domingo, 30 de agosto de 2015

O Olhar do Clínico

O termo “Clínica” vem do latim, de “Inclinare”, o que é uma alusão ao ato de um curador de se inclinar atenciosa e meticulosamente sobre um paciente. Significa também que o ato de tratar um paciente exige uma atenção dedicada sobre ele. O paciente perdoa muita coisa no médico, até os seus erros, mas não perdoa displicência. São vários os tipos de Atenção que podemos ativar e exercer em nosso dia a dia, Podemos manifestar a desatenção também numa série de contextos, mas não vai ser esse o assunto deste post.
Foi anunciada hoje a morte do neurologista e neurocientista Oliver Sacks, morte que já havia sido anunciada pelo próprio há alguns meses, após recidiva de um Câncer maligno que caprichosamente brotara atrás de seu olho. Oliver fez um artigo em que anunciava a sua atitude serena e quase perplexa diante do fim de sua vida. Não dá para deixar de notar a mesma curiosidade perplexa que marcou a sua vida como médico e como escritor. Casos neurológicos que marcavam os limites de nosso conhecimento, como do artista plástico que deixou de enxergar cores ou do homem que confundiu a sua mulher com um chapéu. Oliver Sacks era dessa forma um romancista médico, um cronista do absurdo das lesões e das estratégias de sobrevivência, das histórias de dor e de heroísmo que todo médico presencia em seu dia a dia. Presencia e nem sempre registra. Oliver Sacks sabia também que seu método representava uma Medicina que perdeu a sua capacidade descritiva e passou a compilar evidências como um detetive digital. A sua Medicina provavelmente resiste na prática de alguns médicos que ainda gostam de se inclinar sobre os casos e, sobretudo, sobre as suas dúvidas.
Um dos meus heróis na Psiquiatria foi o filósofo e fenomenologista Karl Jaspers. Jaspers morava dentro dos asilos para os então alienados. Sem tratamentos eficazes para ajudar aquelas pessoas, ele e outros práticos descreviam meticulosamente, exaustivamente, tudo o que eles viam acontecer na doença dessas pessoas. Jaspers defendia algo muito fora de moda hoje em dia, mas completamente vital para qualquer profissional de cura, que é aprender a ver o mundo com os olhos daquele que está doente. A sua Compreensibilidade continua sendo o padrão ouro de minha prática, e acredito que isso está bem descrito nesses mais de quinhentos posts desse mal teclado blog.
Acredito que Oliver Sacks sabia que era um continuador dessa Medicina quase esquecida. Entrar dentro de um caso de maneira profunda, conhecer cada detalhe do que aparece e se oculta em seu quadro para depois mostrar o que esse caso tem de universal, o que um paciente pode ensinar sobre todos os outros é exatamente o contrário do que se faz na Medicina dos grandes dados. Dizer para um paciente que o seu Câncer tem 60% de cura é informá-lo também que tem 40% de chance de morrer. O que parece uma informação otimista é na verdade uma informação perfeitamente estúpida e irrelevante. O dado contempla grandes populações e metanálises de dados. Dá muito mais conforto falar de pacientes em situação bem mais adiantada que reagiram e encontraram o caminho da recuperação, com medo e amor na travessia. O caso de carne e osso, as mudanças de rumo e o caminho da recuperação, isso que estava descrito nos relatos apaixonados de Oliver Sacks. Ele representou, e manteve, o olhar do médico que se inclina sobre seu paciente e encontra, na perplexidade, os caminhos do diagnóstico e do tratamento. Pois cada caso é único e universal.
Se a Medicina recuperasse a sua origem no Sagrado, hoje diríamos que perdemos um santo moderno.

