domingo, 30 de novembro de 2014

Psicologia Positiva e Nem Tanto

Como eu sou um tanto lento com tecnologias, internet e provavelmente serei o último a ter Facebook neste planeta, virei um fã tardio dos TEDs, que descobri que é uma sigla de Tecnologia, Entretenimento e Design. Assistindo a uma de suas aulas, me deparei com o tema da Psicologia Positiva. A explanação do colega era consistente e bacana, mas tive ímpetos de pular para o próximo TED que explicava como as pessoas ficam dependentes de uma seita. A Psicologia dita Positiva (não que as outras Psicologias sejam Negativas, suponho) questiona a ênfase excessiva da Psicologia na visão da Doença; as pessoas se sentem desconfortáveis na presença de Psis em geral (psiquiatras e psicólogas, por exemplo) porque imaginam que eles tem uma espécie de visão de Raio X que vai detectar todas as taras e as loucuras que escondemos em nosso íntimo. A Psicologia Positiva não teria em seu foco deixar as pessoas menos infelizes, nem caçar traumas ou loucuras, mas ajudar o ser humano em sua busca incessante pela Felicidade. Pois é aí, justamente, que a porca torce o rabo.
Nossa busca incessante pela Felicidade é uma fonte permanente de Infelicidade. Os homens esperam a Felicidade no volante de uma Ferrari, as mulheres buscam por um Príncipe tão Encantado quanto descolado e muitos lenços de papel são gastos nessa busca incessante. Nada é mais falso do que a ideia de que somos criadores de nossa realidade. Por outro lado, nada me parece mais verdadeiro. Uma afirmação que pode ser absolutamente errada ou certa, sem dúvida está na fronteira do paradoxo. O Paradoxo, senhoras e senhores, é exatamente o ponto onde navegam muitas das psicoterapias bem feitas. A felicidade como busca, ou como exercício, pode ser o tanto o caminho ou a cenoura que faz os burros puxarem a carroça do Capitalismo e da Cultura de Massa.
Estranhamente podemos acabar defendendo o direito de todo ser humano à sua própria Miséria. A vida é feita de Mistério, e o Mistério está por traz de muitas de nossas buscas, como o de Conhecimento, Justiça, Sabedoria, Iluminação Espiritual ou Paz de Espírito. Talvez o sofrimento intrínseco à nossa vida consciente seja também um direito. A busca incessante de prazer como fonte de Felicidade já foi contraindicada por muitos sábios e iluminados, mas a Psicologia Positiva não se opõe à busca de Prazer como fonte de Felicidade. Eu, particularmente, não me oponho à experiência prazerosa da vida ou da passagem do tempo. Passamos metade da vida com medo de viver e a outra metade com medo de morrer. Medo da passagem do tempo, medo do que ele nos reserva. Medo da felicidade, ou da infelicidade. O prazer não reduz o medo. Muitas vezes, aumenta o medo de ter e de perder.
A excessiva ênfase em nosso tempo das autos: autoestima, autodesenvolvimento, autoexpressão, autoajuda e quantas autos quisermos acrescentar, não vem trazendo muita felicidade para quase ninguém, com exceção do autores de autoajuda. Nosso corpo, nossa psique, nossa felicidade é um reflexo do que fazemos com nossa vida e nossa Psique. Nossa tarefa é equilibrar saúde mental, econômica, afetiva, física e espiritual em apenas uma encarnação. Felicidade é um efeito colateral desta construção. Uma Psicologia que se entende como Positiva é a que ajuda o Sujeito não apenas a buscar, mas antes entender o equilíbrio delicado de todas essas saúdes. A Felicidade é uma vivência construída interna e externamente. Como já escrevi em outros posts, é afinar o instrumento, de dentro pra fora, de fora pra dentro (como a música já cantava).

