domingo, 27 de julho de 2014

A Incidência do Tempo

Uma estratégia de marketing eficaz para um médico é se tornar referência em algum assunto ou doença. Uma espécie de Top of Mind é sempre boa maneira de ser lembrado ou referendado. Durante um curto espaço de tempo, há mais de uma década, eu tive uma assessora de imprensa que ficava meio louca com a minha falta de definição de produto. No que eu era especialista, afinal? Bom, eu faço uma psiquiatria junguiana e não tem muita gente disposta a aproximar essas áreas de conhecimento. Ela percebeu, meio horrorizada, que Jung não era popular nem entre os psicoterapeutas, quanto mais no respeitável público. Eu era e continuo sendo um generalista, como se pode perceber pelo leque de assuntos desse blog Uma das delícias de ser generalista é atender diversas faixas de idade, dos 15 aos 90 anos.
Lembro de uma interconsulta, isto é uma consulta de um especialista em outra clínica que não a sua de origem; no caso, estava atendendo um velhinho na UTI. O pedido de interconsulta, como de costume, era vago e impreciso, o tal senhor estava depressivo por conta de seu estado clínico. Falava constantemente que preferia morrer. Fui atendê-lo e não era nada disso. Este senhor apresentava uma Insuficiência Renal que a equipe tentava reverter. Um dos tratamentos era a restrição hídrica, ou seja, ele não podia beber nenhum líquido, apenas molhava os lábios quando o desconforto era demais. Ele era o mais doce dos suicidas: disse para mim que queria morrer afogado numa piscina de água mineral, que queria beber água gelada até morrer, mas não aguentava mais aquela restrição. Logo ficou claro que o paciente não estava deprimido e não tinha ideias de morte. Se o colega tivesse dedicado cinco minutos de seu precioso tempo para fazer algumas perguntas, saberia que o vozinho estava poeticamente desejando se afogar em água fresca, precioso líquido. Como eu já estava lá aproveitei para esticar a conversa com o objeto de minha interconsulta. Papo vem, papo vai, ele me contou que a sua esposa havia falecido recentemente, após décadas de casamento feliz. Ele já estava sem ela há cerca de três anos. Subitamente o psiquiatra retornou à conversa. Perguntei para ele se a sua ideia de morrer bebendo uma piscina não tinha a ver com o desejo de reencontrar a sua esposa. Ele olhou para mim com o mais doce dos sorrisos e me perguntou “Como eu posso reencontrar alguém de quem nunca me separei?”. Fiquei com aquela cara de bobo, com a caneta pendurada na mão e o carimbo dentro do bolso. Quase pedi para ele me atender. O seu assunto não era a morte, mas a vida. Para ele, a sua esposa era uma experiência viva. Como uma piscina de água fresca.
Uma senhora, que veio ao consultório por um quadro de luto complicado após a morte de um companheiro de décadas, ficou embasbacada quando o seu filho, depois de alguns casamentos, avaliou o seu casamento de Bodas de Ouro como neurótico. Ela ficou com o mesmo homem durante todo aquele tempo porque teve o azar de casar antes da Revolução Sexual, senão teria tido a liberdade de casar mais vezes. O casamento dura enquanto dura o tesão, disse ele.
Nossa sociedade de hiperconsumo criou um bem de consumo, que é o sexo de consumo. Uma vantagem de atender diversas idades é aprender com esses pacientes de pele vincada pelo tempo o que acontece com a incidência do tempo em sua vida e vivência. Falei para aquela senhora que seu filho talvez fosse muito jovem para entender um amor que resiste ao teste do tempo, que se aprofunda e cresce dentro da alma do jeito que ela sentiu. O seu amor não era um sintoma neurótico. “Psicologizar” o amor é um sintoma neurótico. Uma queixa das pessoas de ambos os sexos no consultório é exatamente a falta de tempo para uma relação crescer e se desenvolver. Estão todos muito ocupados com sua autoestima. Não dá para provar de um amor que cresça em si, sob os efeitos dos anos.

