domingo, 26 de julho de 2015

O Urso e o Pânico

Ontem estava conversando com uma amiga sobre uma pequena aula, que hoje acaba sendo chamada de workshop, sobre o assunto que realmente me interessa há décadas, que é estabelecer uma ponte entre a clínica psiquiátrica e a compreensão psicológica. De preferência, uma ponte entre Jung e Neurociência. Isso sempre me valeu problemas com membros de ambos os lados da trincheira; para os psicoterapeutas, eu sou psiquiatra demais e para os psiquiatras, eu sou um terapeuta que não participo de verdade do jogo das escalas de avaliação e dos simpósios de Psicofarmacologia. Uma espécie de café com leite, pode-se assim dizer.
A palestra, ou workshop, ou pequeno convescote Psi deve inaugurar uma série de encontros, espero, que vamos chamar de “Os Deuses viraram Doenças?”, uma brincadeira com uma frase do psiquiatra Carl Jung sobre nossa psique contemporânea. O tema será a Doença de Pânico, ou o Transtorno de Pânico. Síndrome do Pânico é um nome que a mídia consagrou e que significa rigorosamente nada. Uma síndrome é um agrupamento de sintomas que podem derivar de etiologias diferentes. Uma síndrome depressiva, por exemplo, pode derivar de uma disfunção tireoidiana ou de uma falha de neurotransmissão após periodo de estresse. Ou a manifestação de uma Doença Bipolar. Mesmo com origens diferentes, o achado clínico pode ser o mesmo. Da mesma forma, uma crise de Pânico pode ser causada por um medicamento para gripe ou por uma disfunção no processamento do medo em nosso Cérebro Límbico. Portanto, é uma Síndrome. Mas o nome pouco discrimina. Se a doença é diagnosticada, deve ser tratada, e esse vai ser um dos assuntos da aula. O seu nome é Transtorno de Pânico, portanto. Mas esse não será o problema da aula. O problema é como fazer uma ponte entre Jung e Neurociência? Será que existe uma?
Lembro de um caso que atendi no início de meu consultório, nos anos 90. Um caso de crises de Pânico irrompendo em um homem racional, culto, professor universitário que viu o seu senso de estar no mundo chacoalhado por crises inexplicáveis de terror e sensação de morte iminente. A princípio ele, como muitos pacientes, fez uma peregrinação por Pronto Socorros, fez dezenas de exames e chegou a investigar arritmias cardíacas e labirintites, porque seus sintomas poderiam sugerir esses diagnósticos. Na sua primeira entrevista ele, de maneira pouco usual para si, ficou com os olhos marejados de lágrimas, lágrimas de raiva e humilhação pela sensação de ter perdido o comando de sua vida, por não poder mais sair de casa sem ter medo de passar de novo por aquela sensação horrível de morte envolvendo o seu corpo e levando-o embora. Se ao menos o Pânico fosse um inimigo visível, ele poderia esganá-lo com as suas próprias mãos. Foi aí que uma frase estranha saiu da minha boca: "E se ele não for um inimigo? E se for um mensageiro de seu mundo interno que está querendo ser ouvido?". Naquele tempo, não havia sido lançado o filme "O Sexto Sentido", que é de 1999, onde o psiquiatra sugere ao menino que vê gente morta a ouvir o que eles, os mortos, queriam dizer. Isso acaba apaziguando muito o seu sofrimento. Bruce Willis acabou me plagiando, portanto. O fato é que eu fiz essa sugestão ao meu paciente que, de maneira surpreendente, não saiu correndo do meu consultório gritando que o psiquiatra era mais louco que ele. Os seus olhos brilharam e pela primeira vez enxergou algum significado naquilo tudo. Na consulta seguinte ele trouxe um sonho belíssimo, que teve na noite seguinte ao dia de nossa consulta: "Estava diante de um urso enorme, sentindo algum medo e a sensação de ameaça do que poderia acontecer se aquele urso chegasse perto. O urso falou com ele, dizendo que não precisava sentir nenhum medo, ele não estava lá para ameaçá-lo nem para fazer mal. Realmente, o urso não parecia querer machucá-lo, mas mesmo assim percebeu que era melhor não chegar muito perto, pois poderia ser despedaçado se ganhasse um abraço do amigo urso. Quando olhou para o lado, viu um felino enorme sentado ao seu lado, um tigre. Não teve medo, mas ficou intrigado com a imagem, que o fez acordar".
O urso representava o seu Inconsciente, que queria se comunicar com ele e ajudá-lo, embora pudesse despedaçá-lo se chegasse muito perto. O tigre representava, em suas associações, as características que precisaria desenvolver, de flexibilidade, astúcia e até uma agressividade mais integrada em sua vida. Ou seja, o que ele desenvolveu nos anos seguintes em sua psicoterapia. Foi naquele caso que eu descobri que o Pânico era um mensageiro dos deuses, que se manifestavam como doença. Descobri também que, quando o Inconsciente quer falar, é melhor ouví-lo, antes que ele grite, porque seus gritos podem ser ensurdecedores.
Essa é uma ponte entre a doença e seu significado. Será que as pessoas ainda querem saber o significado de seu sofrimento?

