domingo, 26 de abril de 2015

A Asa Torta do Anjo

Estava andando na rua, apressado para pegar um taxi, já que sou um homem tradicional que gosta de pegar taxis de maneira também tradicional, que é esticando a mão e aguardando por aqueles segundos de suspense quando não sabemos se o cara vai parar ou passar batido. Danem-se os aplicativos. O meu passo apertado ainda me permitiu ouvir uma mulher subindo a avenida na faixa de ônibus, com um vira-lata preso na coleira. Ela falava com o cachorro em alto tom, como que tendo uma discussão de relacionamento sobre algo que o cachorro fizera e que ela não gostara. As pessoas espiavam com o rabicho do olho com aquela complacência de quem sabe que a mulher está longe de seu normal, mas todo mundo está muito ocupado com a própria solidão para se preocupar com aquela senhora e seu pet. Eu fiquei preocupado se ela estava surtada e iria fazer algo com o bicho. Já deixei claro em outros posts que, com o colapso das ideologias e a morte dos partidos políticos, que viraram uma confraria de achacadores, o cerne da discussão ideológica vai ser a distinção entre o partido dos cachorros, o partido dos gatos e o partido de quem tem alergia a ambos. Eu sou do partido dos cachorros.
Desapertei o passo para observar melhor se havia algum indício de maus tratos, se a senhora iria bater no seu bicho. Fora um puxão mais forte ou outro, ela não insinuava violência. Discutia sobre algum comportamento do dog como uma mãe ralhando com o filho, ou uma namorada cobrando mais atenção do namorado. Olhei melhor: suas roupas surradas e sujas indicavam que ela era uma moradora de rua. A já descrita inadequação puxava o seu diagnóstico para o espectro da Esquizofrenia. Não era uma esquizo em surto e o bichinho parecia bem cuidado, e não dava a mínima para a bronca dada em altos brados. Na minha cabeça começou a tocar uma velha canção dos Beatles: “I look at all the lonely people... I look at all the lonely people...” (Os violinos da versão original de Eleanor Rigby tornam a solidão ainda mais desesperadora).
No último post citei um poema de Adélia Prado em que ela descrevia uma cena igualmente desesperada: Uma criança subia a escada de sua escola com uma muleta, amparada em outra criança. A poeta falou: “Homem é a muleta de Deus/ Não há descanso aqui/Estamos no exílio”. Entendo que esse verso é muito familiar a um junguiano: ele descreve a nossa imensa desproteção diante da vida, a ferida do humano refletida por aquela criança subindo a escada amparada na outra, uma fragilidade amparando a outra fragilidade. E subimos e descemos essas escadas todo dia, mesmo ignorando nossas muletas. Nossa labuta e nossa aflição nos aproximam ou nos distanciam de Deus. Pois se o homem é a muleta de uma divindade sedenta de nossas preces, o cachorro é a muleta do homem. Aquela mulher estava apartada de toda experiência de um Outro que seja humano e que consiga refletir o seu olhar. Quase tudo da experiência humana lhe foi subtraído, mas lá estava o vira-lata indiferente ao debate relacional andando ao seu lado, sem mordê-la ou tentar fugir. Temos tanto orgulho do nosso Cérebro Racional que não aprendemos com esses bichos e sua profunda e irracional presença onde todos os outros já abandonaram o barco.
Na Mitologia Grega, Homero descreve uma cena atroz quando Ulisses regressa à sua Ítaca após vinte anos perdido, na saga cantada na Odisséia e na Ilíada, e Ulisses se disfarça de mendigo para descobrir o que acontecera com seu Reino e sua família. O único que reconhece a sua voz é seu cachorro, que durante os vinte anos esperou por ele no alpendre. Ao ouvir a voz de Ulisses, o cachorro dá um profundo suspiro e morre, em sua alegria.
Chamei o taxi, que finalmente parou, e fui embora para mais um dia de trabalho e de escadas para se subir e se descer. Olhei para o bicho que subia desengonçado com aquela senhora. De longe, parecia um anjo.