domingo, 20 de julho de 2014

Amor de Proveta

Uma cliente, com seu humor deliciosamente ácido citou, há alguns anos, um estudo europeu que mostrava uma alta incidência de crianças que não tinham compatibilidade genética com seus pais, ou, no caso, com os homens que as criavam. Ela observou, entre boas risadas, que aquela era a prova científica de que as mulheres escolhiam um homem para engravidar e outro para criar o seu filho. O pior é que a ironia procede. Escolher o doador do material genético e o homem que cuida dos filhotes podem ser processos bem diferentes do ponto de vista evolutivo.
As moças não sabem, mas se queixam, nesses tempos de amor virtual e encontros no Tinder, que procuram um tipo e encontram o outro, e o que é pior, demoram muito para saber a diferença entre um e outro tipo. Saem nas baladas e encontram caras prontos a chamá-las de maravilhosas e ressaltar todas as suas qualidades, existentes e inexistentes, para conseguir a aproximação e o sucesso amoroso de uma noite de amor, que, na verdade, é uma noite de sexo. O romance termina rápido, assim como a paixão de pipoca de micro ondas, que termina após três minutos de barulho. E um gosto de isopor no céu da boca, no dia seguinte.
As espécies onde os filhotes precisam decisivamente da presença do macho para a sua sobrevivência contam com as maiores taxas de Ocitocina, um Neuro hormônio cada vez mais estudado pela Neurociência. Um ovo de pinguim, por exemplo, pode ser chocado durante semanas por um papai congelado e faminto, mas que com suas altas taxas de Ocitocina fica grudado em seu futuro bebê, mesmo que isso lhe custe a vida. Não sei como dizer isso, mas aparentemente o valor evolutivo da fidelidade masculina se restringe a esse tipo de filhote altamente dependente da presença do papi. Em primatas, nossos primos, é mais comum ver as fêmeas defendendo sua prole com a própria vida, enquanto os machos ficam catando piolhos. Os níveis de Testosterona e Ocitocina não devem ser, necessariamente, proporcionais. A minha cliente e o estudo tem toda razão: as mulheres tendem a procriar com machos ricos em Testosterona, mas vão querer criar os filhotes com os ricos em Ocitocina. Por isso que os “bad boys” costumam fazer mais sucesso do que os “bonzinhos”. Na noite e na cama. Os que sabem ser galantes, então, ganham de goleada dos caras “legais”.
Se eu ganhar da Megasena, pretendo me dedicar a vários projetos. Um deles é desenvolver uma testagem imediata dos níveis de Ocitocina para avaliar candidatos na balada. O cara chegou na menina, disse que ela é maravilhosa, dança bem, coloca o seu desejo de forma encantadora e vai ganhando a confiança da presa, digo, da pretendente, ela já está perto de sair com ele para um “lugar mais tranquilo”. Antes de dizer sim, entre um beijo ardente e outro, imagine que ela coloca um cotonete na boca do nosso candidato e, para a sua surpresa, coloca numa máquina para medida da sua Ocitocina. Já pensou? Detectar in loco o chavequeiro e diferenciá-lo do cara que realmente liga no dia seguinte e não tem dificuldade de ficar dentro de uma relação? Para ganhar dos dois lados, poderíamos fazer também um spray de Ocitocina, para o candidato se aplicar antes do “Bafômetro do Amor”.
Não está longe o dia, senhoras e senhores, que o amor vai ter um diagnóstico laboratorial.


