quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Três Caminhos

Aproveito esses dias de folga para acabar alguns dos dez livros que estão inacabados em minha cabeceira. Um deles é “O Monge e a Psicanalista”. Não sei se o título aproveita o best seller “O Monge e o Executivo”, uma tentativa pop de aproximar alguma espiritualidade da prática da liderança nas corporações. Este encontro entre uma psicanalista francesa e um monge beneditino, nos anos sessenta, dentro e fora do mosteiro, na agradável casa de amigos em comum, é bem diferente. É um embate amoroso, mas inconciliável entre duas formas diferentes de fé, a Cristã e a psicanalítica, embora no limite as duas busquem a mesma coisa, que é a diminuição do sofrimento humano. Mas não vou me enfiar em questões dessas diferenças, que renderam algumas cacetadas da psicanalista judia no monge cristão. Vou falar de uma questão importante, levantada pelo monge, que serve como reflexão no último dia do ano.
O livro não é fácil, assim como o debate, excessivamente intelectual e francês, o que cansa de vez em quando. Quando estão falando sobre Rimbaud, poeta muito caro a ambos, o monge afirma que a frase deste poeta: “O Eu é Outro”é, na verdade, uma afirmação do homem inteiramente só, no seu eterno narcisismo. Não sou eu quem vai fazer a leitura dessa frase/equação simbólica, mas a entendo como a busca infinita pelo Eu que está fora de nossos pensamentos, fora de nosso campo de Ser dedicado aos nossos medos e inseguranças. O Outro que sou Eu é o Ser maior que nos habita e de vez em quando, muito de vez em quando, se manifesta. Pois o monge achou que a frase contém toda a miséria do Eu perdido dentro de si mesmo, que não busca o encontro. Deus se faz no encontro, o que poderia ser descrito pela equação “Deus é Outro”, isto é, o Infinitamente Outro que encontramos, ou não, em nossa busca. A psicanálise, que trabalha o encontro do sujeito com a sua verdade íntima seria, por esse raciocínio, a maior das perversões, pois coloca esse Eu perdido dentro de si e apartado do Outro, que é o irmão a quem eu devo amar e encontrar. O psicanalista se retira desse encontro uma vez que não responde amorosamente ao paciente, mas possibilita, em seu silêncio, essa escuta do Outro que sou Eu. Para quem está achando esse texto difícil, sugiro não ler esse livro.
Para me socorrer nesse diálogo que não é um diálogo, vou para o Budismo, de novo. Sei que as minhas incursões são perigosas e estrangeiras, outro dia levei um pito de um leitor desse blog porque escrevi Mindfulness errado. Mas vou continuar me metendo a besta, é uma característica minha, ou do Outro que não sou Eu.
O Budismo fala de três sendas, ou caminhos que podem te levar à Iluminação : Buda, Darma e Sangha. Isso resolve esse debate. O caminho sem dúvida belo que o monge descreveu é Sangha. O Novo Testamento tem a frase: “Quando dois ou mais estiverem reunidos em meu Nome, lá estarei entre eles”. Ponto para o monge. Ou para o Sangha: a experiência do encontro é a experiência inicial do divino em nossa vida. Mas Jesus também passou quarenta dias no deserto, para encontrar quem ele queria, e não queria, dentro de si. Esse é o Buda. Jesus também pediu no Monte das Oliveiras para ser poupado de todo o sofrimento que viria, mas acabou percebendo que precisaria viver a dor e, sobretudo o Mistério, que seria o seu caminho. Este é o Darma. Podemos passar por esses caminhos, todo dia. Ou por nenhum deles.
Buda é o caminho do encontro profundo com o Infinito, que está dentro de cada um. A Meditação é uma das formas de aprofundar esse Encontro. É uma busca pessoal e solitária, contrária a o que imagina o monge como caminho perfeito. Sangha é a busca do Divino, ou do Transcendente, nos olhos do Outro, no encontro amoroso com os amigos ou com os irmãos que partilham da tua mesa. Darma é a manifestação de sua missão ou vocação profunda nesta vida, que te empurra a levantar da cama e jogar a sua parte desse jogo que não conhecemos direito as regras nem seu resultado. Todos esses caminhos podem te levar a Roma, ou a um lugar fora de nosso Eu egoísta. Todos esse caminhos podem ser praticados neste ano que se inicia. Boas Entradas (e Boas saídas) para todos.


quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Perda de Alma

Este blog já passou por outros Natais, e chegando à véspera ou ao dia de Natal, é um tanto difícil para um junguiano deixar de falar da belíssima Mitologia Cristã, particularmente do Mito da Natividade. Quem quiser pode procurar esses posts pelos termos da Natividade ou do Mito Cristão. Hoje não vou escrever sobre isso.
Uma dificuldade ou, uma potencialidade do trabalho com a chamada Psicologia Profunda é trabalhar num mundo onde não há mais silêncio, ou, no limite, não há mais Mundo Interno. Tudo é exteriorizado ou exteriorizável. Lutos, amores, alegrias, tristezas, morte, vida, tudo pode ser transmitido em Tempo Real na nuvem. Já falei sobre isso muitas vezes. O resultado, num mundo onde tudo corre e é consumido rapidamente, é um tempo em que as pessoas perdem a sua Alma. A própria Alma passa a ser dada como inexistente, ou reduzida ao Marcador Somático de Antonio Damásio, uma parte sensitiva de nossa Cognição que nos dá a sensação de sermos algo. Não é mais o “Penso, Logo Existo”, mas o “Percebo, Logo Sou”.
A epidemia de Depressão, Obesidade, Deficit de Atenção e Ansiedade está, na opinião deste escriba, inteiramente correlacionada com essa perda de Alma. A sensação de correria sem objetivo leva a Desatenção como um grave sintoma de nosso tempo. Acidentes, tragédias, catástrofes todo tipo de doença deriva deste senso de correria desatenta. Os exemplos estão todos por aí: enfermagem injetando café com leite na veia de uma idosa, acidentes cirúrgicos, médicos operando o joelho errado, mães esquecendo o bebê no carro para morrer de desidratação e hipertermia, exemplos diários e cada vez mais dolorosos.
Na prática clínica, a Alma pode começar a pedir a nossa atenção em pequenos e suaves sinais de que algo não vai bem: noites mal dormidas, irritabilidades e desconcentração. Uma sutil sensação de que algo não está encaixado ou fora do lugar. Os sintomas e as sensações podem evoluir, e a Alma, que começa sussurrando, pode irromper aos berros, numa crise de Pânico, num nódulo maligno de Mama ou Tireóide, um acidente grave de trânsito ou um divórcio. Podemos ouvir os seus sinais, ou tentar suprimir os seus berros, mas a tragédia de nosso tempo talvez seja a própria ausência do conceito que temos uma Alma e ela deva ser considerada em tudo o que fazemos, como uma conselheira ou breque dessa correria.
Quando alguém chega ao consultório em diversos níveis de dor e sofrimento psíquico, aquilo que pede como ajuda pode ser visto como alguma disfunção de metabolismo cerebral e corrigido com medicamentos. Se a orientação for mais profunda, o paciente pode rever as suas prioridades, melhorar a dieta, perder peso, fazer exercícios, desacelerar. Se o trabalho realmente engrenar, a doença poderá ser vista como um mergulho na direção de um significado mais profundo da própria vida e da saída do circuito oval onde corremos não se sabe para onde. A maior parte volta para o circuito com o auxílio luxuoso de alguns medicamentos de tarja vermelha e preta.
Uma paciente de Jung contou um sonho desagradável em que estava numa espécie de lodaçal, ou coisa pior, enfiada até o pescoço e sem conseguir sair. Na borda estava Jung. Ela pensa: “Quer ver que, em vez de me tirar daqui, esse puto vai me mandar mergulhar?”. Dito e feito. Ele falou, sem dó: “Mergulha”. Como se pode perceber, não é fácil ser junguiano neste século. Mergulhar na própria lama não é para qualquer um. O que será que tem do outro lado?

domingo, 21 de dezembro de 2014

Jornada Incerta

Mais um intervalo entre os posts. Este período é difícil para os psiquiatras, como escrevo todo ano. O único lugar onde o Natal é uma reunião de pessoas felizes, em famílias grandes e unidas é nos comerciais de Peru Sadia. A data de nascimento do menino Jesus foi arbitrariamente fixada em 25 de Dezembro, o que faz com que a data do nascimento da Criança Divina coincida com o final do ano. Um símbolo de nascimento de possibilidades com outro de final de ciclo. Para os psiquiatras, prevalece o sentimento de final de ciclo, e quem está se arrastando em uma Depressão ou uma crise existencial severa pode achar que não vai querer começar um novo ano. É uma época acidentada e perigosa.
As pessoas não ficam mais generosas nem desarmadas neste período. Ficam antes estressadas com as compras de última hora, com a sensação de que este Natal está mais magro do que no ano passado e que o próximo amo será pior que esse. Duvido. Ficamos hipnotizados com as mensagens pessimistas da mídia e os profetas de plantão nunca são cobrados por suas previsões catastrofistas. Muito pelo contrário. Ceticismo dá um ar de rigor científico e realismo aos comentaristas e ninguém em sã consciência consegue fazer uma previsão otimista para este país no ano que vem. Pelo menos não vamos passar um semestre esperando pelo Apocalipse na Copa do Mundo ou vamos ficar sentados no dinheiro esperando que o PT perca a eleição: vamos ter que investir, empreender, inventar, enquanto muita gente fica à margem justificando a própria covardia. Vamos ter que botar o pé na estrada e ganhar o dinheiro com honestidade, pois a gigantesca maioria desse país ganha o seu pão com trabalho, não com negociatas com empreiteiras ou estatais. A sensação global de avacalhação tem mandado muita gente boa para o exterior ou para a apatia. Apatia não resolve nada.
Hoje estava em uma conversa no Skype e citei uma passagem de Joseph Campbell, maravilhoso estudioso de Mitologia americano que morreu na época que eu engatinhava em meus estudos junguianos. Campbell foi entrevistado por Bill Moyers numa série maravilhosa chamada “O Poder do Mito” (já falei dele em outros posts). Foi uma série de entrevistas que deram a oportunidade para este homem falar da obra de sua vida e dos mitos que a animaram. Uma das inúmeras histórias foi sobre uma cena do “Star Wars”, em que Luke Skywalker está esperando para iniciar sua viagem no hiperespaço. Ele está numa espécie de bar cheio de alienígenas, bebendo um drink futurista enquanto espera a sua vez antes de iniciar a sua Jornada. Todos estão lá, ansiosos, esperando pela sua vez. É uma cena banal e extemporânea nesse dias de computação gráfica e efeitos 3 D nos filmes. Campbell viu grande beleza nessa cena. A Jornada do Herói é incerta e implica em mergulhar no inesperado, no desconhecido. Muita gente hoje fica encalacrada nesta antessala e nunca empreende a sua jornada, sempre por razões muito plausíveis, como as incertezas da Economia, a impressionante incapacidade dos governantes de gerar uma visão compartilhada com a população produtiva, que paga os impostos e as propinas na Petrobrás. Nossa psique macunaímica tem uma grande resistência às jornadas arquetípicas e à construção de novos projetos e novos futuros. É mais fácil ficar à beira da estrada gritando que não vai dar certo.
A Natividade também é um mito belíssimo de uma jornada incerta, uma jornada de um jovem, sua esposa adolescente e o menino que ela traz em seu ventre. O seu nascimento é cercado de vários perigos e dores, mas o caminho vai se fazendo na medida em que o burrico anda passo a passo para Belém. E sem GPS. Sobretudo, sem garantias.