terça-feira, 21 de abril de 2015

O Tempo Não Para

Era uma vez uma mulher desesperada. O seu bebê tinha acabado de morrer e ela batia de porta em porta do seu vilarejo pedindo ajuda para trazê-lo de volta à vida. Cientes de que seu pedido era impossível, as pessoas se afastavam, pensando que ela estava louca. Finalmente, depois de uma longa busca, ela encontrou com o próprio Buda, que lhe deu uma tarefa: pegasse um punhado de sementes de mostarda e fosse de porta em porta, procurando por famílias que nunca tivessem perdido ninguém. Para essas famílias, ela deveria dar uma semente de mostarda, e voltaria ao final do dia quando as suas mãos estivessem vazias. Não demorou para a mulher desesperada perceber que não conseguiria encontrar nenhuma casa onde as pessoas não tivessem sofrido uma perda. Pegou o seu bebê, fez o seu sepultamento e tornou-se uma seguidora do mestre.
Dr Fankenstein, do romance de Mary Shelley, cria um monstro sub humano justamente por não aceitar a morte de sua mãe e sua noiva. Ele cria um ser monstruoso que costura entre pedaços de cadáveres e reanima com a eletricidade recém descoberta de seu tempo. Logo o criador perde o controle sobre a criatura, gerando mais morte, a mesma morte que o enlouquecido doutor tentava controlar.
Diz a poetisa mineira, Adélia Prado: “O homem é a muleta de Deus/ Não há descanso aqui/ Estamos no exílio”. Uma sensação quase universal de incompletude, essa é a nossa experiência humana. Muito desejamos consertar o que está torto, mas quanto mais tentamos, mais tortas as coisas ficam. Talvez fosse melhor aceitar o torto como torto. Esse seria o primeiro passo para a cura.
A fábula budista escrita acima, que eu já citei em outro post, é bastante dura com a percepção da perda e, sobretudo, de um conceito muito caro ao Buda, que é a impermanência. Como Dr Frankenstein, tentamos bater a impermanência com nossos remendos tecnológicos, que criam máscaras de botox ou corpos mutilados pelo medo.
Eu gosto particularmente da pequena história da mãe que procura desesperada por ajuda, uma saída mágica como alguém que tenha poder sobre a vida e a morte para devolver o sopro ao seu bebê. Ela atravessa o mundo, bate em mil portas até encontrar com o Buda, que mostra que a sua dor é universal, ela não foi escolhida pelo destino para ser a única sofredora. Cuidar de sua perda, entretanto, é uma tarefa pessoal: não adianta implorar para alguém revertê-la magicamente. É sua tarefa duríssima, a despedida. Olhar para a cidade de cima e perceber as luzes suaves das casas permite a mulher desesperada refletir que a vida dura o tempo de uma vela acesa, não importa a correria ou o laboratório de Frankenstein. Isso lhe traz um estranho sorriso nos lábios. Aceitar a própria ferida e o próprio sentimento de vazio também permite ajudar aos outros em seu desespero.
Fico imaginando que o trecho do Novo Testamento em que Jesus sugere o dar a outra face, a não resistência, estivesse descrevendo um conceito difícil e contra intuitivo, que é justamente parar de opor resistência à impermanência, às coisas que serão retiradas pelos movimentos do tempo. Jesus descreveu em um trecho a não violência e a indefensibilidade diante das coisas que vão embora com o tempo. Não é uma lição nem um pouco fácil de aprender e mais ainda, de aplicar.

