sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

O Sonho do Carpinteiro

Já vou avisar aos poucos e bons leitores desse blog que não vou engatar em mais uma conversa de Natal sobre aumento de risco de violência e suicídio nessa época do ano. Igualmente, não vou repetir que é uma época que os psiquiatras deveriam estar de plantão. Mas, sobretudo, não vou discorrer sobre a Mitologia do Nascimento da Criança Divina. Para isso, sugiro um pulinho nos posts de Natal anteriores. São mais de quinhentos posts, vários assuntos e piadas se repetem de maneira inevitável, mas não hoje. Vamos dar uma pausa nos panettones e comerciais de famílias unidas em torno do Perú Sadia.
Vou me deter no sonho de José, um rapaz que desconfiava seriamente da versão de sua jovem noiva, de que recebera a visita de um anjo que lhe anunciou o nascimento de um menino, chamado Emanuel (que significa Deus-Conosco). Ela receberia em seu ventre esse menino que vinha para salvar o mundo de seus pecados. Na época não havia internet nem whatsapp, muito menos maridos traídos destruindo o carro do amante da mulher na porta do Motel. José não podia produzir um vídeo para se tornar viral nos celulares da Galiléia. Felizmente para a sua pequena Maria, para quem a acusação de adultério poderia terminar na morte por apedrejamento ou na desgraça para si e sua família, José não foi estúpido nem narcisista para expor publicamente seu drama privado. Mas o jovem carpinteiro não estava realmente feliz com a história. Não pretendia criar o filho de outro, mesmo que o Outro fosse o Espírito Santo em pessoa. Aliás, o próprio filho traria a manifestação do Fogo de Pentecostes trinta e poucos anos depois, então José não conseguia entender aquela história. Planejou, em suas noites insones, que iria deixar a sua noiva, atraindo sobre si a culpa pelo malfeito. Isso acabou por tranquilizá-lo, pois achou a solução de perfeita lógica: não criaria um filho bastardo, mas não causaria a morte de sua noiva. Era juntar uns trocos e iniciar nova vida em outro lugar. Foi assim, mais tranquilo, que acabou dormindo. Sonhou com a visita do Anjo, que lhe avisou que não deveria abandonar a moça nem seu bebê, mas, antes, protegê-los, pois aquele nascimento corria muitos riscos. Deve ter dado uns chacoalhões em José, que acabou aceitando a tarefa.
Apesar de prometer que este post iria fugir dos temas natalinos, acabei caindo no sonho de José. Isso foi inspirado na pauta de uma jornalista, que me perguntou na diferença entre uma leitura freudiana ou junguiana dos sonhos. Vou usar o sonho de José como base, embora já tenha alertado em outros posts para os riscos de psicologizar temas mitológicos.
Uma leitura freudiana diria que o tema do sonho, o encontro com o anjo, tinha uma forte relação com o relato de sua noiva: como os sonhos manifestam os medos e os desejos inconscientes, José manifestou em seu sonho seu medo de sua própria agressividade com a sua futura esposa e filho. Um junguiano diria que a gravidez de sua noiva ativou o arquétipo do Pai Terrível, que pode se manifestar com o abandono de seu filho e família. Bem sabemos que diariamente muitos Josés deixam as suas Marias e filhos abandonados à própria sorte.
O sonho, voltando a Freud, seria a manifestação de sua culpa reprimida e de seu Superego chamando-o à responsabilidade, o que ele acatou para não viver imerso na culpa para sempre. E para um junguiano? Bem, aí a coisa complica.
Para um junguiano, o Anjo representa o arquétipo da Totalidade, o Self. O Self, que não deve gostar de selfies, se manifesta com toda a intensidade nesse momento crucial e joga José para fora dos jogos mentais e para dentro do Mistério. Ele deveria aceitar a tarefa e proteger aquela criança, para sempre. Essa era a sua missão, mesmo que não conseguisse entendê-la. O Self aponta para o significado profundo e inatingível para o Ego de determinada experiência. Ou decisão. Parece uma metáfora bíblica, mas representa aquela voz silenciosa que empurra a vida para decisões paradoxais, como continuar casado, ou seguir uma carreira, ou enfrentar situações onde tudo parece perdido, e triunfar. Lá no fundo pode ter um anjo assoprando: “Vai, não desista, não dê para trás agora”. Essas coisas que parecem misticismo e crendice para nossas mentes científicas, mas não deixam de existir.
O sonho freudiano vai investigar os conteúdos reprimidos em nosso Inconsciente. Suas leituras são válidas em muitas situações e podem representar uma camada de nosso Cérebro que precisa ignorar alguns medos e agressões para seguir a vida, mas em algum momento precisa recuperar o que está enterrado. Talvez o medo de José de assumir aquela paternidade tivesse uma razão mais profunda, da memória de um pai ausente, ou violento, por exemplo.
O sonho junguiano conecta José com todos os pais que, em determinado momento de sua vida, tiveram vontade de deixar seus filhos e família e voltar para uma vida sem responsabilidades. Conecta o jovem carpinteiro com todo homem que assumiu inteiramente a responsabilidade de proteger e criar os filhos que nem sabiam se eram seus. Homens que sacrificaram uma parte considerável de suas vidas a proteger seus filhos e família, mesmo que para isso tivessem que atravessar um deserto.
As leituras são complementares, e não excludentes, como muita gente quer acreditar.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Mentalidade de Crescimento

