domingo, 24 de agosto de 2014

Terapias e Terapeutas

Recebi um e-mail de uma cliente querida, que me deu conta de que está fazendo algum workshop terapêutico exótico, baseado em alguma técnica de renascimento espiritual, quântico ou holístico, ou tudo isso junto, e me pergunta o que eu acho disso. As pessoas imaginam que os psiquiatras e os psis em geral são uma espécie de Oráculo preparado a emitir opiniões e juízos de valor sobre quase todos os assuntos. O que a maior parte dos projetos terapêuticos tentam, desde muito tempo da evolução humana, é ajudar os humanos em seu processo de Desenvolvimento, da Gestação à Velhice, tentando levar uma vida razoavelmente positiva e que traga benefício e cuidado à sua família e ao seu grupo.
Freud descobriu também uma nova senda, muito explorada pelo business de montar uma seita, ou uma nova técnica de terapia de nossa universal sensação de medo e de vazio diante da vida e do futuro: a exploração das Memórias. Freud descobriu que nossa psique tem determinados bloqueios que não aparecem nas Tomografias. A essência de todas as terapias, mais ou menos picaretas, é a tentativa de interferir nesses bloqueios e libertar a Psique de suas amarras e medos. Se possível, abrir a mente das pessoas para o Devir, esse monstro que nos assusta todo dia. Um experimento clássico de genética de comportamento coloca um grupo de ratinhos num ambiente com pouca comida. Os ratinhos que exploram mais o ambiente terão uma chance maior de sobreviver, enquanto que os ratinhos receosos ou tímidos vão passar mais aperto. Coloque nesse ambiente um predador e os ratinhos valentes vão ser os primeiros a virar almoço. Isso significa que saber trabalhar os medos e tomar iniciativas são características que podem trazer o sucesso ou o fracasso em nossa evolução, dependendo do ambiente que vai receber esse comportamento.
Cada guru ou “Facilitador” de workshop vai utilizar alguma técnica para desfazer bloqueios e instalar a esperança, com mais ou menos efeitos colaterais. Uma cliente foi num fim de semana de fortalecimento de autoestima e resolveu aproveitar a sua energia turbinada por rituais de tambores e afirmações positivas e ligou para um cara com que estava há semanas de chove e não molha: saiu com o cara, ficou com ele, liberou todas as energias da deusa do amor e as euforias de Afrodite, para descobrir no dia seguinte que o cara continuava o mesmo meia boca de sempre, com aquela cara de “veja bem” que as mulheres conhecem tão dolorosamente. Após uns dois ou três “não posso prometer nada”, ela parou de invocar Afrodite e deve ter se inscrito no workshop de Athena, uma deusa que sabe usar a cabeça, até porque nasceu da cabeça de Zeus.
Concordo e acredito que estamos todos no business de transformar bloqueios e abrir caminhos de criatividade e busca nessa vida. Já escrevi muitas vezes do papel importante dos terapeutas no encorajamento de nossos ratinhos medrosos ou na orientação dos ratinhos atirados demais, mas o trabalho demanda tempo, repetição e dedicação amorosa de ambas as partes, terapeutas e pacientes. Intervenções pontuais e exóticas produzem algumas cenas estranhas, como andar em brasas, bater o bumbo ou constelar antepassados, o que resulta em uma pequena euforia que dura umas doze horas, para depois voltarmos aos nossos hábitos neuróticos de sempre. Construir e desconstruir a nossa psique é trabalho delicado, que requer mãos habilidosas, e mais do que um final de semana. Requer, como falei num post recente, a incidência do tempo.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

