domingo, 28 de setembro de 2014

De Dentro Pra Fora, De Fora Pra Dentro

Estava no último Congresso Brasileiro de Psiquiatria, no taxi junto a um colega querido, quando papo vem, papo vai, percebemos que, ele lacaniano, eu junguiano, compartilhávamos a paixão pela Neurociência e pela Mindfulness. Outra amiga perguntou o que era a tal de Mindfulness, o meu amigo e muy amigo passou a pergunta para mim. Eu falei sobre a técnica de Meditação, que privilegia a sensação de hiperpresença e hiperpresente, em contraponto à nossa eterna tendência a viver numa antecipação do Futuro. Para exemplificar, contei para ela de um exercício de workshop, em que a palestrante deu para cada participante uma uva passa, que devíamos mastigar uns cinco minutos, para ver o que acontecia. Impressionante como uma uva passa pode modificar seu gosto, consistência e sensação na medida em a mastigamos sem a intenção de engolí-la. Querendo ou não, esse exercício nos obriga a prestar atenção de maneira plena no gosto e no ato de mastigar, coisa que não fazemos no dia a dia. Ela olhou a gente com aquela cara de ver os efeitos da Andropausa e dois colegas outrora mais científicos. Acabei me despedindo, lembrando a meu colega de não mencionar a Mindfulness na Reunião Clinica. Seria essa forma de Meditação e de Vida algo exótico e pouco científico?
Evidentemente que a Meditação com suas diferentes técnicas e tradições tem sido, cada vez mais estudadas e comprovadas, inclusive em estudos controlados e bem feitos, como benéficas às pessoas que as praticam. Isso já está escrito em vários posts deste blog. Mas não é essa a questão. A questão é: Como treinar este estado de Presença numa época em que tudo nos convida à dispersão? Isso parece mais uma daquelas coisas que a gente precisava fazer, mas nunca fazemos, como diminuir o glúten, viver no Presente ou maneirar a comida nos finais de semana. Todo mundo olha com aquela cara de “É verdade, é uma coisa que eu preciso fazer”. E prosseguimos nossa vida, checando os e-mails e voltando às nossas infinitas preocupações.
Estava assistindo uma aula na Internet em que o Neurocientista afirmava que o Cérebro é uma necessidade evolutiva gerada pelo movimento complexo. Deu como exemplo um bicho marinho que se reproduz enquanto está em movimento, até se fixar em um coral. Quando finalmente encontra a sua boquinha, o bicho digere o seu Cérebro e seu Sistema Nervoso e passa a funcionar como uma planta anencefálica. É como o governo Dilma, podemos exemplificar. O Cérebro se desenvolve com o seu uso, assim como as conexões e redes neurais. Isso quer dizer que a Central Telefônica cresce e se desenvolve na medida em que é alimentada pela fiação. Quanto mais estímulo vem dos fios, maior a capacidade da Central. A recíproca também é verdadeira: se a Central é mais ativa, os fios também funcionam melhor e com mais velocidade. Tem uma música antiga de Valter Franco, que adoro, que dizia: “Viver é afinar o instrumento\ De dentro pra fora, de fora pra dentro\ A toda hora, todo momento \ De dentro pra fora, de fora pra dentro”. Além de poeta, neurocientista. Das Sensações para a Cognição, da Cognição para as Sensações.
Este é o princípio da Midfulness. Não é apenas uma forma de Meditação, ou uma técnica mental. É um exercício constante de sentir cada toque, cada gosto, cada movimento respiratório no sentido de ampliar a capacidade de perceber, antes, e fazer novas conexões, depois. Criar, dessa forma, novos caminhos neuronais, que é uma definição de criatividade.