domingo, 23 de agosto de 2015

Atenção Relaxada

Uma das coisas que me ficam do modelo inspirado no Mito de Édipo e que está descrito no último post: ter uma ferida não revelada ou mal trabalhada cria um sistema de disfuncionamento e de baixa energia em nossa Psique. Édipo tenta compensar a dor de seus pés inchados e seus tendões cortados através de um destino heróico. Não adianta estar no topo do mundo com a sua ferida cheirando mal. Não adianta ter o mundo e perder a sua alma, falou Jesus. Conquistar a própria ferida é tornar o que era disfuncional em funcional. Não precisamos da fragilidade para ganhar proteção ou piedade, precisamos de nossa fragilidade para deixar de fugir, deixar de tentar aparentar o que não somos, ou o que não temos. Quando o Reino de Tebas passa por uma seca catastrófica, o Rei Édipo vai ao grande vidente e pergunta quem está trazendo aquela desgraça e o que seria preciso fazer para trazer de volta o equilíbrio ao Reino? Tirésias aponta para rei e revela que ele havia matado o seu pai e desposado sua mãe. Enquanto nossa Psique tem um segredo não revelado, uma ferida escondida e mal curada, a energia que deveria estar disponível está sempre falha e, como tal, não circula. Esse é um dos objetivos dos tratamentos, limpar as sujeiras, separar o joio do trigo, restabelecer os canais de comunicação, internos e externos, para encontrar alguma felicidade e reparação.
A nossa mente, como os supercondutores, funciona melhor em menores temperaturas. Isso não significa que devemos colocar a cabeça no freezer, mas antes achar um estado de atenção relaxada para fazer as coisas acontecerem. O medo ou a alta atividade emocional atrapalha o processamento de informação. Já são alguns milênios em que os meditadores tentam educar a mente para o estado de não-mente, isso é, um estado onde os infinitos mi mi mis, ou os bla bla blás internos são finalmente silenciados. Criando uma espécie de consciência observadora, os monges observam os próprios saltos dos macacos do Pensamento para finalmente apaziguá-los. Entrar num estado de Atenção Relaxada é um treino diário e vital. Aprender a apaziguar os pensamentos, para entrar em contato com outros estados de Consciência.
O Rei Édipo não tem paz consigo mesmo. Não conquistou os seus medos. Não encontrou a sua Visão Interior. Na parte do mito em que ele, ao saber que desposara a própria mãe e com ela criou uma família, arranca os próprios olhos. Não há perdão para a própria Inconsciência. Parece um castigo autoimposto, mas bem que pode significar uma libertação. Lembro de um paciente que sobreviveu a um Câncer intratável e falou das maravilhas (e terrores) de passar por uma experiência que lhe jogou a própria vulnerabilidade na cara. Quando antes ele se sentia imortal, era irritável, meio paranóico com seus funcionários e esposa e, acima de tudo, vivia às turras com seu pai, a quem secretamente atribuía a culpa pela morte de sua mãe. Depois de morrer e renascer, passou a ter uma estranha noção da passagem do tempo e do mal resultado de seus ódios mal elaborados. Tudo isso havia “queimado a fiação”, segundo ele, gerando um Tumor agressivo que, ele sabia, ainda estava por lá, após três cirurgias. Cada dia passava a contar, mas, antes de tudo, contava o seu coração mais leve. Ele trocou de olhos, ou, melhor ainda, de olhar.
Uma desgraça para o destino humano não é a Ferida que nos forma, mas o medo que se forma em torno dela. A sensação de Insegurança cria seus filhotes, que é a busca de falsas fontes de Segurança. Essa é uma parte importante da tragédia de Édipo e de todos nós: quanto mais ele foge de seu Medo, maior ele fica, até se deparar com o maior de todos, que é ser o causador da desgraça de todos. Gosto de imaginá-lo, sereno e sem preocupações como um andarilho sábio, coxeando pelos vilarejos, após perder tudo o que um homem preza: dinheiro, poder, posição, influência. Provavelmente, o Édipo curado vive num estado de Atenção Plena e Relaxada, em fluxo com o caminho e com a vida.
O antepenúltimo post deste blog falou sobre três grandes ciclos arquetípicos: o Parental, o Heróico e a Individuação. Individuação é o estado em que o velho e medroso Ego perde a sua força e a Psique se expande na direção do Infinito. Disse Jesus que muitos são chamados, poucos escolhidos, porque não é fácil deixar o velho medo para trás. Não é fácil tirar a Insegurança quanto ao futuro de centro de nossa existência.