domingo, 7 de dezembro de 2014

Infecções Psíquicas

Uma situação angustiante na prática clínica é presenciar os quadros em que a pessoa que procura ajuda e que fica presa num emaranhado de pensamentos, geralmente, pensamentos negativos a respeito de si ou do mundo. Nada do que se fala ou se faz possibilita o rompimento daquela cadeia de formas-pensamento que capturaram aquela mente de maneira quase permanente. O mais difícil é criar uma perspectiva que o sofrimento está sendo causado por um Sistema de Crenças, um Sistema de Pensamentos que pode estar lá há muito tempo, mas ainda assim é apenas um emaranhado de pensamentos que se reproduzem como um vírus em nossa Psique. Vou dar um pequeno exemplo: estava lendo um pequeno livro budista que eu não consigo terminar, portanto, estou sempre voltando para o seu começo. Provavelmente não vou conseguir lê-lo inteiro, por questões difíceis de precisar: não sei se o livro é chato ou se eu sou chato. Podemos ser ambos chatos, ou a parte do começo seja a que eu queira repetir. Não tenho uma opinião definitiva sobre o assunto, como podem notar. O fato é que o autor descreveu uma situação com um monge de seu mosteiro que me fez pular na cadeira: esse monge tinha um pequeno centro de meditação e formação, que foi próspero e teve algum sucesso durante algum tempo, depois passou por alguns infortúnios, como um pequeno incêndio e foi perdendo adeptos, até ficar inoperante, como as vídeolocadoras ou as empresas de películas fotográficas. O autor do livro descreveu que esse monge, como muitos executivos que são substituídos por profissionais com a metade de seu preço e idade, passou a sentir um cara muito azarado. Ele dizia que não conseguia ter sorte desde a sua infância. As pessoas não deveriam confiar projetos para ele, pois simplesmente ele não conseguia ter sorte e os projetos tendiam a ir para as cucuias em sua mãos. O tal monge carequinha e fofinho foi adoecendo de infelicidade e morrendo. Cacete, o psiquiatra aqui presente pensou, o cara teve uma depressão e foi afundando dentro dela até se apagar. Meditação, dieta vegetariana e uma vida numa comunidade afetiva e protetora não impediram o carequinha de afundar numa depressão que criou vários incêndios em sua vida interior e exterior.
Se estivéssemos em um Congresso de Psiquiatria eu já ouço os comentários de que obviamente o monge teve um quadro depressivo, derivado do estresse de comandar um núcleo de meditação e da sua condição genética. A falta de tratamento fez a condição se complicar, causando várias perdas de performance e isolamento social, até a evolução negativa final. E olha que os colegas estariam certos, ou estariam interpretando o quadro de maneira criteriosa. Mas estariam perdendo um detalhe importante, que geralmente fica na conta dos pensamentos pessimistas gerados pela Depressão: o pequeno monge teve uma Infecção Psíquica, que começou com um foco inocente e foi virando gradualmente uma infecção generalizada, como vemos tantas vezes em nossa prática clínica. Essa forma-pensamento que estava na mente desse monge deve ter se implantado em sua infância, quando olhava as outras crianças jogando e pensava que ele tinha nascido para não ter sorte. Esse pensamento ficou implantado em suas redes neurais e deve ter criado os seus filhotes em sua vida, criando um sistema com um Pensador e um Comprovador. O Pensador afirma: “Eu nasci para não ter sorte”. Cada pequeno infortúnio é usado pelo Comprovador para confirmar o que o pensador afirmou. Nos gibis de minha infância, essa dupla era representada por primos engraçadas, o Pato Donald e seu primo, Gastão. Gastão passa o tempo todo contando vantagem sobre a sua sorte. Se o pneu de seu carro fura, uma pata maravilhosa passa na estrada e lhe dá carona. Gastão se diverte: olha como eu tenho sorte. Donald, por sua vez, está sempre emputecido por sua falta de sorte. Se o pneu de seu carro fura, ele abre o porta-malas e vê o seu estepe também furado. Ele esbraveja e começa a cair uma chuva, com uma nuvem sobre a sua cabeça. E assim vai a historinha. Quanto mais se irrita com a sua má sorte, mais azarado ele se sente, e mais infortúnios acontecem. Parece familiar?
Uma visão de Psiquiatria e mesmo de Medicina mais profundas deveria começar a interferir no Sistema de Crenças disfuncionais das pessoas. Isso não significa distribuir manuais de Psicologia Positiva ou de Autoajuda, mas ajudar as pessoas a identificar essas infecções psíquicas e aplicar o entendimento e o trabalho interno para identificar, questionar e criar alternativas para esses sistemas de pensamento. A doença é uma oportunidade para tratar essas, e outras, infecções. Muitos médicos e muitos pacientes passam batidos por essa oportunidade.

domingo, 30 de novembro de 2014

Psicologia Positiva e Nem Tanto

Como eu sou um tanto lento com tecnologias, internet e provavelmente serei o último a ter Facebook neste planeta, virei um fã tardio dos TEDs, que descobri que é uma sigla de Tecnologia, Entretenimento e Design. Assistindo a uma de suas aulas, me deparei com o tema da Psicologia Positiva. A explanação do colega era consistente e bacana, mas tive ímpetos de pular para o próximo TED que explicava como as pessoas ficam dependentes de uma seita. A Psicologia dita Positiva (não que as outras Psicologias sejam Negativas, suponho) questiona a ênfase excessiva da Psicologia na visão da Doença; as pessoas se sentem desconfortáveis na presença de Psis em geral (psiquiatras e psicólogas, por exemplo) porque imaginam que eles tem uma espécie de visão de Raio X que vai detectar todas as taras e as loucuras que escondemos em nosso íntimo. A Psicologia Positiva não teria em seu foco deixar as pessoas menos infelizes, nem caçar traumas ou loucuras, mas ajudar o ser humano em sua busca incessante pela Felicidade. Pois é aí, justamente, que a porca torce o rabo.
Nossa busca incessante pela Felicidade é uma fonte permanente de Infelicidade. Os homens esperam a Felicidade no volante de uma Ferrari, as mulheres buscam por um Príncipe tão Encantado quanto descolado e muitos lenços de papel são gastos nessa busca incessante. Nada é mais falso do que a ideia de que somos criadores de nossa realidade. Por outro lado, nada me parece mais verdadeiro. Uma afirmação que pode ser absolutamente errada ou certa, sem dúvida está na fronteira do paradoxo. O Paradoxo, senhoras e senhores, é exatamente o ponto onde navegam muitas das psicoterapias bem feitas. A felicidade como busca, ou como exercício, pode ser o tanto o caminho ou a cenoura que faz os burros puxarem a carroça do Capitalismo e da Cultura de Massa.
Estranhamente podemos acabar defendendo o direito de todo ser humano à sua própria Miséria. A vida é feita de Mistério, e o Mistério está por traz de muitas de nossas buscas, como o de Conhecimento, Justiça, Sabedoria, Iluminação Espiritual ou Paz de Espírito. Talvez o sofrimento intrínseco à nossa vida consciente seja também um direito. A busca incessante de prazer como fonte de Felicidade já foi contraindicada por muitos sábios e iluminados, mas a Psicologia Positiva não se opõe à busca de Prazer como fonte de Felicidade. Eu, particularmente, não me oponho à experiência prazerosa da vida ou da passagem do tempo. Passamos metade da vida com medo de viver e a outra metade com medo de morrer. Medo da passagem do tempo, medo do que ele nos reserva. Medo da felicidade, ou da infelicidade. O prazer não reduz o medo. Muitas vezes, aumenta o medo de ter e de perder.
A excessiva ênfase em nosso tempo das autos: autoestima, autodesenvolvimento, autoexpressão, autoajuda e quantas autos quisermos acrescentar, não vem trazendo muita felicidade para quase ninguém, com exceção do autores de autoajuda. Nosso corpo, nossa psique, nossa felicidade é um reflexo do que fazemos com nossa vida e nossa Psique. Nossa tarefa é equilibrar saúde mental, econômica, afetiva, física e espiritual em apenas uma encarnação. Felicidade é um efeito colateral desta construção. Uma Psicologia que se entende como Positiva é a que ajuda o Sujeito não apenas a buscar, mas antes entender o equilíbrio delicado de todas essas saúdes. A Felicidade é uma vivência construída interna e externamente. Como já escrevi em outros posts, é afinar o instrumento, de dentro pra fora, de fora pra dentro (como a música já cantava).

domingo, 23 de novembro de 2014

Dependentes

Estava conversando numa sessão sobre a possibilidade de aumentar o número de sessões, já que o assunto estava ficando mais bacana e as visões internas, as introvisões que chamamos de Insight, estavam se tornando mais ricos e mais presentes no trabalho. Veio a dúvida se aumentar a frequência das sessões não seria criar uma dependência do terapeuta. Esta é uma questão que vira e mexe aparece em nossos sofás terapêuticos: a indústria da terapia, seja medicamentosa ou psicoterápica, busca, pelo menos a nível inconsciente, induzir uma espécie de dependência nas pessoas? Essa indústria é uma máfia silenciosa que captura as pessoas para dentro de uma bolha onde o remédio e a sessão serão drogas pesadas, que induzem mais e mais uso (e abuso)?
Assisti recentemente um documentário sobre o que aconteceu em nossa sociedade com a substituição da dieta vegetal de nossa vida agrícola para a dieta com forte presença da proteína animal, ou da alimentação baseada na carne. Os livros de Medicina do início do Século Vinte nem tinham capítulos sobre Infarto do Miocárdio e a Doença Coronariana era praticamente inexistente. Era quase um evento raro, assim como a Obesidade. Com a troca da dieta baseada em vegetais e grãos para o senso comum que não há como eliminar a carne da dieta e quanto mais carne melhor, as doenças cardiovasculares foram se tornando as superestrelas da Medicina. Vamos chegar à idade madura com pílulas para baixar o Colesterol, controlar o Diabetes e a Hipertensão, e tudo isso está fortemente correlacionado com a nossa dieta. O uso progressivo de antidepressivos e ansiolíticos também deve estar correlacionado com esse tipo de alimentação, que nas últimas décadas ainda foi se tornado cada vez mais industrializada e acrescentada de gorduras Trans, doses industriais de Sódio e alimentos cada vez mais desprovidos de nutrientes. Para isso, temos outras pílulas, de vitaminas, para devolver o que foi retirado da alimentação. Estou falando tudo isso para demonstrar que estamos imersos em mais dependências e mais indústrias produtoras de pseudociências e necessidades. Estou tentando diminuir ao máximo o consumo de carne e outros pró inflamatórios de minha dieta. O resultado é, se parar para fazer um lanche numa padaria, não tenho o que pedir. Estamos enfiados em vários circuitos de dependência, os consultórios não estão livres disso. Em alguns países desenvolvidos, se o médico suspende o tratamento antidepressivo e o paciente tem uma recaída e, por exemplo, perde o emprego, o médico pode ser questionado e mesmo processado. Retirar a medicação envolve um acordo de mútua vigilância e cuidado entre médico e paciente. Sem esse cuidado, sem essa confiança, é melhor manter a medicação. Recebo algumas vezes pessoas que estavam mantendo a prescrição de antidepressivos por alguns anos pelo simples fato de não terem mantido o seu seguimento. Dava para ter suspendido ou trocado a medicação, que o sujeito preferiu manter quase como automedicação. Tudo isso para “não ficar dependente” do tratamento.
O Budismo tem um conceito que eu adoro, que é a Interdependência. Não somos apenas dependentes, mas interdependentes. Um tratamento deveria fortalecer esses laços de interdependência e enfraquecer os nós da codependência. É bem mais fácil falar do que fazer. Aumentar o número de sessões porque o processo está se aprofundando e se tornando mais rico é exatamente o contrário de criar Dependência. Significa aprofundar o Silêncio, numa época que somos dependentes do Ruído.

sábado, 15 de novembro de 2014

A Pálpebra dos Lagartos

Depois de duas semanas sem publicar nada neste blog, atendo aos apelos de um de seus doze seguidores para voltar a essas mal tecladas. Não sei se a vitória da senhora Dilma me emudeceu, ou foi melhor me calar para não me juntar ao coro de sandices que se publicou de lado a lado, com direito a racismos, fascismos e outros bichos que ainda estão por aí. Sobre isso, me calo. Vou começar este post com algo bem mais divertido que isso, um poema de Manoel de Barros, falecido aos 97 anos, cheio de luzes e de cores de passarinho, há dois dias. Vamos lá: “No descomeço era o verbo/Só depois que veio o delírio do verbo/O delírio do verbo era o começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos” (Livro das Ignorãças, Ed Record).
Para quem não conhece, Manoel de Barros era o maior poeta vivo deste país que não se importa com poesia. Mais do que poeta e escritor de hai kais pantaneiros, Manoel era um mestre Zen, um cantor de urinóis enferrujados, formigas, do ínfimo, do desimportante, ou, no caso desse trecho de poema, um restaurador da visão de criança que a vida nos subtrai por volta dos sete anos de idade. A criança que diz: eu escuto a cor dos passarinhos. Jesus disse aos apóstolos que deixassem vir a eles as criancinhas, pois deles é o Reino dos Céus. Manoel de Barros nunca citou este trecho, mas levou-o para dentro de suas poesias. A criança escuta a cor, desenha o canto, alucina as folhas e os galhos.
O Zen procura sempre desconstruir em seus koans a nossa estrutura de pensamento, nossa organização cognitiva, nossos a prioris kantianos de Tempo e Espaço. O mestre Zen abole o tempo, o espaço e o encadeamento cognitivo que nos organiza o mundo. Um poeta beatnik, cujo nome me foge, definiu o Zen como “O mundo subtraído de si mesmo”. Manoel, neste poema, começa invertendo o Genesis, que começa com o gigantesco No Princípio: “No Princípio era o Verbo” (este é um princípio retumbante). O poeta não quer saber de começos, só de descomeços, onde o Verbo delira de si e a cor pode ser escutada no canto.
Mais trechos, do mesmo livro: “As coisas que não tem nome são mais pronunciadas por crianças”; “Não tem altura o silêncio das pedras”; “Poesia é voar fora da asa”; “Ando muito completo de vazios”; “Hoje eu desenho o cheiro das árvores”.
Uma criança se delicia com o nonsense, quando colocamos um sapato na cabeça ou viramos o mundo de ponta cabeça. Vivemos num mundo cheio de senso e com pouco bom senso, e tudo queremos sobredeterminar com nossas intencionalidades: para tudo temos metas, objetivos, tarefas a cumprir. Não temos a menor ideia do que é estar completo de vazios ou qual é a altura do silêncio das pedras. Manoel desenhou o cheiro das árvores e as pálpebras dos lagartos.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