domingo, 19 de julho de 2015

Divertida (?) Mente

Se você que está entrando nesse blog não assistiu o novo filme da Pixar, “Divertida Mente” (título em português novamente lamentável para o original, “Inside Out”), talvez seja melhor correr para algum cinema e vê-lo. Vou evitar alguns spoilers, mas outros não. Vamos lá.
Os antecessores dos psiquiatras e psicoterapeutas foram os xamãs, os curandeiros, os sacerdotes. Eles entendiam a Depressão como um estado de Perda da Alma e faziam seus rituais para trazer de volta a alma perdida. Muitas vezes, depois de um tempo de tratamento eu finalmente me apresento para a pessoa que, gradualmente, vai recuperando as suas próprias características, como se estivesse exilada de si própria e tivesse que fazer um longo caminho de volta para se reencontrar. Um caminho de volta que atribuímos aos medicamentos, mas que é muito mais que isso, na opinião desse escriba. Quando a doença começa a melhorar, finalmente eu tenho a impressão de receber a pessoa “de verdade”, não aquela que chegou ao consultório.
Eu seria capaz de jurar que algum roteirista de “Inside Out” passou por uma Depressão ou teve alguém muito próximo com a doença. De preferência, algum adolescente deprimido. A personagem principal do filme é uma garotinha, Riley, filha única de pais amorosos e de uma família tradicional, em que a mãe cuida dela full time e seu pai trabalha numa pequena cidade, em Connecticut. De uma maneira abrupta a família é obrigada a se mudar para uma nova vida em São Francisco (será que o pai perdeu seu emprego na crise de 2008?). As Emoções Primárias de Riley são representadas por cinco personagens que operam da Sala de Controle: Alegria, que parece uma fada, Tristeza, Medo, Raiva e Nojo. A nova casa é feia e antiga, a cidade é assustadora e, como em muitas situações de nossa vida, Riley experimenta um Ponto de Mutação, onde tudo vira de ponta cabeça: ela perde seu quintal, sua escola, sua melhor amiga e seu time de hockey sobre o gelo, de uma vez só. Alegria tenta coordenar todas as outras emoções primárias para ver o lado bom da situação e animar a menina. A maior dificuldade é manter sob controle a desajeitada Tristeza, que começa a contaminar toda a experiência de Riley. Durante uma briga pela Identidade fundamental da menina, Alegria e Tristeza são sugadas para dentro da Psique de Riley. Na Sala de Controle ficam Medo, Raiva e Nojo. Esse pedaço é muito legal. A Depressão em Adolescente muitas vezes não se manifesta com tristeza. O que aparece é uma irritabilidade profunda e constante, com variações e mudanças abruptas de Humor, explosões de raiva e aversão à tudo. A personagem chamada de Nojo, na verdade em Inglês se chama “Disgust”, que é Repulsa. No caso dos adolescentes, um Tédio profundo e constante, em todas situações.
Estou falando de uma situação extrema, que é a Depressão, mas a idade de Riley, doze anos, é bem a transição em que somos expulsos do paraíso da Infância e de repente lançados no labirinto das relações com o grupo, na necessidade de autonomia e no medo de não conseguir completar a travessia. Isso se dá na revolução da Pré Adolescência, que começa já entre os nove e dez anos. O referencial de Alegria e Tristeza se perdem nesse processo, e a antiga menina fofa e amorosa, que olha o mundo de maneira encantada se torna uma monstrinha irritável, entediada e perdida dentro dos seus medos de fracassar, não ser aceita e sofrer bullying de suas colegas. E olha que colocaram tudo isso no filme de maneira engraçada, mas a Mente de Riley nessa travessia pode ser tudo, menos Divertida.
O filme vai mostrar a jornada de volta para a Sala de Controle, da Alegria e da Tristeza. Tratar uma Depressão é exatamente isso, uma longa jornada de volta para casa. A Depressão de Riley dura alguns dias, mas, na vida real, essa jornada costuma durar muito mais tempo. Muito mais tempo. Os pais que o digam. Os que já passaram por isso que o digam.
Freud descobriu que a matriz de muitos sintomas psíquicos é um conflito de forças psíquicas antagônicas. No filme, o conflito permanente é entre Alegria e Tristeza. Alegria é uma fada bem intencionada, que quer prolongar ao máximo a infância de Riley. É um personagem bem atual, nesse tempo de infantilização coletiva. A Infância hoje em dia dura uns vinte e cinco anos e todos querem se divertir o tempo todo. Esse esforço de se manter alegre à qualquer custo leva Riley à Depressão. Dona Alegria, percebe, numa cena que marejou os meus olhos de lágrimas, que não há como atravessar aquele conflito sem manifestar a Tristeza. A desajeitada Tristeza assume o comando e Riley pode, finalmente, expressar o luto e a dor por tudo o que estava deixando para inciar a sua nova jornada, a Puberdade. Em nossa cultura de alegria de plástico e de redes sociais, não há como crescer sem integrar Alegria, Tristeza, Medo, Raiva e Tédio. Como dizia uma velha música de Cazuza: “A tristeza é uma maneira/ Da gente se salvar depois”...