domingo, 23 de novembro de 2014

Dependentes

Estava conversando numa sessão sobre a possibilidade de aumentar o número de sessões, já que o assunto estava ficando mais bacana e as visões internas, as introvisões que chamamos de Insight, estavam se tornando mais ricos e mais presentes no trabalho. Veio a dúvida se aumentar a frequência das sessões não seria criar uma dependência do terapeuta. Esta é uma questão que vira e mexe aparece em nossos sofás terapêuticos: a indústria da terapia, seja medicamentosa ou psicoterápica, busca, pelo menos a nível inconsciente, induzir uma espécie de dependência nas pessoas? Essa indústria é uma máfia silenciosa que captura as pessoas para dentro de uma bolha onde o remédio e a sessão serão drogas pesadas, que induzem mais e mais uso (e abuso)?
Assisti recentemente um documentário sobre o que aconteceu em nossa sociedade com a substituição da dieta vegetal de nossa vida agrícola para a dieta com forte presença da proteína animal, ou da alimentação baseada na carne. Os livros de Medicina do início do Século Vinte nem tinham capítulos sobre Infarto do Miocárdio e a Doença Coronariana era praticamente inexistente. Era quase um evento raro, assim como a Obesidade. Com a troca da dieta baseada em vegetais e grãos para o senso comum que não há como eliminar a carne da dieta e quanto mais carne melhor, as doenças cardiovasculares foram se tornando as superestrelas da Medicina. Vamos chegar à idade madura com pílulas para baixar o Colesterol, controlar o Diabetes e a Hipertensão, e tudo isso está fortemente correlacionado com a nossa dieta. O uso progressivo de antidepressivos e ansiolíticos também deve estar correlacionado com esse tipo de alimentação, que nas últimas décadas ainda foi se tornado cada vez mais industrializada e acrescentada de gorduras Trans, doses industriais de Sódio e alimentos cada vez mais desprovidos de nutrientes. Para isso, temos outras pílulas, de vitaminas, para devolver o que foi retirado da alimentação. Estou falando tudo isso para demonstrar que estamos imersos em mais dependências e mais indústrias produtoras de pseudociências e necessidades. Estou tentando diminuir ao máximo o consumo de carne e outros pró inflamatórios de minha dieta. O resultado é, se parar para fazer um lanche numa padaria, não tenho o que pedir. Estamos enfiados em vários circuitos de dependência, os consultórios não estão livres disso. Em alguns países desenvolvidos, se o médico suspende o tratamento antidepressivo e o paciente tem uma recaída e, por exemplo, perde o emprego, o médico pode ser questionado e mesmo processado. Retirar a medicação envolve um acordo de mútua vigilância e cuidado entre médico e paciente. Sem esse cuidado, sem essa confiança, é melhor manter a medicação. Recebo algumas vezes pessoas que estavam mantendo a prescrição de antidepressivos por alguns anos pelo simples fato de não terem mantido o seu seguimento. Dava para ter suspendido ou trocado a medicação, que o sujeito preferiu manter quase como automedicação. Tudo isso para “não ficar dependente” do tratamento.
O Budismo tem um conceito que eu adoro, que é a Interdependência. Não somos apenas dependentes, mas interdependentes. Um tratamento deveria fortalecer esses laços de interdependência e enfraquecer os nós da codependência. É bem mais fácil falar do que fazer. Aumentar o número de sessões porque o processo está se aprofundando e se tornando mais rico é exatamente o contrário de criar Dependência. Significa aprofundar o Silêncio, numa época que somos dependentes do Ruído.

sábado, 15 de novembro de 2014

A Pálpebra dos Lagartos

Depois de duas semanas sem publicar nada neste blog, atendo aos apelos de um de seus doze seguidores para voltar a essas mal tecladas. Não sei se a vitória da senhora Dilma me emudeceu, ou foi melhor me calar para não me juntar ao coro de sandices que se publicou de lado a lado, com direito a racismos, fascismos e outros bichos que ainda estão por aí. Sobre isso, me calo. Vou começar este post com algo bem mais divertido que isso, um poema de Manoel de Barros, falecido aos 97 anos, cheio de luzes e de cores de passarinho, há dois dias. Vamos lá: “No descomeço era o verbo/Só depois que veio o delírio do verbo/O delírio do verbo era o começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos” (Livro das Ignorãças, Ed Record).
Para quem não conhece, Manoel de Barros era o maior poeta vivo deste país que não se importa com poesia. Mais do que poeta e escritor de hai kais pantaneiros, Manoel era um mestre Zen, um cantor de urinóis enferrujados, formigas, do ínfimo, do desimportante, ou, no caso desse trecho de poema, um restaurador da visão de criança que a vida nos subtrai por volta dos sete anos de idade. A criança que diz: eu escuto a cor dos passarinhos. Jesus disse aos apóstolos que deixassem vir a eles as criancinhas, pois deles é o Reino dos Céus. Manoel de Barros nunca citou este trecho, mas levou-o para dentro de suas poesias. A criança escuta a cor, desenha o canto, alucina as folhas e os galhos.
O Zen procura sempre desconstruir em seus koans a nossa estrutura de pensamento, nossa organização cognitiva, nossos a prioris kantianos de Tempo e Espaço. O mestre Zen abole o tempo, o espaço e o encadeamento cognitivo que nos organiza o mundo. Um poeta beatnik, cujo nome me foge, definiu o Zen como “O mundo subtraído de si mesmo”. Manoel, neste poema, começa invertendo o Genesis, que começa com o gigantesco No Princípio: “No Princípio era o Verbo” (este é um princípio retumbante). O poeta não quer saber de começos, só de descomeços, onde o Verbo delira de si e a cor pode ser escutada no canto.
Mais trechos, do mesmo livro: “As coisas que não tem nome são mais pronunciadas por crianças”; “Não tem altura o silêncio das pedras”; “Poesia é voar fora da asa”; “Ando muito completo de vazios”; “Hoje eu desenho o cheiro das árvores”.
Uma criança se delicia com o nonsense, quando colocamos um sapato na cabeça ou viramos o mundo de ponta cabeça. Vivemos num mundo cheio de senso e com pouco bom senso, e tudo queremos sobredeterminar com nossas intencionalidades: para tudo temos metas, objetivos, tarefas a cumprir. Não temos a menor ideia do que é estar completo de vazios ou qual é a altura do silêncio das pedras. Manoel desenhou o cheiro das árvores e as pálpebras dos lagartos.