domingo, 12 de abril de 2015

Sorriso Interno

Leonardo da Vinci deixou um gigantesco legado como pintor, escultor, inventor, matemático e tantas outras atividades e contribuições; ele era um polímata, um homem que dominava várias áreas de conhecimento humano, com igual curiosidade e genialidade. O seu quadro da Gioconda, ou a Monalisa, ainda nos assombra com o olhar neutro e suavemente risonho e, sobretudo, o sorriso discretíssimo insinuado em seus lábios que cria o enigma se ela está imaginando um sorriso ou tendo as manifestações iniciais do Mal de Parkinson. Eu prefiro acreditar que o gênio renascentista captou em sua pintura algo eterno, arquetípico e o colocou no retrato de uma jovem fidalga de seu tempo.
Amy Cuddy fez uma aula brilhante em um TED de 2012 sobre a nossa linguagem corporal e como ela determina muito do que projetamos e acreditamos que somos. Somos criados para temer a autossuficiência, a inflação de nossa autoestima. Temos medo da arrogância, mas não da humildade ilícita, da autodiminuição consciente, da modéstia falsamente encenada. Amy, psicóloga, especialista em linguagem corporal, sugere que fingir estar seguro, ou cheio de si, confiante, pode realmente ajudar uma pessoa a se sentir mais segura, ou poderosa. Isso pode parecer uma fábrica de Mussolinis, mas não é essa a ideia. A ideia é criar uma autoimagem mais positiva e relaxada começando com a sua postura. E que isso não vai criar uma sociedade de metidos, mas pode reduzir a miséria autoimposta.
A entrevista psiquiátrica de hoje tem tantos checklists para se preencher que esquecemos do exame dos antigos, que descreviam exaustivamente a postura, o olhar, a música ou falta dela na fala do paciente, o jeito como se vestiam e combinavam as cores, o jeito como procuram ou fogem do olhar do interlocutor. Era uma tentativa honesta de entrar dentro dos sapatos do paciente para ver o mundo como ele vê esse mundo. Mesmo que discordemos dessa visão. A imagem corporal, a expressão do olhar, a forma de falar, tudo isso era meticulosamente descrito. Estudos como Amy descreve em sua aula podem ajudar a saber quase tudo do que se passa dentro da pessoa apenas pela imagem que ela projeta de si.
Existem técnicas de meditação taoístas em que o meditador visualiza as diferentes partes de seu corpo com um sorriso de Monalisa. Eu tentei, já que estou sempre fuçando por coisas que possam ajudar as pessoas e meu paciente mais difícil, um tal de Marco Spinelli. É bem agradável meditar lançando nas diferentes partes de meu corpo e de meu dia esse sorriso. Uma sensação discreta de relaxamento e paz acompanha o sorriso interior. Imagine o leitor desse blog que pudéssemos distribuir vários sorrisos de Monalisa para as áreas doídas de nosso corpo no final do dia. Ou para os colegas de trabalho que não gostamos tanto assim. Ou as tarefas das quais gostaríamos de fugir o mais rápido possível. Imagino que haveria uma grande economia de Botox. Aliás, há estudos que a aplicação de Botox em áreas de tensão ou em rugas de expressão produzem melhora de humor e diminuição de sintomas ansiosos nas pessoas aplicadas. Isso confirma o trabalho de Amy: quando se muda a expressão facial, o Cérebro também muda.
Já posso imaginar uma Medicina Estética Psiquiátrica, onde trabalhar o corpo, a expressão facial e corporal e a tensão muscular seja tão importante quanto acertar o tipo de antidepressivo que vai aliviar um sofrimento.
Olhar para a vida com um sorriso de Gioconda pode melhorar nosso humor, reduzir a pressão arterial e melhorar a resposta imune. Se algum leitor desse blog quiser ajudar a coletar fundos para essa pesquisa, é só me avisar.