domingo, 21 de setembro de 2014

A Cura

Andei metendo o pau na série escrita e produzida pelo psicanalista pop Contardo Calligaris, “Psi”. Falei que ele estava em processo de furioso enamoramento de si mesmo, termo que peguei emprestado de Nelson Rodrigues. Lembrei ao final do comentário que não iria perder nenhum episódio, pois para mim aquilo era diversão garantida. Cometi um grave erro ao afirmar que o personagem que é amigo do psicanalista Carlo e coveiro, tinha o nome de Caronte, o que eu achei uma forçada de barra daquelas. Errado. O personagem se chama Severino e deve ter sido chamado de Caronte por Carlo em alusão ao barqueiro que transporta em seu barco as almas para o Reino dos Mortos. Crítica apressada e desinformada, pela qual me desculpo.
Carlo repete uma frase que é de seu criador, Calligaris, afirmando que, em uma análise, o terapeuta é o Remédio. Que frase estranha, ainda mais na boca de um freudiano. Antes de fazer outra crítica apressada, imagino que a disposição do terapeuta em ouvir, seu interesse no outro e intenção sincera em ajudar contribuem, e muito, para o sucesso terapêutico de um tratamento. Imagino que o terapeuta ajude com a sua sanidade e com a sua Ferida que, se espera, esteja trabalhada e olhada em seu próprio processo de terapia. Outro dia estava vendo uma entrevista de um renomado colega, Psiquiatra e Professor de Psiquiatria, entrevistado por Marília Gabriela. Ele mencionou um estudo sobre a Doença do Pânico em que tomou uma substância que era capaz de induzir uma crise, e foi a sensação mais aterrorizante de sua vida. Marília Gabriela, entrevistadora matreira e experiente, aproveitou para avançar no tema e perguntar se ele, como ser humano, já tinha experimentado os sintomas que causavam tanto infortúnio em seus pacientes. Pressionado, o colega foi mal e respondeu: “Não, eu sou normal”. Os seus pacientes ganharam automaticamente o crachá de anormais com essa resposta. Um terapeuta não precisa ser um doente terminal para compreender um paciente com uma doença grave, não precisa ser um usuário de Cocaína para atender um dependente químico, nem precisa ter passado por uma crise de Pânico para entender o quanto ela é sofrida e desestruturante para um paciente. Mas nunca deve se colocar na posição de normalidade em contraposição à suposta anormalidade que está à sua frente. Talvez ele possa curar muito mais com a sua própria ferida do que com seu “Ego Forte”.
Lembro de um sonho muito marcante de um paciente que é visitante eventual desse blog e nem sei se vai lembrar que este sonho é dele: “Sonha que tinha uma ferida muito grande, uma chaga em seu tornozelo. Para curar esta ferida, tinham amarrado perto da ferida um pé de galinha. A proximidade do pé do animal fazia com que a ferida cicatrizasse...”. Imagino que o sonho descreva o processo lento de reparação que se dá num trabalho de psicoterapia. Imagino também que aquilo era uma crítica bem humorada do Inconsciente do meu cliente, brincando com uma tentativa excessivamente intelectual de entender o processo da parte de ambos, terapeuta e cliente. O que cura é o pé de galinha, ou seja, o Arquétipo da Cura. O paciente pode associar a imagem às boas canjas que sua mãe fazia quando estava doente, mas imagino que a imagem representa a capacidade de uma Psique encontrar os seus caminhos de Cura, o que pode e deve ser ativado pela Relação Terapêutica. O terapeuta não é o remédio, mas pode ajudar o paciente a limpar as suas feridas e transformá-las. E isso você só aprende fazendo; não tem nenhum manual que ensine. O Pé de Galinha é o processo de cicatrização que se inicia quando resolvemos cuidar de nossa ferida, em vez de fazer novas feridas nos outros.

domingo, 14 de setembro de 2014

O Sorriso (Interior) da Monalisa

Tem um exercício de meditação taoista em que os órgãos são visualizados pelo meditador, que envia um sorriso para cada área de seu corpo. Um sorriso para o Fígado, outro para o Intestino e por que não, um sorriso para as partes do corpo que não gostamos. Parece uma coisa boba e sem fundamento, não é? Pois há vários estudos demonstrando que o sorriso, mesmo esboçado, mesmo de Mona Lisa, manda uma mensagem para o Córtex Cerebral e áreas ligadas às emoções que produzem sensações de relaxamento e tranquilidade. Não são só os nossos pensamentos que se manifestam no corpo, nosso corpo que interfere em nossos pensamentos. Parece muito óbvio, mas não é. Quando eu dava aula para o quinto ano de Medicina, dizia para eles que, mesmo que não se sentissem tranquilos diante dos pacientes psiquiátricos, que fingissem tranquilidade. Na época isso parecia uma trapaça, hoje eu percebo que estava dando a orientação correta. Ter uma atitude serena, mesmo de imitação, realmente deixa a mente mais tranquila.
Sempre costumei dizer que as pessoas vem para o consultório com um chachá invisível, e que este crachá é sempre falso. Um se apresenta: “Eu sou uma aberração”; a outra “Eu sou o Pânico”; um terceiro pode se apresentar “Eu sou o maioral, o fodão”. Jung chamou esta máscara social de Persona. Recebemos de nosso ambiente uma imagem do que as pessoas imaginam que somos. Com o passar dos anos, essa imagem pode ser reforçada pela vida. A menina que não é tão bonita quanto as irmãs pode desenvolver uma Persona de intelectual, ou virar uma grande empresária para demonstrar que é a mais aplicada, a mais focada, a mais bem sucedida. Isso pode custar o descuido com a própria aparência ou uma bela Depressão quando se apercebe que todo esse sucesso terminou num quarto vazio, cheio de papéis de chocolates e lenços assoados. O fato é que uma das tarefas das terapias é lançar um olhar nesta tal de Persona e ir subtraindo, pouco a pouco, seu poder. De preferência, trazer um pouco da emoção que se esconde debaixo da máscara. A Máscara costuma ser um lugar solitário. Tirá-la do rosto, quase sempre, dói, porque parece que está aderida à pele. Sem essa proteção tem muita gente que se sente nua. Talvez por isso que é tão difícil para os médicos retirarem seu jaleco e passarem a ser cuidados por outra pessoa, por exemplo.
Na semana passada estava de férias, e via em New York uma nova forma de pedintes: pessoas nem tão mal vestidas, sentadas na calçada, com um papelão de caixa dizendo: “Sou um sem teto e preciso de ajuda”. O mais impressionante é a expressão de tristeza trágica, uma verdadeira máscara de tristeza que ocupa o rosto dessas pessoas, sim, mais de uma pessoa. Havia pelo menos três pessoas diferentes fazendo essa estranha perfomance. Nessa época de Reality Show, cheguei a pensar que aquilo era uma espécie de intervenção, uma instalação de Arte Conceitual, como havia aquelas vacas coloridas espalhadas pela Paulicéia, a Cow Parade, há pouco tempo. Uma pegadinha, quem sabe. Por que me causou tanta estranheza, nossos mendigos são mais criativos que os mendigos de Primeiro Mundo? Não, não foi isso. O que me causou estranheza foi a máscara de tristeza e seu efeito anti empatia. Talvez por isso eu achei que fosse trote. Aquela tristeza não me gerava compaixão, eu que sou brazuca, imagina os ianques, que vivem naquele “Help yourself or die” ( em tradução livre, “Se vira nos trinta ou morra”). Quase falei sobre a meditação taoista, e o poder de rir para si mesmo e para quem passa na calçada. Garanto que seria um projeto de marketing muito melhor, gerando muito mais moedas. Essa será a campanha da semana, para os visitantes desse blog: pratique o sorriso interior (o exterior também é aconselhável).