O Mundo é um Moinho

Não estou com bons sentimentos com relação à eleição de Dilma Roussef por uma margem tão pequena, mas não vou me render à histeria coletiva. Foi uma vitória apertada, dentro do jogo democrático, numa briga onde não havia nenhum santo, em nenhum dos lados. Venceu o melhor marqueteiro, pode-se assim dizer. E é vida que segue. Já sobrevivemos a Sarneys e Collors, vamos ter que seguir com mais alguns anos de PT, que eu espero que não seja mais uma dúzia de anos. Mas por que será que se criou, sobretudo nos estados mais produtivos do país, uma sensação de tamanha ojeriza por esta senhora?
Havia uma antiga e belíssima música de Cartola em que ele dizia que “O mundo é um moinho/ Vai triturar seus sonhos tão mesquinhos/ Vai reduzir as ilusões a pó”... O mundo é um moinho, mesmo, mas também é um espelho. Não acredito nas fantasias tipo “O Segredo”, em que podemos criar a nossa própria realidade (se eu pudesse criá-la, Dilma não seria minha presidente). Acredito, entretanto, que podemos participar dessa criação, ou a Criação pode refletir o que temos no mais íntimo do nosso ser. Não adianta comprar livros de autoajuda sobre como criar a sua própria fortuna e ter com o dinheiro uma relação de medo ou de ressentimento profundo. Podemos fazer todos os exercícios de mentalização e as meditações de abundância e a conta continuar no vermelho no final do mês. Podemos aplicar todas as técnicas de autosugestão ou os coachings de prosperidade, com um ou outro guru de autoajuda, que a mudança deve ser de dentro, bem dentro, para fora (e de fora para dentro, como escrevi em post recente).
Já atendi pessoas, poucas, que passaram pelos porões do Regime Militar, sofrendo abusos e torturas. A marca é definitiva, assim como a ferida. Viver na clandestinidade também deixa marcas, a de ser um fantasma, exilado dentro de seu próprio país. O ressentimento e a desconfiança podem ser definitivos. Dilma tem essas marcas em seu coração. São fundas e dolorosas. Quando alguém discorda de seu ponto de vista, ou quando os estádios da Copa mandam-na tomar em algum lugar, o que ressoa nela é a sensação de um fantasma gritando atrás do pau de arara. Ontem ela acenou com a necessidade de diálogo. Diálogo não é o seu forte. Aécio falou, com razão, durante a campanha, que ela precisava parar com esse discurso de “Nós” e “Eles”. Eu diria mais: está na hora de abrir mão da fantasia de “Eu contra o mundo”. Isso seria um paradoxo, porque na primeira eleição ela foi um poste eleito pelo Lula. Esta eleição ela ganhou quase sozinha, porque o Lulinha sumiu e só reapareceu quando ela tomou a dianteira nas pesquisas. Paradoxalmente, ela vai ter que ampliar o “Nós” e parar de fugir dos malvados da “Elite Branca”. Para isso, vai ter que deixar ressentimentos e medos profundos para trás.
É fácil culpar a mídia e tentar controlá-la pelo estado de conflagração que metade do país criou contra a presidente e seu governo. Infelizmente, demora muito para nascer um Nelson Mandela, que sai da cadeia pronto a estender a mão e buscar o entendimento com seus perseguidores. Para muita gente, o que fica, é um desejo profundo de revanche. Este desejo não leva ninguém para muito longe, e isso inclui os derrotados nas urnas, ontem.

sábado, 18 de outubro de 2014

Medicação é Solução pra Mim?

Estava no Congresso de Psiquiatria em Brasília, assistindo uma aula sobre Depressão e Atividade Inflamatória, mas era antes, uma aula de como dar aula. A fala da mocinha da UNIFESP era calma e pausada, e tinha uma delicada musicalidade; cada slide terminava com uma pergunta que abria o próximo, tornando a aula toda encadeada e o interesse da plateia aceso, como se ela estivesse nos conduzindo pela mão para dentro do conhecimento. Há alguns anos atrás tive uma treta teórica com uma Pedagoga, quando disse que o processo de Aprendizagem\Ensino é basicamente um processo de sedução, de ser convidado para dentro do conhecimento como para uma dança, ou um passeio. Ela ficou muito brava, como se isso fosse uma trapaça ou pior, um desrespeito às suas décadas de estudo sobre o que é ensinar e aprender. A mocinha e sua aula eram uma demonstração cabal de minha tese. Uma delícia de aula, provavelmente amadurecida pelo uso. Um dado intrigante da mesma era justamente a estatística que, a despeito de todo investimento e dispormos de medicamentos e recursos inacreditáveis há vinte anos para o melhor tratamento da Depressão, sua prevalência continua aumentando, assim como as taxas de Suicídio nos países do Ocidente, muitos deles com todos esses recursos para tratar a doença mais relacionada com o suicídio, que são os quadros depressivos.
Já falei bastante nesse blog sobre a nossa Civilização Inflamatória e todas as suas consequências para nossa saúde e qualidade de vida. Alimentação Processada, cheia de gordura, açúcares e sódio, sedentarismo, privação de sono e estressores cada vez mais repetitivos e repetidos, tudo isso cria um organismo sempre preparado para ser atacado, o nosso. A aula da moça demonstrava que a Depressão, como as doenças mais mortíferas de nossa época, que são as Cardiovasculares e Oncológicas, tem uma relação direta com a atividade inflamatória elevada, ou seja, com a nossa vida inflamada. Ninguém consegue deter esta escalada, os médicos parecem garçons correndo atrás da bandeja depois que os copos de cristal já caíram no chão. Falar em Medicina Preventiva tem que passar, necessariamente, pelas causas de inflamação: mudança de hábitos alimentares, de hábitos de exercício físico, de hábitos de sono. Teclando isso eu me lembro de um programa na TV a Cabo em que um médico tentava explicar para a mãe de um menino obeso que ele precisava mudar radicalmente os seus hábitos e emagrecer, pois seus parâmetros clínicos estavam todos catastróficos. A mulher olhava para o médico com uma cara de “o que o senhor quer que eu faça?”. Calligaris descreveu a sensação, diante da doença mental, de enfrentar um dragão com um alfinete nas mãos. A sensação é essa mesmo. O médico pedindo para o garoto de alimentar melhor enquanto ele mastigava um pacote de batatinhas fritas.
As mídias bombardeiam os psiquiatras e seu uso de medicamentos, como se fosse um bando de mafiosos criando dependências e dependentes, a soldo do poder dos laboratórios muito interessados em criar doenças e mercado para os seus medicamentos. Tenho sempre a sensação que essa fúria midialógica está mal direcionada, atacando as consequências antes das causas dos fenômenos. Se o ser humano é constituído estruturalmente pela sensação de Falta e de Vazio, a própria Hipermídia promete a cura dessa falta através do Prazer e do Consumo. Estou louco para falar a um jornalista que venha atacar os medicamentos que a culpa da Depressão que estou tratando é dele, cujo site anuncia produtos de beleza ou carrões esporte que venham curar a nossa miséria. Mas não vou fugir à questão que a aula levantou, com grande propriedade: talvez esteja na hora de repensarmos todo o modelo de nosso atendimento. Tratar uma Depressão com a medicação adequada pode ser, apenas, um bom começo, de um processo mais profundo de transformação.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Pizza e Jornada Interior

Ontem estávamos num jantar de amigos. Um sobrinho da aniversariante está fazendo Faculdade de Psicologia e veio conversar sobre o assunto, meio ruim para degustar entre pedaços de pizza e cerveja em bom ponto. Ele pensa em se aprofundar em Terapia Comportamental e Cognitiva e terminar seus estudos na Itália. Segundo ele, Freud já era. Fiquei mordendo os lábios e recarregando a minha cerveja uruguaia. Se a minha língua algo solta se soltasse, diria para ele fazer um curso de coaching e abandonar a faculdade, pois é um trabalho muito baseado na TCC (Terapia Comportamental e Cognitiva). Igualmente, diria que a psicologia na Itália não é lá grande coisa e talvez no Brasil ele tivesse uma formação melhor. Finalmente, diria que Freud já era apenas na opinião de alguns professores que, ou não leram, ou não entenderam o que leram, ou, pior, dão aula de Psicologia mas não clinicam. Felizmente eu engoli esses pensamentos junto com uma fatia de pizza de mussarela. Ele logo levantou e foi postar as fotos da comida em alguma Rede Social.
Já postei anteriormente nesse blog que a psique tem várias camadas, como as camadas de uma cebola. Por alguma razão estranha, as camadas mais profundas foram descobertas e exploradas antes das camadas mais superficiais. A Psicologia do Inconsciente foi explorada e descrita pelos pioneiros. Freud descreveu o Inconsciente Pessoal, Jung o Inconsciente Coletivo e muito latim já se gastou para se falar nesses assuntos. A Psicologia Comportamental e Cognitiva não se baseia no que está gravado no Inconsciente. Procura operar no Sistema de Crenças e nos Esquemas Mentais que geram doenças. É um bom trabalho que beneficia muita gente. Não é excludente com a exploração do Inconsciente, embora muita gente pense assim.
O que Freud descobriu e que hoje em dia anda muito fora de moda é que o nosso mundo interno é gravado com várias impressões profundas, antigas, inconscientes que rodam dentro de nossa vida como um vírus dentro de um computador, atrapalhando os programas e criando pensamentos e ações que nem sempre são as que a gente mais gostaria.
Ando meio que viciado nos vídeos dos TED Talks (disponíveis no TED.com). Hoje assisti a um vídeo de seis minutos de uma moça bonita e com olhar triste que contou a sua trajetória dentro da Depressão, com quadros depressivos que vinham de sua adolescência e de sua infância carregada de abusos de um pai. Ela procurou tratamento e fez uma TCC para tentar dar conta de seus pensamentos e crenças destrutivas. O quadro só fez piorar, e piorou muito. Quando ela procurou outros tipos de ajuda e de cura, começou sua jornada interior. Na exploração do que poderíamos chamar de seu Inconsciente, descobriu que o seu pior problema não eram os abusos físicos e sexuais que sofreu de seu pai, mas a absoluta falta de qualquer tipo de escuta, dela e de quem a cercava, para seu próprio sofrimento e as coisas que gostaria de expressar. A sua jornada passou pelo reconhecimento dessa dor e elaboração de novas formas de ser e de estar no mundo, não só como uma mulher deprimida e sedenta de aprovação, mas como alguém que visita seu Mundo Interno para poder transformar o Externo.
Usar medicamentos ou mudar as suas formas de pensar ajuda muita gente. Não ajudou essa moça porque as pessoas continuavam dizendo para ela como deveria viver ou pensar, em vez de tentar entender onde e como se manifestava a sua Ferida. Ela fez a sua Jornada Interior para colher a verdade que estava lá. Freud foi um pioneiro em achar este caminho. Isso o garoto não vai aprender na faculdade. Nem muito menos nas Redes Sociais.

sábado, 11 de outubro de 2014

Me Dê Motivo

Estava falando com uma cliente que descrevia sinais e sintomas que desenhavam, delicadamente, um quadro depressivo se instalando: cansaço constante, choro fácil e imotivado, intolerância a pequenas frustrações e uma reação de quase desespero quando as coisas não vão do jeito que ela gostaria. Particularmente, uma profunda angústia diante de qualquer tarefa nova ou inesperada, como ter que chamar um técnico para consertar a máquina de lavar. Como muita gente, ela tem o estranho hábito de discordar dos próprios sentimentos, sobretudo, de ficar muito contrariada quando os tais “sentimentos negativos” aparecem. Estava ouvindo a sua decepção por estar daquela forma. A conversa transcorreu bem até a frase quase fatal: “Mas está tudo bem, estou fazendo tudo o que eu quero e gosto. Se eu tivesse motivo...” Quase ouvi o vozeirão de Tim Maia bradando em meus ouvidos: “Me dê motivo...”
Nos anos noventa eu fiz uma pesquisa numa enfermaria de Leucemias, que hoje são muito graves, mas tratáveis, na época eram menos tratáveis e mais graves. Além de todo o sofrimento e perplexidade de estar com essa condição extremamente delicada, eu ainda testemunhava o sofrimento adicional dos pacientes ficarem procurando pelo erro, ou pela sua culpa em gerar a doença: “O que eu fiz de errado?”, como se a doença fosse uma punição por algum erro ou gerada por algum motivo oculto.
Nesta mesma época eu estudava e enchia o saco de meus orientadores com muita Filosofia da Ciência. Uma figura dessa filosofia é o “Demônio de Laplace”. Este pequeno e inofensivo ser era apenas uma metáfora sobre o conhecimento prévio dos fenômenos. O Demônio de Laplace era o cara que conhecia todas as variáveis, todos os fatores que determinam um determinado acontecimento científico. Sabendo de todos os fatores, pode prever com absoluta precisão tudo o que vai acontecer. Uma de nossas fantasias mais comuns é que somos pessoas formidáveis que sabemos quase tudo a respeito da vida e de nossa vida em particular: com pensamento positivo e uma vida espiritualizada e holística nada de ruim pode nos acontecer. Os problemas só acontecem para o vizinho, que fica ouvindo Gustavo Lima o dia inteiro e grita com o seu cachorro entre uma música e outra.
Lamento dizer que as coisas não funcionam assim. Não é preciso ser pobre, nem infeliz no casamento, nem parte da equipe de campanha da Dilma para ter bons motivos para ter uma Depressão. Um quadro depressivo reflete um estado de esgotamento de neurotransmissão e pode acometer pessoas felizes, com uma vida bacana e muitos cuidados holísticos. Depressão acomete ricos e pobres, gregos e troianos. Duvidar dos sintomas ou discordar deles é tão produtivo quanto xingar São Pedro pela seca no Sistema da Cantareira.
Ficar doente já é suficientemente desagradável. Discordar dos sintomas, do cansaço, da melancolia diária, da angústia e da falta de gosto em fazer qualquer coisa, agradável ou desagradável, achar que é frescura, ou falta de tanque de roupas para lavar, é uma violência muito comum que as pessoas com quadros depressivos sofrem. É duro de se ver que sofrem esse abuso de si próprias ou de pessoas queridas e no mais das vezes bem intencionadas que, querendo ajudar e motivar o doente, acabam colocando mais gotas de lágrimas no copo que já transbordou. Melhor dizer que é uma doença e, como tal, deve ser encarada e tratada. Os resultados são bem melhores do que procurar motivos e culpados.

