domingo, 29 de novembro de 2015

Autoestima

Costumo dizer que Psicoterapia é tão fácil de fazer que até os terapeutas fazem. É claro que é uma piada. Como toda piada, com um fundo de verdade. Americanos estudam tudo e para tudo tem estatísticas. Fizeram um estudo com seiscentas pessoas que faziam psicoterapia, de todas os tipos, modelos cores e anos. Comparado com um grupo de pessoas que não faziam terapia, os terapeutizados demonstraram melhor índice de satisfação pessoal e capacidade de lidar com os próprios problemas. Isso contraria o senso comum que diz que para fazer terapia você precisa ser louco, ou problemático. Uma vez eu quase joguei uma supervisionanda da sacada porque ela afirmou que não sabia se levaria o filho para a terapia: "Não sei se ele precisa". Esse estudo confirma que a frase foi muito infeliz. Psicoterapia é no mínimo uma oportunidade de conhecimento de si, de sua história e da capacidade de escuta. Não é só a escuta do terapeuta que conta, mas o direito de se ouvir, de construir uma narrativa e poder escutar a própria voz dentro dessa narrativa. Isso cria insight, reflexão e,uma palavra que está muito na moda nas terapias cognitivas e que eu adoro, Modulação. Como estamos num mundo de desregulados, a capacidade de modular as respostas afetivas, emocionais e intelectuais é uma tarefa cada vez mais desenvolvida nas salas de terapia. Ou, pelo menos, deveria ser.
Escrevi há muito tempo sobre um sonho de Bel César, psicoterapeuta, budista entusiasta, e uma das pessoas que tenta uma aproximação entre a Psicoterapia e as práticas budistas. No sonho, ela estava condenada à morte e poderia fazer uma última declaração. Ela agradeceu às pessoas que haviam testemunhado a sua vida com compaixão. Não lembro a leitura que ela teve sobre o próprio sonho, mas lembro que fiquei arrepiado quando o li. Ele tocou numa verdade profunda da terapia, que é o Olhar do terapeuta, um olhar de testemunha compassiva. As pessoas pensam que compaixão é a capacidade de sentirmos pena, ou passar a mão na cabeça dos pacientes. Uma versão para disso é a fantasia que todo terapeuta deve tomar partido do paciente e melhorar a sua autoestima. Aí temos outra palavra espinhosa: autoestima. Já alfinetei muito a geração autoestima em outros posts, por isso vou me poupar neste. Mas vou abraçar temas mais difíceis, talvez: o que seria uma compaixão cabível e como uma terapia pode melhorar a autoestima?
Compaixão é, antes de mais nada, Atenção. Podemos olhar na rua, uma mãe com um bebê no colo, olhando para a tela do seu smartphone. Ou teclando enquanto dirige, com crianças no banco de trás. Ou no shopping, deixando a criança destruir a loja enquanto escolhe uma blusa. A Atenção é um artigo cada vez mais raro, talvez porque todos a disputem. Na sessão, o olhar do terapeuta é uma oferta de atenção. Compaixão começa por aí. Essa Atenção pode ser inédita nesse mundo de olhares cansados e voltados ao próprio umbigo.
Não é tarefa da terapia melhorar a autoestima do freguês. Não é tarefa tecer elogios nem tentar fazer o paciente tentar agradá-lo com os seus progressos. Autoestima é, antes de tudo, autoaceitação. Como Hillman disse, nossos problemas começam e terminam no Genesis. Já chegamos no mundo devendo: somos pecadores de cara e vamos pagar pelos pecados. Em algumas culturas, já chegamos com um carma coletivo para carregar nas costas. A psicoterapia permite visitar e compreender esses pecados que não cometemos, mas estamos sempre sendo acusados em nosso tribunal interno. Deveríamos ser mais magros, mais espertos, ter mais grana ou receber ajuda humanitária de algum senador do PT. Me ajuda, Delcídio. Antes da autoestima, temos o auto bullying. O terapeuta olha e trabalha encima do auto bullying. Já ajuda muito, antes de melhorar, parar de piorar as coisas.
Mas por que eu comecei este post brincando que é fácil ser terapeuta? Porque o simples exercício da escuta e do olhar atentos já permitem que a Psique comece a se organizar. Basta prestar Atenção e aceitar a realidade de nossa Imperfeição. Talvez nessa Imperfeição que esteja o verdadeiro brilho.

