sábado, 24 de janeiro de 2015

A Teia e a Mão Tecedeira

Steve Jobs fez um famoso discurso numa formatura de Stanford. Para os formandos, prometeu três pequenas histórias. No big deal, ele disse, “Nada demais, apenas três pequenas histórias”. Não eram apenas pequenas histórias.
A primeira delas ele chamou de “Juntando os Pontos”. A primeira “Pequena História” foi sobre o seu nascimento e processo de adoção (uma história levinha, como pode-se perceber). Sua mãe biológica achou que seria impossível conciliar a sua carreira universitária e doutorado com as tarefas de mãe, então encaminhou o bebê para adoção, exigindo apenas que o casal que o adotasse tivesse nível escolar superior, certificando que aquele bebê fizesse uma boa faculdade. Vamos combinar que a moça realmente prezava a vida acadêmica. Tudo bem se os pais fossem terroristas ou abusadores de crianças, mas tinham que, acima de tudo, garantir uma boa faculdade para aquele bebê. O casal que finalmente o adotou era de pessoas humildes e sem curso superior, mas que juraram de pés juntos que aquele moleque iria para a faculdade quando crescesse. Talvez o único ato de rebeldia de Steve Jobs para com a sua mãe biológica foi nunca ter concluído nenhuma curso de nível superior. Ele pediu desculpas para a plateia de formandos para acrescentar que largar a faculdade foi uma das melhores decisões de sua vida. Pois ele passou um semestre nessa Universidade cara, já sabendo que não iria concluir o curso. Começou a fazer matérias que lhe chamavam a atenção, sem uma razão ou objetivo aparente. Um dos cursos que ele fez foi o de Caligrafia. Pensar em Caligrafia hoje em dia soa quase como piada, com o fim da palavra manuscrita. Pois o jovem e pobre estudante gastou os apertados recursos de seus pais estudando caligrafia. Alguns poucos anos depois, quando fabricava o primeiro Macintosh e o primeiro processador de texto, teve a oportunidade de colocar todas as letras, os caracteres e os tipos de grafias, muitas das quais usamos ainda hoje em nossos programas, a partir do tal curso de Caligrafia. Como Bill Gates passou a mão em alguns programas e plataformas do Macintosh, podemos concluir que muitas letras e textos que digitamos em nossos computadores tem alguma coisa a dever para o tal curso de Caligrafia que o jovem Steve Jobs fez sem intenção nenhuma. Jobs concluiu a sua primeira história dizendo que essas coisas nunca são percebidas em seu significado na hora em que acontecem. Elas só podem ser analisadas quando olhamos para trás e juntamos os pontos. Ele recomendou, finalmente, que as pessoas sempre mantivessem contato com a sua intuição para tomar as grandes e pequenas decisões de sua vida, e que algumas poderiam levar alguns anos para finalmente fazer algum sentido.
Foi bom para Steve Jobs não ter seguido nenhuma carreira acadêmica ou científica, senão seria linchado diante da turba. Conectar os pontos, mais do que juntá-los, necessariamente implica numa infinidade de questões. Implica, por exemplo, em um conceito grego caro aos junguianos, que é a Enteléquia. Este palavrão puxa por outro palavrão, que propõe que nossa vida e Psique tenam um Telos. Calma que eu explico.
Enteléquia é o princípio da semente do carvalho. É um pequeno milagre que uma semente minúscula possa formar uma árvore imensa como um carvalho. A Enteléquia significa o potencial intrínseco, o vir a ser misterioso de toda vida, que faz uma semente virar uma árvore gigante. Posso dar o exemplo de um menino de Três Corações que passou a infância a jogar bola pelos terrões mineiros para virar anos depois o Rei Pelé, o Atleta do Século. Como isso é possível? Destino, acaso, sorteio genético, determinismo edípico, já que seu Dondinho, pai do Edson, passava para o filho todo o legado do grande jogador que tinha sido, mas que nunca ultrapassou os campeonatos amadores?
Enteléquia é o potencial que estava em estado de semente naquele jovem fumeteiro dos anos setenta que viria a se tornar o grande inovador Steve Jobs, um cara que influenciou quase tudo o que acontece em nossa vida moderna. Daí chegamos em um conceito ainda mais complexo e metafísico, que é o Telos. Telos significa Finalidade ou direção. Como se nosso desenvolvimento pessoal tivesse uma direção, um significado e um sentido. Conectar os pontos significa entender, de alguma forma, essa Mão Invisível que vai trançando o meu e o seu destino. Os pontos formam uma Teia imensamente complexa, que podemos perceber em alguns flashes, ou olhando para trás. Pensar que há uma mão invisível significa o que o físico David Bohm chamou de Ordem Implicada, o que a grosso modo significa a ordem profunda que tece, com imensa delicadeza, as teias do nosso destino. Veja bem que tudo isso pode ser retirado desta pequena história. Pensando bem, foi muito bom que Steve Jobs tenha largado a faculdade.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Grande Mãe

