sábado, 31 de dezembro de 2016

O Ano Que Vai Nascer

Mark Epstein é psiquiatra e psicanalista e tem uma série de livros que fazem uma aproximação dessas duas matérias com o Budismo. Ele não chega a ser um monge, eu imagino, mas faz uma reflexão profunda sobre os pontos em que esses braços de conhecimento se encontram e se desencontram. Gosto muito de seus livros. Quem acompanha esse blog tem ideia do meu esforço de aproximar essas práticas nos posts e vida.
No seu último publicado no Brasil, “Aberto ao Desejo” , Mark, que é um ótimo contador de “causos” relata uma observação de um Lama que ministrava um workshop nos Estados Unidos. O carequinha tibetano observou que ficava impressionado como as crianças eram amadas e valorizadas na América. Em sua terra as crianças tomavam suas palmadas e eram deixadas com a sua frustração e que se virassem chorando pelos cantos. As crianças americanas tinham atenção, diálogo, mas, estranhamente, quando cresciam passavam a enfrentar ou ter muitos problemas com seus pais. Mark ficou com uma coceira danada para responder mas é um homem muito discreto e preferiu conversar com o monge depois da apresentação. Avisou sua assessoria que, se ninguém se dispusesse, ele poderia tentar explicar aquele aparente paradoxo. A explicação foi encantadora: ao contrário dos tibetanos, os americanos não acreditam que os filhos tem um potencial que os pais podem ou não ajudar a desenvolver. Muitos acreditam que os filhos são um reflexo dos pais, que devem orientá-los, fazer um investimento maciço para que tenham a melhor formação, as melhores lembranças, a infância mais feliz (enquanto digito isso, lembro da personagem Alegria, do “Divertidamente”). Tudo isso sobrecarrega a relação com muitas cobranças, e as cobranças são geradas pelas expectativas. Autocobranças e cobranças do Outro, pode-se dizer. Talvez esse seja o mapa do nosso inferno ocidental: as expectativas. E as cobranças que se seguem. Não é incomum que isso vire uma cascata de mágoas, atritos e desencontros entre casais, famílias e grupos de amigos. Deus está no que É, o Diabo prefere estacionar no que Deveria Ser. O lama entendeu perfeitamente como esse ciclo gera sofrimento e engorda as contas bancárias de terapeutas e advogados, não necessariamente nessa ordem. E nós, entendemos?
Os gregos formularam um conceito muito caro aos junguianos, a Enteléquia. O nome é esquisito e o conceito não tão fácil de entender. Quem entra no meu WhatsApp vê uma foto minha com minha cachorrinha quando era uma bebezinha. O que me impressiona na foto, que eu perdi as outras daquele dia, é que o olhar dela continua exatamente o mesmo. Hoje, três anos depois, ela não é tão sapeca e agitada, mas o seu jeito claro e franco de olhar continua igual. Isso é Enteléquia: a gente vem ao mundo com uma estrutura psíquica que vai se manter ou expandir se tudo der certo. Tem gente que realiza seu potencial vivendo em condições muito adversas, tem gente que parece que veio ao mundo a passeio, mas esse caminho de desenvolvimento não pode ser parido pelos pais. Todo dia recebo no consultório pais e filhos às turras porque imaginavam que o caminho deveria ter sido diferente. De uma vez por todas: o caminho é de responsabilidade do caminhante. Os pais fornecem bússola (quebrada ou não), calçado, um mapa aproximado e por preencher e muita torcida. O resto, é da responsabilidade do caminhante.
No final de ano ficamos torturados pelas mesmas artimanhas do que Deveria Ser. No próximo ano vou dar uma guinada na carreira, vou começar regime, vou parar de fumar ou comer glúten. Como com os filhos e projetos, talvez seja uma boa hora de escutar 2017 em vez de vomitar nele tudo que queremos que ele seja. Não deve ser um ano tão horrível quanto esse que se encerra, mas pode ser um ano de reconstrução, de busca e de realização de nossos micro potenciais. O que é certo é que não devemos torturar o Ano Novo com expectativas e check lists de metas que ele, exaustivamente, tenha que cumprir desde a sua largada.
Deixe 2017 ser 2017. Apenas isso.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Ritmo da Cura

Uma das imagens que ficaram na minha cabeça no Congresso da Associação Brasileira de Sono foi uma Polissonografia de um paciente com um quadro ansioso grave, em que o Sono de Ondas Lentas foi quase completamente substituído por uma frequência muito alta. Traduzindo para o Português, o paciente dormia, mas seu Cérebro funcionava como acordado. Isso explica aquelas queixas das pessoas que aparentemente dormem a noite inteira e acordam dizendo que não dormiram absolutamente nada. Para seu Cérebro, foi como se estivessem acordadas quase o tempo todo.
A Psiquiatria acaba levando a fama de estar a serviço da Indústria Farmacêutica, enfiando remédios com ação no Sistema Nervoso Central em todo mundo que escorregar perto dos consultórios. As comadres hoje não trocam mais receitas de bolo, nem de perus de Natal, mas qual o melhor ansiolítico ou qual antidepressivo engorda ou não. Qual o psiquiatra é mais bacana e qual consultório é decorado pelos caras da moda. As salas de chat e os grupos de Facebook relatam as experiências com novos medicamentos. Viver sem um antidepressivo está completamente out. Como eu falei acima, os psiquiatras e a Indústria levam a fama, e fazem jus a ela até certo ponto. Mas estamos em um mundo em que Donald Trump é presidente dos Estados Unidos, todos os referendos pedidos democraticamente às populações deram resultados bizarros: a Inglaterra deixa a Comunidade Europeia, a Colômbia rejeita o acordo de paz com as Farc, premiês caem após as consultas. No Brasil, famílias de engalfinham nos grupos de WhatsApp por conta de Dilmas e Temers. Como já foi falado muitas vezes nesse blog, o mundo está fora de frequência, deixando todo mundo um pouco louco. A Civilização está inflamada e acelerada, e a Psiquiatria corre atrás do prejuízo. As pessoas estão cansadas, angustiadas, fora de prumo.
Aqui no Brasil a medida da insanidade coletiva foi representada pela morte estúpida de 71 pessoas no auge de suas vidas pela ação estúpida e irresponsável de um piloto e dono de empresa de aviões comerciais, a LaMia. Chamar a empresa de A Minha não era mesmo bom sinal. O avião espatifado na serra, há poucos quilômetros de Medelin foi um tapa na cara nossa, que vivemos brigando com o tempo e os relógios. Fazer rápido é melhor do que fazer bem. Os corpos espalhados na serra são a bofetada, pois todo mundo sentiu que poderia estar naquele avião.
A Medicina está timidamente estudando a Cronobiologia, para tentar o que as Medicinas orientais sabem há milênios, que é a necessidade de reencontrar os ritmos e as frequências da vida e da cura. Uma pista muito clara estava naquela polissonografia e seu ritmo frenético: a frequência perdida é das ondas alfa, as ondas lentas. Não é à toa que assistimos ao boom de cursos de Meditação, aulas de Yoga e Relaxamento. Tudo é uma busca coletiva pelo ritmo mais lento e harmônico, mais próximo da Natureza ou da vibração e ritmo intrínseco da vida. Um estado de Atenção Plena e Relaxada, que deixa o Cérebro com ondas mais lentas e o Coração com frequências mais simétricas e equilibradas. Se isso virar uma prática e uma pesquisa profunda, garanto que o consumo de psicotrópicos vai cair muito. Vejo todo dia nos meus consultórios que o trabalho com os ritmos internos e externos economiza muita medicação e encurta tratamentos. Buscar um ritmo diferente muda todo o jogo e salva vidas. Estamos caminhando para uma Medicina dos Ritmos e da Vida. Espero.

