiro, com medo das pulgas. Edward continua fiel, apaixonado e pronto a morrer pelo seu amor. É uma fraude arquetípica porque é exatamente a inversão do que representa o Vampiro na psique e na vida da mulher. O Vampiro é o Andrógino, o masculino pouco diferenciado, o homem que seduz, suga a energia e a vida da moça para depois voltar para o mundo das sombras. Não há nenhum dia no consultório dos terapeutas em que a figura desse Vampiro não apareça, entre lágrimas e decepções. A mulher liga, manda mensagens, implora por sinais quando ele desaparece sem dó, buscando outros pescoços. O Vampiro é um homem imaturo, que quer o desejo e sobretudo o olhar de muitas, mas foge quando a mulher precisa de alguma presença humana, algum cuidado ou sinal de afeto. Quando está presente, ele é um homem apaixonado e intenso. Quando some, seu silêncio é gelado e implacável. Esse é o motivo de eu chamar Edward de fraude arquetípica.
Ganhei o livro da amiga Andréa Perdigão, “Descaso do Acaso”. A personagem principal, Cíntia, é uma jornalista de 38 anos que procura viver em paz com a sua solidão de mulher pós moderna, assediada por amigas e casais que querem apresentá-la ao “Mr Right”, ou o arquétipo por trás do vampiro, que é o do Príncipe Encantado. Cíntia reafirma que não acredita nesse Príncipe, não acredita em livros de autoajuda e sobretudo, passou longe de todos os livros da saga “Crepúsculo”. Ela recebe de sua editora a tarefa difícil de entrevistar pessoas sobre o tema da Felicidade. Cíntia se recusa a acreditar que o Acaso vai lhe proteger enquanto estiver distraída, mas vai sendo atraída por esse Acaso, como um vampiro que vai se instalando gradualmente em sua vida. Todos os seus entrevistados, depois de reafirmar a própria Felicidade, passam por acidentes e tragédias pessoais. Um casal de amigos apresenta um homem recém separado, Caio, que ela reluta em se entregar mas acaba, como Bella da saga Crepúsculo, irremediavelmente apaixonada. Uma sequência de pequenas coincidências vão conduzindo a sua vida exatamente para onde ela jurou que não iria.
Caio não é o vampiro Edward, nem o seu sucessor, o Christian Grey do “Cinquenta Tons de Cinza”. Não é um milionário em busca do amor verdadeiro. Tem dúvidas, está devastado por uma separação recente. Cíntia é a própria heroína pósmoderna tentando desesperadamente lidar com esse homem ferido: tem medo de sufocá-lo com a sua carência ou o peso imenso de sua espera. A idade que Andréa deu à sua personagem também é dramática, pois é a fase em que o tique taque do tempo aparece em sua urgência. Cíntia não tem filhos, não menciona essa lacuna no livro, mas sabe que Caio pode ser uma das últimas chances de ser mãe.
“Descaso do Acaso” fala de um mundo mais cru e menos encantado do que as comédias românticas ou as sagas de vampiros amorosos e lobisomens delicados. Cíntia é a mulher do nosso tempo, tentando lidar com o homem que recebe mas não percebe a sua generosidade. Um homem que se abre e se retrai com a mesma facilidade. E que tem medo de olhar nos olhos da mulher e dizer a sua verdade. Será que ela vai conseguir capturar esse bicho medroso? Será que vai, mais uma vez, constatar a ausência desse homem na vida da mulher descolada e independente?
Quem acompanha esse blog vai ter que comprar o livro, disponível no site da Livraria da Vila (e em todas as livrarias) para descobrir as respostas. Ou se abrir para novas perguntas.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Planeta das Macacas

Estava lendo um estudo em Neuroeconomia. Tudo o que se coloca um “Neuro” ou uma “Neurociência” na frente ganha imediatamente uma aura de respeitabilidade, mas esse é outro assunto. No tal estudo os pesquisadores introduzem a um pequeno grupo de macaquinhos um sistema de trocas: pequenas moedas ou fichas são trocadas por bananas e outras guloseimas símias. Depois de meses em que o nosso pequeno primo evolutivo aprende o valor numérico das fichas, ou seja, quanto mais fichas, mais bananas, vai que um pequeno e safado primata oferece uma ficha para a macaquinha jovem e irresistível. Ela depois de um tempo entende que a troca é por uma transa, rapidinha. Essa é a confirmação científica de que essa é realmente a profissão mais antiga do mundo. O sujeitinho passou fome mas não abriu mão da pegação. E a menina passou a ser remunerada pelos seus dotes.