Estava lendo um livro budista, chamado “Retornando ao Silêncio”, quando o autor citou a história de um monge, que era uma espécie de abade de um mosteiro budista, que ficou muito afetado por um incêndio que havia destruído uma ala do mesmo. O monge começou a repetir que desde a infância percebeu que simplesmente não tinha sorte. As outras pessoas eram mais afortunadas, enquanto ele parecia sempre precisar se esforçar mais e tropeçar em infortúnios que atrapalhavam a sua vida. O tal do abade foi afundando nessas ideias negativas, ficando cada vez mais triste e ensimesmado. O mosteiro foi minguando junto, com jovens monges procurando outros lugares para a sua formação. O abade acabou por adoecer e morrer. Estudos mostram que as pessoas podem literalmente morrer com a Síndrome do Coração Partido, onde uma onda de tristeza e depressão pode afetar a variabilidade dos batimentos cardíacos, uma medida de vitalidade e mesmo de longevidade. Batimentos cardíacos pouco variáveis estão correlacionados com menos tempo de vida, o que, infelizmente, pode ter encurtado a vida do monge. O mais angustiante para um psiquiatra que lê essa história é a percepção cristalina que o homem estava com uma Depressão, o que sem dúvida potencializou os seus maus pensamentos e aprofundou mais e mais a sua tristeza.
Rogério Ceni encerrou a sua carreira de vinte e cinco anos no gol do São Paulo. Ganhou todos os títulos, bateu todos os recordes e pendurou suas luvas como um dos maiores ídolos da gloriosa história tricolor. Pessoalmente, como analista junguiano, sei que esse aspecto luminoso carrega em si a sua Sombra, e que nos últimos anos esse Mito, como passou a ser chamado pela torcida, pode ter sido um problema mais do que uma solução, mas não vou me deter nisso. Rogério era um menino que veio de um pequeno clube, o Sinop, do Mato Grosso do Sul. Um time inexistente. Veio morar no Morumbi, onde morava outro Mito , Telê Santana. Com ele, Rogério aprendeu algo muito importante para os vinte e cinco anos seguintes: a importância da repetição infinita para chegar perto da perfeição. Com ele, Rogério aprendeu a chegar meia hora mais cedo e sair uma hora mais tarde do treino e, de um moleque bom debaixo da trave mas ruim de chutar a bola, virou o maior batedor de faltas da história, para onde passará como um goleiro artilheiro. Isso às custas de cerca de treinos e treinos que deixavam suas pernas doloridas. Rogério adquiriu uma característica de vários virtuoses em sua profissão, de músicos a atletas, de médicos e engenheiros: a obsessão pelo autoaperfeiçoamento, pelo aprendizado contínuo para atingir níveis cada vez maiores de domínio,(em Inglês, “Mastering”) de sua atividade. Se ele levar esta característica para a sua vida fora dos gramados, em vez de viver da memória que deixou dentro deles, com certeza vai continuar tendo curvas e curvas de aprendizagem e mastering do que quiser fazer.
As duas histórias, colocadas lado a lado, mostram dois caminhos paradoxais que podem pautar o nosso destino: uma pequena infecção psíquica, uma impressão gravada na infância do tipo “sou um azarado”, “não sou inteligente como os outros”, “as coisas não dão certo para mim”, pode ter um efeito devastador na vida de uma pessoa e seu destino. Talvez o seu efeito mais devastador seja criar uma espécie de Orgulho do Fracasso. Eu sou um fracasso e você pode fazer o que quiser que nada vai mudar isso. O fracasso pode virar uma forma de receber muita atenção e ter muita gente interessada em ajudar. O fracasso, pasme, pode ser uma forma de se criar uma identidade. Uma identidade depressiva, é certo, mas uma identidade. Nosso reizinho anão, o Ego, adora ficar dando voltas e voltas em torno dos fracassos. Virar um eterno café com leite pode ser uma falsa proteção. “Não esperem nada de mim”, diz o falso regente.
Na verdade, o difícil na prática clínica é mudar de um módulo para outro. A autoprogramação para o fracasso cria uma nuvem de lassidão e desânimo difícil de penetrar. Há circuitos projetados pela Natureza de bloqueio de reação, provavelmente para forçar alguém ao repouso. Antes da era dos antibióticos, a desesperança aprendida poderia ser uma defesa contra as doenças. Essa reação hoje pode ser contra um mundo, um mercado de trabalho muito hostil e perigoso. É melhor ficar refugiado em jogos online.
Imagino as noites que o jovem Rogério chorou ou teve medo de fracassar nos seus alojamentos. E que o fato de que, virar o melhor era a única opção de sobrevivência ajudou-o a procurar, procurar, até achar. Essa mentalidade de Crescimento já está sendo ensinada em muitas escolas americanas. Está na hora de ser ensinada em nossas famílias.