domingo, 18 de dezembro de 2016

O Espelho de Eco

Muito se fala sobre Narciso. A psicanálise tornou-o uma figura central, gerando o termo Narcisismo. O meu babado mesmo é com Eco e com Nêmesis nessa história. Sim, eu sei. Parece um início meio maluco de post. Mas vamos contar a história.
A mitologia conta a história dessa Ninfa chamada Eco. Era dessas mocinhas que falam o tempo todo e não toleram o ruído do próprio silêncio. Onde estava Eco, a conversa não parava. Sobretudo o barulho de sua voz. Zeus, que não era bobo nem nada, começou a aproximar a ninfa de sua esposa, Hera, para distraí-la enquanto dava suas escapadas. Hera descobriu, como sempre, o ardil de seu marido. E castigou a pobre Ninfa, tirando-lhe a capacidade de iniciar a conversa. Eco só poderia responder se alguém lhe dirigisse a palavra. Estava inaugurada a Psicanálise, e não é à toa que o primeiro paciente era um Narciso.
Eco teve que engolir esse desaforo, pois fora a mais poderosa das deusas que lhe deu essa condição. Não sabia que seu infortúnio estava apenas começando. Foi passeando pelos bosques da Mitologia que Eco se apaixonou perdidamente por um rapaz mais belo que os deuses. Sim, ele mesmo, Narciso. Eco fez o impossível para atrair a atenção dele, mas não conseguia usar a sua voz. Os seus gritos ficavam abafados, como em nossos piores pesadelos. Narciso era meio pop star e não dava atenção para os apelos das fãs. Eco feneceu em sua tristeza, até morrer. As ninfas foram a Nêmesis, a deusa temida por restabelecer as medidas e o equilíbrio das coisas. Nêmesis pronunciou que Narciso iria também viver um amor impossível. Sabemos qual foi. Narciso apaixonou-se pela sua imagem refletida no lago, e ficou tão absorvido por esse amor que também definhou e morreu. O final do mito é belíssimo, como é a poética dos mitos: Narciso tornou-se uma flor muito bela e Eco passou a morar nas cavernas, ecoando as vozes das pessoas.
Muito se fala sobre a nossa época de excessos e de narcisismos enlouquecidos, mas nosso tempo de hipermídia é o tempo de Eco. É ensurdecedor o barulho nas mídias sociais e antissociais. Todos querem ser ouvidos. Uma grande avenida da cidade ou uma escola podem ser invadidas por vinte gatos pingados protestando contra PEC dos Gastos ou contra a máfia das merendas. A PEC é aprovada e as merendas continuam ruins, e os trabalhadores se atrasam no congestionamento e os alunos perdem as suas aulas e fecham o ano com metade da matéria que precisavam aprender. Ou menos.
As redes sociais gritam, os grupos de WhatsApp gritam, tudo viraliza como um blábláblá vazio. Esse é o paradoxo de Eco: quanto mais fala, mais vazia é a sua fala. Hera parece cruel, como a vida também parece, mas tenta ensinar Eco a fazer algo impossível em nosso tempo, que é ouvir antes de falar. Ou tolerar o próprio silêncio. Eco não aprende com a primeira lição, e isso não é bom, nem na Mitologia, nem na vida. Eco precisa, de qualquer forma, ser vista. Chamar atenção sobre si. Precisa ter mais likes, mais visualizações e retweets. Só quando ela é vista, ou ouvida, ou obriga o Outro a ouví-la e a reconhecê-la, só nessa situação que Eco sente que existe. Sou vista, logo Existo. O Outro pode ser tão cego quanto Narciso. Eco pode morrer buscando o olhar que não vai estar lá. Caetano disse que Narciso acha feio o que não é espelho. Eco só se enxerga no espelho dos olhos do Outro. Ou acha que é lá que vai se achar.
Nêmesis parece o Juízo Final em pessoa, mas promove uma transformação delicada das duas situações: Eco para de se procurar nos olhos dos outros e para de falar pelos cotovelos. Ela passa a espelhar a voz do Outro, para que ele possa se ouvir. A dor, o sofrimento da busca infrutífera termina quando Eco vira a Receptividade e a Escuta. Ela pode, enfim superar o próprio narcisismo e devolver para quem busca o reconhecimento tão esperado. Se parar de buscar a fama e o reconhecimento, pode começa a ver, realmente, o que antes não via. Ou ouvir, pela primeira vez, a beleza de sua voz.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Um Pouco de Paciência

“Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma/ Até quando o corpo pede um pouco mais de alma/ A vida não para…”. Os poetas, como Lenine nesses versos, conseguem perceber antes e melhor o que acontece com o tempo. O nosso tempo e nossa temporalidade. Nosso corpo pede um pouco mais de alma num tempo em que a alma está fora de moda. Somos cabeças sem corpo, e corpos sem alma. A vida não para e corre, corre entre os dedos.
Sempre acreditei que temos dois tipos de estresse, o Adrenérgico e o Cortisólico. Hoje tudo o que se estuda coloca o Cortisol no centro da ribalta da resposta ao Stress. O que acontece são respostas agudas e crônicas aos estressores. A resposta rápida é mais Adrenérgica, o coração bate forte, a respiração se encurta, os músculos tensionam, os pelos se eriçam preparados para lutar ou fugir. A reação prolongada demanda mais Cortisol e resiliência: o corpo reage retendo líquido, subindo os açúcares e a gordura disponíveis, a resposta imune e inflamatória aumentam e depois diminuem. O organismo entra em estado de resistência, e isso tem um custo a médio e longo prazo.
Cultural ou biológicamente os homens respondem mais da primeira forma e as mulheres, da segunda. O Taoísmo e a Medicina Chinesa já descrevia isso há milênios: os princípios Yin (Feminino) e Yang (Masculino) se equilibram e contrabalançam, nas estações do ano e nos ciclos corporais. Excessos de um Princípio em detrimento do outro gera desequilíbrio e o desequilíbrio se manifesta como doença. Nossos excessos de Yang criam a sensação permanente de pressa e urgência. Lenine fala disso na mesma música, “Paciência”: “Enquanto o tempo acelera e pede pressa/Eu me recuso faço hora eu vou na valsa/ A vida tão rara”.
Diante dos estressores, os machos da espécie se preparam para a luta ou a caça. As mulheres cuidam das crias e se cuidam entre si (lógico que existem espécies em que os machos são uns vagabundos e as mulheres fazem todo o serviço, como os leões e os humanos, por exemplo).
Temos meses e camisetas dedicados à prevenção do Câncer de Mama. Os tratamentos de reposição hormonal foram restritos, aumentando o risco de Doenças Cardíacas. As mulheres, nestes tempos de aceleração não fazem hora nem vão na valsa. Todos correm atrás do coelho de Alice: é tarde, é tarde, é muito tarde... Quando entram no tempo Yang, sofrem de suas doenças Yang. Estamos atentos às doenças oncológicas e é bom que estejamos, mas as mulheres estão morrendo de doenças coronarianas. Não era isso que se imaginava na igualdade entre os sexos.
No mundo com seus excessos de pressa e de Mente, o Corpo pede bastante mais de Alma. Danças circulares, Yôga, Meditação, respiração, psicoterapias, tudo isso faz parte da busca pela alma soterrada pelo tempo apressado. Para mudarmos o Stress, é bom começar pela percepção da temporalidade. Como diz a música: “Um pouco de paciência”.

domingo, 4 de dezembro de 2016

Como Lágrimas na Chuva

Ontem estava num Shopping fazendo hora quando a loja de eletrodomésticos despencou em dezenas de telas de LED as imagens dos caixões chegando no estádio da Chapecoense, Chovia forte e as gotas de chuva se misturavam com as lágrimas das pessoas nas arquibancadas. Familiares abraçavam os caixões, com olhares ocos e cansados. Pensei que eu mesmo já estava cansado de ter passado a semana enterrando os mortos e ouvindo os relatos médicos sobre os poucos sobreviventes. Soquei o ar no carro quando soube que o lateral Alan Ruschell tinha mexido os seus dedos, após cirurgia delicadíssima em sua Coluna. Isso sim foi um gol de placa. As famílias com as fotos dos caras que menos de uma semana antes estavam em campo no jogo morno e feio que deu o título brasileiro ao Palmeiras. Uma sensação clara do absurdo e da morte absurda.
Eu estava cansado das homenagens, das lágrimas sempre vindo ao ouvir e saber das histórias, como a estarrecedora imprudência e ganância que gerou a tragédia. A Chapecoense é um time pequeno, com orçamento apertado, assim como a LaMia, empresa boliviana cujo dono pilotava o jato sem combustível que se espatifou a poucos quilômetros de Medelin. Esse é o resultado de nossa moderna gestão, aumentar o lucro e diminuir os custos? Diminuir o custo a qualquer custo?
Existe, nas sessões de análise lacaniana uma técnica, do Tempo Lógico, em que a sessão é interrompida após uma Fala de extrema significância ser proferida. O corte abrupto e o silêncio que se segue jogam o analisando no meio de um grande desconforto. Não adianta se perguntar os porquês daquela interrupção. O que fica são as frases, os hiatos, as fendas do que se estava falando e como isso pode lançar o sujeito em outros significados. Para isso ele tem que tolerar o silêncio no meio de tanto barulho e tanta fala vazia intoxicando nossos ouvidos. Só assim podem surgir novas leituras, novos entendimentos.
Essa tragédia teve o efeito de um tempo lógico lacaniano: um time pequeno, de uma cidade pequena, todos de origem humilde e carreiras feitas em times de segundo escalão, finalmente chegavam a uma final de um torneio sulamericano, contra o campeão da Libertadores, de uniforme verde e branco como o dele. Era o grande momento de todos eles, da cidade, dos jornalistas da empresa que cobria esse campeonato esvaziado pelos cartolas da CBF. Tudo isso foi interrompido abrupta e violentamente. Depois da explosão, um terrível e cortante silêncio.
A maioria das pessoas começou a sentir a falta de pessoas que nem sabiam que existiam. O pequeno time, da pequena cidade, passou a ser o nosso xodó. Passou a representar todos os projetos inacabados, todas as perdas e as derrotas abruptas que nos deixam com as lágrimas misturadas às gotas de chuva. A morte prematura nos deixa com o gosto amargo do quase. As faixas proclamam a Chape campeã. Não foi. A Chape é a campeã das coisas inacabadas. Para nós, que ficamos e olhamos as imagens nas TVs dos shoppings, resta a tarefa de terminar o que foi interrompido e completar o incompleto. O silêncio é muito incômodo e, no meio dele há o absurdo. O absurdo nos convida à ação.

domingo, 27 de novembro de 2016

As Mãos das Tecedeiras

Os educadores já falam há muitos anos de diversos tipos de Inteligência, a despeito que as mais medidas em provas sejam a Inteligência Lógica e Matemática e a capacidade de acumular e processar informações. Eu gostaria de falar de dois tipos de Inteligência, que nem ao menos são classificadas como tal: a Inteligência Interna e Externa.
A Inteligência Externa é aquela realmente valorizada em nossa Cultura extrovertida e bastante regida pelo Ego. As suas medidas são da capacidade de jogar o jogo da vida para conseguir o sucesso. Sucesso se mede por aquisições: quem tem a melhor casa, o melhor carro, o melhor marido ou a família mais feliz. Temos nos grupos de Facebook e WhatsApp essa concorrência silenciosa sobre quem consegue manejar melhor as ferramentas da vida exterior, quem tem mais amigos, mais visitantes na Fan Page, mais curtidas no Instagram. É um tipo de apreensão para estudar e esquadrinhar tudo do Objeto de estudo para dominar, controlar e interagir com o mesmo. Conhecer e dominar dá poder.
A Inteligência Interior já não tem tanto destaque. Implica em um conhecimento mais profundo da verdadeira natureza do meu Eu Interior e do Outro. É um tipo de saber que vem mais da reflexão e do exame delicado do que o Eu vive internamente e os outros Eus também. Está mais baseada no cuidado e na cooperação do que no domínio e na aquisição. Nesse tipo de Inteligência, o saber se confunde com a sabedoria, e a sabedoria se baseia no equilíbrio. Inclusive no equilíbrio entre os tipos de Inteligência.
Tenho a impressão que as mulheres sofrem mais com a predominância da primeira Inteligência sobre a segunda. A Inteligência Interna tem muita relação com o Feminino: perceber os ritmos da vida e o tempo das coisas, a compreensão que é mais importante que o entendimento, o silêncio que é mais rico do que o barulho. Sobretudo, a parte mais difícil, que é encontrar o Balanço que leva ao equilíbrio, pois nossa vida e o nosso organismo vive na constante somatória de micros ou macros pontos de desequilíbrio. Manter o equilíbrio depende do Balanço. Quem é muito duro não sabe balançar.
Nos anos 90 havia uma euforia sobre a Reposição Hormonal em mulheres que iniciavam a Menopausa. Os estudos mostraram o aumento do risco de Câncer de Mama por conta da terapia hormonal. Qualquer antecedente longínquo de doença oncológica já contraindicava essa terapêutica. Com hormônios, a mulher tem maior risco de Câncer de Mama. Sem eles, elas ficam expostas às doenças vasculares cardíacas e cerebrais, além da Osteoporose.
Cuidar da saúde da Mulher depende de uma Inteligência mais interior e mais profunda. Mais feminina. Portanto, mais equilibrada e com a sabedoria das tecedeiras.