O filme “Guerra ao Terror” ganhou o Oscar num ano insosso, com uma safra de filmes limitada. Eu gosto do filme, mas tenho certeza que a sua premiação foi uma espécie de canto de cisne dos anos sombrios de George W. Bush, um sósia de Ronald Golias que foi presidente do país mais poderoso do mundo por oito longos anos. Para não dar o Oscar para “Avatar”, que segundo os críticos reaças da Academia estava repleto de sentimentos antiamericanos, preferiram premiar a luta solitária de um soldado que arrisca a própria vida todo dia para desmontar artefatos na Guerra do Iraque. Tem até um psiquiatra bonzinho que estimula os soldados a tentar tirar o que há de melhor na experiência de invadir um país e ver explosões e pedaços de carne humana voando pelos ares. O tal psiquiatra sai numa patrulha e troca uma ideia com os nativos, que lhe deixam uma bomba de lembrança... E lá se vai o psiquiatra (e, provavelmente, a Psiquiatria otimista) pelos ares. Não se deve dar mole para esses seres medievais, é o que deixa implícito o filme.
“Avatar” é uma fábula futurista adocicada, uma visão romântica da luta para preservar a consciência de um povo que não perdeu o contato com a natureza e tem uma Árvore Sagrada” para defender dos interesses extrativistas dos invasores americanos. O soldado paraplégico ganha pernas de seu Avatar para se infiltrar nos povos da floresta, com o intuito de facilitar a invasão, mas acaba percebendo a natureza sagrada da Árvore e da Grande Deusa da floresta que cria o campo energético onde tudo está interconectado. E tudo pode ser aniquilado se esse santuário ecológico for destruído. O soldado troca de lado e passa a combater os invasores americanos, o que retirou o Oscar de melhor filme de “Avatar” que, aqui entre nós, é menos filme que “Guerra ao Terror”.
Há alguns meses eu citei, nesse blog, um documentário mostrado na TV a Cabo chamado “Medicina Milenar”. Um jornalista inglês percorre o mundo conhecendo tradições de cura de diversos povos. Um dos programas é sobre a Medicina Amazônica, na borda entre os curandeiros peruanos e os índios brasileiros, na fronteira amazônica entre os dois países. Uma moça americana com quadro pulmonar crônico e ataques intratáveis de asma tomou uma espécie de xarope de cupim e sentiu melhora imediata. No final de toda a experiência, o jornalista foi convidado a tomar o extrato de Ayhuasca, bebida retirada de uma espécie de bambú amazônico que serve para os rituais do Santo Daime. O homem fica completamente chapado e descreve, durante o uso da substância, que aquilo era uma espécie de tecnologia da floresta para se proteger da invasão dos humanos. Era como um contato com a Alma da Floresta, que também demonstrava a sua presença sagrada. Não são poucos os relatos de pessoas que se libertaram completamente do uso de outras substâncias, como o Álcool e a Cocaína, a partir da experiência com essas substâncias que estão na origem das mais antigas tradições espirituais da raça humana, que é o Xamanismo.
Trabalhar com a doença e o adoecer humano é, muitas vezes, a oportunidade de se recuperar o contato com essa experiência do Sagrado, que é motivo de piada em nosso Ocidente hipercapitalista e científico, ou pseudocientífico. Não são poucas as pessoas que mudam radicalmente a sua relação com o próprio tempo e com a própria vida após atravessar a dura jornada de um tratamento para o Câncer, por exemplo.
Vivemos num mundo que as pessoas não tem muito contato com seu Mundo Interno e sua relação com a Mãe Terra e a Mãe Natureza. Para os usuários do Daime, ela aparece como uma Grande Mãe, a Mãe Ayhuasca que adverte os dependentes sobre a besteira que está fazendo com sua vida. A vida é sagrada em si, tem um valor intrínseco e não depende de nada que a justifique. Como tal, deve ser preservada e desenvolvida, não jogada no lixo. Tenho vontade de tomar o chá horrível para acionar essa sabedoria da Grande Mãe para esfriar o planeta, dissipar os poluentes e trazer de volta o equilíbrio para o clima e a Água. Ou poderia acionar um Avatar para penetrar na Alma da Floresta, para que a Terra chame pela chuva e a chuva não destrua tudo em seu caminho. Precisamos entra em contato com a Mãe Gaia. Quem tiver o contato, por favor me passe.