domingo, 5 de outubro de 2014

Podres Poderes

A Venezuela é um país com riquezas naturais e mulheres muito bonitas. Politicamente, sempre se comportou como uma música antiga de Caetano, que se perguntava sobre a incompetência da América Católica, que sempre precisará de ridículos tiranos? O último ciclo de tiranos ridículos teve em Hugo Chavez seu expoente inacreditável. Chavez transferiu parte da renda gerada pelas altas de petróleo para a população de excluídos de seu país. Confiscou empresas, afrontou os barões da Mídia, fechou jornais, rompeu com o Tio Sam e fez a sua genuflexão diante de outro ridículo tirano, Fidel Castro, que décadas antes também criou uma religião que tinha como único profeta ele mesmo, o Comandante. Os resultados do isolacionismo, personalismo e tirania enlouquecida foram os mesmos nos dois países: miséria, isolamento da comunidade econômica mundial, atraso. A América Católica continua precisando de seus ridículos tiranos. Os tiranos messiânicos de esquerda talvez sejam os piores, pois cometem seus equívocos munidos da melhor das intenções. As boas intenções que pavimentam o caminho do Inferno.
Não caio na tentação de odiar a presidente Dilma ou o PT. Também fico nauseado quando as ordas petistas classificam toda oposição como uma conspiração da “Elite Branca”. Esse discurso sempre tende a dividir o país em dois, e ele está dividido em dois hemisférios, o Norte e o Sul. Nós, da Elite Branca, supostamente, odiamos o PT e sua presidente (que na verdade, na origem, nunca foi petista, e sim, pedetista) porque temos horror à sensibilidade social e sede de mudanças. O PT quer dar poder ao povo, poder de compra, poder de consumo, poder político, e a Classe Dominante se arrepia com esses esgares de liberdade. Um dos países mais injustos do mundo não vai perdoar essa ousadia, não é mesmo?
Os sinais do rumo Bolivariano de nossa Economia estão em toda parte: buracos na balança comercial, moeda sobrevalorizada, parque industrial se deteriorando, e o que é pior, essa absoluta autoindulgência que acomete a todos, corruptos e honestos, ricos e pobres. Dilma fez um manifesto à Nação e à sua tropa defendendo o fortalecimento do mercado interno, a defesa do emprego e a sua resistência em arrochar a classe trabalhadora. Posou de vítima acossada pela Elite que não a perdoa por defender os menos favorecidos. Estou muito longe de achar que ela é uma pessoa completamente mal intencionada e oportunista. Olho para ela e vejo uma governante sem legitimidade, com uma fabulosa incapacidade de fazer acordos e de fazer acontecer as suas boas intenções (aquelas mesmas já citadas). Como terapeuta, lamento a pobreza de sua percepção e leitura de mundo. Lamento essa pureza de reagir contra o papai malvado e capitalista e tomar um caminho bobamente populista quando o país tem tanta capacidade, tanto potencial de crescer de forma sustentável. Responsável.
Esse blog mete o bedelho em muitos assuntos, mais do que devia. Política e Economia não são pautas comuns, nem devem ser. Depois de doze anos, Aécio Neves tem a chance de retirar o PT do poder. Espero que ele consiga. O PSDB não é santo, nem isento de erros grosseiros. Mas teve a coragem de arrochar, apertar o cinto para evitar que o país virasse a Argentina, outro país com ridículos tiranos, na virada do Milênio. Fazendo isso, entregou o poder para o PT. A história vai mostrar que fez a coisa certa. Fazer a coisa certa é bem raro de se ver em nosso tempo.

domingo, 28 de setembro de 2014

De Dentro Pra Fora, De Fora Pra Dentro

Estava no último Congresso Brasileiro de Psiquiatria, no taxi junto a um colega querido, quando papo vem, papo vai, percebemos que, ele lacaniano, eu junguiano, compartilhávamos a paixão pela Neurociência e pela Mindfulness. Outra amiga perguntou o que era a tal de Mindfulness, o meu amigo e muy amigo passou a pergunta para mim. Eu falei sobre a técnica de Meditação, que privilegia a sensação de hiperpresença e hiperpresente, em contraponto à nossa eterna tendência a viver numa antecipação do Futuro. Para exemplificar, contei para ela de um exercício de workshop, em que a palestrante deu para cada participante uma uva passa, que devíamos mastigar uns cinco minutos, para ver o que acontecia. Impressionante como uma uva passa pode modificar seu gosto, consistência e sensação na medida em a mastigamos sem a intenção de engolí-la. Querendo ou não, esse exercício nos obriga a prestar atenção de maneira plena no gosto e no ato de mastigar, coisa que não fazemos no dia a dia. Ela olhou a gente com aquela cara de ver os efeitos da Andropausa e dois colegas outrora mais científicos. Acabei me despedindo, lembrando a meu colega de não mencionar a Mindfulness na Reunião Clinica. Seria essa forma de Meditação e de Vida algo exótico e pouco científico?
Evidentemente que a Meditação com suas diferentes técnicas e tradições tem sido, cada vez mais estudadas e comprovadas, inclusive em estudos controlados e bem feitos, como benéficas às pessoas que as praticam. Isso já está escrito em vários posts deste blog. Mas não é essa a questão. A questão é: Como treinar este estado de Presença numa época em que tudo nos convida à dispersão? Isso parece mais uma daquelas coisas que a gente precisava fazer, mas nunca fazemos, como diminuir o glúten, viver no Presente ou maneirar a comida nos finais de semana. Todo mundo olha com aquela cara de “É verdade, é uma coisa que eu preciso fazer”. E prosseguimos nossa vida, checando os e-mails e voltando às nossas infinitas preocupações.
Estava assistindo uma aula na Internet em que o Neurocientista afirmava que o Cérebro é uma necessidade evolutiva gerada pelo movimento complexo. Deu como exemplo um bicho marinho que se reproduz enquanto está em movimento, até se fixar em um coral. Quando finalmente encontra a sua boquinha, o bicho digere o seu Cérebro e seu Sistema Nervoso e passa a funcionar como uma planta anencefálica. É como o governo Dilma, podemos exemplificar. O Cérebro se desenvolve com o seu uso, assim como as conexões e redes neurais. Isso quer dizer que a Central Telefônica cresce e se desenvolve na medida em que é alimentada pela fiação. Quanto mais estímulo vem dos fios, maior a capacidade da Central. A recíproca também é verdadeira: se a Central é mais ativa, os fios também funcionam melhor e com mais velocidade. Tem uma música antiga de Valter Franco, que adoro, que dizia: “Viver é afinar o instrumento\ De dentro pra fora, de fora pra dentro\ A toda hora, todo momento \ De dentro pra fora, de fora pra dentro”. Além de poeta, neurocientista. Das Sensações para a Cognição, da Cognição para as Sensações.
Este é o princípio da Midfulness. Não é apenas uma forma de Meditação, ou uma técnica mental. É um exercício constante de sentir cada toque, cada gosto, cada movimento respiratório no sentido de ampliar a capacidade de perceber, antes, e fazer novas conexões, depois. Criar, dessa forma, novos caminhos neuronais, que é uma definição de criatividade.

domingo, 21 de setembro de 2014

A Cura

Andei metendo o pau na série escrita e produzida pelo psicanalista pop Contardo Calligaris, “Psi”. Falei que ele estava em processo de furioso enamoramento de si mesmo, termo que peguei emprestado de Nelson Rodrigues. Lembrei ao final do comentário que não iria perder nenhum episódio, pois para mim aquilo era diversão garantida. Cometi um grave erro ao afirmar que o personagem que é amigo do psicanalista Carlo e coveiro, tinha o nome de Caronte, o que eu achei uma forçada de barra daquelas. Errado. O personagem se chama Severino e deve ter sido chamado de Caronte por Carlo em alusão ao barqueiro que transporta em seu barco as almas para o Reino dos Mortos. Crítica apressada e desinformada, pela qual me desculpo.
Carlo repete uma frase que é de seu criador, Calligaris, afirmando que, em uma análise, o terapeuta é o Remédio. Que frase estranha, ainda mais na boca de um freudiano. Antes de fazer outra crítica apressada, imagino que a disposição do terapeuta em ouvir, seu interesse no outro e intenção sincera em ajudar contribuem, e muito, para o sucesso terapêutico de um tratamento. Imagino que o terapeuta ajude com a sua sanidade e com a sua Ferida que, se espera, esteja trabalhada e olhada em seu próprio processo de terapia. Outro dia estava vendo uma entrevista de um renomado colega, Psiquiatra e Professor de Psiquiatria, entrevistado por Marília Gabriela. Ele mencionou um estudo sobre a Doença do Pânico em que tomou uma substância que era capaz de induzir uma crise, e foi a sensação mais aterrorizante de sua vida. Marília Gabriela, entrevistadora matreira e experiente, aproveitou para avançar no tema e perguntar se ele, como ser humano, já tinha experimentado os sintomas que causavam tanto infortúnio em seus pacientes. Pressionado, o colega foi mal e respondeu: “Não, eu sou normal”. Os seus pacientes ganharam automaticamente o crachá de anormais com essa resposta. Um terapeuta não precisa ser um doente terminal para compreender um paciente com uma doença grave, não precisa ser um usuário de Cocaína para atender um dependente químico, nem precisa ter passado por uma crise de Pânico para entender o quanto ela é sofrida e desestruturante para um paciente. Mas nunca deve se colocar na posição de normalidade em contraposição à suposta anormalidade que está à sua frente. Talvez ele possa curar muito mais com a sua própria ferida do que com seu “Ego Forte”.
Lembro de um sonho muito marcante de um paciente que é visitante eventual desse blog e nem sei se vai lembrar que este sonho é dele: “Sonha que tinha uma ferida muito grande, uma chaga em seu tornozelo. Para curar esta ferida, tinham amarrado perto da ferida um pé de galinha. A proximidade do pé do animal fazia com que a ferida cicatrizasse...”. Imagino que o sonho descreva o processo lento de reparação que se dá num trabalho de psicoterapia. Imagino também que aquilo era uma crítica bem humorada do Inconsciente do meu cliente, brincando com uma tentativa excessivamente intelectual de entender o processo da parte de ambos, terapeuta e cliente. O que cura é o pé de galinha, ou seja, o Arquétipo da Cura. O paciente pode associar a imagem às boas canjas que sua mãe fazia quando estava doente, mas imagino que a imagem representa a capacidade de uma Psique encontrar os seus caminhos de Cura, o que pode e deve ser ativado pela Relação Terapêutica. O terapeuta não é o remédio, mas pode ajudar o paciente a limpar as suas feridas e transformá-las. E isso você só aprende fazendo; não tem nenhum manual que ensine. O Pé de Galinha é o processo de cicatrização que se inicia quando resolvemos cuidar de nossa ferida, em vez de fazer novas feridas nos outros.