sábado, 22 de agosto de 2015

Ninguém Sofre nas Redes Sociais

Édipo quer dizer “Pés Inchados”, ou “O Coxo”. A sua história e a sua ferida começam quando seu pai, Laio, foi ao Oráculo de Apolo perguntar como seria o destino de seu primeiro filho. A previsão foi a mais terrível que se pudesse esperar: aquele menino estava destinado a desposar a própria mãe e matar o seu pai. Laio pegou a criança e a entregou a seus criados para morrer, no monte Cinterão. O escravo não teve coragem de matar a criança. Perfurou os seus pés e deixou-o pendurado numa árvore, para ser morta pelas feras. Pensando bem, talvez tivesse sido melhor matar a criança. Deixado à própria sorte, Édipo foi salvo por um pastor que ouviu o seu choro e tomou-o como filho. A marca dessa Ferida nunca se apagou de seus pés. Nem da sua alma.
Édipo é um herói moderno. A sua força não está na beleza nem nas glórias da batalha. Édipo vence a Esfinge com duas armas novas para os heróis: Inteligência e Astúcia. As suas armas não serão as dos X-Men nem dos Vingadores. Decifrando o Enigma da Esfinge, ele liberta Tebas e desposa a sua Rainha, Jocasta, que mais adiante ele descobrirá que assim cumpria a profecia terrível. Freud fixou-se bastante nessa parte do Mito que descreve a atração pela Mãe e a rivalidade voltada ao Pai. Eu prefiro olhar o mito por outro ângulo. Édipo descreve uma tendência muito enraizada em nossa Cultura, que já falei em outros posts, é mais helênica do que imaginamos. Como eu poderia resumir essa atitude? Fácil: ninguém aparece feio no Facebook. Todos estão lindos e com fotos desatualizadas em anos e quilos. Cultivamos beleza, simetria e perfeição. Nada de feiúra, nem de fraqueza. Ainda assim, somos descendentes dos pés inchados e tortos de Édipo. O que isso quer dizer?
Na prática clínica vemos histórias de heroísmo, de pais e mães que abraçam o sofrimento dos filhos. Doenças degenerativas, paralisias, sofrimentos que nem conseguimos imaginar. Fico pensando que esses pais fogem do erro de Laio e Jocasta. Laio ouviu que aquela criança mataria seu pai para desposar a mãe. Para fugir do próprio destino, sacrifica o seu filho e, sem saber, a própria vida. Essa é uma lei psicológica profunda do Mito: quem tenta fugir do sofrimento acaba por atraí-lo. A fragilidade humana sempre vai existir, não importam as tentativas de retificá-la. Podemos promover abortos terapêuticos quando os exames apontarem defeitos genéticos ou tentar manipular os genomas para eliminar as doenças, mas essa é exatamente o mecanismo da tragédia do Rei Édipo. O jovem machucado tenta fugir da própria Ferida através da Lógica, da Técnica, da tentativa de dominar a própria dor pela força da Razão. Isso parece mais fácil do que integrar a própria fragilidade no Todo da Psique.
Lacan dizia que o “Sintoma é Aquilo que o Sujeito tem de Mais Real”. O sintoma nos conecta com as coisas que gostamos de esconder nas redes sociais: a Fragilidade e a Dor. Isso não gera muitas curtidas...
Édipo termina a sua vida disputado por todas as cidades vizinhas. Outra profecia dizia que onde ele morresse seria um território sagrado? Não seria outro paradoxo? O portador da desgraça, a família que atravessou três gerações de tragédias (como os Kennedys), e ainda assim ele passa a ser um homem sagrado. Como outros grandes heróis, Édipo não vai passar pela morte física, e ele é engolido pela terra. Ele é o homem que conquistou a própria ferida, em vez de fugir a vida toda da própria fragilidade. A Razão vira Sabedoria e a Força deriva de sua fraqueza... E aí? Vai encarar?