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Oração Intencional

Nos dias de hoje, ir ao médico é sempre sair com uma prescrição de exercícios físicos. São poucas as especialidades que não se beneficiam direta e profundamente da prática de exercícios, e já presenciei mudanças dramáticas de quadro clínico quando alguém consegue incluir na sua rotina esse hábito. Reconheço que não é fácil. Eu faço exercícios pelo menos três vezes por semana, geralmente na bicicleta ergométrica. Como técnica motivacional coloco um filme no Netflix e só posso retomá-lo na próxima pedalada. Vou vendo o filme ou a série de meia em meia hora de exercícios, até acabar. O ruim é quando escolho um filme cabeça demais, desses que os psiquiatras adoram. Filme lento não ajuda a pedalar.
O último filme que eu coloquei para animar as pedaladas foi “Deus Não Está Morto”, um filme novo dessa safra de filmes Gospel que hora ou outra atravessam o meu caminho. Um esclarecimento para o leitor ou visitante eventual dessa página: quando você lê que eu sou um psicoterapeuta de origem junguiana, isto significa que posso falar em Deus sem ficar corado. Jung trouxe para o seu século a necessidade de um entendimento profundo do arquétipo Cristão e uma das tarefas de sua terapia é a criação de uma consciência mais ampla, uma consciência Crística. Isso vale aos junguianos o escárnio e a desconsideração de muitos de seus pares, de outras linhas. Quando eu critico um filme gospel, portanto, não é de uma perspectiva farisaica de cientista ou pseudocientista. Estou falando de dentro, não de fora do tema.
Voltando ao filme, ele é uma singela fábula sobre um calouro que vai cursar um curso introdutório à Filosofia como um dos assuntos de sua grade, com vistas à faculdade de Direito. O professor do tal curso exige que os alunos escrevam que “Deus está morto” numa folha de papel, como pré requisito para o seu curso, que vai falar sobre filósofos que construíram a sua obra fora da ideia de um Criador. O calouro se recusa a entregar a declaração, e isso vai gerar a ira do professor malvado, que vai passar a perseguir o rapaz. Ele perde a namorada (que não aceita o embate) e passa a estudar longamente o tema para enfrentar o falso mestre num “julgamento de Deus”.
O filme se torna muito frágil na figura do tal professor, cujos argumentos desmoronam facilmente diante do estudo consistente do bravo advogado de Deus. Um argumento fácil de se colocar de ambos os lados, do Ateu ou do Teísta: o que chamamos de Deus está fora do campo do que chamamos de Existência, está fora do que a nossa consciência humana consegue abarcar empíricamente. Se alguém quiser fazer um estudo provando a sua Inexistência, será facilmente bem sucedido, assim como se alguém fizer um estudo sobre curas feitas pela oração, também vai ter dados para provar a sua hipótese.
O incrível é que dediquei umas três pedaladas para ver o filme inteiro, que acaba com vários personagens convertidos e aceitando Jesus. Gosto da cena em que uma jornalista descrente vai tentar “desmascarar” a banda Gospel em entrevista agressiva e termina a mesma rezando com os rapazes que vão fazer depois um rock chatérrimo com músicas enlevadas para fechar o filme. A oração que eles fazem com ela é bem legal e vale as pataquadas que toleramos no caminho. O vocalista pede a Graça sobre ela, que está doente, para que tenha “a fresh new start”, um recomeço fresco, sem as dores e as mágoas que trouxe de sua vida “anterior”. Gosto desta cena porque toca na força da oração intencional como veículo de cura. É bonita a sensação da intenção amorosa que compartilham e foge do cristianismo chapa branca de outras cenas. Isso, a força da oração intencional, bem que seria um bom tema para outro post, mesmo correndo o risco de apedrejamento científico.