domingo, 14 de setembro de 2014

O Sorriso (Interior) da Monalisa

Tem um exercício de meditação taoista em que os órgãos são visualizados pelo meditador, que envia um sorriso para cada área de seu corpo. Um sorriso para o Fígado, outro para o Intestino e por que não, um sorriso para as partes do corpo que não gostamos. Parece uma coisa boba e sem fundamento, não é? Pois há vários estudos demonstrando que o sorriso, mesmo esboçado, mesmo de Mona Lisa, manda uma mensagem para o Córtex Cerebral e áreas ligadas às emoções que produzem sensações de relaxamento e tranquilidade. Não são só os nossos pensamentos que se manifestam no corpo, nosso corpo que interfere em nossos pensamentos. Parece muito óbvio, mas não é. Quando eu dava aula para o quinto ano de Medicina, dizia para eles que, mesmo que não se sentissem tranquilos diante dos pacientes psiquiátricos, que fingissem tranquilidade. Na época isso parecia uma trapaça, hoje eu percebo que estava dando a orientação correta. Ter uma atitude serena, mesmo de imitação, realmente deixa a mente mais tranquila.
Sempre costumei dizer que as pessoas vem para o consultório com um chachá invisível, e que este crachá é sempre falso. Um se apresenta: “Eu sou uma aberração”; a outra “Eu sou o Pânico”; um terceiro pode se apresentar “Eu sou o maioral, o fodão”. Jung chamou esta máscara social de Persona. Recebemos de nosso ambiente uma imagem do que as pessoas imaginam que somos. Com o passar dos anos, essa imagem pode ser reforçada pela vida. A menina que não é tão bonita quanto as irmãs pode desenvolver uma Persona de intelectual, ou virar uma grande empresária para demonstrar que é a mais aplicada, a mais focada, a mais bem sucedida. Isso pode custar o descuido com a própria aparência ou uma bela Depressão quando se apercebe que todo esse sucesso terminou num quarto vazio, cheio de papéis de chocolates e lenços assoados. O fato é que uma das tarefas das terapias é lançar um olhar nesta tal de Persona e ir subtraindo, pouco a pouco, seu poder. De preferência, trazer um pouco da emoção que se esconde debaixo da máscara. A Máscara costuma ser um lugar solitário. Tirá-la do rosto, quase sempre, dói, porque parece que está aderida à pele. Sem essa proteção tem muita gente que se sente nua. Talvez por isso que é tão difícil para os médicos retirarem seu jaleco e passarem a ser cuidados por outra pessoa, por exemplo.
Na semana passada estava de férias, e via em New York uma nova forma de pedintes: pessoas nem tão mal vestidas, sentadas na calçada, com um papelão de caixa dizendo: “Sou um sem teto e preciso de ajuda”. O mais impressionante é a expressão de tristeza trágica, uma verdadeira máscara de tristeza que ocupa o rosto dessas pessoas, sim, mais de uma pessoa. Havia pelo menos três pessoas diferentes fazendo essa estranha perfomance. Nessa época de Reality Show, cheguei a pensar que aquilo era uma espécie de intervenção, uma instalação de Arte Conceitual, como havia aquelas vacas coloridas espalhadas pela Paulicéia, a Cow Parade, há pouco tempo. Uma pegadinha, quem sabe. Por que me causou tanta estranheza, nossos mendigos são mais criativos que os mendigos de Primeiro Mundo? Não, não foi isso. O que me causou estranheza foi a máscara de tristeza e seu efeito anti empatia. Talvez por isso eu achei que fosse trote. Aquela tristeza não me gerava compaixão, eu que sou brazuca, imagina os ianques, que vivem naquele “Help yourself or die” ( em tradução livre, “Se vira nos trinta ou morra”). Quase falei sobre a meditação taoista, e o poder de rir para si mesmo e para quem passa na calçada. Garanto que seria um projeto de marketing muito melhor, gerando muito mais moedas. Essa será a campanha da semana, para os visitantes desse blog: pratique o sorriso interior (o exterior também é aconselhável).

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Oração Intencional

Nos dias de hoje, ir ao médico é sempre sair com uma prescrição de exercícios físicos. São poucas as especialidades que não se beneficiam direta e profundamente da prática de exercícios, e já presenciei mudanças dramáticas de quadro clínico quando alguém consegue incluir na sua rotina esse hábito. Reconheço que não é fácil. Eu faço exercícios pelo menos três vezes por semana, geralmente na bicicleta ergométrica. Como técnica motivacional coloco um filme no Netflix e só posso retomá-lo na próxima pedalada. Vou vendo o filme ou a série de meia em meia hora de exercícios, até acabar. O ruim é quando escolho um filme cabeça demais, desses que os psiquiatras adoram. Filme lento não ajuda a pedalar.
O último filme que eu coloquei para animar as pedaladas foi “Deus Não Está Morto”, um filme novo dessa safra de filmes Gospel que hora ou outra atravessam o meu caminho. Um esclarecimento para o leitor ou visitante eventual dessa página: quando você lê que eu sou um psicoterapeuta de origem junguiana, isto significa que posso falar em Deus sem ficar corado. Jung trouxe para o seu século a necessidade de um entendimento profundo do arquétipo Cristão e uma das tarefas de sua terapia é a criação de uma consciência mais ampla, uma consciência Crística. Isso vale aos junguianos o escárnio e a desconsideração de muitos de seus pares, de outras linhas. Quando eu critico um filme gospel, portanto, não é de uma perspectiva farisaica de cientista ou pseudocientista. Estou falando de dentro, não de fora do tema.
Voltando ao filme, ele é uma singela fábula sobre um calouro que vai cursar um curso introdutório à Filosofia como um dos assuntos de sua grade, com vistas à faculdade de Direito. O professor do tal curso exige que os alunos escrevam que “Deus está morto” numa folha de papel, como pré requisito para o seu curso, que vai falar sobre filósofos que construíram a sua obra fora da ideia de um Criador. O calouro se recusa a entregar a declaração, e isso vai gerar a ira do professor malvado, que vai passar a perseguir o rapaz. Ele perde a namorada (que não aceita o embate) e passa a estudar longamente o tema para enfrentar o falso mestre num “julgamento de Deus”.
O filme se torna muito frágil na figura do tal professor, cujos argumentos desmoronam facilmente diante do estudo consistente do bravo advogado de Deus. Um argumento fácil de se colocar de ambos os lados, do Ateu ou do Teísta: o que chamamos de Deus está fora do campo do que chamamos de Existência, está fora do que a nossa consciência humana consegue abarcar empíricamente. Se alguém quiser fazer um estudo provando a sua Inexistência, será facilmente bem sucedido, assim como se alguém fizer um estudo sobre curas feitas pela oração, também vai ter dados para provar a sua hipótese.
O incrível é que dediquei umas três pedaladas para ver o filme inteiro, que acaba com vários personagens convertidos e aceitando Jesus. Gosto da cena em que uma jornalista descrente vai tentar “desmascarar” a banda Gospel em entrevista agressiva e termina a mesma rezando com os rapazes que vão fazer depois um rock chatérrimo com músicas enlevadas para fechar o filme. A oração que eles fazem com ela é bem legal e vale as pataquadas que toleramos no caminho. O vocalista pede a Graça sobre ela, que está doente, para que tenha “a fresh new start”, um recomeço fresco, sem as dores e as mágoas que trouxe de sua vida “anterior”. Gosto desta cena porque toca na força da oração intencional como veículo de cura. É bonita a sensação da intenção amorosa que compartilham e foge do cristianismo chapa branca de outras cenas. Isso, a força da oração intencional, bem que seria um bom tema para outro post, mesmo correndo o risco de apedrejamento científico.

domingo, 24 de agosto de 2014

Terapias e Terapeutas

Recebi um e-mail de uma cliente querida, que me deu conta de que está fazendo algum workshop terapêutico exótico, baseado em alguma técnica de renascimento espiritual, quântico ou holístico, ou tudo isso junto, e me pergunta o que eu acho disso. As pessoas imaginam que os psiquiatras e os psis em geral são uma espécie de Oráculo preparado a emitir opiniões e juízos de valor sobre quase todos os assuntos. O que a maior parte dos projetos terapêuticos tentam, desde muito tempo da evolução humana, é ajudar os humanos em seu processo de Desenvolvimento, da Gestação à Velhice, tentando levar uma vida razoavelmente positiva e que traga benefício e cuidado à sua família e ao seu grupo.
Freud descobriu também uma nova senda, muito explorada pelo business de montar uma seita, ou uma nova técnica de terapia de nossa universal sensação de medo e de vazio diante da vida e do futuro: a exploração das Memórias. Freud descobriu que nossa psique tem determinados bloqueios que não aparecem nas Tomografias. A essência de todas as terapias, mais ou menos picaretas, é a tentativa de interferir nesses bloqueios e libertar a Psique de suas amarras e medos. Se possível, abrir a mente das pessoas para o Devir, esse monstro que nos assusta todo dia. Um experimento clássico de genética de comportamento coloca um grupo de ratinhos num ambiente com pouca comida. Os ratinhos que exploram mais o ambiente terão uma chance maior de sobreviver, enquanto que os ratinhos receosos ou tímidos vão passar mais aperto. Coloque nesse ambiente um predador e os ratinhos valentes vão ser os primeiros a virar almoço. Isso significa que saber trabalhar os medos e tomar iniciativas são características que podem trazer o sucesso ou o fracasso em nossa evolução, dependendo do ambiente que vai receber esse comportamento.
Cada guru ou “Facilitador” de workshop vai utilizar alguma técnica para desfazer bloqueios e instalar a esperança, com mais ou menos efeitos colaterais. Uma cliente foi num fim de semana de fortalecimento de autoestima e resolveu aproveitar a sua energia turbinada por rituais de tambores e afirmações positivas e ligou para um cara com que estava há semanas de chove e não molha: saiu com o cara, ficou com ele, liberou todas as energias da deusa do amor e as euforias de Afrodite, para descobrir no dia seguinte que o cara continuava o mesmo meia boca de sempre, com aquela cara de “veja bem” que as mulheres conhecem tão dolorosamente. Após uns dois ou três “não posso prometer nada”, ela parou de invocar Afrodite e deve ter se inscrito no workshop de Athena, uma deusa que sabe usar a cabeça, até porque nasceu da cabeça de Zeus.
Concordo e acredito que estamos todos no business de transformar bloqueios e abrir caminhos de criatividade e busca nessa vida. Já escrevi muitas vezes do papel importante dos terapeutas no encorajamento de nossos ratinhos medrosos ou na orientação dos ratinhos atirados demais, mas o trabalho demanda tempo, repetição e dedicação amorosa de ambas as partes, terapeutas e pacientes. Intervenções pontuais e exóticas produzem algumas cenas estranhas, como andar em brasas, bater o bumbo ou constelar antepassados, o que resulta em uma pequena euforia que dura umas doze horas, para depois voltarmos aos nossos hábitos neuróticos de sempre. Construir e desconstruir a nossa psique é trabalho delicado, que requer mãos habilidosas, e mais do que um final de semana. Requer, como falei num post recente, a incidência do tempo.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

A Gargalhada de Patch Adams

Estava falando na semana passada sobre a importância da Esperança para a superação de dificuldades, como uma doença grave, por exemplo. Lembro de um filme antigo com o Michael Keaton, em que ele tem uma doença terminal e o médico vem falar com ele cheio de números e estatísticas para comunicar a ele que a vaca estava indo para o brejo e era bom ele deixar as suas coisas meio arrumadas para quando acontecesse o pior. Ele ouviu tudo engolindo em seco e, antes de ir embora, falou para o cara que ele não podia ter feito aquilo. Aquilo o que?, perguntou o médico por trás de seu avental e sua gravata francesa. O paciente olhou na sua cara e falou: “Você não podia ter me tirado a esperança. Era a única coisa que eu tinha”. Há alguns dias, uma paciente minha foi encaminhada, no meio de um processo duro de tratamento para uma doença neoplásica, também conhecida como Câncer, para uma avaliação da médica responsável pelos Cuidados Paliativos. A colega começou a conversa assumindo que ela deveria saber que a sua doença era incurável. “Fiquei sabendo agora”, ela respondeu de chofre. A jovem doutora não sabia onde enfiar a cara. A sua voz estava trêmula para me dizer que a massa não tinha diminuído e os médicos estavam reunidos para decidir se valia a pena uma reoperação. Assim como quem calcula o risco e o benefício, de posse das estatísticas.
Fico muito grato por ter trabalhado em hospitais com esse tipo de paciente, porque a sensação mais devastadora que ele experimenta nessas situações é a mais profunda solidão, como se todos fugissem com os olhos quando pede por orientação e, por favor, por um plano. Os médicos são formados com a ideia de que sua função é curar todo mundo e reagem muito mal quando as coisas não estão evoluindo bem. É uma sensação de vergonha e impotência que deixam os pacientes desnorteados. Não se trata de ser candidamente otimista, nem de fingir que as coisas estão indo bem quando não estão, mas de demonstrar que a hora é escura e não está dando para ver muito à frente do nevoeiro, mas navegar continua sendo preciso. Várias vezes ouvi de pacientes o pedido de não desistir deles. Lembro de um filme infantil com o Jim Carrey, “Desventuras em Série”, onde três crianças órfãs foram colocadas aos cuidados de um tio perverso que tenta matá-las para ficar com sua herança. A menina mais velha tem uma crença, dita em off pelo narrador, de que “sempre tem um jeito”. Em situações difíceis, ela amarra uma fita em seu cabelo, faz um rabo de cavalo e sempre descobre um jeito de sair das situações mais desesperadoras. Lembro dela amarrando o cabelo quando naquelas situações clínicas que dá vontade de cavar um buraco e desaparecer. Amarramos os neurônios e vamos ver que jeito que se pode dar. Sempre tem um jeito. Não desisto de navegar, mas não navego sozinho. Vamos juntos, no mesmo barco.
Lamento muito que o ator que encarnou a Esperança e o riso diante da morte, que foi Robin Williams, tenha morrido só, enforcado em seu quarto. Dava para notar que ele era capaz das maiores piruetas de alegria, assim como encarnar uma tristeza incrivelmente profunda em seus papéis dramáticos. Era Bipolar, diria a Psiquiatria. Provavelmente, era. Mas a morte é um Mistério, o suicídio também. Prefiro ficar com a imagem de sua gargalhada diante do medo e da incerteza da vida. Gargalhando diante da Morte, como Patch Adams.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Esperança em Brasa