domingo, 16 de agosto de 2015

Ciclos Arquetípicos


Já mencionei essa pequena história em outro post. Depois de 500 textos, é difícil não repetir ideias ou histórias. Junguianos comparam o desenvolvimento psíquico a uma escada em espiral, onde passamos infinitamente pelas mesmas questões, mas em níveis diferentes. Vamos imaginar que retomamos esta história alguns degraus acima.
Um artista plástico ensina sua aprendiz. Explica que um artista tem três grandes fases em sua vida: na primeira fase ele desenha, pinta, molda a sua arte para mostrar à sua família. Mostra para a sua mãe, sua babá, seus avós e depois de alguns anos para a professora, para as exposições da escola onde todos fingem examinar aqueles borrões em busca de algum indício de futuro. Na segunda fase, o artista mostra seu trabalho para os seus pares: entra em escolas de arte, encontra as suas referências, deixa o seu bairro, a sua cidade, o seu país e vai se filiando a uma imensa família de artistas, em que seu trabalho vai se inserir, ou não. Nesta fase, o artista quer mostrar a sua criação para todos, quer ser amado, admirado e, sobretudo, captar a atenção das pessoas. Talvez o artigo mais raro que dispomos na Era Digital seja a atenção das pessoas. Tudo e todos se dissipam numa fração de segundos, sem deixar muito rastro. As pessoas se queixam de falta de Memória, mas o que lhes falta é a Atenção.
O artista termina o seu ensinamento chegando à terceira fase, a maturidade da sua arte. Ele já mostrou sua produção aos pais, aos parentes, aos professores, aos seus pares e ao mundo. Recebeu, ou não, sua Atenção. Na última fase, ele não precisa mais desse olhar. Ele passa a ser visto pela sua Obra. Esse é o olhar que interessa. O artista se vê refletido em sua Obra e passa a ser visto por ela.
Acho essa história encantadora porque ela resume três grandes ciclos da vida de um ser humano. Talvez os mais importantes ciclos arquetípicos: o Ciclo Parental, o Ciclo Heróico, o Ciclo da Individuação. Jung dedicou sua vida a intuí-los e descrevê-los, sem essa sistematização, que deixou para nós, seus sucessores.
O Ciclo Parental é o mais explorado pela Psicologia. A primeira formação de identidade vai se formar, bem ou mal, nessa fase. A sensação de ser alguém, de ter um valor intrínseco, de ter um lugar na vida, vai ser formada nessa fase em que a criança mostra seus garranchos e espera por Atenção e Aprovação. A falta ou o excesso dessa Atenção e dessa Aprovação vai determinar muitas feridas psíquicas e um longo trabalho de cicatrização. Isso também vai permitir, ou impedir, a entrada no segundo Ciclo, que é o Heróico. Como o artista que vai procurar a sua tribo, a pessoa vai buscar seu lugar no seu grupo, inicialmente de amigos, depois de colegas e competidores. Vai ser a sua jornada dentro da sua profissão, na formação de sua família e construção de um legado. Muita gente tropeça, ou nem entra, nessa fase heróica. Muitos se perdem no caminho, como dizia a velha música.
A fase seguinte é a mais difícil de descrever, e entrar. O diálogo passa a ser com níveis mais profundos de Silêncio. O artista passa a se reconhecer, ou ser reconhecido, em seu mundo interno, independente da vaia ou do aplauso que vem de fora. O seu diálogo é com a eternidade, onde a sua obra vai ficar de alguma forma registrada. Ele precisa menos de atenção e aprovação que eram tão importantes nas outras fases. Na verdade, ele precisa de cada vez menos coisas do mundo exterior.
Essas fases descrevem a formação, a consolidação e a relativização do Ego como veículo de nossa consciência.
No recente filme “Lucy”, com Scarlett Johansson, uma moça comum e com péssimo gosto para homens se envolve com traficantes e acidentalmente se expõe a uma droga que vai progressivamente expandindo sua capacidade cognitiva. Ela primeiro domina toda a informação disponível, chega ao profundo entendimento da natureza do Tempo e da Vida para no final virar pura Consciência. Jung teria gostado bastante desse filme, eu imagino. O filme descreve, imagino também, a nossa jornada em atingir o máximo de Conhecimento para virarmos, no fim, Consciência. Essa é a tarefa da Individuação, nos três grandes ciclos da Vida.