domingo, 22 de novembro de 2015

Amanhã

Prometeu era um Titã, irmão de Zeus. Como muitos, cobiçava o poder de seu irmão deus, o mais poderoso do Olimpo. Tentou ludibriá-lo divindo os despojos de um touro sagrado. Depois roubou o fogo dos deuses e deu aos homens. Passou a eternidade preso por correntes numa rocha. Durante a noite, os abutres lhe comiam o Fígado. Pela manhã, ele se renovava, para voltar a ser comido na próxima noite. Na Mitologia Grega, é muito comum o combate entre o mundo dos deuses e o mundo dos homens. Normalmente porque os homens tentam sobrepujar os deuses com uma invenção recente de nossa jornada evolutiva, que é a astúcia, a capacidade de esconder as nossas verdadeiras intenções e trapacear os deuses, o que sempre acaba sendo um mal negócio, já que os deuses tem acesso às verdadeiras intenções dos humanos. A maldição continua, entretanto, quando o homem e sua Razão tenta manipular o mundo à sua vontade, tentando operar na Matéria e duvidando de tudo que seja Metafísico, isto é, fora do campo do mundo físico. A Psique, por exemplo, que existe num campo paralelo e interdependente com o mundo físico, mas não faz parte dele, para muita gente, não existe, ou é um produto dos nossos neurônios.
Para um budista, a metáfora prometeica poderia facilmente representar a natureza impermanente da vida. Nossas aspirações prometeicas, de atingir o mundo dos deuses através de nossa astúcia e das capacidades da Mente terminam em um permanente sofrimento, que se renova o tempo todo. A Mente tentar superar o sofrimento é como tentar se levantar segurando os próprios cabelos. A Mente não pode curar a ferida que a própria Mente criou. Talvez por isso que a Psicologia Cognitiva esteja se aproximando do Budismo, através do Mindfulness. Determinadas memórias, determinadas feridas, não podem ser reparadas pelo entendimento. É preciso olhar para elas, integrá-las, para que possam, um dia, deixarem de doer ou mudar a sua característica. Jung chamou isso de Função Transcendente: a capacidade da Psique de saltar para além de seu Conflito, gerando uma nova síntese. Haveria como aproximar a Função Transcendente com o Mindfulness? Pensa esse escriba que sim.
O Mindfulness tem como princípio um treinamento constante em estar completamente presente no Presente. Nossa Mente divagadora está sempre preocupada com o Futuro, ou com o que ocorreu no Passado. Quando viajamos, levamos fotos e lembranças para podermos ficar presentes na recordação. Podemos viver então o vivido na hora que prestamos atenção ao que passou.
O Mindfulness tenta talvez provocar uma saudade do Presente. Um exercício usado em suas vivência é dar uma uva passa e pedir para a pessoa mastigá-la por uns cinco minutos, até ela se dissolver no ato de mastigação em si. Eu diria que é mastigar a uva passa com saudade dela, pois o seu gosto vai se transformando tanto durante o processo que as pessoas notam que nunca comeram verdadeiramente uma uva passa na sua vida. Ou talvez nunca tenha realmente sentido o gosto da comida e da vida.
Uma Psicoterapia de base analítica é, em grande medida, uma expedição ao Passado, onde as experiências lá vividas são recuperadas, muitas vezes revividas e colocadas em perspectiva. Só que não é a Mente que cura a Mente. O ato de Atenção a esses conteúdos e o Olhar do terapeuta sobre essas cenas faz com que mudem esses nós que se estabelecem em nossa Psique por tantos anos. Essa é a Função Transcendente: de repente, o que doía muito, já não dói tanto assim e os ressentimentos, tão longamente alimentados, deixam de ter tanto valor ou de ocupar tanto espaço na vida psíquica do paciente.
Como na música de Guilherme Arantes: "Amanhã/ Ódios aplacados, temores abrandados/ Será pleno..." Esse é um projeto terapêutico de cada dia: aplacar os ódios, abrandar os temores. Mas não será o Amanhã que será pleno. Será o Agora.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O Coração do Homem Bomba