domingo, 12 de julho de 2015

Compaixão

Há uma cena de um filme que eu adoro, que é “A Última Tentação de Cristo”, um filme de Martin Scorsese do final dos anos oitenta que ficou pouco tempo em cartaz, por ameaças de bomba aos cinemas; na cena, Jesus anda ao lado de Judas, cercados de uma multidão de aleijados, cegos e mancos. Jesus afirma que aquele será o exército que vai conquistar o mundo. Judas observa que vão precisar de uns homens mais fortinhos que aqueles caras...
Vivemos numa cultura mais helênica e apolínea do que imaginamos. O ideal da cultura é a simetria, o equilíbrio, a justa medida, o belo. Até o termo Patologia, que significa estudo das doenças, usa o mesmo termo, Pathos, que significa Emoção, Afeto profundo, para um Doença. O desequilíbrio dos afetos seria a fonte das doenças. Até hoje recebo pessoas com doenças graves que buscam dentro de si os Afetos negativos que causaram sua doença. Não basta ter um Câncer, a pessoa ainda tem que conviver com uma acusação velada de “o que você fez consigo mesmo para desenvolver essa doença?”. Uma estratégia de defesa primitiva, que indica mau prognóstico de um paciente, é a Responsabilização. Lembro de uma paciente que afirmou que o grande culpado por seus problemas era Deus, que havia sido muito injusto com ela e agora deveria reparar o seu erro colocando um bom homem na sua vida. Respondi então que era só arrumar um Deus maior que Deus para obrigá-lo a reparar seus erros com ela e com o resto da humanidade. Ela não voltou mais ao consultório. Acho que uma terapia de base analítica não seria promissora no seu caso. Seria melhor um advogado com bons contatos, para encontrar jurisprudência e processar o Criador. Essa é a defesa da Responsabilização. A culpa não é minha, é do Outro. Quando acontece algo com alguém que muito nos assusta, passamos à defesa da Responsabilização: para a pessoa que tem uma Diabetes: “Também, ela engordou tão rápido”. Ou a mulher atacada sexualmente, pois “Estava usando uma roupa curta”. Temos a tendência a culpar a vítima, que é uma forma de responsabilizar o sofredor pelo seu sofrimento. Essa é uma forma de manter o feio, o fraco, o desagradável fora do campo de consciência.
Quando chega a comida num restaurante bacana, pipocam os flashes dos celulares das fotos que serão imediatamente postadas nas redes sociais dos pratos igualmente bacanas do restaurante bacana. Postar a foto é mais importante do que comer o prato. É muito importante mostrar ao mundo como eu vivo uma vida incrivelmente bacana. Ninguém posta a foto chorando no banheiro ou constatando que o ponteiro da balança continua subindo. Todos queremos selfies de felicidade borbulhante, eliminando a doença, a tristeza, a feiúra de nossas postagens. É dentro de quatro paredes que as emoções negativas ficam esperando, por todos, geralmente para a tentativa de escondê-las ou eliminá-las. As estratégias são várias: Esquiva, Fuga, Projeção, Responsabilização, Uso de Bebida, Compulsões, Ruminação e outras tantas. Tudo porque não se consegue criar um espaço interno de aceitação dessas emoções, desses sentimentos que se tenta suprimir, ou fingir que não existem.
A cena do filme fala de uma ideia familiar aos terapeutas junguianos: quando nosso lado doente, fraco, medroso e triste é acolhido e integrado, em vez de ficar na Sombra comendo a nossa energia, ficamos empoderados, fortalecidos, ao contrário do que se pensa. Houve um cara na história que criou uma guerra com a ideia de que conseguiria criar o super homem se conseguisse eliminar a fraqueza do mundo: seu nome era Adolf Hitler. Precisamos de nosso lado doente para exercitar um afeto sublime, que é a compaixão.
Muita gente fica horrorizada só de pensar que acolher e validar os seus sentimentos “inaceitáveis”, o que é uma forma de cura e transformação. Preferem continuar postando as fotos do prato enquanto a comida esfria.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Jornada Noturna