domingo, 9 de agosto de 2015

Inimigo Invisível

Uma das características da Doença do Pânico, em sua própria definição, é da ocorrência de uma crise de ansiedade repentina e devastadora, sem um desencadeante específico. Segundo essa definição, é como um vulcão interno que entra em erupção sem motivo e sem ter como prevenir esse fenômeno. Essa é uma das características que transformam os portadores dessa doença em reféns do medo: se a crise pode ocorrer a qualquer momento, é como viver sentado num barril de pólvora o tempo todo.
Estava numa livraria ontem e folheava um livro em que o autor denunciava a máfia da Psiquiatria e a sua capacidade de transformar os pacientes com o diagnóstico de Transtorno de Pânico em doentes crônicos, sempre dependentes de vários medicamentos e mantendo, ainda, crises que se repetem, repetem diante das doses cavalares de medicação, que vão sendo aumentadas indefinidamente. Achei a visão um tanto soturna e comprei um livro que talvez falasse do mesmo assunto, que é a Neuroplasticidade. Concordo com o autor que ficar aumentando a dose da medicação sem trabalhar com o paciente as origens e a manifestação do Medo, criando mecanismos de enfrentamento e controle dos sintomas, simplesmente não funciona.
Lembro de um caso que me chegou depois de tratamentos anteriores fracassados em que, apesar da dose da medicação estar adequada e até um pouco mais alta do que eu costumo prescrever, as crises continuavam indo e voltando, ante o olhar assustado do médico e de seus familiares. A conduta tradicional seria aumentar a dose. Acontece que essa definição de crises que vem do nada é muito bonita nos livros e nos manuais diagnósticos, mas não ajuda nos tratamentos. Por que aquele caso, que parecia ter tudo para melhorar, estava evoluindo tão mal? A paciente continuava cutucando as áreas do medo com uma sensação permanente de insegurança sobre o seu futuro. Tio Sigmund, sempre achincalhado nos seminários de Neurociência, descobriu há mais de um século que a existência de um conflito, rodando debaixo da camada percebida pela nossa Consciência, gera sintomas. Esses sintomas não são Imaginários nem vontade de chamar a atenção, como muita gente acredita, mas a tentativa de trazer o conflito para cima e, de preferência, elaborá-lo. A paciente em si estava perfeitamente acovardada por aquelas fases da vida em que nada parece dar certo: relacionamento terminando, transição de carreira, brigas na família, tudo isso bombardeando as áreas do Cérebro que processam o medo, gerando crises que surgiam no meio de pensamentos em turbilhão, preocupações indo e vindo e um bullying muito comum e cruel, que é o auto-bulliyng. Tudo isso criava as condições para a crise de Pânico perfeita, gerando assim novos ciclos de medo e de sensação de que aquilo nunca teria fim.
A estratégia foi trazer à tona os achacadores internos para depois enfrentar os externos, como chefe abusivo, namorado surtado e mãe chantagista, que foram perdendo sua força e as crises junto. De certa forma, pintar o Pânico como um inimigo traiçoeiro, que pode atacar do nada sem mais nem porque deixa os pacientes sempre aterrorizados e agarrados aos remédios. Trazer os medos à luz, explicar os mecanismos das crises e como lidar com elas tem o efeito de trazer o monstro para fora, onde ele não parece tão implacável, nem invencível.
Modular o medo, reduzir os conflitos e as preocupações circulares sem dúvida ajudam a diminuir as crises e ampliar o repertório de estratégias e manobras de lidar com elas. Isso é o contrário do acovardamento que cronifica a doença e gera livros que denunciam os psiquiatras e sua tentativa de escravizar os pacientes. O tratamento deve visar o "enpowerment", que em portuenglish é traduzido por empoderar a pessoa que sofre as crises, para devolver a ela a sensação de estar no comando. Eu concordo que essa não é sempre a posição que alguns pesquisadores tem em relação à doença.
Colocar a crise de Pânico como um fantasma imprevisível e que vai sempre voltar, pode transformar o paciente em uma pessoa fragilizada e escondida atrás dos remédios. Isso deve ser modificado.Mas justiça seja feita que não é todo mundo que está afim de peitar a doença. Em alguns casos, felizmente raros, a pessoa se esconde atrás dos sintomas e vira uma paniquenta profissional, pode-se assim dizer. Essas não se adaptam muito a esse que escreve esse texto. E a culpa vai para a conta do médico e de seus remédios, como sempre.