Os textos desse blog frequentemente dirigem as suas várias estocadas para dois males correlatos de nossa modernidade (?): a Civilização Inflamatória e a Geração Autoestima, irmãs gêmeas na geração de doença e sofrimento. A Civilização Inflamatória se baseia na criação constante de fissuras e dependências: comer muito, beber até a embriaguez, consumir desenfreadamente. Tudo sofre dessa inflamação: a alimentação, as relações humanas, o envenenamento da natureza. Lembro de uma cena de "Wall Street: o Dinheiro Nunca Dorme", em que o jovem aspirante ao mercado financeiro pergunta ao seu chefe inescrupuloso: Qual o seu número? Qual a quantidade de dinheiro que finalmente vai deixá-lo saciado? Ou vai tirá-lo dessa roda viva? Mais. Essa é a resposta da Civilização Inflamatória: Mais. Mais dinheiro, mais poder, mais comida industrializada, mais estímulo, mais acúmulo de coisas, trecos, brinquedos para dar uma fugaz sensação de saciedade, que vai ser substituída pela busca do Mais. Quero Mais. As células respondem a essas mensagens. Acumulam gorduras, multiplicam-se, tornam-se indiferenciadas, os anticorpos se voltam contra elas. As Mentes inflamatórias criam as células inflamadas.
A geração autoestima tem também seus Egos insaciáveis. Egos siliconados e acelerados. Não interessam as capacidades de Ser, mas o que Parece. O teatro de Personas nas fotos fotoshopadas das redes sociais. Ninguém pode se frustrar. Toda Autoestima deve ser burilada e maquiada. As frustrações são punidas aos berros, imagina alguém interferir e arranhar a minha autoestima.
Engraçado como nas livrarias as prateleiras de Psicologia estão sendo tomadas pelos livros de Autoajuda: Livre-se de Seus Medos, O Seu Ser Magnificado, Essa sou Eu, Homens Gostam das Mulheres Poderosas. E por aí vai. Manuais para encontrar a Riqueza ou a Alma Gêmea. Salve-se quem puder: cuide de seus sonhos e corra dos vampiros de sua energia.
As pessoas vem ao consultório com medo de dependências: medo de ficar dependente dos medicamentos, do terapeuta, medo de não dormir mais sem remédio. Carregam cinco celulares, checam os e-mails, almoçam as bolachas da recepção e não conseguem silenciar os pensamentos, que dão infinitas voltas dentro de sua cabeça. Mas os remédios podem ser muito perigosos.
A Psiquiatria tenta acompanhar a Civilização Inflamatória com seus medicamentos. Medica demais, e mal. Todos estão acelerados, então explodem os diagnósticos de Bipolaridade e Deficit de Atenção e Hiperatividade. Não é por acaso que estes diagnósticos explodiram. Junto com os Transtornos de Sono. Tudo gira em torno da correria e das células inflamadas. Todos correm atrás de suas fissuras e dependências. Mas fazer terapia é coisa de maluco.
Os atentados terroristas do Estado Islâmico na França foram feitos por cidadãos franceses, recrutados pelos fundamentalistas. Fico pensando no tipo de desespero que move essas pessoas. O que elas estão querendo explodir? Para o que estão tentando chamar a Atenção? Nesse mundo em que todos cuidam do próprio prazer e do perfil no Face, essas pessoas vivem uma grande crise de nosso tempo, que é uma crise de Significado: o trabalho perdeu o significado, os políticos e os governos são esta piada, as próprias famílias se afundam nas telas dos smartphones. O líder fundamentalista nada de braçada no desespero e na exclusão. Oferece ao homem bomba significado, uma causa para viver e morrer por ela. Estou justificando os atos terroristas desses caras? Pelo amor de Deus... Estou tentando entender onde navegam esses recrutadores de jovens mártires. E posso dizer sem medo: eles navegam na Exclusão e na Indiferença. Essa é a nossa doença, que a Psiquiatria e a Psicologia devem arregaçar as suas mangas para tratar. É fácil plantar o ódio onde ninguém presta atenção ao Outro. O curador deve dar o seu olhar. A sua Atenção. E deve trabalhar as fissuras infinitas e os Egos vorazes. Está na hora de desacelerar e ter um Mundo Interno, para recuperar o Significado.