domingo, 11 de janeiro de 2015

A Pena e a Metralhadora

Em Dez de Setembro de 2001, um paciente meu teve um sonho de madrugada, que correlacionou com o fato de ter lido um livro sobre a Segunda Guerra Mundial antes de dormir. Lembro do sonho como se tivesse sido contado ontem: “No sonho havia um grupo de pessoas preocupadas com uma crise mundial. Estavam reunidas no alto de uma montanha, em torno de uma mesa redonda. Na mesa havia um livro enorme, com pessoas de várias nacionalidades em torno dele, discutindo as soluções para o perigo”. Meu paciente acordou e foi para o trabalho, até ser chamado para ver o segundo avião se chocar com as Torres Gêmeas, pondo fim ao mundo que a gente conhecia até então. Foi na sessão que correlacionamos o sonho com o Onze de Setembro. O terrorismo então criou esse paradoxo: em nome da Liberdade, as liberdades individuais foram abolidas. Somos todos monitorados, rastreados, nossos corpos expostos em máquinas de Raio X nos Aeroportos, prisioneiros são torturados e enviados para masmorras sem julgamento, em nome da segurança e da liberdade. O sonho antecipou a crise mundial que praticamente definiu o rumo dos anos 2000 e as guerras que vieram depois das torres desabarem.
Hoje aconteceu uma passeata de quase quatro milhões de parisienses nas ruas da Cidade Luz, num protesto intenso contra o atentado perpetrado por terroristas fanáticos ao jornal satírico Charlie Hebdo, uma espécie de Casseta e Planeta francês. O Jornal publicou tiras e charges com o profeta Maomé. O pessoal do Porta dos Fundos, que faz muitos vídeos brincando com Jesus e com Deus, está sendo provocado: façam vídeos com Maomé então, se forem machos de verdade...
A turma do Mas tomou as mídias, dizendo que os caras folgaram demais. Mas, não pode mexer assim com radicais. Mas, a turma do Charlie era anti qualquer religião, pisava no calo de muita gente. Eu concordo com algumas vozes que dizem: “Mas uma ova! Ninguém pode tirar a vida de ninguém por conta de uma tirinha”.
A parte mais assustadora desse atentado, assim como o atentado de Boston, é o terrorismo ter virado um negócio de família. Microcélulas terroristas, compostas por dois irmãos e poucos familiares, são quase impossíveis de rastrear, uma agulha no palheiro de ruídos nas redes sociais e nas linhas de celular. Mais uma vez, o terrorismo vai permitir que se subtraia ainda mais as liberdades individuais. Como no caso dos irmãos de Boston, os irmãos franceses eram imigrantes, tinham pouca ou nenhuma inserção na sociedade francesa e na vida produtiva e receberam dos radicais uma espécie de processo de adoção. Passaram a ter nome e sobrenome e, acima de tudo, uma causa para defender, um inimigo para atacar. A sua vida de pequenos marginais passou a ter um foco e um significado. Quantos órfãos do Capitalismo podem ser recrutados? Quantos serão seduzidos pela chance de empreender uma luta heroica contra os caras que jogam outros jogos terroristas, como os assassinatos econômicos e as manipulações de informação. O que se vai fazer para vigiar essa células terroristas?
O sonho do meu paciente anunciava uma crise que se realizou nesses anos. O Alto da Montanha representa a necessidade profunda dos homens de boa vontade de olharem a situação de um outro patamar, para compreender e superar as diferenças. Uma cultura de ódio é bem mais fácil de construir do que uma de paz. Criar uma sociedade islamofóbica não vai permitir que se escrevam novos livros sagrados. Há milênios que as religiões criam boas tentações para achar que meu profeta é melhor que o seu, então vou enfiá-lo pela sua goela abaixo. A religião ocidental predominante é o Capitalismo. Ou o Hipercapitalismo. Essa é a nova Cruzada. Os focos de resistência do Islã não representam apenas que um bando de fanáticos quer que as mulheres andem de burca e a Guerra Santa prevaleça. Eles lutam também para que sua Cultura não seja engolida, e o mundo vire finalmente um gigantesco Mac Donalds. Fazer charges ridicularizando uma crença não vai estabelecer zonas de diálogo e criação de visão compartilhada com o Islã que quer a Paz e o entendimento. Esse Islã está em grande risco e sob grande ataque. E precisa muito da ajuda do Ocidente.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Viajar na Maionese