domingo, 2 de agosto de 2015

De Cima Para Baixo, De Baixo Para Cima

A descrição clássica da Reação do Estresse é o “Fight or Flight” um trocadilho que quer dizer uma reação de Luta ou Fuga quando diante de uma situação de ameaça. Ela se aplica muito mal a uma crise de Pânico. Nunca vi ninguém, durante e depois de uma crise de Pânico, afim de encarar uma briga. Nem ter vontade de fugir, para algum lugar, do inimigo invisível.Quem passa por isso quer correr, sim, para um lugar protegido, de preferência um hospital. A crise de Pânico parece mais um botão que a Mãe Natureza projetou para ser apertado num Enfarte do Miocárdio. Pode estar vindo uma betoneira na descida que o sujeito não se mexe quando sente a dor de um evento cardiovascular. Sudorese, taquicardia, dor em queimação no ombro e estômago, tremores em todo corpo e extremidades, ar que parece não querer entrar. Pior de tudo, a sensação de congelamento, de não ter como se mexer do lugar, como um peso de toneladas no peito. De fato, uma Crise de Pânico parece em tudo com um Enfarte. E é difícil convencer o paciente que aquilo é apenas um botão errado que o Cérebro apertou.
Gosto muito da Teoria da Neuroprogressão, do grupo de FLávio Kapczinski, lá do Rio Grande do Sul, que se aplica à Doença Bipolar, segundo esse grupo. Cada episódio da doença cria uma espécie de reorganização das redes neurais, criando um Cérebro diferente. Cada crise cria essa progressão, e quanto mais crises, pior. O mesmo se aplica à Doença do Pânico: quanto mais crises, mais o Cérebro vai se organizando em torno do risco de se ter outro evento. É como se o mundo deixasse de ser seguro e cada situação pudesse trazer uma crise de Pânico. Cria-se uma nova e amedrontada identidade, em que a pessoa passa a entender o mundo exterior como perigoso e a si mesma como muito frágil e acovardada. Esse é o maior estrago que a doença produz: uma Neuroprogressão no sentido de viver cercado por uma gaiola invisível: quanto mais crises, mais estreita fica a gaiola. E mais sem saída parece a situação. É muito importante devolver ao paciente a sensação de algum controle sobre as crises, e para isso a medicação é muito útil. Literalmente, um santo remédio.
Recebi um dia um jovem médico, que, óbvio, não ficou feliz com a hipótese de estar passando por crises de Pânico. E se for uma Arritmia Cardíaca? Como você pode ter certeza?- Ele me questionou. Não sei se há certeza em Psiquiatria, ou mesmo na Medicina. Uma arritmia pode causar taquicardia, medo e desconforto respiratório, bem como uma crise de Pânico. Como diferenciar uma coisa da outra?
Nossa consciência corporal se organiza nos dois sentidos: Top-Down e Bottom-Up, isto é, de Cima para Baixo, de Baixo para Cima. Nossa Consciência, na hipótese de Antonio Damásio, se organiza a partir das sensações corporais, nas percepções do próprio corpo que organiza uma sensação de Eu. O Penso Logo Existo de Descartes vira um Sinto Logo Existo dessa teoria. A sensação de existir, de ser o Fulano e Sicrano vai se organizando com uma coleção de Memórias e Percepções de Si e do Mundo. É justamente isso que passa a ser perturbado pelas crises de Pãnico. O Eu deixa de ser Eu e o Mundo deixa de ser o Mundo. Tudo fica estranho, novo, ameaçador. A Arritmia Cardíaca é um desconforto Bottom-Up (de baixo para cima). O Pânico é Top-Down (de cima para baixo). A Arritmia causa uma sensação de desconforto que é interpretada pelo Córtex: um aperto, uma tontura, um desconforto. A crise de Pânico, pelo contrário, primeiro dispara o alarme, o corpo se inunda de Adrenalina, a taquicardia vem depois. O jovem colega aprendeu a entender a crise e a lidar com ela. Isso fez toda a diferença.
Qualquer sensação corporal estranha pode apertar o botão do alarme: uma tosse, uma alergia, uma dor de barriga. O botão pode ser apertado de baixo para cima. mas manda a crise de cima para baixo.
Entender isso ajuda muito a orientar os pacientes e as pessoas que sofrem desta Doença. A sensação que dá para lidar com ela, então, é o começo da cura.