domingo, 15 de novembro de 2015

Ideologia

Há dez anos atrás estava no Congresso Brasileiro de Psiquiatria em Belo Horizonte e na porta do Centro de Convenções tinha um carro de som de um pessoal da luta antimanicomial protestando contra nós, psiquiatras vendidos aos interesses dos laboratórios, a máfia do Prozac, pode-se assim dizer. Eu acompanhava com algum interesse os discursos enquanto subia as escadas do predião antigo. Um rapaz de cabelo e barbas compridos tomou o microfone e relatou sua história de anos de tratamentos caros, quando foi diagnosticado como Bipolar e só fazia piorar. O seu equilíbrio só se estabeleceu quando finalmente alguém parou para ouví-lo e finalmente, compreender o que se passava com ele, libertou-se de toda a medicação e, provavelmente, do estereótipo de doente mental. Estou melhorando e dando um corpo ao seu discurso e omitindo os palavrões contra a máfia que estava naquele convescote psiquiátrico. Nunca mais fomos recebidos por esse carro de som em nenhum outro Congresso, o que eu acho pessoalmente uma pena.
Neste Congresso, dez anos depois, encontrei um velho amigo, com quem tramava contra a onda da Psiquiatria Biológica há muitos anos. Não ficamos muito animados em relembrar aqueles tempos. Parecia a música do Cazuza: "Meus heróis morreram de overdose/Meus inimigos, estão no poder...". Na verdade a história não é tão melancólica assim. Não temos tantos heróis nem tantos inimigos assim, os medicamentos são uma parte importante do arsenal terapêutico, mas a crítica daquele rapaz encima do carro de som continua muito, muito válida. Ficar avaliando os casos com escalinhas de sintomas é o fim da picada. Nada substitui a boa e velha Compreensibilidade, nada é melhor do que entender como aqueles sintomas se manifestam na vida da pessoa e achar um jeito de manejá-los. A palavra da moda: Modulação. O bom e velho Cérebro Racional tentando se haver com o mais antigo e contundente Cérebro Emocional. Ou a Emoção regulando a Emoção, com serenidade, afim de modular a melhor resposta.Mas no que essas velhas pendengas psiquiátricas interessam aos visitantes desse blog?
No último post escrevi sobre outra paciente com diagnóstico de Bipolaridade que mencionou a seu médico, em emocionado encontro, que na hora de maior aflição ouvia uma voz, ou uma presença tranquilizadora, falando para o seu interior que tudo acabaria dando certo. Ela ficou particularmente confiante quando foi ouvida por seu médico, que acreditou nela. Acreditou em sua vivência. Foi como se aquele estado caótico em que se encontrava tivesse começado a se autorganizar. O último post sugere que nosso organismo psíquico tem a mesma capacidade que nosso organismo biológico de se autorganizar e encontrar níveis progressivos de equilíbrio e complexidade.
Infelizmente, dentre tantas capacidades que a hipermodernidade está abolindo, a mais crucial é a capacidade de escuta. Para compreender, é preciso escutar. Com atenção. A escuta coloca esse sistema autorganizador em ação. Uma capacidade de olhar para si mesmo de fora e organizar os sentimentos é o resultado dessa autorganização. Há uma mudança muito grande de paradigma, entre achar que se tem uma doença crônica, que só vai piorar com o tempo, para um modelo em que o paciente aprende a modular a sua reação aos sintomas e a enfrentá-los.
Isso vale para muitas situações de nossa vida. É crucial saber se vamos ser vítimas das dificuldades ou vamos interagir com elas. O rapaz encima do carro de som tinha toda a razão. Pena que nunca pude dizer isso naquele microfone.