Um amigo e eventual leitor desse blog uma vez me convocou para escrever um capítulo em um livro de Psico Oncologia, sobre aspectos psicodinâmicos e simbólicos do paciente com Câncer. Imaginei que o paralelo seria com um Campo de Concentração, mas a metáfora poderia criar mais incompreensão do que esclarecimento, eu fui empurrando o projeto com a barriga e ele acabou não saindo. Muita gente boa poderia se ofender e essa não seria a ideia do texto.
Com a ascensão do Nazismo ao poder, Hitler tinha um plano de expropriação de bens e posições dos judeus alemães. Pensava em deportá-los, ou realocá-los em outra região. Quando eram retirados de suas casas e enviados para Campos de Concentração, partiam inicialmente com a promessa de que a situação seria apenas uma transição, para serem enviados a outro país ou um lugar melhor. O extermínio dos judeus da Europa e do Leste Europeu, a chamada “Solução Final” deu-se já durante a Segunda Guerra, quando os campos de prisioneiros viraram oficinas de morte em escala industrial, algo nunca visto antes em nossa história de barbáries. Muita gente sobreviveu milagrosamente a esses campos de concentração, buscando em si o mais profundo instinto de sobrevivência.
Ter o diagnóstico de uma doença grave muda definitivamente a vida de uma pessoa. A rotina de tratamentos e procedimentos pode ter a mesma conotação de ser enviado a um lugar que não é a sua casa, ser desprovido de sua rotina e profissão para virar uma outra pessoa, um paciente, que tudo vai fazer para jogar o novo jogo e preservar a própria vida. Pouco a pouco, o sujeito vai sendo despojado de sua própria humanidade não pelos nazistas, mas pela doença e seus tratamentos: a roupa passa a ser o pijama ou a camisola do hospital, os tratamentos são muitas vezes mutilantes e dolorosos, e tudo se faz no sentido de se perder os anéis para preservar os dedos. Já trabalhei em um enfermaria de doentes oncológicos e, como o psiquiatra Victor Frankl nos campos de concentração, vi passar diante de mim o melhor e o pior da raça humana. O medo e a experiência transformam as pessoas, nem sempre para melhor, mas havia muitos olhares de gratidão e solidariedade em meio ao cenário de guerra. Uma atitude combativa e bem humorada era a melhor resposta para quem lutava pela própria cura.
Joseph Campbell escreveu o incrível “Herói de Mil Faces”, e nele há um capítulo sobre a Jornada do Herói que, muitas vezes, precisa descer até os porões do Inferno para cumprir seu destino. Chamou a travessia de Jornada Noturna, um passeio pelo coração das trevas. Muitos se perdem nesse caminho, muitos morrem tentando atravessá-lo, outros tantos se escondem e imaginam que alguém vai fazer a caminhada por eles.
Várias situações em nossa vida podem ser comparadas com a Jornada Noturna: o tratamento de uma doença grave, o desemprego, a perda da própria identidade e a necessidade de reconstrução de si ou do significado perdido. Diariamente testemunho a coragem e a luta das pessoas para superarem uma depressão grave, a perda de um ente querido ou o fim de uma carreira ou casamento. Como os prisioneiros de um campo de concentração, essas pessoas são retiradas de sua vida e de seu mundo e lançadas em uma condição completamente nova, em que vão ceder as suas reservas de dinheiro e energia vital no sentido de completar a travessia. Eu tenho o privilégio de estar junto dessas pessoas, procurando pela luz da aurora no meio da noite escura.