domingo, 20 de novembro de 2016

Motivação

Motivação é o grande babado. Nós humanos temos a capacidade inédita no planeta de planejar ou regular a própria motivação em iniciar, completar e checar as tarefas realizadas. Para isso temos áreas bastante desenvolvidas em nosso Córtex Pré Frontal para manter a atenção e o desempenho em tarefas repetitivas e sem graça, como assistir uma aula, completar um relatório, ler outro relatório inútil e maçante. Passar horas no trânsito para ir e voltar do trabalho.
Já mencionei os Três Focos em outros posts mas vou voltar ao tema: podemos ter foco no Eu, foco no Outro ou foco no Contexto. O tal do foco no Contexto é o tal do foco no Resultado. Vivemos hoje num mundo onde a Psicopatia é uma característica selecionada evolutivamente (ou involutivamente). Selecionamos psicopatas para a Gestão, para a Política, para os cuidados com a vida. Como fazemos isso? Fácil. Com o foco no Resultado. Quer um slogan Psicopata? Jus Do It (eu tinha uma camiseta com esse slogan. Não sei onde deixei). Just Do It é a mira no resultado sem olhar para o entorno. É dar uma graninha para a fiscalização para liberar uma casa noturna, com material inflamável no teto. Uma fagulha ou um rojão da Gurizada Fandangueira e temos uma fornalha matando mais de duzentos jovens que só queriam ir para uma festa em Santa Maria. Porque importante é fazer a reforma e usar o material de baixo custo para maximizar os lucros.
As empresas querem a patuleia motivada para trazer os resultados. Os resultados visados são aumentar os lucros e diminuir os custos. Just Do It.
Já escrevi bastante sobre a Geração Autoestima e as infinitas mídias para polimento do Ego: somos lindos no Face, no Instagram, nos grupos do Whatsapp, nos Snaps que se consomem em alguns segundos. Nada pode perturbar a orgia furiosa das imagens, que substituíram as palavras. Nada se fala, nada se escreve. Pouco se lê. O limite da leitura é de 140 caracteres. Já estourei o limite nesse post e em outros. Várias vezes.
Então temos duas grandes forças de Motivação: o Eu, que é um saco sem fundo na busca eterna da Autoestima e da Vida Incrível e o Resultado, pelo qual se pode matar ou morrer. O Outro? Parece que o Outro deixou de existir. Não preciso mais ouvir o Outro. Podemos circular entre milhares de pessoas que compartilham de nossas opiniões e podemos bloquear o acesso a todos os dissidentes. Não preciso mais ouvir nem perceber o Outro, só cativá-lo para obter o Resultado. Vídeos no Youtube ensinam a pegar as meninas de maneira rápida usando estratégias de marketing e persuasão. Esse é ponto da Fábrica de Psicopatas: só existe o Eu e o Resultado; o Outro é irrelevante ou, pior, é o Inimigo.
Já vi em filmes de guerra que, na batalha, ninguém luta pela pátria, pela liberdade, pela democracia. Nem ao menos se luta para si, ou para continuar vivo. A luta é pelo Outro que está aqui, ao meu lado. Quando me formei fui chamado para servir o Exército. Do dia para a noite estávamos marchando através da selva amazônica, com um bando de médicos recém formados e gordinhos branquelos, muito longe da forma física. Depois de dez quilômetros eu só me lembro de gritar como louco “Vamo´ lá porra, vamo´lá, Medicina!”, com medo que meus colegas desmaiassem na lama amazônica. Chegamos ao final, juntos.
Nosso Cérebro é relacional, já escrevi em muitos posts. A Motivação pode ser construída com esses vários cuidados: cuidado Comigo, cuidado com o Outro, cuidado com o Resultado e com o Mundo. Esse é o começo da Inspiração que pode ativar e manter a Motivação.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