domingo, 8 de novembro de 2015

Voz do Self, Voz de Deus

O tema era “Psiquiatria e Espiritualidade”, no Congresso Brasileiro de Psiquiatria.(Parecem termos excludentes, mas não são). O convidado falava de um caso daqueles que tiram o sono dos psiquiatras. Uma paciente bipolar com várias internações e fases repetidas de depressão ou mania, que também passou por vários tratamentos, vários médicos, nada dava certo. Depois de muito tentar, ela passou a manifestar o desejo de morrer. Como em muitos casos de quadros clínicos de má resposta, ela estava cansada, quebrada por dentro, sem forças para lutar. O médico, como em muitas situações semelhantes, tentava contornar o grande horror dessas situações, que é a situação ficar sem saída e o paciente acabar de frente com risco de suicĩdio ou de internação, para evitar o pior. A cena que ele descreveu é daquelas que não se costuma descrever em público: a paciente começou a chorar, num profundo lamento. Ela se perguntava, entre soluços, “O que pode aliviar esses sofrimento, meu Deus?”. O palestrante sentiu-se estranhamente inspirado pelo tom bíblico dessa lamentação e perguntou, com o mesmo tom, “Para onde você se volta, em busca de conforto, em meio a esse sofrimento?”. Ele mesmo ficou surpreso com essas palavras que saíram de seus lábios. A paciente voltou-se para ele, diminuindo seus soluços, e confessou que sentia como que uma voz tranquilizadora, bem no fundo de si, dizendo que tudo iria ficar bem, para ela se tranquilizar que tudo iria se acalmar, inclusive o seu sofrimento. O médico perguntou de quem ela achava que era essa voz. Enxugando o rosto ela falou: “A voz parece de Deus”. “E você ouve isso há muito tempo?”. “Ouço há algum tempo, sim”. “E por que você nunca me falou sobre isso?”. Ela chegou a sorri: “Já me acham maluca sem eu contar sobre essa voz…”. O tratamento tomou outro rumo depois desse diálogo, já que o psiquiatra felizmente não achou que a tal da voz fosse uma alucinação. As oscilações clínicas melhoraram e a paciente finalmente assinou um contrato com seu médico de que não tentaria mais o suicídio (já havia tentado três vezes).
Um dado estatístico que esse ciclo de palestras trouxe é o dado que metade dos psiquiatras americanos não acredita em Deus ou em qualquer forma de transcendência à nossa vida material. Devem ser os mesmos que acreditam que a Mente é uma produção do Cérebro. Ou que a doença mental deriva de um pool de genes malfuncionantes. Posso lembrar de alguns colegas ateus que são excelentes médicos, bem como alguns crentes em Deus que são umas antas, mas a cena que o colega descreveu não ocorreria na sala de alguém que não acredita em nada fora do campo da matéria. Também duvidaria que uma bipolar, cicladora rápida, pudesse melhorar de sua doença através de uma voz interior acolhedora. A história seria motivo fácil de chacota.
Jung descreveu o aparecimento da forma redonda em sonhos e desenhos de pacientes vivendo grande tensão e sofrimento psíquico. Fez um paralelo com as mandalas orientais, que para ele representam a totalidade da Psique tentando se restaurar, em momentos de grande perigo. A Psique, seja ela fabricada pelo Cérebro ou pela Consciência corporal profunda, produz essas imagens e intuições procurando encontrar o equilíbrio perdido. A imagem da Mandala pode indicar essa situação dupla, de grande Perigo e de grande força regenerativa. Deve ser por isso que o ideograma chinês para Crise também representa Oportunidade.
Quem prestar atenção pode perceber esse fator de reação quase orgânica do corpo e da Psique em momentos de risco e desequilíbrio. Jung chamou essa estrutura reorganizadora de Self. A presença tranquilizadora que a paciente chamou da voz de Deus poderia ser essa função orgânica de busca de reequilíbrio. A “voz” do Self. Uma sabedoria celular dizendo para a moça que o seu sofrimento poderia ter fim. A pergunta intuitiva e inspirada do colega levou-a diretamente ao Centro da Psique, perdido no meio das oscilações de seu quadro clínico. A palavra que ele próprio usou quase sem querer, foi “para onde você se volta quando busca consolo no sofrimento?”, “Consolo”, ativou esse sistema autorganizador, que pertence ao organismo físico e psíquico, que os junguianos chamam de Psique. Procuramos tanto a cura nas moléculas, nas metilações e desmetilações dos genes que nos esquecemos que a Psique e o corpo querem se curar, querem encontrar o equilíbrio perdido. E que a hora da aflição pode ser a hora da mudança. Enquanto isso, os colegas assistiam outras aulas, o que salvou o palestrante da internação, como delirante.
Não preciso dizer que saí da conferência muito grato por ter estado lá.

domingo, 1 de novembro de 2015

Curas "Espontâneas"