A Gargalhada de Patch Adams

Estava falando na semana passada sobre a importância da Esperança para a superação de dificuldades, como uma doença grave, por exemplo. Lembro de um filme antigo com o Michael Keaton, em que ele tem uma doença terminal e o médico vem falar com ele cheio de números e estatísticas para comunicar a ele que a vaca estava indo para o brejo e era bom ele deixar as suas coisas meio arrumadas para quando acontecesse o pior. Ele ouviu tudo engolindo em seco e, antes de ir embora, falou para o cara que ele não podia ter feito aquilo. Aquilo o que?, perguntou o médico por trás de seu avental e sua gravata francesa. O paciente olhou na sua cara e falou: “Você não podia ter me tirado a esperança. Era a única coisa que eu tinha”. Há alguns dias, uma paciente minha foi encaminhada, no meio de um processo duro de tratamento para uma doença neoplásica, também conhecida como Câncer, para uma avaliação da médica responsável pelos Cuidados Paliativos. A colega começou a conversa assumindo que ela deveria saber que a sua doença era incurável. “Fiquei sabendo agora”, ela respondeu de chofre. A jovem doutora não sabia onde enfiar a cara. A sua voz estava trêmula para me dizer que a massa não tinha diminuído e os médicos estavam reunidos para decidir se valia a pena uma reoperação. Assim como quem calcula o risco e o benefício, de posse das estatísticas.
Fico muito grato por ter trabalhado em hospitais com esse tipo de paciente, porque a sensação mais devastadora que ele experimenta nessas situações é a mais profunda solidão, como se todos fugissem com os olhos quando pede por orientação e, por favor, por um plano. Os médicos são formados com a ideia de que sua função é curar todo mundo e reagem muito mal quando as coisas não estão evoluindo bem. É uma sensação de vergonha e impotência que deixam os pacientes desnorteados. Não se trata de ser candidamente otimista, nem de fingir que as coisas estão indo bem quando não estão, mas de demonstrar que a hora é escura e não está dando para ver muito à frente do nevoeiro, mas navegar continua sendo preciso. Várias vezes ouvi de pacientes o pedido de não desistir deles. Lembro de um filme infantil com o Jim Carrey, “Desventuras em Série”, onde três crianças órfãs foram colocadas aos cuidados de um tio perverso que tenta matá-las para ficar com sua herança. A menina mais velha tem uma crença, dita em off pelo narrador, de que “sempre tem um jeito”. Em situações difíceis, ela amarra uma fita em seu cabelo, faz um rabo de cavalo e sempre descobre um jeito de sair das situações mais desesperadoras. Lembro dela amarrando o cabelo quando naquelas situações clínicas que dá vontade de cavar um buraco e desaparecer. Amarramos os neurônios e vamos ver que jeito que se pode dar. Sempre tem um jeito. Não desisto de navegar, mas não navego sozinho. Vamos juntos, no mesmo barco.
Lamento muito que o ator que encarnou a Esperança e o riso diante da morte, que foi Robin Williams, tenha morrido só, enforcado em seu quarto. Dava para notar que ele era capaz das maiores piruetas de alegria, assim como encarnar uma tristeza incrivelmente profunda em seus papéis dramáticos. Era Bipolar, diria a Psiquiatria. Provavelmente, era. Mas a morte é um Mistério, o suicídio também. Prefiro ficar com a imagem de sua gargalhada diante do medo e da incerteza da vida. Gargalhando diante da Morte, como Patch Adams.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Esperança em Brasa

São muito antigos os estudos em bebês submetidos a um período de isolamento em instituições. Quando pedem por ajuda, o bebê começa com um resmungo, que vira choro e, se o pedido de ajuda continua sendo ignorado, por uma razão ou outra, o choro ganha contornos de agitação desesperada, que dura um tempo de fúria e resfolegos. Após um tempo em que esse choro não produz ajuda nem resultado, o bebê entra numa espécie de torpor e indiferença quanto aos estímulos do meio e a capacidade de interagir e, por que não dizer, confiar nas pessoas que lhe cuidam. Se o abandono é prolongado, o bebê pode ficar cada vez mais alheio e “frio” quando recebe estímulos amorosos.
George Vaillant, em seu livro “Fé”, descrito em outros posts deste blog, cita um estudo em que ratos são encurralados em um canto de sua gaiola e recebem choques elétricos (não fui eu que projetei esses experimentos, mas eles produziram belos modelos sobre a construção do medo em nosso Cérebro. Obrigado aos bravos roedores). Os ratos são divididos em dois grupos: o primeiro não tem como fugir e, após um tempo, entram no mesmo estado de torpor dos bebês abandonados. O termo técnico para isso é “Desamparo Aprendido”. Outro grupo de ratinhos conseguiu fugir de seus agressores e continuou tendo um comportamento semelhante ao normal depois do ocorrido. Finalmente, para completar o estudo, foram injetadas células cancerosas nos dois grupos. A amostra dos ratinhos “esperançosos”, os que conseguiram fugir dos choques, teve uma sobrevida e recuperação espetacularmente melhores: apenas 27 por cento dessa amostra veio a morrer de Câncer, em detrimento de 63 por cento dos ratinhos sem esperança, os que não encontravam saída.
Fico pensando nesses estudos quando vejo aqueles médicos americanos cheios de números e estatísticas avisando aos pacientes que a vaca provavelmente está indo para o brejo e não vale a pena alocar as esperanças contra os números. No filme “Dallas Buyers Club”, também citado em posts anteriores, o médico do PS chega para o personagem principal do filme e avisa que ele é soropositivo e desenvolveu a AIDS, e, pelos exames, não chegaria a ter um mês de vida. O cowboy mandou-o para vários lugares e saiu pelo mundo estudando e procurando ajuda, contra o esperançocídio que o colega tinha executado com suas palavras objetivas e científicas. Ele sobreviveu por alguns anos e ajudou muita gente a enfrentar o surto inicial da AIDS com a sua esperança e sua recusa de se curvar diante do tal do realismo que lhe foi esfregado na cara. Em tempos de Ebola, é bom lembra dessas histórias.
Nosso Cérebro tem uma capacidade ímpar na natureza de fazer projeções do Futuro. Isso é uma vantagem evolutiva extraordinária, assim como uma fonte de encaminhamento psiquiátrico, quando as projeções de futuro são sempre uma negação da esperança. O fato é que se agarrar a planos mirabolantes e esperanças infundadas destroem tantas vidas quanto as pessoas que aprendem a não esperar nada de si nem do outro, nem da vida.
Irving Yallon, autor de Best Sellers Psi como “Quando Nietzsche chorou”, confessou em um de seus livros sobre a prática da psicoterapia que, um dos melhores trabalhos que conseguiu realizar em sua vida de terapeuta foi continuar animando e dando suporte aos seus pacientes nas horas mais difíceis, na hora em que tudo fica escuro e tudo parece que vai dar só errado. Essa foi uma opinião muito corajosa, porque os terapeutas também são criados para serem muito objetivos e neutros, não a ficar gritando da arquibancada: “Vamo’ lá! Não desiste, continua remando, continue andando no túnel (sem luz no final)!” Concordo com ele. É das tarefas mais nobres da terapia, manter a brasa da esperança acesa. E tome sopradas. Quanto mais vezes encontramos a saída, mais valentes ficamos.