quarta-feira, 9 de julho de 2014

Autoindulgência

Hoje acordei com aquela sensação de irrealidade, pensando se o que aconteceu ontem não foi apenas um sonho ruim. Hoje iríamos enfrentar a Alemanha e ganharíamos num jogo duro, mas leal. Um a zero, com gol de um dos malditos de nosso time, Fred ou Hulk. Mais alguns minutos e a memória do chocolate que o Brasil tomou da Alemanha se impôs. Óbvio que o experiente e carismático Felipão hoje virou um técnico superado. A mídia clama por um técnico estrangeiro, mas parece que é Tite que vai assumir a seleção. Os cronistas clamam por reforma do Futebol. A única nota que me arrancou um sorriso foi saber que Marin e Del Nero, a dupla Debi e Lóide que pretendem mandar no futebol brasileiro, está se borrando com medo de CPI e de medidas que varram essa corja do comando. E, por falar em corja, nossa presidente Dilma também teme que a tragédia do Mineirão contamine a política e a economia do país. Se são esses que estão incomodados, então pode não ter sido em vão.
O volante/armador/atacante Toni Kroos, um dos melhores jogadores dessa Copa, senão o melhor, que enfiou dois dos sete gols na meta de Júlio César, falou algo que me chamou muito a atenção em sua entrevista coletiva: o time da Alemanha sabia muito bem da fragilidade emocional da seleção brasileira, vergada pela expectativa e responsabilidade de ter um país nas suas costas. Em post anterior eu brinquei que gostaria de ter um time de autistas, que congelassem o ruído e a vibração da torcida e só visse o gol adversário e a necessidade de enfiar lá dentro o maior número de bolas. Estava sendo tristemente profético, mas com o time errado. Toni Kroos revelou o plano de fazer um ou mais gols logo de cara para desestabilizar emocionalmente o time do Brasil e dominar completamente o jogo. Havia uma percepção óbvia, direta dessa fragilidade e ela foi explorada com frieza e objetividade. Sem essa de família Scolari, ou entrar em campo com a mão no ombro do colega, assim tipo Sete Anões; a Alemanha não viu, não ouviu, não sentiu: limitou-se a enfiar o maior números de bolas dentro de nosso gol. No finalzinho do jogo, Özil perdeu um gol na cara de Júlio César. No contrataque, Oscar fez nosso gol solitário. Ele levou uma bronca no meio de campo de seus colegas. E olha que estava sete a zero. Não interessa. Era para ter enfiado mais um.
No primeiro post sobre essa Copa do Mundo que graças a Deus está terminando, falei sobre a nossa pior doença cultural, que é a autoindulgência. O fim desse evento vai nos permitir voltar a nosso país em recessão e com um colapso de infraestrutura, mas que precisa de pessoas trabalhando e produzindo, não de especulações infinitas sobre quem iria substituir Neymar. Enquanto nossa seleção assistia palestras motivacionais recheadas de obviedades para bater palminhas e entrar em campo gritando, a Alemanha planejou meticulosamente todos os seus passos e o que seria necessário para sair desse país com o caneco. Planejou inclusive a melhor maneira de entrar na nossa psique e encontrar o ponto fraco que levou o time ao maior colapso emocional que já houve em nossa seleção em toda sua história.
Pelo visto, na Segunda Feira o caneco vai estar na bagagem dos chucrutes. E nós vamos retomar a nossa vida, pois este país precisa muito de gente produzindo. Pra frente, Brasil. Tem uma dúzia de pessoas vivendo do Bolsa Família que precisa de nosso trabalho. Vamos que o Real caiu em nossa cabeça por sete vezes.