Uma característica de nossa Consciência que a Ciência reproduz é a capacidade de simplesmente ignorar tudo aquilo que não entendemos ou não podemos explicar. Vou dar em exemplo óbvio: as curas expontâneas, ou ditas expontâneas. Um conhecido me descreveu emocionado a consulta de seu pai com a sua Oncologista, a mesma que meses atrás comunicara o diagnóstico de um Câncer Pulmonar inoperável que teria um péssimo prognóstico. Tecnicamente falando, o tratamento não deveria ter um bom resultado e poderia tanto prolongar quanto encurtar a vida de seu pai. O homem reagiu da maneira estranha, pois sempre foi uma espécie de polo transmissor de negatividade e pessimismo. Diante da morte próxima, afirmou entre dentes que não iria se entregar e que se recusava em acreditar naquele diagnóstico/veredicto. Meses depois, a médica dizia com a voz tremida de emoção que o Tumor tinha regredido completamente, contrariando todas as estatísticas. Foram atrás da biópsia, para checar se aquele tumor era aquele mesmo. Era. O homem chorou como quando recebeu a notícia pela primeira vez. Desta vez ele sussurrou: "Eu sabia". No dia seguinte já estava entregue à sua chatice habitual. E o seu caso deve ter ido para as estatísticas como de "Ótima Resposta"à quimioterapia.
Durante esses anos de prática clínica, não é a primeira vez que ouço uma história assim. Esses relatos criam um espectro moralista de que o "Pensamento Positivo"pode curar todas as doenças. O seu contraponto é a ideia que as pessoas morrem de Câncer porque não conseguem modificar os seus "Pensamentos Negativos". Isso se soma à já inconsciente culpabilização que muita gente tem de ter a sensação de ter "fabricado"a própria doença. Nos anos 90 eu participei de uma pesquisa em Oncologia, em uma Enfermaria de Transplante de Medula Óssea que tinha essa pergunta: havia mesmo uma relação mensurável entre o estresse recente e a doença oncológica? Haveria mais gente deprimida e "negativa"nesta enfermaria do que nas outras? O que encontrei naquela pesquisa foi uma amostra de mais da metade dos pacientes avaliados de pessoas sem traços patológicos de personalidade, gente boa, legal e de bem com a vida que um belo dia tropeçaram no diagnóstico de uma Leucemia. Na outra metade da amostra dava para recuperar trauma nos últimos anos, como perda de entes queridos ou demissão/perda de status profissional. Havia também uma alta incidência de quadros depressivos antecedendo a doença oncológica. O que ficou muito claro já naquele estudo mas que ainda hoje está longe de ser um consenso é que a atitude diante da doença parecia se correlacionar claramente com a resposta ao tratamento. Sobretudo essas pessoas que prometem para si mesmas que não vão ceder e não vão morrer daquela bosta de doença. As estatísticas que se danem. Uma atitude iconoclástica em relação a essa religião fundamentalista que são as estatísticas e as evidências: os médicos ficam emocionados e envergonhados com essas curas inexplicáveis. Para a Ciência, os casos vão para as gavetas empoeiradas das "Curas Expontâneas". Ou seja, aquelas que não tem explicação, então elas simplesmente não existem, ou o establishment médico se recusa a dar muita atenção. Já pensou se a moda pega? Os bilhões de prejuízo?
Vou arriscar alguns critérios para essas curas "milagrosas", a saber:
1 Antes de mais nada, aceitar a realidade de que se tem uma doença, ela é grave e vai demandar todo o cuidado e atenção possível. Negar ou fingir que não está acontecendo não costuma ajudar muito;
2 Ter uma atitude de enfrentamento, mas não de uma guerra. Guerrear não costuma trazer bons resultados. Aquilo que está lá é uma parte de nosso corpo, uma parte da vida, criada pelo Mistério inerente à ela. É importante lidar com a doença e se recusar terminantemente a entregar a rapadura, mas com tranquilidade;
3 Essa é a parte difícil, a mais de todas: aceitar que a morte faz parte do acordo, ela pode ser o final do tratamento, aliás, costuma ser o final de nossa vida biológica e pode ser o desfecho da doença grave. Aceito, mas não concordo, este é o babado;
4 Há um campo de energia na resposta à doença e ao tratamento que aparece durante a jornada que ajuda na busca da cura, que deve sempre ser considerada. Essa é a tal da "Energia Positiva"que deve ser considerada. Tem a ver com a sensação de que o corpo sempre quer se curar e para isso precisa de harmonia energética, não de terrorismo;
Isto quer dizer que o processo é uma corrida de fundo, não de velocidade. A virtude está na resistência, não na pressa.
Posto isso, quando a cura vier, curve-se diante dela e agradeça.