A Revolução Sexual foi libertária para a mulher, mas tirou dela o poder que a pequena macaquinha descobriu com as suas fichas. O poder do não. O macho da espécie não precisa mais impressionar, declamar poesias, impressionar a fêmea para conseguir, depois de muito esforço, provar do néctar de seu sexo, ou de uma “prova de amor” (quando eu era moleque, lia tudo o que caía em minhas mãos, inclusive uma coleção de revistas femininas das casas das tias. Lá as moças ainda falavam se deviam ou não oferecer uma “prova de amor” para o namorado. Imagina só).
Outro dia eu dava a minha tradicional zapeada na TV a Cabo e me deparei com um documentário meio ginecológico de mulheres falando de sua sexualidade. Close up numa moça bonita que declara, solenemente, que evita dar para o cara nos primeiros encontros. Discutia o poder do não, para fidelizar o cliente, digo, o homem. Muda a câmera, close up na sua irmã gêmea, que declara que a regra é boba, a vida é curta e se ela quer dar de primeira, dá e acabou. Acabou emendando que a irmã passou meses para liberar para um cara, quando finalmente chegou o grande momento, o cara falhou. Muita expectativa para o rapaz. ( Na série do GNT, “Surtadas na Yoga”, uma moça comenta com a outra que as mulheres exigiram tanto que os homens sejam mais sensíveis que eles viraram um bando de mariquinhas. Acho que a moça fez suspense e o cara, na hora H, virou uma mariquinha).
As mulheres de hoje parecem a indústria fonográfica: não sabem direito mais o que e como vender. Perderam o poder da espera, do interesse gerado pela interdição. Amor e sexo em tempos de internet, que canseira. Pois o macaquinho acima citado tinha que passar fome para poder ganhar uma transa extra, já que a mocinha sabia que tinha o que ele queria, e não iria liberar de graça. Será que as feministas leram sobre esse estudo? Talvez seja a hora das revistas femininas darem uma boa olhada nessas pesquisas. Só para constar: estou com a primeira gêmea. Para ganhar a moça, precisa gastar as suas fichinhas.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Mente Plena

No último Congresso comprei um livro sobre Terapia Cognitiva e Mindfullness. Até agora tem sido uma decepção, já que tem mais Terapia Cognitiva do que Mindfullness, o verdadeiro motivo da compra.
Midfullness é uma forma de Meditação que exercita a mente presente e a atenção plena, duas coisas muito caras a esse escriba que vos tecla. Muito dos quadros psiquiátricos derivam de nossa capacidade, relativamente nova em termos evolutivos, de prever e antecipar o futuro. Isso permite que o Cérebro Racional inunde nosso Subcórtex, ou o Cérebro Emocional, com cenários possíveis de medo e ameaças. Até o comercial de seguros nos avisa que a vida moderna nos apresenta situações de risco, da moto tirando fina de nossa lateral a doenças, violência, acidentes e todo tipo de pesadelo que torna nosso radar algo sempre ativado, mesmo quando deveria estar desativado. Um dos efeitos colaterais desse estado é nosso estado de mente que a Psiquiatria chama de “Ansiedade Antecipatória”, isto é, um estado de atenção permanente às ameaças que podem vir do futuro. Na verdade, nem é um estado de atenção, mas de permanente desatenção. Temos basicamente dois tipos de Atenção Voluntária: uma Difusa, outra Focal. A Difusa é uma espécie de radar 360 graus, sempre detectando ameaças que podem ocorrer no ambiente. É um bom tipo de Atenção para se ter num campo com predadores escondidos ou numa patrulha no Afeganistão. Em nosso dia a dia, é uma atenção constantemente ativada pelo excesso de estímulos. É a atenção ativada pelo funcionário ao seu lado, respondendo um e-mail, ouvindo música no MP3, atualizando seu aplicativo do celular para encontrar garotas e curtindo uma foto no Instagram. Tudo ao mesmo tempo, com qualidade proporcional. A Atenção Focal está meio fora de moda, mas pode ser observada em uma criança completamente absorta em uma tarefa, como acabar de pintar uma figura; ou observe um gato à espreita de um pássaro no jardim: esses são exemplos quase perfeitos de Mindfullness. Uma Atenção Plena, absoluta à uma coisa só, com todo o seu Ser. Nada acontece à sua volta, nada invade o Pensamento. Só há o objeto da Atenção no meio do campo perceptual e nada mais à sua volta.