domingo, 5 de julho de 2015

Acolhimento

Uma das coisas que aprendi com o Budismo me ajudou estranhamente a entender a Psicologia ou as Psicologias: elas falam sobre o caminho da Iluminação, que pode ser de três tipos – Buda, Darma e Sangha. Me perdoem os budistas os erros de grafia ou de interpretação, mas lá vai.
O caminho de Buda é de profunda interiorização, é a busca da libertação através da Meditação, uma meditação que possibilite a percepção profunda da natureza das coisas e da própria vida. Jung entendeu o seu processo de Individuação como um mergulho interior na direção do Centro, que ele chamou de Self. Ele mergulhou nas imagens interiores e seguiu as suas intuições profundas para escolher os caminhos de sua vida e de seu estudo. O caminho de Buda é um caminho de busca interior e profunda de compreensão da vida.
O caminho do Darma é um pouco mais fácil de entender. Darma é a nossa missão, o grão de areia que a nossa existência veio acrescentar à praia da vida. Entendo o Darma como a ordem profunda que é inerente à essa vida. Quando Jesus pede, no Getsêmani, para ser poupado se possível, para afastar de si o Cálice de sofrimento que sabia ser o seu destino, para depois vivê-lo integralmente, estava indagando o seu Darma, ou sentido profundo de seu sacrifício. Todo dia fazemos coisas que parecem sem sentido, toleramos situações e esperas insuportáveis com a sensação de que aquela é a coisa certa a se fazer, mesmo que não seja possível compreender suas razões por um bom tempo. Estamos dando nosso tributo ao Darma. O seu caminho é viver a integralidade da Vida e de nossa vocação, mesmo que isso exija grandes sacrifícios.
Finalmente temos o caminho do Sangha, que é o do encontro com o Outro, o cuidado com a comunidade. Há um documentário no Netflix chamado Happy (“Feliz”) que vai motivar outros posts desse blog, onde várias e paradoxais histórias de dor e felicidade são retratadas. Uma delas é de Osaka, uma pequena ilha do Japão onde se encontra o maiores índices de longevidade e de pessoas centenárias do planeta. Muito se pesquisa sobre Osaka, sobre a sua dieta rica em frutos do mar e pobre em calorias, o que sem dúvida contribui para seus índices de saúde, mas o documentário lança uma luz sobre outro aspecto dessa saúde, que é a força de acolhimento que existe nessa comunidade. Uma velhinha que perdeu o marido na guerra observa que não tem filhos, não tem uma família que cuide de sua velhice. A família que a acolhe é aquele grupo de pessoas que se cuidam mutuamente, sobretudo uma amiga que ela puxa para perto das câmeras que é o seu anjo da guarda. Aquele grupo de velhinhas é o seu Sangha.
Há um contraponto entre a força do Sangha dessa pequena comunidade e a vida corrida e infeliz de Tóquio, onde as pessoas vivem para o trabalho e a produção até o limite da exaustão. Será que isso não é mais familiar à nossa experiência?
Uma das radicalidades de Jesus foi a sua relação com o Sangha. Uma cena do Evangelho que me marcou foi quando ele dá uma bronca em sua mãe que pedia mais atenção a ela e seus irmãos em uma situação social. Mãe é toda mão que me dá de comer e irmão é toda pessoa que senta comigo à mesa. Era escandaloso na época sentar à mesa com coletores de impostos, publicanos, samaritanos, o que Jesus fazia e não estava nem aí. Irmão é o Outro. Muitos séculos antes da Modernidade, Jesus advertia que os laços de família não podem ser pretexto para o isolamento e o egoísmo. Parece que ainda não foi muito assimilado neste ponto.
Engraçado que, apesar desse blog descer a lenha na gigantesca Ilha de Caras das redes sociais, veículo de narcisismos baratos e exibições de felicidades de plástico, pode ser que, em seu aspecto positivo, elas possam ter um sentido de Sangha, com uma sensação de pertencimento e acolhimento que não temos mais em nossa vida real. Não tenho nenhuma dúvida que isso também signifique o contrário, com grupos de ódio e de segregação, mas essa talvez seja uma das contradições mais agudas de nosso tempo: a tensão entre o acolher e o excluir. Este deve ser o caminho do Sangha.