O Gorila de Laquê

Foi nos anos setenta que Paul MacLean descreveu a teoria do Cérebro Trino. Ele repetiria as fases da Evolução: seria como camadas que foram se sobrepondo e crescendo uma encima da outra. A camada de baixo seria um Cérebro Reptiliano, responsável pelo comportamento reflexo e os instintos mais básicos de sobrevivência. Mais acima tem o Cérebro de Paleomamífero, responsável por nossas reações emocionais mais primitivas, como o Medo, a Raiva, a Ferocidade para matar a presa, trucidar o inimigo, defender o próprio território. A terceira camada, a última que envolve as outras duas como a cobertura de um sundae é o Neocortex, o Cérebro Racional, capaz de moderar a resposta emocional, processar sentimentos mais complexos, planejar, executar e avaliar o resultado de determinado ato ou comportamento. Pode-se dizer que a história humana traduz uma luta permanente para harmonizar esses três bichos que habitam e lutam pela primazia de nosso comportamento e emoções.
Os hominídeos primitivos já carregavam os seus doentes, não abandonavam os velhos e mais fracos e homenageavam seus mortos. Preferencialmente evitavam devorar as crias de seus inimigos. Sentimentos mais complexos de compaixão, respeito hierárquico e cuidado com o grupo permitiram aos pouco promissores hominídeos sobreviverem em um mundo cheio de predadores maiores, mais fortes e mais rápidos que eles, até que a criação de ferramentas e o domínio da agricultura permitiu ao Homo sapiens dominar o planeta. A capacidade de sobrevivência como grupo foi determinante nessa jornada evolutiva.
Lembro de uma cena de um documentário B, desses que se seguiram ao sucesso do “Quem somos Nós?”, lá pelos meados da década passada, onde os realizadores perguntavam para pessoas com diferentes crenças espirituais para onde estava indo nosso mundo e a vida inteligente desse planeta. No post anterior, lembrei da capacidade adquirida há sessenta anos do homem aniquilar a vida nesse planeta. Para onde estamos indo? Uma senhora que era uma espécie de guia espiritual respondeu fazendo um movimento com suas mãos, que faziam uma curva para cima e se encontravam, para depois se afastarem para cima, como um caminho que se afunila e se fecha para depois se abrir como uma flor. O entrevistador perguntou o que aquilo significava, ela respondeu que em vários setores há um afunilamento, como se o mundo estivesse caminhando para um beco sem saída; toda a angústia, a sensação de falta de sentido e de infelicidade da vida moderna confluía para aquele ponto. Mas a velha sábia também enxergava um movimento simultâneo de abertura para uma realidade mais ampla e para um salto coletivo de Consciência, onde a selvageria e a tormenta interna do homem moderno iria finalmente se transformar em outro padrão.
A análise mais interessante que ouvi sobre a vitória do Paleo primata Donald Trump, eleito para ser o homem mais poderoso do planeta, coloca que aquela figura ridícula soube usar como ninguém as Redes Sociais na construção de sua vitória. Foi uma campanha baseada num instrumento muito comum da vida internauta, que é a Trollagem, um termo derivado dos monstros da mitologia celta e de Tolkien no “Senhor dos Anéis” que são os Trolls, monstros deformados que destroem tudo o que passa na sua frente. Trump trollou a tudo e a todos, disparando insultos contra minorias, imigrantes, mulheres e chineses. Foi o segundo grande movimento de retrocesso contra o mundo globalizad: antes disso o povo inglês também votou de forma apertada pelo Brexit, a saída da Inglaterra da Comunidade Européia. Trump promete levantar um muro para proteger os americanos das invasões bárbaras. Ele se valeu dos instintos mais básicos de nosso Cérebro Reptiliano e Paleoprimata: territorialidade, xenofobia, ferocidade, dominância. A trollagem exclui o diálogo e não permite nenhuma forma de debate.
Lembrei da velha xamã mostrando o movimento de estrangulamento seguido de uma abertura. Foi a única coisa que me fez sorrir nesse céu de tempestade.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Mundo Interno

No final de sua vida, Jung escreveu uma carta em que expressava uma profunda frustração por não conseguir fazer as pessoas ouvirem o que tinha para dizer. O vazio espiritual levava o mundo a estados de tensão insuportáveis e pela primeira vez na história o homem tinha o poder de destruir a vida no planeta. Jung morreu no início dos anos 60, quando o mundo chegou ao auge da Guerra Fria e uma guerra nuclear entre Estados Unidos e União Soviética parecia estar batendo em nossa porta. Jung dizia nessa carta que a Filosofia e a Religião estavam em um estado lamentável, e que temos um tesouro enterrado em nossa alma. A sua mensagem não foi ouvida, mais de meio século depois.
Não existe a polaridade clara daquele final de Guerra Fria. Americanos e Russos levaram as suas disputas para a Síria, onde o Estado Islâmico passou a exportar o terror ao mundo, o terror como um ato individual, imprevisível, irrastreável. Um outrora pacato trabalhador aluga um caminhão e o arremessa em alta velocidade contra uma multidão assistindo aos fogos na beira da praia. Essa é a guerra globalizada: o ato individual de violência e terror em nome de minha crença.
Um velho junguiano proclamava em suas aulas, quando eu engatinhava como psiquiatra e terapeuta, que a Contra Reforma Católica, com toda a violência da Inquisição, havia criado a dissociação de nossa Cultura, onde Religião e Ciência ficariam completamente separadas e em campos opostos em nossa Psique. Caetano disse num texto sobre americanos que um americano vai fundo no que vê, mas não no próprio fundo. Essa é a própria definição do que aconteceu e acontece ao mundo que só confia no que vê e toca, e duvida do que está no próprio fundo. O mundo interno deixa de existir. Esse é o resultado do divórcio entre Ciência e Religião.
Ao contrário do velho junguiano, não acho que nosso atual estado psíquico lamentável tenha sido causado pela Santa Inquisição. A Idade Média, também chamada de Idade da Trevas, foi um período de Introversão doentia, o mundo separado por muralhas e as pessoas presas em medos e superstições. O Mercantilismo rompeu as muralhas dos feudos e isso trouxe ao mundo a Tecnologia e a Ciência. O homem passou a ir fundo no que vê, mas não no próprio fundo. O movimento de Extroversão teve na Contra Reforma a tentativa de impedir o movimento para fora. Como toda Repressão, só acelerou o processo que tentava impedir. Se antes havia uma Introversão patológica, hoje estamos no campo oposto. A Idade da Razão está longe, muito longe, da razão.
Jung percebeu que a fabulosa tensão que ameaçava destruir a Raça Humana se originava na tensão entre nosso Mundo Interno e Externo. Temos uma crise permanente da nova Religião, que só acredita no que é palpável e se ri do Invisível e da Psique. Não há uma Realidade Profunda, só o que nossos instrumentos podem medir.
O Tesouro que Jung dizia que está enterrado em nosso quintal é nosso quase esquecido Mundo Interior. As pessoas procuram desesperadas por ele no meio da profunda sensação de Vazio e silencioso desespero que atravessam as nossas esquinas. Os que pedem pela mudança de olhar, agora para o próprio fundo, queimam nas fogueiras do descrédito. Mas isso, como Nova Inquisição, vai fortalecer aquilo que quer impedir.