Mindfullness é estar inteiro no que vemos e fazemos. A tarefa mais difícil para atingi-la é cessar o infindável diálogo interior e a torrente de pensamentos que fica inundando nossa mente, o tempo todo, criando cenários sobre como deveria ser o futuro, o que gostaríamos de ter, as tarefas do dia seguinte, encontrar o amor verdadeiro e o pior, procurar por alguém que finalmente nos dê Atenção. A mesma Atenção que desperdiçamos no meio de várias mídias e vários pensamentos sobre o Futuro.
A forma mais desenvolvida e de fácil transmissão de Mente Plena, ou Cheia, o que seriam formas de tradução de Mindfullness seria o treino de Presença, de inteireza em tudo o que se faz. Pretendo estar presente nesse blog e na tarefa de desenvolvê-lo. A Atenção Plena é a continuidade desse estado de presença. Nos vivemos na era dos recalls, o que significa que muita gente comete erros terríveis fazendo as coisas sem a Atenção necessária, fruto da atenção excessivamente difusa ou diluída na displicência. Atenção plena é um artigo em falta e eu garanto que é uma grande vantagem competitiva, seja para quem quer ser bem sucedido na profissão ou na busca de um grande amor. Todo mundo quer atenção, mas pouca gente é capaz de oferecê-la em intensidade, para si e para o Outro.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Adeus Também Foi Feito pra se Cuidar

Um assunto importante em qualquer consultório de Psiquiatria e Psicologia é a separação. Muitas caixas de lenços de papel são consumidas no processo, ou nos processos de separação. Fico me perguntando se não deveria haver uma espécie de cuidado que um casal poderia ter com ele. Normalmente, as separações não são consensuais. Algumas, a minoria, terminam em tragédia. Sempre há o parceiro (a) que toma a iniciativa e o outro (a), renitente, que faz de tudo para evitar que a relação termine. Uma vez atendi um homem que me pediu, meio embargado, para ser submetido a um Exame Psíquico completo para decidir se estava mentalmente são para decidir pelo divórcio. A mulher o manteve anos dizendo que queria sair da relação porque era imaturo, neurótico, fixado na mãe ou com qualquer problema edípico para querer ir embora. Deixou de aventar apenas uma pequena mas importante hipótese: a de que ele não a amava mais. O homem quase pediu um Atestado de Sanidade para poder arrumar as malas e ir para a casa da mãe, o que seria entendido como mais um sintoma de fixação edípica. Reassegurei que estava em condições psíquicas para tomar a sua decisão qualquer que fosse. Ele saiu pálido de alívio pela minha porta e nunca mais voltou. A esposa deve tê-lo conduzido a outro Psiquiatra, imagino.
Uma das coisas que eu me pergunto é se não poderia haver alguma etiqueta ou acordo de bom comportamento durante uma separação. Até judeus e palestinos tem métodos de negociação e de construção de quase acordos. Isso não ocorre entre casais. Uma coisa particularmente incômoda é quando um dos parceiros declara que não quer mais, quer terminar tudo. O outro, ou a outra, pede, implora por uma nova chance. Reconhece os erros e tenta se transformar em uma semana em tudo que deixou de ser no decorrer dos anos. O parceiro, ou parceira, renitente tenta de tudo, o outro se fecha em copas. Este pedaço é particularmente difícil. Uma pessoa tenta, de toda forma, retomar contato, saber o que está acontecendo, se agarrando nos cabelos, nos pelos, no pijama, nos seus pés, como nos versos atrozes do Chico. O outro fica em silêncio. Esse é o ponto. Este silêncio. Temendo magoar ainda mais a pessoa ferida ou, mais provavelmente, temendo alguma nova cena, o desespero de um lado encontra o silêncio do outro. Eu fico me perguntando, sabendo que não há resposta para a pergunta: será que não dava para cuidar um pouco do outro, ou da outra, que está sendo abandonado (a)? Que requinte de crueldade, deixar o trabalho de elaboração para o outro, sem ajudar em nada, sem colocar com clareza o argumento mais irrespondível, que é: Estou indo embora porque não amo mais, não quero mais ficar. Fica aquela linguagem cifrada, aquele “não é você, sou eu” que acrescenta mais um abandono ao abandonado (a), que é o abandono do silêncio ou da desculpa esfarrapada. Em outras palavras: será que daria para cuidar da pessoa que está sofrendo, tomar essa responsabilidade? Por enquanto, não. A nova modalidade é despejar a pessoa no consultório do terapeuta ou do psiquiatra, quase com a plaquinha: “Fique com ele, ou com ela, doutor, que estou saindo fora”. Como deixar um beagle na porta do Instituto Royal.