domingo, 3 de agosto de 2014

Carpe Diem

Há uma série de pequenas palestras no Youtube e outros canais da web, chamadas TED Talks. O subtítulo é “Ideias que Vale a Pena Espalhar” (tradução livre). São inserções curtas, de até 20 minutos, sobre os temas mais diversos. Num post anterior eu falei sobre uma palestra que abordou a Não Violência. Hoje assisti um novo TED, de um garoto de 17 anos chamado Sam Berns. Há um contraste entre a sua imagem, pré humana, a sua voz de criança e a sua aparência de idoso com alguma doença terminal e a força de sua fala. Sam tem Progeria, uma doença rara onde o processo de envelhecimento celular é acelerado pela síntese de uma proteína defeituosa que afeta a membrana das células. Sam tem a aparência de um homem de mais de cem anos, pesa 23 quilos e perde o fôlego em frases mais longas. Ele imediatamente nos transmite a sensação de vergonha por nossas preocupações mesquinhas e medo da vida. Sam sabe que não vai atingir idade para materializar muitos de seus sonhos. A sua filosofia para lidar com tudo isso inclui focar o que pode fazer, não o que nunca vai poder; cercar-se sempre de pessoas que ama e olhar para frente, não gastando energia com preocupações sobre o seu futuro e, ele não menciona mas é óbvio, sua morte prematura.
Isso bem que pode terminar como um vídeo viral na Internet, daqueles que recebemos de tias e de pessoas bem intencionadas e isso seria uma verdadeira pena. A fala de Sam é muito mais profunda e delicada que um testemunho de Revista Seleções ou entrevistas em programas de variedades; Sam dá um testemunho de vida carregada de Atenção Plena, ou Mindfullness. O exercício do Carpe Diem (algo como “Aproveite o Dia, ele pode ser o seu último) para ele é um fato e um exercício diário. Olhar para frente e ter planos para o futuro é uma forma de contornar a sensação de que o futuro é um beco sem saída. Mas Sam dribla o maior risco de sua apresentação, que era de cair num otimismo bobalhóide respaldado por sua condição terrível. Ele escapa bem dessa cilada. Fala abertamente sobre os dias ruins, as crises de angústia e as ideias sombrias que o acometem, como acometem a todos nós. Essa, para mim, é a parte mais genial de sua fala: Sam sabe que não adianta ignorar nem fugir desses pensamentos. Pensamentos que com certeza devem incluir desistir de tudo e ficar em casa, esperando pela morte. Sam descreve o processo de lidar com esses pensamentos em 3 fases: Reconhecer o sentimento ruim, acolher o pensamento, deixá-lo por lá até descobrir um jeito de lidar com aquilo e superá-lo. Uma verdadeira aula de manobras cognitivas para resolver crises de angústia e pensamentos reverberantes sobre o futuro.
Pesquisas em Neurociência mostram que se macacos criados em isolamento passam a comer compulsivamente e se automutilarem. Quando colocados com outros de sua espécie, podem lutar até a morte e não conseguem fazer parte do grupo. Qualquer semelhança com humanos não é mera coincidência.
Sam aprendeu a manter a sua humanidade sendo parte de seu grupo. Ele pode causar tanto a piedade quanto o horror nos que o cercam e não conhecem. Mas a sua luta mais do que corajosa é para se manter dentro do âmbito de sua condição humana. Por isso, a sua última recomendação é “Nunca perca uma festa, se puder ir”. Essa me acertou na boca do Estômago.