domingo, 6 de dezembro de 2015

No Meio da Luz e Sombra

O príncipe Sidharta, que viria a ser o Buda, conheceu os extremos da vida: da extrema opulência e riqueza de um príncipe para anos de meditação e rigor da vida ascética, vivendo na floresta comendo raízes e gafanhotos. Estava à beira do rio e ouviu um mestre orientando o aluno sobre a melhor afinação de uma corda, como de um violão: se ela ficar muito solta, não consegue produzir o som. Se estiver muito tensa, pode se romper. Para a adequada afinação, é muito importante o equilíbrio entre as duas polaridades. Sidharta atingiu imediatamente a iluminação, depois de anos de sofrimento e privação. Para atingir a Iluminação, são inúteis tanto o Sofrimento gerado pelo Rigor, quanto o Prazer dos sentidos e a excessiva indulgência. Estava descoberto o Caminho do Meio, o verdadeiro Caminho.
Para Jung, a imagem do Cristo na Cruz representa a Tensão de Opostos, a via crucis de nosso desenvolvimento. O formato da cruz representa a tensão eterna entre a espiritualidade que aponta para cima, e as necessidades humanas, que são paralelas ao chão. Como diria a música do Paralamas: “O Homem traz em si a Santidade e o Pecado/Lutando no seu íntimo/Sem que nenhum dos dois prevaleça”. Vivemos a Tensão eterna entre as necessidades de nossa vida consciente e a criação de uma vida interior; o Visível versus Invisível.
Já falei nos posts anteriores sobre a Função Transcendente. Ela se dá após um período em que a tensão parece infinita e sem saída. O choque de opostos também pode causar a Função Transcendente. É a tal Luta de Classes de Marx. Recentemente vimos em São Paulo uma tensão de opostos daquelas: o governo propôs uma reforma administrativa na Educação que fecharia escolas ociosas e separaria alunos do Ensino Fundamental e Médio. Os alunos e as famílias reagiram, com apoio das associações de professores e partidos de oposição. Andar em São Paulo virou uma aventura nestas semanas, com bloqueio de vias em pontos cruciais, parando a cidade. Barricadas de carteiras e cadeiras. E bombas de gás pimenta encima de crianças. Levou a pior o governador Alckmin, que viu a sua popularidade despencar e recuou. Mas as semanas de atrito levantaram questões de ambos os lados: se os alunos e os professores amam tanto as suas escolas e são capazes de tal mobilização, por que as notas de nossas escolas nos exames nacionais são tão vergonhosas? Se São Paulo investe mais do que qualquer estado da União, como que se pode melhorar os índices e as notas? A Associação dos Professores, que tem dinheiro para pagar propagandas em horário nobre, tem algo melhor a propor do que mais verbas para a Educação? As fragilidades de ambos os lados foram expostas: o governo com sua face autoritária e estúpida e o sistema da educação estadual, que tem escolas ociosas porque, quem pode, coloca o filho em qualquer lugar que não uma Escola Estadual, com honrosíssimas exceções. A Função Transcendente seria um pacto envolvendo todos para melhorar a educação, com os pais entrando no jogo. Ocupar as escolas não basta. Precisa ocupar os espaços vazios da aprendizagem.
Em nossa vida psíquica, os opostos se chocam e se alternam, como um movimento pendular. Alternamos períodos de otimismo e projetos ambiciosas com encolhimentos e medos quando as coisas não saem tão bem. Mas o método de tentar a síntese após choques violentos de polaridades, esse é um método estranho de resolver as coisas. O processo de Desenvolvimento implica numa desmontagem do Ego. Por que será que sentimos uma discreta (ou não tão discreta) satisfação quando vemos um banqueiro que se achava intocável e poderoso de camiseta num presídio comum? Vingança de pobre? Também, mas ele representa o Ego todo poderoso que é, abruptamente, reduzido à sua pequenez humana. A lei que, esta sim , vale para todos: ganhe Consciência ou fique preso nas suas Neuroses.
O Caminho do Meio foi descoberto há tanto tempo e é tão melhor que o choque de opostos. Jung teve muito trabalho com o Mito Cristão e a Alquimia para pesquisar sobre isso. Para nós que sucedemos a sua busca, mais de cinquenta anos após a sua morte, ainda trabalhamos com as pessoas na via crucis de suas dores e tensões de crescimento. Mas vamos encontrar o caminho, bem no meio das luz e da sombra.