São muito antigos os estudos em bebês submetidos a um período de isolamento em instituições. Quando pedem por ajuda, o bebê começa com um resmungo, que vira choro e, se o pedido de ajuda continua sendo ignorado, por uma razão ou outra, o choro ganha contornos de agitação desesperada, que dura um tempo de fúria e resfolegos. Após um tempo em que esse choro não produz ajuda nem resultado, o bebê entra numa espécie de torpor e indiferença quanto aos estímulos do meio e a capacidade de interagir e, por que não dizer, confiar nas pessoas que lhe cuidam. Se o abandono é prolongado, o bebê pode ficar cada vez mais alheio e “frio” quando recebe estímulos amorosos.
George Vaillant, em seu livro “Fé”, descrito em outros posts deste blog, cita um estudo em que ratos são encurralados em um canto de sua gaiola e recebem choques elétricos (não fui eu que projetei esses experimentos, mas eles produziram belos modelos sobre a construção do medo em nosso Cérebro. Obrigado aos bravos roedores). Os ratos são divididos em dois grupos: o primeiro não tem como fugir e, após um tempo, entram no mesmo estado de torpor dos bebês abandonados. O termo técnico para isso é “Desamparo Aprendido”. Outro grupo de ratinhos conseguiu fugir de seus agressores e continuou tendo um comportamento semelhante ao normal depois do ocorrido. Finalmente, para completar o estudo, foram injetadas células cancerosas nos dois grupos. A amostra dos ratinhos “esperançosos”, os que conseguiram fugir dos choques, teve uma sobrevida e recuperação espetacularmente melhores: apenas 27 por cento dessa amostra veio a morrer de Câncer, em detrimento de 63 por cento dos ratinhos sem esperança, os que não encontravam saída.
Fico pensando nesses estudos quando vejo aqueles médicos americanos cheios de números e estatísticas avisando aos pacientes que a vaca provavelmente está indo para o brejo e não vale a pena alocar as esperanças contra os números. No filme “Dallas Buyers Club”, também citado em posts anteriores, o médico do PS chega para o personagem principal do filme e avisa que ele é soropositivo e desenvolveu a AIDS, e, pelos exames, não chegaria a ter um mês de vida. O cowboy mandou-o para vários lugares e saiu pelo mundo estudando e procurando ajuda, contra o esperançocídio que o colega tinha executado com suas palavras objetivas e científicas. Ele sobreviveu por alguns anos e ajudou muita gente a enfrentar o surto inicial da AIDS com a sua esperança e sua recusa de se curvar diante do tal do realismo que lhe foi esfregado na cara. Em tempos de Ebola, é bom lembra dessas histórias.
Nosso Cérebro tem uma capacidade ímpar na natureza de fazer projeções do Futuro. Isso é uma vantagem evolutiva extraordinária, assim como uma fonte de encaminhamento psiquiátrico, quando as projeções de futuro são sempre uma negação da esperança. O fato é que se agarrar a planos mirabolantes e esperanças infundadas destroem tantas vidas quanto as pessoas que aprendem a não esperar nada de si nem do outro, nem da vida.
Irving Yallon, autor de Best Sellers Psi como “Quando Nietzsche chorou”, confessou em um de seus livros sobre a prática da psicoterapia que, um dos melhores trabalhos que conseguiu realizar em sua vida de terapeuta foi continuar animando e dando suporte aos seus pacientes nas horas mais difíceis, na hora em que tudo fica escuro e tudo parece que vai dar só errado. Essa foi uma opinião muito corajosa, porque os terapeutas também são criados para serem muito objetivos e neutros, não a ficar gritando da arquibancada: “Vamo’ lá! Não desiste, continua remando, continue andando no túnel (sem luz no final)!” Concordo com ele. É das tarefas mais nobres da terapia, manter a brasa da esperança acesa. E tome sopradas. Quanto mais vezes encontramos a saída, mais valentes ficamos.

domingo, 3 de agosto de 2014

Carpe Diem

Há uma série de pequenas palestras no Youtube e outros canais da web, chamadas TED Talks. O subtítulo é “Ideias que Vale a Pena Espalhar” (tradução livre). São inserções curtas, de até 20 minutos, sobre os temas mais diversos. Num post anterior eu falei sobre uma palestra que abordou a Não Violência. Hoje assisti um novo TED, de um garoto de 17 anos chamado Sam Berns. Há um contraste entre a sua imagem, pré humana, a sua voz de criança e a sua aparência de idoso com alguma doença terminal e a força de sua fala. Sam tem Progeria, uma doença rara onde o processo de envelhecimento celular é acelerado pela síntese de uma proteína defeituosa que afeta a membrana das células. Sam tem a aparência de um homem de mais de cem anos, pesa 23 quilos e perde o fôlego em frases mais longas. Ele imediatamente nos transmite a sensação de vergonha por nossas preocupações mesquinhas e medo da vida. Sam sabe que não vai atingir idade para materializar muitos de seus sonhos. A sua filosofia para lidar com tudo isso inclui focar o que pode fazer, não o que nunca vai poder; cercar-se sempre de pessoas que ama e olhar para frente, não gastando energia com preocupações sobre o seu futuro e, ele não menciona mas é óbvio, sua morte prematura.
Isso bem que pode terminar como um vídeo viral na Internet, daqueles que recebemos de tias e de pessoas bem intencionadas e isso seria uma verdadeira pena. A fala de Sam é muito mais profunda e delicada que um testemunho de Revista Seleções ou entrevistas em programas de variedades; Sam dá um testemunho de vida carregada de Atenção Plena, ou Mindfullness. O exercício do Carpe Diem (algo como “Aproveite o Dia, ele pode ser o seu último) para ele é um fato e um exercício diário. Olhar para frente e ter planos para o futuro é uma forma de contornar a sensação de que o futuro é um beco sem saída. Mas Sam dribla o maior risco de sua apresentação, que era de cair num otimismo bobalhóide respaldado por sua condição terrível. Ele escapa bem dessa cilada. Fala abertamente sobre os dias ruins, as crises de angústia e as ideias sombrias que o acometem, como acometem a todos nós. Essa, para mim, é a parte mais genial de sua fala: Sam sabe que não adianta ignorar nem fugir desses pensamentos. Pensamentos que com certeza devem incluir desistir de tudo e ficar em casa, esperando pela morte. Sam descreve o processo de lidar com esses pensamentos em 3 fases: Reconhecer o sentimento ruim, acolher o pensamento, deixá-lo por lá até descobrir um jeito de lidar com aquilo e superá-lo. Uma verdadeira aula de manobras cognitivas para resolver crises de angústia e pensamentos reverberantes sobre o futuro.
Pesquisas em Neurociência mostram que se macacos criados em isolamento passam a comer compulsivamente e se automutilarem. Quando colocados com outros de sua espécie, podem lutar até a morte e não conseguem fazer parte do grupo. Qualquer semelhança com humanos não é mera coincidência.
Sam aprendeu a manter a sua humanidade sendo parte de seu grupo. Ele pode causar tanto a piedade quanto o horror nos que o cercam e não conhecem. Mas a sua luta mais do que corajosa é para se manter dentro do âmbito de sua condição humana. Por isso, a sua última recomendação é “Nunca perca uma festa, se puder ir”. Essa me acertou na boca do Estômago.

domingo, 27 de julho de 2014

A Incidência do Tempo

Uma estratégia de marketing eficaz para um médico é se tornar referência em algum assunto ou doença. Uma espécie de Top of Mind é sempre boa maneira de ser lembrado ou referendado. Durante um curto espaço de tempo, há mais de uma década, eu tive uma assessora de imprensa que ficava meio louca com a minha falta de definição de produto. No que eu era especialista, afinal? Bom, eu faço uma psiquiatria junguiana e não tem muita gente disposta a aproximar essas áreas de conhecimento. Ela percebeu, meio horrorizada, que Jung não era popular nem entre os psicoterapeutas, quanto mais no respeitável público. Eu era e continuo sendo um generalista, como se pode perceber pelo leque de assuntos desse blog Uma das delícias de ser generalista é atender diversas faixas de idade, dos 15 aos 90 anos.
Lembro de uma interconsulta, isto é uma consulta de um especialista em outra clínica que não a sua de origem; no caso, estava atendendo um velhinho na UTI. O pedido de interconsulta, como de costume, era vago e impreciso, o tal senhor estava depressivo por conta de seu estado clínico. Falava constantemente que preferia morrer. Fui atendê-lo e não era nada disso. Este senhor apresentava uma Insuficiência Renal que a equipe tentava reverter. Um dos tratamentos era a restrição hídrica, ou seja, ele não podia beber nenhum líquido, apenas molhava os lábios quando o desconforto era demais. Ele era o mais doce dos suicidas: disse para mim que queria morrer afogado numa piscina de água mineral, que queria beber água gelada até morrer, mas não aguentava mais aquela restrição. Logo ficou claro que o paciente não estava deprimido e não tinha ideias de morte. Se o colega tivesse dedicado cinco minutos de seu precioso tempo para fazer algumas perguntas, saberia que o vozinho estava poeticamente desejando se afogar em água fresca, precioso líquido. Como eu já estava lá aproveitei para esticar a conversa com o objeto de minha interconsulta. Papo vem, papo vai, ele me contou que a sua esposa havia falecido recentemente, após décadas de casamento feliz. Ele já estava sem ela há cerca de três anos. Subitamente o psiquiatra retornou à conversa. Perguntei para ele se a sua ideia de morrer bebendo uma piscina não tinha a ver com o desejo de reencontrar a sua esposa. Ele olhou para mim com o mais doce dos sorrisos e me perguntou “Como eu posso reencontrar alguém de quem nunca me separei?”. Fiquei com aquela cara de bobo, com a caneta pendurada na mão e o carimbo dentro do bolso. Quase pedi para ele me atender. O seu assunto não era a morte, mas a vida. Para ele, a sua esposa era uma experiência viva. Como uma piscina de água fresca.
Uma senhora, que veio ao consultório por um quadro de luto complicado após a morte de um companheiro de décadas, ficou embasbacada quando o seu filho, depois de alguns casamentos, avaliou o seu casamento de Bodas de Ouro como neurótico. Ela ficou com o mesmo homem durante todo aquele tempo porque teve o azar de casar antes da Revolução Sexual, senão teria tido a liberdade de casar mais vezes. O casamento dura enquanto dura o tesão, disse ele.
Nossa sociedade de hiperconsumo criou um bem de consumo, que é o sexo de consumo. Uma vantagem de atender diversas idades é aprender com esses pacientes de pele vincada pelo tempo o que acontece com a incidência do tempo em sua vida e vivência. Falei para aquela senhora que seu filho talvez fosse muito jovem para entender um amor que resiste ao teste do tempo, que se aprofunda e cresce dentro da alma do jeito que ela sentiu. O seu amor não era um sintoma neurótico. “Psicologizar” o amor é um sintoma neurótico. Uma queixa das pessoas de ambos os sexos no consultório é exatamente a falta de tempo para uma relação crescer e se desenvolver. Estão todos muito ocupados com sua autoestima. Não dá para provar de um amor que cresça em si, sob os efeitos dos anos.