domingo, 6 de julho de 2014

Neymar e a Banalidade do Mal

O psiquiatra suiço Carl Jung era filho de um pastor protestante. Seu pai era um homem fraco e deprimido que morreu prematuramente. É justo imaginar que uma boa parte de sua obra psicológica foi uma forma de responder a questões que seu pai se recusava a tentar entender. Para Jung, o Bem, o Mal, a vida e o ensinamento de Jesus eram uma verdade psíquica viva e atual, algo para ser compreendido, não ser sepultado debaixo do cimento do Dogma. O seu pai defendia que o Dogma deveria ser respeitado e pronto. Jung dedicou uma boa parte de sua vida para demonstrar que essa visão não era a mais correta.
Obviamente, Jung andou às turras com Protestantes, Católicos e, por outros motivos, com os Judeus. Uma das pendengas com a Igreja Católica foi sobre a natureza do Mal. Jung discordava que o Mal seria apenas algo que ocorre pela privação do Bem. Essa ideia está gravada de maneira mais profunda em nossa Psique e Cultura do que podemos imaginar. Quando se estuda um sociopata ou um serial killer, logo vamos procurar por terríveis abusos e privações de infância. É claro que na maioria dos casos, vamos encontrar. O imprinting da violência e do abandono de transmite de geração em geração, e filhos de mães abandonadoras vão ter uma chance bem maior de reproduzir esse comportamento do que filhos de mães amorosas. Mas Jung via no Mal uma realidade psíquica própria. Como uma expressão de uma função na Natureza. Haveria pessoas naturalmente vocacionadas para exercê-lo, bastando oferecer a elas a devida oportunidade para fazê-lo.
Assisti outro dia ao filme “Hanna Arendt”, sobre a filósofa judia alemã que dedicou grande parte de sua obra ao estudo do Mal. Estou frisando a sua origem judaica e alemã porque isso é fundamental para entender o tema central desse filme. Hanna Arendt fugiu da Alemanha no alvorecer do Nazismo e dava aulas de Filosofia nos Estados Unidos. Foi contratada por um importante órgão de imprensa para cobrir o julgamento de um genocida nazista, Adolf Eichman, um dos executores da chamada “Solução Final”. Eichman foi identificado e preso pelo Mossad vivendo uma vida pacata na Argentina, e em nada lembrava o monstro que ordenou o extermínio de centenas de milhares de vidas de pessoas que nada fizeram contra ele. O seu julgamento foi no início dos anos 60 e sua linha de defesa frisou que ele foi um mero executor de ordens superiores e que ele não tinha a capacidade e o direito de questionar essas ordens. Transformou-se, então, num mero autômato da Morte, sem esboçar sentimento humano com relação a o que fazia.
Hanna Arendt, depois de um longo período de pesquisa e reflexão que quase levou seus editores à loucura, escreveu uma longuíssima matéria sobre o julgamento de Eichman, onde destacou a perplexidade de ver um homem tão medíocre, tão desprovido de qualquer inteligência ou capacidade especial ter sido capaz de dar a Morte uma característica industrial, como uma linha de montagem. Hanna analisou no mesmo ângulo os judeus que colaboraram com os nazistas nos Campos de Concentração e os jovens oficiais germânicos que mandavam seus semelhantes para a morte em massa sem nenhuma culpa e, acima de tudo, sem nenhuma reflexão. Esse foi o tema mais importante do artigo de Hanna: o Mal havia se tornado algo banal e qualquer imbecil poderia assumir o comando da linha de montagem. Obviamente que seu artigo foi incompreendido, para dizer o mínimo, e ela sofreu um verdadeiro linchamento intelectual e moral após a sua publicação. O filme mostra a sua tentativa irredutível de defender o seu olhar em contraponto a todos que queriam transformar o oficial nazista num titã da maldade. Foi classificada como uma traidora de seu povo e da compaixão humana. Hoje, mais de meio século depois, a sua visão sobre o Mal continua sendo comprovada, até pela Neurociência.
Neymar saiu da Copa do Mundo graças a uma joelhada de um jogador da Colômbia, Zuniga, que se caracteriza pelo excesso de vigor físico em detrimento de um Cérebro pouco privilegiado. Se houvesse um poste em campo, correria o risco de um Trauma de Crânio, pois corre sempre em linha reta e de cabeça abaixada. Neymar fez algumas firulas encima dele durante o jogo. O que me convence que a joelhada de Zuniga foi um ato de maldade banal e estúpido foi a sua reação posterior, de se eximir completamente do ocorrido, como um lance normal de jogo. Nenhum tipo de sentimento pelo ocorrido. Um ato banal e sem sentido de agredir um semelhante que ganha em um trimestre o que Zuniga não receberá em toda a sua vida.
Jung e Hanna Arendt tinham, ambos, razão. O Mal existe e se manifesta melhor onde campeia a estupidez.