domingo, 30 de outubro de 2016

Perdão

Era uma mulher excepcionalmente bonita, daquelas jovens americanas que ganhava concurso de Miss e era escolhida a Rainha da Festa de Formatura. Os olhos nas fotos tinham uma discreta tonalidade de tristeza, mas isso ficava imperceptível debaixo de toda a sua beleza. O casamento, os filhos e a paixão pelos cavalos deixavam os seus dias plenos e tudo parecia adequado ao American Dream. Ninguém sabia das bebedeiras do marido e de seus ciúmes cada vez mais obsessivos por sua bela mulher. Num belo e ensolarado dia, ela estava em seu rancho, quando a sua cunhada desceu da picape gigante. Foi quando, do nada, começaram a discutir. A cunhada, enlouquecida, fechou a porta do carro em sua mão e arrancou sem perceber que ela ficou presa no vão da porta. Ela foi arrastada por alguns metros e terminou com o rosto destruído em um leito de pedras. Ela parecia morta e foi levada quase sem vida para o hospital. Durante muitos anos foi submetida a várias cirurgias de reconstrução para voltar a ter um rosto humano. Hoje é uma mulher de meia idade que parece o personagem Duas Caras, do Batman, que tinha uma metade de rosto normal e outra deformada. Mas a sua expressão é serena e fala com um sorriso que o acidente impactou o seu casamento e seu marido virou ex marido. O impacto emocional foi tanto que ele mesmo tornou-se (ou consolidou-se) como um alcoólatra.
Durante a sua recuperação física, recebeu também atendimento psicológico. Não deu cabo da própria vida por conta de suas crianças, que precisavam da mãe, mesmo da mãe deformada. Na psicoterapia surgiu um fantasma mais profundo e sombrio de ter sido abusada física e sexualmente por seu pai. A beleza, que agora a abandonara, tinha lhe trazido mais sofrimento do que felicidade. A sua vida, como seu rosto, foi sendo gradualmente reconstruída. Conheceu um homem num casamento que não teve medo de puxar assunto sobre seu rosto e a experiência de ter sido bela e agora não ser mais. Ela estranhamente não se ofendeu e até ficou grata por ele falar de forma tão direta sobre algo que as pessoas fingiam não notar. Alguns encontros depois e eles estavam morando juntos. Ela finalmente encontrou a paz, depois de perder tudo o que achava que tinha em sua vida. Ela vira para a câmera e revela que tinha desistido de se perguntar por que aquilo tinha acontecido com ela, por que tinha sido sorteada para um destino de tanto sofrimento e como seria o seu futuro. A dor lhe ensinou a viver um dia de cada vez e tirar o melhor de cada dia, como uma laranja cheia de sumo.
Essa história é mostrada no documentário da Netflix, ‘”Happy”, sobre diferentes versões e estudos sobre a Felicidade ou a ausência dela. Recomendo para quem tem estômago forte. São histórias muito fortes.
Já vi chegar num Plantão uma menina que tentou se matar porque detestou o resultado de uma cirurgia plástica em seu nariz. Por essa lógica a moça do filme merecia umas trinta tentativas suicidas. É impressionante, mesmo para ela, ter tido a força necessária para atravessar todas aquela jornada sem saber onde ela iria dar.
Para mim, o mais impressionante não foi a força que ela recebeu de uma mão invisível para prosseguir. Diariamente eu testemunho jornadas tão dolorosas quanto essa, com pessoas chorando nos sofás do consultório enquanto descrevem as perdas de pessoas, de posse, de saúde, de identidade. Essas pessoas nunca imaginam ter tanta força interior para fazer essa travessia e, como a moça do filme, vão vivendo um dia de cada vez, um passo de cada vez, para chegar onde nunca imaginariam chegar. Mas o que me impressionou realmente foi a percepção profunda que não adiantava perguntar para a vida os porquês, não adiantava reviver as perdas e as dores. A única salvação era seguir caminho, sem olhar para trás e sem tentar adivinhar o que viria pela frente. Esse é o único Perdão possível. Culpar a si ou culpar a vida são caminhos que levam a um beco sem saída ou à morte. Não havia reparação possível. Se agora ela era feliz, o único motivo era levar a vida em paz, alinhada com seu coração. A vida em si, sem as dúvidas infinitas de nossa cabeça.
Borges faz um pequeno poema, em que descreve o encontro de Caim e Abel no Paraíso. Um olha para o outro e pergunta: “Sabe que eu não sei, se fui eu quem te matou ou o contrário?” E o outro também não sabia dizer quem matou quem. Borges conclui que não existe perdão, só esquecimento. Eu acrescentaria que não existe Perdão sem o abandono da Mágoa. Isso não é nem um pouco fácil.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Neurônios Quebrados

As mãos trêmulas afastam uma mecha de cabelos tendendo aos grisalhos. A voz treme também. Ela finalmente desabafa a respeito de sua filha, que já passou por vários psiquiatras, terapeutas e outras formas de ajuda, com resultados que não se mantém. Confessa que foi procurar outro profissional, nessa longa peregrinação, e o colega sugeriu aumentar a dose dos medicamentos que eu já havia indicado. Sua filha não tolerou a nova dose e, mais uma vez, interrompeu, ou não seguiu, o tratamento. Alguns dizem que ela é uma Depressiva, ou um nome mais horrível, uma Distímica, outros como eu entendem que os sintomas depressivos derivam de uma severa Fobia Social (o nome atual é Transtorno de Ansiedade Social, mas Fobia Social descreve muito melhor o seu quadro do que uma simples ansiedade). Confesso que fico incomodado com a atitude dessa senhora. Já tenho olhos e ouvidos calejados por mais de duas décadas na estrada, isso vai te ensinando a tolerar esse tipo de autoengano e de projeção, mas continua me causando cansaço ter que sugerir que a dificuldade de sua filha tem a participação de todo o núcleo familiar e não vai melhorar com uma simples mudança da dose da medicação. Precisamos marcar uma conversa a três, com a presença de sua filha, para que ambas melhorem o entendimento do seu quadro clínico e o longo caminho de reconstrução. Ela suspira impacientemente, dizendo que vai marcar um horário, mas ambos sabemos que isso não vai acontecer. Mas não posso deixar de tentar fazer a coisa certa, mesmo que a chance de dar certo não seja muito animadora. Mas a paciente em si, o objeto do meu interesse no caso, foi orientada sobre a natureza dos sintomas e da formação de suas redes neurais baseadas no medo e, sobretudo, da necessidade de enfrentar esses medos todo dia. Algumas semanas ela vai conseguir manter as suas atividades e rotinas, em outras vai ficar em casa, sem energia para sair do quarto, até porque sair do quarto significa enfrentar os gritos de sua mãe.
Está ficando mais difícil ajudar esses pacientes a atravessar a jornada na direção da fase adulta de nossa vida. Jovens apáticos, desmotivados e intoxicados pelos blá blá blás de pais enlouquecidos e pouco eficazes é uma realidade da nossa clínica. A mistura explosiva de regras pouco claras com um assédio constante de críticas e decepções mantém muita gente com o caminho interrompido e restrita à uma vida virtual de jogos online ou gritos animados de youtubers. Um neurotransmissor pouco citado, o Glutamato, tem efeito tóxico na transmissão nervosa. Quando eu vejo essas apatias profundas, a falta de energia em começar qualquer atividade, penso que essas relações tóxicas tem muita ação do Glutamato. A pessoa não consegue sair do lugar e iniciar as atividades mais rotineiras. O mundo exterior parece cheio de predadores e congelar parece a única opção.
Os remédios ajudam mas não tem o efeito mágico esperado pelas pessoas e pela indústria farmacêutica. Não adianta consertar a neurotransmissão se essas redes neurais de medo e repulsa não forem trabalhadas. Elas são profundas e o trabalho é longo e paciente. A senhora de mãos trêmulas tenta dobrar o mundo à própria prepotência e estende a sua filha aos médicos como um aparelho doméstico que precisa ser consertado. Ela quase fala para consertá-la de uma vez. Outro dia houve uma trollagem (termo que demorei a aprender o que significava no mundo virtual) nos comentários desse blog onde uma visitante anônima afirmou que os terapeutas induzem em seus pacientes a dependência, o que gera maior lucro e fidelização. Existe essa situação nas clínicas por aí? Sem dúvida. Um caso como esse me lembra a necessidade de uma profunda reconstrução dos laços pessoais e familiares para tirar essa menina de dentro de seu quarto. Isso leva tempo. Todos, familiares, escola, amigos, terapeutas precisam estar conscientes que são parte do problema e se possível, da solução. Não adianta o jogo de empurra de mandar para alguém que tente consertar o rádio quebrado.
Vejo a senhora ir embora depois de invadir minha sala com sua angústia. Seus dois filhos tem dificuldades em achar um caminho dentro da vida adulta. Você pode educar para evitar o erro ou para perseguir o sucesso. Pode ter uma perspectiva de explorar o futuro ou se agarrar aos medos passados. Para vencer o medo, precisamos mais de mãos dadas do que de dedos apontados.