domingo, 3 de novembro de 2013

Esculpir a Vida

Ontem dei uma entrevista sobre um assunto particularmente difícil, que são as Trindades Mtológicas. Não sou um mitólogo, como Joseph Campbell nem como Jung. Falar sobre trindades é falar sobre algo bastante abstrato, e o abstrato anda muito fora de moda. Mas alguma coisa muito boa surgiu na conversa.
Os primeiros deuses que se tem notícia, eram todos relacionados com os elementos e os homens pré históricos criavam deuses diante do medo desses elementos. O Sol era uma divindade. O Trovão. O Bisão e outros animais. A Terra. O Mar. Nas pinturas rupestres ainda podemos ver o assombro e o respeito desse homem, escondido nas cavernas e pintando o que via e o que lhe assombrava: a alegria pelo nascer do Sol e o terror com o cair da Noite. Ainda na mitologia grega, ou na Umbanda, podemos testemunhar a presença dessas divindades que parecem porta vozes desse mundo natural, onde o homem não se sentia separado da Natureza nem o seu Senhor.
Com o passar dos séculos ou dos milênios, os deuses e as mitologias foram ganhando rostos humanos, com o barbudo Zeus trovejando os seus raios ou o pequeno Davi derrotando o gigantesco Golias. Cada povo começou a criar para si a sua própria Mitologia. Se eu tenho medo da tribo vizinha, vou pedir ao meu deus da Guerra que me dê coragem. Se eu vencer o meu inimigo, ele vai adorar o meu Deus e eu vou queimar os seus ídolos. Bin Laden falou em entrevista há poucos anos que a Guerra Santa termina quando o último infiel se converter a Alá. Como podemos ver, o que parece ter acontecido há milênios ainda bate à nossa porta e à nossa Psique.
Falei de uma trindade que me é muito cara, e que já mencionei nesse blog, em post anterior: Bhrama, Vishnu e Shiva. Bhrama constrói, Shiva destrói e Vishnu tenta eternamente equilibrar esses dois princípios. Bhrama antes de virar cerveja, era o princípio da Criação e do Potencial Puro. Hoje ele receberia o apelido de Vácuo Quântico. Tudo pode surgir e se materializar, a partir de Bhrama. Mas ele precisa de Vishnu para materializar essa potência. Como os deuses precisam do homem para existirem e serem amados. Era uma vez um jardineiro, que cultivou o jardim com amor e paciência, adubou as plantas, matou os parasitas e arrancou as ervas daninhas. Uma mulher que passava pelo local ficou maravilhada diante da beleza do jardim e louvou a Deus por ter criado plantas tão maravilhosas. O jardineiro não se conteve e respondeu: “Moça, a senhora precisava ver isso aqui quando era só Deus que estava tomando conta...” . Bhrama está em toda criação, em todo potencial que a Vida tem de se multiplicar. Mas é Vishnu que vai trazer o Incriado para o estado de Manifestação. Como a mão sábia e paciente do jardineiro, Vishnu vai fazer o trabalho duro de dar forma para essa criação. Uma característica de pessoas talentosas, mas imaturas, é saber que tem o potencial, tem a possível capacidade de receber e dar forma à Criação, mas não fazem o trabalho sujo da materialização. Tudo é potencial, mas para o potencial ganhar vida é preciso banhar a terra com o suor e com a dor dessa Materialização. Foi isso que o jardineiro, em sua simplicidade maliciosa, quis dizer para a senhora.
Finalmente, chegamos em Shiva, Shiva é o deus da Destruição. Ele pode parecer ao desavisado como aquele moleque invejoso que vê os meninos fazendo um belo castelo de areia e que aproveita quando eles vão se banhar para chutar a obra e destruí-la. Mas não é isso, não. Shiva destrói o que está velho, o que já está estagnado e produz o eterno movimento da vida, que não pode existir sem a Morte. Costumamos imaginar que Shiva é o Mal, ou o próprio Demônio destruindo e atrapalhando os planos da Criação. A Morte hoje é o grande mal, uma doença que nossa Técnica promete erradicar deste mundo. Isso seria uma pena, pois não há ciclo de Criação que possa se desfazer da Destruição. Nem Vida que possa se aperfeiçoar sem a Morte.
O Bem e o Mal andam entrelaçados, dentro e fora de todos nós. Usar isso para Criar o Novo é tarefa para poucos, pois chutar o castelo de areia é realmente mais fácil do que dar forma a ele. Talvez seja essa a tarefa de uma vida: dar forma à areia amorfa, esculpir uma vida dia após dia e depois deixar que o mar venha e comece todo o processo de novo. Deixamos na areia uma marca invisível, para que as mãos que vierem criem formas cada vez mais complexas na areia informe.