domingo, 20 de julho de 2014

Amor de Proveta

Uma cliente, com seu humor deliciosamente ácido citou, há alguns anos, um estudo europeu que mostrava uma alta incidência de crianças que não tinham compatibilidade genética com seus pais, ou, no caso, com os homens que as criavam. Ela observou, entre boas risadas, que aquela era a prova científica de que as mulheres escolhiam um homem para engravidar e outro para criar o seu filho. O pior é que a ironia procede. Escolher o doador do material genético e o homem que cuida dos filhotes podem ser processos bem diferentes do ponto de vista evolutivo.
As moças não sabem, mas se queixam, nesses tempos de amor virtual e encontros no Tinder, que procuram um tipo e encontram o outro, e o que é pior, demoram muito para saber a diferença entre um e outro tipo. Saem nas baladas e encontram caras prontos a chamá-las de maravilhosas e ressaltar todas as suas qualidades, existentes e inexistentes, para conseguir a aproximação e o sucesso amoroso de uma noite de amor, que, na verdade, é uma noite de sexo. O romance termina rápido, assim como a paixão de pipoca de micro ondas, que termina após três minutos de barulho. E um gosto de isopor no céu da boca, no dia seguinte.
As espécies onde os filhotes precisam decisivamente da presença do macho para a sua sobrevivência contam com as maiores taxas de Ocitocina, um Neuro hormônio cada vez mais estudado pela Neurociência. Um ovo de pinguim, por exemplo, pode ser chocado durante semanas por um papai congelado e faminto, mas que com suas altas taxas de Ocitocina fica grudado em seu futuro bebê, mesmo que isso lhe custe a vida. Não sei como dizer isso, mas aparentemente o valor evolutivo da fidelidade masculina se restringe a esse tipo de filhote altamente dependente da presença do papi. Em primatas, nossos primos, é mais comum ver as fêmeas defendendo sua prole com a própria vida, enquanto os machos ficam catando piolhos. Os níveis de Testosterona e Ocitocina não devem ser, necessariamente, proporcionais. A minha cliente e o estudo tem toda razão: as mulheres tendem a procriar com machos ricos em Testosterona, mas vão querer criar os filhotes com os ricos em Ocitocina. Por isso que os “bad boys” costumam fazer mais sucesso do que os “bonzinhos”. Na noite e na cama. Os que sabem ser galantes, então, ganham de goleada dos caras “legais”.
Se eu ganhar da Megasena, pretendo me dedicar a vários projetos. Um deles é desenvolver uma testagem imediata dos níveis de Ocitocina para avaliar candidatos na balada. O cara chegou na menina, disse que ela é maravilhosa, dança bem, coloca o seu desejo de forma encantadora e vai ganhando a confiança da presa, digo, da pretendente, ela já está perto de sair com ele para um “lugar mais tranquilo”. Antes de dizer sim, entre um beijo ardente e outro, imagine que ela coloca um cotonete na boca do nosso candidato e, para a sua surpresa, coloca numa máquina para medida da sua Ocitocina. Já pensou? Detectar in loco o chavequeiro e diferenciá-lo do cara que realmente liga no dia seguinte e não tem dificuldade de ficar dentro de uma relação? Para ganhar dos dois lados, poderíamos fazer também um spray de Ocitocina, para o candidato se aplicar antes do “Bafômetro do Amor”.
Não está longe o dia, senhoras e senhores, que o amor vai ter um diagnóstico laboratorial.


quarta-feira, 9 de julho de 2014

Autoindulgência

Hoje acordei com aquela sensação de irrealidade, pensando se o que aconteceu ontem não foi apenas um sonho ruim. Hoje iríamos enfrentar a Alemanha e ganharíamos num jogo duro, mas leal. Um a zero, com gol de um dos malditos de nosso time, Fred ou Hulk. Mais alguns minutos e a memória do chocolate que o Brasil tomou da Alemanha se impôs. Óbvio que o experiente e carismático Felipão hoje virou um técnico superado. A mídia clama por um técnico estrangeiro, mas parece que é Tite que vai assumir a seleção. Os cronistas clamam por reforma do Futebol. A única nota que me arrancou um sorriso foi saber que Marin e Del Nero, a dupla Debi e Lóide que pretendem mandar no futebol brasileiro, está se borrando com medo de CPI e de medidas que varram essa corja do comando. E, por falar em corja, nossa presidente Dilma também teme que a tragédia do Mineirão contamine a política e a economia do país. Se são esses que estão incomodados, então pode não ter sido em vão.
O volante/armador/atacante Toni Kroos, um dos melhores jogadores dessa Copa, senão o melhor, que enfiou dois dos sete gols na meta de Júlio César, falou algo que me chamou muito a atenção em sua entrevista coletiva: o time da Alemanha sabia muito bem da fragilidade emocional da seleção brasileira, vergada pela expectativa e responsabilidade de ter um país nas suas costas. Em post anterior eu brinquei que gostaria de ter um time de autistas, que congelassem o ruído e a vibração da torcida e só visse o gol adversário e a necessidade de enfiar lá dentro o maior número de bolas. Estava sendo tristemente profético, mas com o time errado. Toni Kroos revelou o plano de fazer um ou mais gols logo de cara para desestabilizar emocionalmente o time do Brasil e dominar completamente o jogo. Havia uma percepção óbvia, direta dessa fragilidade e ela foi explorada com frieza e objetividade. Sem essa de família Scolari, ou entrar em campo com a mão no ombro do colega, assim tipo Sete Anões; a Alemanha não viu, não ouviu, não sentiu: limitou-se a enfiar o maior números de bolas dentro de nosso gol. No finalzinho do jogo, Özil perdeu um gol na cara de Júlio César. No contrataque, Oscar fez nosso gol solitário. Ele levou uma bronca no meio de campo de seus colegas. E olha que estava sete a zero. Não interessa. Era para ter enfiado mais um.
No primeiro post sobre essa Copa do Mundo que graças a Deus está terminando, falei sobre a nossa pior doença cultural, que é a autoindulgência. O fim desse evento vai nos permitir voltar a nosso país em recessão e com um colapso de infraestrutura, mas que precisa de pessoas trabalhando e produzindo, não de especulações infinitas sobre quem iria substituir Neymar. Enquanto nossa seleção assistia palestras motivacionais recheadas de obviedades para bater palminhas e entrar em campo gritando, a Alemanha planejou meticulosamente todos os seus passos e o que seria necessário para sair desse país com o caneco. Planejou inclusive a melhor maneira de entrar na nossa psique e encontrar o ponto fraco que levou o time ao maior colapso emocional que já houve em nossa seleção em toda sua história.
Pelo visto, na Segunda Feira o caneco vai estar na bagagem dos chucrutes. E nós vamos retomar a nossa vida, pois este país precisa muito de gente produzindo. Pra frente, Brasil. Tem uma dúzia de pessoas vivendo do Bolsa Família que precisa de nosso trabalho. Vamos que o Real caiu em nossa cabeça por sete vezes.

domingo, 6 de julho de 2014

Neymar e a Banalidade do Mal

O psiquiatra suiço Carl Jung era filho de um pastor protestante. Seu pai era um homem fraco e deprimido que morreu prematuramente. É justo imaginar que uma boa parte de sua obra psicológica foi uma forma de responder a questões que seu pai se recusava a tentar entender. Para Jung, o Bem, o Mal, a vida e o ensinamento de Jesus eram uma verdade psíquica viva e atual, algo para ser compreendido, não ser sepultado debaixo do cimento do Dogma. O seu pai defendia que o Dogma deveria ser respeitado e pronto. Jung dedicou uma boa parte de sua vida para demonstrar que essa visão não era a mais correta.
Obviamente, Jung andou às turras com Protestantes, Católicos e, por outros motivos, com os Judeus. Uma das pendengas com a Igreja Católica foi sobre a natureza do Mal. Jung discordava que o Mal seria apenas algo que ocorre pela privação do Bem. Essa ideia está gravada de maneira mais profunda em nossa Psique e Cultura do que podemos imaginar. Quando se estuda um sociopata ou um serial killer, logo vamos procurar por terríveis abusos e privações de infância. É claro que na maioria dos casos, vamos encontrar. O imprinting da violência e do abandono de transmite de geração em geração, e filhos de mães abandonadoras vão ter uma chance bem maior de reproduzir esse comportamento do que filhos de mães amorosas. Mas Jung via no Mal uma realidade psíquica própria. Como uma expressão de uma função na Natureza. Haveria pessoas naturalmente vocacionadas para exercê-lo, bastando oferecer a elas a devida oportunidade para fazê-lo.
Assisti outro dia ao filme “Hanna Arendt”, sobre a filósofa judia alemã que dedicou grande parte de sua obra ao estudo do Mal. Estou frisando a sua origem judaica e alemã porque isso é fundamental para entender o tema central desse filme. Hanna Arendt fugiu da Alemanha no alvorecer do Nazismo e dava aulas de Filosofia nos Estados Unidos. Foi contratada por um importante órgão de imprensa para cobrir o julgamento de um genocida nazista, Adolf Eichman, um dos executores da chamada “Solução Final”. Eichman foi identificado e preso pelo Mossad vivendo uma vida pacata na Argentina, e em nada lembrava o monstro que ordenou o extermínio de centenas de milhares de vidas de pessoas que nada fizeram contra ele. O seu julgamento foi no início dos anos 60 e sua linha de defesa frisou que ele foi um mero executor de ordens superiores e que ele não tinha a capacidade e o direito de questionar essas ordens. Transformou-se, então, num mero autômato da Morte, sem esboçar sentimento humano com relação a o que fazia.
Hanna Arendt, depois de um longo período de pesquisa e reflexão que quase levou seus editores à loucura, escreveu uma longuíssima matéria sobre o julgamento de Eichman, onde destacou a perplexidade de ver um homem tão medíocre, tão desprovido de qualquer inteligência ou capacidade especial ter sido capaz de dar a Morte uma característica industrial, como uma linha de montagem. Hanna analisou no mesmo ângulo os judeus que colaboraram com os nazistas nos Campos de Concentração e os jovens oficiais germânicos que mandavam seus semelhantes para a morte em massa sem nenhuma culpa e, acima de tudo, sem nenhuma reflexão. Esse foi o tema mais importante do artigo de Hanna: o Mal havia se tornado algo banal e qualquer imbecil poderia assumir o comando da linha de montagem. Obviamente que seu artigo foi incompreendido, para dizer o mínimo, e ela sofreu um verdadeiro linchamento intelectual e moral após a sua publicação. O filme mostra a sua tentativa irredutível de defender o seu olhar em contraponto a todos que queriam transformar o oficial nazista num titã da maldade. Foi classificada como uma traidora de seu povo e da compaixão humana. Hoje, mais de meio século depois, a sua visão sobre o Mal continua sendo comprovada, até pela Neurociência.
Neymar saiu da Copa do Mundo graças a uma joelhada de um jogador da Colômbia, Zuniga, que se caracteriza pelo excesso de vigor físico em detrimento de um Cérebro pouco privilegiado. Se houvesse um poste em campo, correria o risco de um Trauma de Crânio, pois corre sempre em linha reta e de cabeça abaixada. Neymar fez algumas firulas encima dele durante o jogo. O que me convence que a joelhada de Zuniga foi um ato de maldade banal e estúpido foi a sua reação posterior, de se eximir completamente do ocorrido, como um lance normal de jogo. Nenhum tipo de sentimento pelo ocorrido. Um ato banal e sem sentido de agredir um semelhante que ganha em um trimestre o que Zuniga não receberá em toda a sua vida.
Jung e Hanna Arendt tinham, ambos, razão. O Mal existe e se manifesta melhor onde campeia a estupidez.

domingo, 29 de junho de 2014

Pátria Límbica, Brasil

Experimentos com hamsters, hoje clássicos, demonstraram que o amor não estava no Coração, como diziam os poetas, mas no Cérebro Límbico, o Cérebro Emocional. Se o Neocortex, o que podemos chamar de Cérebro Racional, é removido, os roedores não aprendem mais como sair de labirintos, mas continuam cuidando atenciosamente de seus filhotes. Por outro lado, se as áreas emocionais forem ligeiramente danificadas, os bichos vão resolver qualquer labirinto, mas vão deixar os filhotes morrerem de fome. Há uma relação do afeto com o córtex olfativo, usado pelas ratinhas para localizar as suas crias no escuro. A tal da “Química” entre casais é talvez seja química mesmo, com uma compatibilidade de cheiros, gostos, texturas. Isso que está na base de relações que dão, ou não, liga.
Quem acompanha esse blog sabe que eu já escrevi um texto de apoio e admiração pelo Felipão, técnico da seleção nesta Copa. Felipão é um técnico eminentemente Límbico, pode-se assim dizer. Abraça e beija seus jogadores, xinga juízes e dá peitadas em oponentes. Quando era técnico de Portugal deu uma cabeçada em um beque adversário. No início da carreira, deu uns cascudos em Wanderley Luxemburgo dentro de campo e só por isso já merecia colocar as mãos na Calçada da Fama. Felipão descarta jogadores que não tenham “Espírito de Seleção”, o que eu desconfio que foi o motivo de não chamar o Robinho. Ele sabe que para ganhar os sete jogos que separam uma seleção da taça é preciso foco e motivação absolutas. O problema é que a sua ênfase no aspecto emocional e amoroso do grupo está transformando nossa seleção num bando de mariquinhas. Eles choram abraçados, choram no hino, choram na zona mista, choram antes, durante e depois da decisão por pênaltis contra os tampinhas do Chile. Como os ratinhos de laboratório, a retirada do Neocortex deixa a galera unida, a família Scolari aos prantos, e jogar bola, que é bom, nada. Precisamos de Cérebro para entender o jogo, criar situações inesperadas e executar o adversário de maneira sumária e implacável. Chega de caras fofinhos que entram em campo de mãos dadas. Precisamos de gente de má índole, sobretudo na hora em que passa pela cabeça dos jogadores o que vai acontecer se milhões e milhões de brasileiros se decepcionarem mais uma vez com o futebol.
Uma característica dramática das crianças autistas é a sua capacidade de identificar e retribuir as manifestações de afeto. A doença de Asperger, que está dentro do espectro do Autismo, deixa os pacientes como os ratinhos com lesão límbica: com uma capacidade de inteligência bem próxima ao normal, mas com uma incapacidade de entender emoções complexas, ironias ou frases de duplo sentido. Entendem a lógica, mas tem dificuldades de perceber quando alguém está irritado mas não o demonstra. E, sobretudo, não conseguem retribuir ou demonstrar as emoções que não conseguem processar.
Pode me chamar, Felipão. Vamos acabar com a choradeira e transformar os seus meninos em Autistas, que não ouvem, não sentem, não percebem o que está envolta. Só conseguem ver as traves do adversário e a necessidade de enfiar a bola lá dentro. Várias vezes. Emoção, só com o caneco na mão.