domingo, 16 de outubro de 2016

O Tempo e a Barriga

Jo Marchant é uma conceituada jornalista inglesa da área de Ciências, autora de um livro muito bacana chamado “Cura”, lançado pela Editora Best Seller neste ano. O livro fala sobre os efeitos da mente sobre o corpo e, diga-se, sobre vários temas abordados nesse blog, como o Midfulness, os efeitos Placebo e Nocebo, as alterações no corpo e Sistema Imune causadas pelo Estresse. De Jung ela não fala, e com certeza diria que uma parte importante dos posts desse blog são um Mambo Jambo metafísico, sobretudo na parte junguiana dele. Mas Jo é uma pesquisadora inquieta e que busca evidências concretas da ação da Mente sobre o Corpo, nesse ponto, estamos no mesmo barco.
Nesse livro, os capítulos são sempre abertos com vinhetas clínicas, histórias de pacientes que servem de ilustração para o capítulo em questão. Uma das minhas vinhetas preferidas tem como personagem ela própria, a autora do livro, e seus dois partos. Ela talvez não tenha percebido, mas nos partos de seu casal de filhos experimentou a profunda divisão de ponto de vista masculino, predominante, e feminino, abrindo passagem, em nossa Cultura e vida.
No seu primeiro parto, Jo começou a ter contrações antes do final da gestação, o que virou um trabalho de parto prematuro. As contrações não eram eficazes e o bebê estava em posição desconfortável, de frente para o canal de parto e desencaixado. Muitas vezes o próprio trabalho de parto ajuda a corrigir essa dificuldade para achar o encaixe. Mas o tempo estava passando e a parteira seguiu o protocolo de romper a bolsa e introduzir medicamentos para tentar facilitar e finalizar a expulsão do bebê pelo canal de parto. O efeito foi exatamente o oposto: sem o líquido amniótico para facilitar a correção de posição, a cabeça do bebê foi sendo comprimida em direção à pelve, levando a sofrimento fetal. Ela foi rapidamente levada para uma Cesariana de Urgência. Nos primeiros dias de Pós Parto, estava esgotada, deprimida e tendo crises de ansiedade próximas do Pânico. O bebê perdeu peso e ela ouviu broncas da Enfermagem e da Pediatria sobre como deveria estar cuidando melhor do bebê. Já atendi alguns casos de Depressão Pós Parto em que a puérpera (a mãe nem é chamada de mãe, pela Medicina, o seu nome passa a ser Puérpera) passa a ter crises e depressão desencadeadas pelos números: quanto leite deveria estar saindo, quantas gramas o bebê perdeu, como as curvas e os gráficos de avaliação deveriam estar se comportando. Jo e o bebê sobreviveram a tudo isso, sem muitas sequelas. Muita gente não tem a mesma sorte.
O segundo parto, três anos depois, foi bem diferente. Jo optou por um parto domiciliar, ajudada por duas parteiras experientes, que acolheram seus medos, conduziram o seu comportamento nas contrações, com uma sensação importante de achar um ritmo progressivo que conduzia o bebê para o Canal de Parto. Com a percepção desse tempo, ou dessa temporalidade, o parto chegou a um ponto em que um ruído estranho anunciou que o bebê estava perto da fase expulsiva. De repente, tudo parou. O bebê não saía. Seria a hora de correr para o centro Cirúrgico e fazer outra Cesariana de Urgência. A parteira falou: ele vai sair quando estiver pronto. Alguns minutos depois, o seu filho estava limpo e em seus braços. A sua filha acordou e veio ver seu irmãozinho, mamando placidamente nos braços de sua mãe. Esse pós parto foi muito melhor do que o primeiro, em todos os parâmetros clínicos.
Os avanços da Ciência tornaram o Parto um procedimento extremamente seguro para mães e bebês. Morrer no parto é assunto para literatura de séculos passados. O saber acumulado, os protocolos e a precisão nos procedimentos diminuem os riscos para os personagens principais da Gravidez e Parto, o bebê e a mãe (ou Puérpera). Tudo isso graça a uma visão mais objetiva e masculina que a Ciência nos proporciona. Essa visão é muito cara à autora do livro e dos partos, Jo Marchant. Exatamente por esse motivo que eu achei encantador ela ter optado por uma abordagem completamente diferente no seu segundo parto. Uma abordagem muito mais próxima de nosso Feminino Ancestral, onde a jovem mãe é acolhida e guiada por mulheres mais velhas e calejadas que “acham”, de maneira intuitiva e com uma percepção profunda, os ritmos e os tempos das contrações e da descida do Feto (que vai virar recém nascido só quando sair de lá) pelo Canal de Parto. No capítulo que se segue, a autora demonstra os dados que corroboram que esse tipo de assistência tem incontáveis vantagens sobre o processo tipo “linha de montagem” das maternidades e suas equipes. Frise-se que, para mães de primeira viagem, a assistência hospitalar continua sendo a indicação mais prudente. Mas confesso que a parte que mais me encantou foi a frase da parteira: “Ele vai sair quando estiver pronto”. Isso foi bonito demais e estranhamente metafísico. Contra todas as estatísticas e cronômetros, como diria Caetano, o tempo parou para olhar para aquela barriga. E o tempo se cumpriu, exatamente pela ausência de intervenção humana. A cura tem mais relação com esse Não Tempo do que conseguimos perceber.