sábado, 1 de agosto de 2015

A Flauta de Pã

Antes de falar sobre o deus grego Pã, vou contar uma passagem de suas histórias: Pã, um deus grego feio, com torso e rosto humano mas chifres, barbas e pernas de bode, apaixonou-se pela bela ninfa Siringe. Ela, como tantas outras, rejeitou o sátiro que, enlouquecido, resolveu tomá-la à força. Ela fugiu deseperada e pediu ajuda às ninfas do rio, as naiades, que, meio no improviso, a transformaram num monte de bambús. Pã montou com esses bambús uma flauta, com sete notas, que representam as notas maiores da música e a harmonia universal que é tocada por ela. A Mitologia Grega é cheia dessas histórias, em que uma perda, uma dolorosa frustração ou mesmo uma morte é um portal para a arte, a criação. Isso tem uma implicação difícil para nosso tempo: a doença, a fragilidade podem ser o portal para uma ampliação de consciência.
Talvez esse seja um ponto importante para marcar as diferentes leituras de Freud e de Jung sobre os mitos e as doenças. Pã é um deus pastoril, um homem bode que deu origem à imagem de vários demônios, com seus chifres e seus olhos de fogo. Conta a lenda que Pã morre com a nova civilização cristã e a transformação da força indomável de Eros para a doçura do encontro amoroso. Pã não morreu, apenas adormeceu. Freud retirou-o das profundezas. Mostrou que dentro de nossas camadas e camadas de educação civilizada existe um sátiro, um monstro pronto a assumir o comando e despedaçar tudo o que estiver na sua frente.
Para quem já teve uma crise de Pânico a imagem da fúria de Pã não é nem um pouco estranha. Siringe diz não diante de seu desejo, Pã se enfurece e avança para tomá-la à força, mesmo que isso a destrua. Ela pede para sair de lá, ir para outro lugar. As pessoas vítimas de extrema violência, como torturas e estupros, podem usar essa estratégia, de se mudar para outro lugar dentro de sua cabeça para sair dali, não participar daquilo. Quem passa por uma crise de Pânico nem sempre tem essa opção: é sufocante demais, aterrorizante demais.
Freud diria que as pessoas perderam o contato com seus instintos, mandando-os para o calabouço do Inconsciente. Exilado no escuro, Pã aproveita a primeira ocasião para possuir quem o abandonou. Depois disso, ele não vai mais tolerar a indiferença. Ele vai ser ouvido, por bem ou por mal. Ele não lida bem com rejeição, pode-se assim dizer.
Jung diria que a doença é sim uma porta voz dos deuses famintos. Que o sintoma pede para ser ouvido e exige que o homem partido em mil pedaços comece a juntar seus cacos na direção de um ser mais completo e integrado. Aqui temos um ponto muito importante: Freud clama pela recuperação do deus morto, pela recuperação de nossa capacidade desejante. Ele procura o Daimon, que é o nosso fauno interior. Nossa sociedade inflamatória afunda nosso daimon em tijelas imensas de Corn Flakes. Nosso desejo virou obesidade. O desejo de Pã não pode ser contido e deve ser trazido à Consciência.
Jung acredita em Siringe: o desejo de Pã pode e deve ser contido. Quando fazemos isso, sofremos. Não é fácil dizer não, como bem sabia a ninfa. A dor, a perda, a doença, tudo isso pode ser transmutado em harmonia. Em totalidade. Percebem? Ambos, junguianos, freudianos, procuram pela recuperação do que está soterrado e restauração do humano aleijado de seu instinto, ou separado do Significado. Os caminhos não são distantes, mas terminam em lugares muito diferentes.