domingo, 5 de abril de 2015

A Neve Sobre Os Alpes

Na semana passada, nos comentários desse blog foi solicitada uma pauta por duas leitoras: Lúcia e uma pessoa querida que não assinou o seu comentário carinhoso. Aliás, seria um prazer se assinasse. As duas pediram para comentar a história desconcertante do copiloto da Germanwings, Andreas Lubitz, que supostamente derrubou o avião e matou a si mesmo e cento e cinquenta inocentes, mergulhando para a morte de maneira aterrorizante. Uma semana depois e já tivemos um massacre no Quênia como horror da semana. As mídias nem falam mais do copiloto solitário que fez exatamente tudo ao contrário do que dedicou a sua vida breve, matando quem deveria proteger. Confesso que desconfiei da rapidez com que chegaram à essa concussão. Nessa época em que a Aviação é alvo de tantos atos terroristas, culpar um copiloto solitário pareceu uma saída muito óbvia. Depois, nesses tempos em que o jornalismo foi absorvido pela estética dos realitys shows, também esperei por alguma revelação bombástica que emprestasse algum sentido ao absurdo. Nada. O cara teve uma Depressão tratada em 2008 e supostamente tinha uma recomendação por escrito de se afastar do trabalho. Nada que pudesse prever um ato dessa natureza.
Suicídio é a oitava causa de morte nos Estados Unidos. Entre jovens, é a terceira causa de morte. Este tipo de suicídio, o impulsivo, aquele que não dá sinais, não tem comportamentos preditivos, como despedidas em redes sociais, doações de coisas e manifestações de desejos do que fazer depois da morte do interessado, este tipo é o horror de todo profissional de Saúde Mental. Outra dificuldade imensa é a falta de uma base familiar sólida para ajudar o paciente nos períodos em que morrer pareça ser não a melhor, mas a única alternativa. Se ele realmente teve a recomendação de se afastar, para quem avisar dessa conduta?
O jornalista Andrew Solomon apresentou um TED talks, aula curta de dezoito minutos sobre temas variados, sobre a Depressão. Ele se interessou e estudou longamente o tema depois de passar por um quadro depressivo muito grave nos anos noventa. O seu trabalho gerou um livro, chamado “O Demônio do Meio Dia”. Solomon descreve que, para muitos que passam por essa doença, é como que se um véu de negação fosse erguido e a realidade fosse revelada sem chantilly: a percepção de que todos vamos morrer, que a vida não tem sentido e que atravessamos esse período de vida de maneira geralmente solitária. A resposta que ele deu para essa pessoa que fazia essa constatação foi genial: “Ok, mas vamos nos concentrar no que vamos comer do café da manhã”. Genial. A Depressão é como o governo Dilma, uma experiência horrível, mas transitória, e devemos nos ocupar de atravessá-la. Para isso, precisamos de tempo e paciência para atravessar os dias, um de cada vez.
O que eu imagino que passou pela cabeça de um rapaz de vinte e oito anos que se tranca na cabine de seu avião e faz o Airbus mergulhar nas montanhas dos Alpes Franceses? Acredito que o seu afastamento de suas funções tenha sido recomendado, sim. Imagino que ele estava num estado alterado de consciência, o que gera uma visão em túnel, ou seja, nada passa por sua cabeça senão o que vinha planejando secretamente durante algum tempo. Ouvimos essas histórias em vários consultórios, histórias de terror, de pacientes que tomam essa decisão impulsiva após alguma situação do tipo “gota d’água”, quando recebe uma notícia sobre uma doença grave, ou uma demissão inesperada, um comunicado de intenção de divórcio. Andreas Lubitz parece ter recebido um estímulo “gota d’água”. O seu ato foi pessoal e dolorosamente imprevisível.
Li um trabalho recente sobre um programa de prevenção de suicídios do Exército Americano, o qual segue de perto os veteranos das intervenções americanas no Afeganistão e Iraque. Os cinco por cento de militares de alto risco são responsáveis por 53% dos suicídios entre os veteranos. Internação Psiquiátrica, Uso de Álcool e Drogas, falta de suporte familiar, histórico de Depressão e Suicídio na família, divórcio e desemprego, são todos fatores de risco mapeados e estudados. Mas olhos experimentados podem ler as entrelinhas desse estudo, e ver duas coisas assustadoras: uma é que, apesar de todo mapeamento de risco e todo o sistema de follow up que se faz desses casos, ainda assim muitos pacientes acabam dando fim à própria vida. Outro detalhe é que, desses casos, 53% eram do grupo de alto risco. Isso significa que 47% dos militares que se suicidaram não tinham fatores de risco tão fáceis de se detectar. Posso considerar também que uma parte desses casos não deu sinal nenhum de sua intenção suicida.
Em alguns casos, felizmente raros, um Andreas Lubitz pode fazer o que fez sem nenhuma detecção de seu risco. Talvez isso que deixe as pessoas mais angustiadas nessa tragédia. O sistema de diagnóstico de risco vai com certeza se tornar mais rigoroso. Temo igualmente que pacientes com Depressão serão mais estigmatizados depois desse evento.