Nem bem o ano começou e já arrumo uma pendenga com o quadro descrito e diagnosticado neste blog, o Deficit de Atenção e Memória de Garçons e Garçonetes (associado ou não a Surdez Seletiva). Desta vez o problema não foi com meu Pão na Chapa. Foi com meu Beirute, numa lanchonete de Shopping. Desta vez, eu nem estava com muita fome, mas a demora foi me deixando inquieto. Aquela orgia de batatas, onion rings e milk shakes que íam sendo distribuídos pelas mesas adjacentes estimulou mesmo a fome adormecida. Lembro bem da garçonete que nos atendeu, uma moça com o rosto bonito e um excesso de peso que se concentrava na região abaixo de sua cintura. Finalmente, saí de minha passividade brasileira e reclamei para outra mocinha que as mesas ocupadas depois de nossa chegada já estavam servidas e a nossa, nada. O que estava acontecendo? A moça se apressou em confirmar que estavam com problemas na impressora, e que a garçonete que anotou nosso pedido deveria ter notado o engano e refeito a ordem. Veio o gerente suado se desculpar e o pedido levou finalmente quarenta minutos após a solicitação inicial para chegar à mesa. Quem veio entregá-la foi a mocinha popozuda que havia originalmente anotado o pedido. Ela não notou o atraso e nem a nossa cara de bunda quando a comida finalmente chegou. Perguntou se tudo tinha vindo de maneira correta e saiu ventando para atender mal outra mesa. Olhando mais detidamente, pude perceber a expressão de desagrado discreto da moça, além de um ar meio distante, de quem faz tudo no piloto automático. Piloto automático que causa o esquecimento de bebês no banco de trás dos carros.
Vivemos uma mitologia hollywoodiana que todos seremos especiais, teremos nosso talento único reconhecido ou seremos descobertos em meio à nossa labuta para finalmente termos o destaque e o reconhecimento merecidos. Quem sabe quais são os sonhos que passam na cabeça daquela moça enquanto ela erra alguns pedidos? Será que ela sonha com um grande amor, faz faculdade pela manhã e trabalha à noite para sustentar a sua filha ou uma mãe doente? O fato é que sonhamos com o dia em que a sorte vai virar e teremos direito aos nossos quinze minutos de fama, e isso transforma o trabalho anônimo e repetitivo uma espécie de não vida, um hiato de sofrimento, até finalmente poder soltar o cabelo, passar um batom e pegar a condução para casa.
Não tenho dúvida que o trabalho está perdendo a sua dignidade, mas, acima de tudo, o seu sentido. É um estorvo que deve ser eliminado como uma coceira da qual se deve eliminar com a unha. A má notícia é que, por mais livros de autoajuda consumidos, não criamos a nossa própria realidade. Freud dizia que uma tarefa da Psicanálise é fazer, justamente, o sujeito aceitar e lidar com essa instância do Real, em vez de se manter em estado de Negação, esperando que as abóboras se transformem em carruagens ou que o que o bilhete da Mega Sena esteja premiado, finalmente.
O que eu proporia para a moça, além de ficar muito atenta ao meu Beirute de Filé de Frango? Eu diria para ela que é muito provável que ela não vai virar uma estrela de novela, nem vai encontrar a curto prazo um emprego de seus sonhos. O melhor que ela tem a fazer é anotar os pedidos, servir as mesas e distribuir sorrisos com Atenção Plena, como se a sua vida dependesse disso. Essa nova atitude não deve mudar muita coisa nos aspectos externos de sua vida. O gerente pode nem notar a mudança de atitude. Alguns clientes continuarão grosseiros e terão algum gosto em tentar tirar o sorriso de seus lábios. Mas garanto que, no final do dia, as coisas vão estar mais leves e quase com algum sentido. Talvez a responsabilidade de devolver o sentido ao trabalho não deva ser do RH, nem de alguma consultoria, nem de um guru motivacional urrando os seus “Vamo´lá” em alguma palestra encomendada. Talvez a motivação seja fazer as coisas redondas e corretas. Pelo simples prazer de fazer.
Gostaria de deixar registrado que pedi, ao final do lanche, um X-Salada para viagem, com maionese no sanduíche, não separada. O pedido veio errado, e fui embora com o passo apertado e a maionese separada.