domingo, 15 de junho de 2014

País do Futebol

Lá pelos idos dos anos 90, minha esposa fez uma dura consideração sobre o cinema brasileiro: disse que o nosso cinema não sustenta a tragédia. Tudo acaba em Carnaval ou besteirol. Venho tentando responder a essa crítica desde então, sem sucesso. Lembrei, na época e hoje, das filmagens das peças de Nelson Rodrigues, nosso autor de várias tragédias suburbanas. Terminavam em Carnaval. Lembro de um filme de Arnaldo Jabor, “O Casamento”, em que o personagem principal, após confessar um crime que não havia cometido, para expiar a culpa por tantos outros pecados, vai sendo levado na cena final para a prisão, levanta as mãos com algemas em triunfo, a batucada comendo solta, enquanto ele repetia, em transe: “Eu sou um assassino”. Veja bem, termina em batucada. Eu poderia citar o “Abril Despedaçado”, do Valtinho Moreira Sales, como uma tragédia brasileira, de morte e assassinato no agreste. O filme é lento, chato e parece iraniano, como, se não me angano, o livro que originou o roteiro. Nunca consegui assistí-lo inteiro para poder usá-lo como argumento. A brincadeira versa sobre nossa incrível vocação tupiniquim para a autoindulgência, para o descuido estético e a desatenção aos detalhes porque somos o país do Samba e do Carnaval. Somos incompetentes, mas muito alegres.

Fui comprar uma camiseta do Brasil para meu filho na véspera da estréia da Copa do Mundo. O estoque acabou rápido em uma grande loja de material esportivo. Como não vendia nada, os estoques estavam pequenos. Foi um Deus nos acuda para encomendar o atual modelo, com aquela gola feiosa. Começamos a entrar na Copa bem devagar. Acho que estávamos naquele suspense do que poderia acontecer, antevendo vexames, greves, black blocks e passeatas causando caos urbano e fracasso total do evento. Hoje as vendas de camisetas estão bombando. O fracasso tem sido relativo, e tolerável, então as pessoas vão se animando. Eu, pessoalmente, tenho me retorcido de vergonha em várias ocasiões. A Cerimônia de Abertura foi de provocar náuseas. A Festa Junina da escolinha da minha sobrinha foi bem melhor. Se as nossas tragédias terminam em Carnaval, a Abertura da Copa terminou em tragédia. Que lixo, que pobreza franciscana de imaginação e coreografias. Sobretudo, que coisinha feita sem capricho. As tribunas dos convidados internacionais ficaram vazias até a hora do jogo. Soube-se depois que estavam perdidos pelo estádio, tentando achar os seus lugares, ou encontrá-los mediunicamente, já que não tinha sinalização interna no estádio. A internet não funcionou e a imprensa se comunicava por celular. As luzes de parte do estádio se apagaram no Primeiro Tempo e eu fiquei mais preocupado com isso do que com o gol contra do Marcelo. Só faltava parar o jogo por falta de iluminação. Na Arena das Dunas, choveu mais no público do que no campo, pelas inúmeras goteiras não consertadas a tempo. Na Fonte Nova, acabou a comida e a bebida.

Falar sobre esses vexames, essas falhas lamentáveis, pode ser classificado de antipatriótico. Lula, sempre ele, classificou os xingamentos da torcida à presidente Dilma (que eu também não endosso) de uma reação da “elite branca”, obesa e reacionária, contra o governo imaculado do PT.

Nossa velha comiseração tudo perdoa, já que somos um país de gente afetiva, acolhedora e alegre. Os gringos se deliciam com essa alegria, e há um esforço coletivo de receber bem essas pessoas, de apagar essas falhas de organização com nossa pegada festeira. Lula, em mais um surto de sinceridade etílica, falou em entrevista que levar o metrô até dentro do estádio é uma babaquice. Brasileiro vai a pé e de jumento, disse o nosso ex (?) presidente.

Nossa tragédia cotidiana está assentada nessa indulgência frouxa, nessa capacidade de batucar, sorrir e rebolar a bunda para os buanas enquanto cometemos erros grosseiros em todos os setores de nosso país, que caminha aos passos largos para um apagão de infraestrutura e estagnação econômica. Espero que a Copa engrene e que as presepadas se tornem menos visíveis. Mas o bom mesmo é essa Copa terminar rápido e podermos voltar para o trabalho, pois esse país tem muita gente que trabalha e que merece descer de metrô, e não de jumento, nos estádios construídos e superfaturados com dinheiro público.

domingo, 8 de junho de 2014

Toque do Anjo

Gostaria de alertar os leitores desse blog que alguns trechos dos últimos posts foram profundamente inspirados pelo livro “Fé: Evidências Científicas” de George E. Vaillant, Editora Manole. É um livro encantador, que fortemente recomendo aos interessados, sobre um paralelo entre Emoções Positivas, Psiquiatria, Espiritualidade e nossa Evolução como espécie. Isso de um psiquiatra passado de seus setenta anos, com os olhos marejados de ter presenciado tudo o que mudou, nem sempre para melhor, em quase meio século de Psiquiatria. Espero chegar lá. Nesta semana, um paciente de mais de década olhou para mim no meio da consulta e, do nada, me falou que mesmo que eu ganhasse na Megasena continuaria fazendo aquilo que estava fazendo, todo dia. Tem toda razão. Diminuiria um pouco a carga horária, mas espero manchar os dedos nas tintas das canetas e carimbos por muitos anos, como o Dr Vaillant.
Um dos casos descritos nesse livro, tirado de sua longa jornada terapêutica é de Bill, um dos pacientes acompanhado em seu serviço por toda a sua vida, em grupo ligado à Universidade de Harvard. A sua história me fez lembrar a cena de “Uma Mente Brilhante”, onde o genial e esquizofrênico John Nash agradece, ao receber o prêmio Nobel, pela presença impressionante de sua esposa em sua vida, o que lhe ensinou o significado do amor. Ele não devia a ela apenas aquele prêmio, mas também estar vivo para recebê-lo.
Bill passou por coisa pior. Aos três anos de idade foi dado por sua mãe para adoção. O seu pai, algum tempo depois, foi internado em Hospital Estadual com uma psicose sifilítica. Ele nunca mais se recuperaria desse quadro. Bill foi levado a lares adotivos onde sofreu abusos físicos e psíquicos impressionantes, desde espancamentos regulares até fome e descuidos com o que seria básico para um ser humano poder crescer. Hoje ele seria um extraordinário candidato a psicopata ou abusador de crianças, o que, infelizmente, acaba acontecendo com muita gente que cresce nessas condições. Bill casou aos 25 anos com uma mulher boa e amorosa, que, como John Nash, ensinou a ele o significado do amor e de viver em família. Bill não era religioso e descobriu o poder superior em uma família amorosa, que também o achava o máximo.
Após 33 anos de casado, a esposa de Bill morreu tragicamente de Câncer. Aos 53 anos de idade, a sensação de que a vida tinha algum sentido se perdeu completamente para ele. Algumas de suas palavras: “Eu digo que perdi uma amiga, perdi uma amante, perdi uma mãe, perdi uma irmã, perdi uma médica, uma enfermeira, uma professora, uma lutadora”. A sua vida voltou para o escuro vazio de sentido que conhecera muito cedo. Alguns anos depois dessa perda, foi internado com uma profunda depressão; relatou que perdeu a esperança, sentia raiva, desespero e medo. Parecia que seu destino trágico tinha dado apenas uma trégua e agora voltava para cobrar seu tributo. Dez anos depois dessa avaliação, Bill compareceu à entrevista novamente transformado: um curador espiritual tirou a dor de suas costas e ele havia encontrado no ambiente acolhedor e profundamente amoroso da cura pela oração um novo significado para a sua vida. Bill descobriu que, curando o outro, curava a si mesmo. Mais uma vez, foi curado pelo amor desinteressado, com a vantagem que, agora, esse amor emanava dele, não de outra pessoa.
Em nossa vida, cruzamos por muitas pessoas sempre dispostas a reclamar da dureza do caminho, de como os seus desejos nunca são realizados e como o mundo é essencialmente injusto e mau. Acho que vou pensar, ouvindo isso, nas mãos de Bill passando energia e pedindo a cura para gente que teve uma vida infinitamente mais fácil que a dele próprio. Com certeza, vai ajudar a começar a nova semana de trabalho, no meio de passeatas, greves e Copas do Mundo.

domingo, 1 de junho de 2014

Psicologia Positiva

Há alguns anos li uma entrevista na Veja de uma psicóloga que fazia uma reflexão sobre a terrificante experiência de passar pelo tratamento de um Câncer de Mama, incluindo Radio e Quimioterapia. Dentre as inúmeras dificuldades, ela se queixou da tirania do Pensamento Positivo. Não bastava dores, efeitos colaterais e o medo da doença, ela se via bombardeada pela contínua propaganda que, se mantivesse o Pensamento Positivo, tudo daria certo. Podemos concluir que, se as coisas dessem errado, seria obviamente por uma deficiência de Positividade de sua parte. A vantagem de ter espírito crítico e vivência clínica é que ela sabia que haveria dias e momentos de esperança e de angústia, de bons e de maus pensamentos, e que o tal do Pensamento Positivo não impediria complicações e efeitos colaterais.
Uma paciente de 30 anos se desesperava pelo fato de seu irmão caçula fracassar em concursos e entrevistas, quando sempre se apresenta com a mentalidade do “já ganhei”. O moleque entra “mentalizado” em seus pensamentos positivos, com uma fé inabalável em seu sucesso, o que resulta em repetidos fracassos. Ela também já ouviu falar nas virtudes da mentalização positiva, mas estudar para a prova e se preparar para a entrevista costuma dar mais resultados.
Há um movimento bastante consistente e em crescimento na Psicologia, autodenominada Psicologia Positiva. Acho o nome um pouco perigoso, porque vai ser facilmente confundido com o movimento pelo Pensamento Positivo. Elas podem parecer a mesma coisa, mas não são. Para a pessoa que está atravessando a difícil jornada de um tratamento para uma doença grave, ou para um jovem tentando entrar no mercado de trabalho, talvez mais importante do que ter um pensamento positivo com relação aos resultados de sua empreitada, seja bem melhor ter uma atitude paciente e amorosa consigo mesmo e com as pessoas envolvidas no processo. Li um livro de um médico que passou por um tratamento para doença Oncológica que desenvolveu uma atitude amorosa até para o aparelho de Radioterapia, que ele via como um canhão benigno, atacando as células inimigas. Mais do que um pensamento positivo, ele descobriu que uma atitude amorosa contava tanto em seu processo de cura como o de seus pacientes. O nome do livro, para quem se interessar, é “Memória das Células”.
Nossa evolução como espécie teve alguns passos fundamentais. Um deles foi descer das árvores e andar sobre dois pés, o bipedalismo, o que possibilitou o uso das mãos e o uso de instrumentos, com imensas vantagens evolutivas. Isso, entretanto, gerou dificuldades para o parto dos primeiros hominídeos, já que uma cabeça maior tinha que passar por um canal de parto menor. Os bebês humanos precisam de muito tempo de maturação, necessitando de alguns anos de cuidados. Para isso, foi necessário um vínculo mais forte e profundo com as mães e o estabelecimento de alianças entre os machos e as fêmeas para defender a sobrevivência de seu bando. Amor, cuidado e tolerância foi a marca distintiva do que nos torna humanos e nos salvou como espécie.
Como já foi colocado em posts anteriores, somos muito estimulados a viver numa sociedade darwiniana em que os mais aptos prosperam, os não tão aptos são marginalizados. Competir e vencer são marcas de nosso passado evolutivo, onde conquistar territórios fazia muita diferença para um grupo viver ou perecer. É uma bobagem fazer as pessoas viverem nessa selva Paleolítica. A Psicologia Positiva vem em boa hora se estimular a criação de alianças e zonas de comunicação entre nós, descendentes do Homo sapiens. Vivemos hoje oprimidos entre o medo de sermos atacados por nossos semelhantes e outros predadores e a necessidade de construção de alianças e de uma cultura de não agressão. Não vai ser nada fácil, com tanta ênfase e lucro da Cultura do Eu, que os sentimentos positivos prevaleçam. Podemos esperar muitas lágrimas no percurso.