sábado, 8 de outubro de 2016

A Vida Bela

Confesso que sempre tive uma certa bronca do filme de Roberto Benigni, “A Vida é Bela”. Sempre desconfiei que uma parte de minha longa antipatia se deu porque esse filme ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em vez do brasileiro “Central do Brasil”, que sempre foi infinitamente melhor. Isso, claro, partindo do princípio que o Oscar deveria dar o prêmio para os melhores, o que, em si, é um evento meio raro de ocorrer. Mas, para quem não lembra, “A Vida é Bela” conta a história de Guido, um judeu italiano que é preso durante a Segunda Guerra em um Campo de Concentração com seu filho, Josué. Para não se separar de seu filho, o que seria a morte certa para ele, Guido consegue escondê-lo no Campo inventando uma espécie de gincana, onde eles devem se esconder dos guardas nazistas e não pode chorar nem fazer barulho, senão ele pode perder pontos. Se Josué ganhar o jogo, recebe um tanque de guerra. O filme é uma fábula sobre o humor e a inventividade humanas diante dos sistemas de controle totalitários, que punem com a morte o diferente e o dissidente. Mas estudos recentes mostram que Guido, ou o roteirista (o próprio Roberto Benigni, que ganhou o Oscar de melhor ator por esse filme, em 1999) sabiam mais sobre Neurociência do Estresse do que se pensava.
Estudos recentes demonstram que preparar uma pessoa para um evento adverso pode ajudar em sua resiliência, mas também pode causar complicações. Por exemplo, alertar o paciente antes de uma injeção de que vai receber uma injeção e vai sentir uma picada e uma ardência parece ajudar o paciente a ser mais preparado e resistente à dor, certo? Errado. Para uma significativa parcela de pacientes, alertar sobre a dor acabou por aumentar a sua percepção da mesma e o incômodo com a picada. Esse é o efeito Nocebo. Os laboratórios vivem tentando colocar guias de perguntas e respostas dos Transtornos Psiquiátricos na recepção dos médicos. A informação ajuda a preparar as pessoas para as diferentes situações da clínica das doenças e a compreensão de como enfrentá-las, certo? Errado. Nunca aceito esses folhetos, por achar que induz alguns pacientes a superestimar seus sintomas e a gravidade das doenças. É por esse motivo que recomendo aos pacientes ficarem muito longe das bulas dos remédios, que é assunto de advogados, não médicos. As bulas fazem os pacientes esquecerem porque estão sendo medicados, tamanha a quantidade dos efeitos colaterais listados. Isso também pode ter um efeito Nocebo.
Estamos acostumados a entender o Stress como um fator muito importante de desencadear ou causar as doenças mais importantes de nosso tempo. No trânsito caótico de São Paulo dou de cara com aqueles adesivos americanos de “No Stress”. A única condição que posso associar a No Stress é a morte. Estamos acostumados a entender o estresse e os estressores como algo a ser evitado e combatido, certo? Errado. Como Guido muito bem percebeu salvando o seu filho dos algozes nazistas, o importante não é o Stress em si, mas como o percebemos e sobretudo, como lidamos com ele. As reações podem ser de terror ou desafio. O terror paralisa, encolhe, faz a pessoa se retrair para prevenir danos. O desafio transforma o estresse em um jogo que vamos ganhar ou perder, mas vai ser divertido jogar. Guido transforma a mais horrível das experiências humanas, que é estar preso num campo de extermínio, num jogo onde Josué vai ter que crescer rápido para aprender a jogar. Ele não sabe, mas é um jogo de sobrevivência e artimanha.
Crianças e adultos sofrem muito dentro de aparelhos de Ressonância Magnética, que parece com ser enterrado vivo num caixão imenso e barulhento, além de usar uma máscara para proteger o rosto. As equipes estão sendo treinadas nos Estados Unidos para criar outras sensações nos pacientes. O tubo da Ressonância vira uma nave espacial, a máscara é um capacete de Homem Aranha. Pode ser usado incenso e música para tudo parecer um dia no Spa. Tudo para mudar a percepção de nossos fantasmas, que não serão mais tão fantasmagóricos assim. Transformar estresse em desafio é a grande tarefa para terapeutas, líderes e coachs. Isso pode fazer diferença entre vida e morte das pessoas, como o filme (incrível) “A Vida é Bela” demonstra.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Sobre Levantar e Andar

Estava vendo um vídeo sobre treinamento dos Seals, grupo de elite da Marinha Americana que se tornou notório após a operação que culminou com a morte de Osama Bin Laden. Os Seals são treinados para atingir o melhor desempenho em situações de caos e onde tudo está dando errado. Improviso, tolerância a frustração, adaptabilidade. Mas o que mais me impressionou foi o sistema de micro aquisições que preparam a pessoa para realizações maiores. Os Navy Seals são treinados a realizar micro tarefas diariamente para criar o método e o hábito de terminar o que começaram e ganhar confiança para executar tarefas mais complexas e difíceis. É claro que os caras podem ficar adictos com o jogo de se propor desafios toda hora e perderem a dimensão do Significado que toda essa malhação e gritaria deveriam trazer, mas a divisão das tarefas em microtarefas, a sensação de conseguir terminar e passar para a próxima fase, a ampliação de repertórios de aprendizado, bem, isso não difere muito do que deveria ser uma psicoterapia.
Existem entidades fantasma na Medicina que muito vem aumentando em frequência e importância, mas pela ausência de lesões anatômicas claras ficam numa espécie de limbo terapêutico. A Síndrome da Fadiga Crônica e a Fibromialgia estão entre essas entidades fantasmagóricas. As duas são na realidade muito parecidas e eu chego a arriscar que são na verdade a mesma doença, com nomes diferentes. As duas se caracterizam por um cansaço crônico e progressivo, dores generalizadas pelo corpo, tanto em grupos musculares como em articulações, uma sensação meio tóxica de desânimo e falta de iniciativa, com dificuldade para iniciar e manter tarefas ou mesmo qualquer tipo de movimento. Tudo parece convidar a pessoa a ficar parada no lugar com medo da dor, com medo de sair ou de se arriscar no mundo exterior. Um tratamento que começou a dar resultado nesses casos foi justamente fazer microtarefas físicas, como andar alguns metros dentro de casa, fazer alongamentos e mover pequenos pesos. Claro que essas microtarefas são cercadas de medo e da exacerbação das dores no início, e é esse começo difícil que precisa ser enfrentado para se criar um sistema de aprendizado muscular, mas, sobretudo, de um aprendizado cerebral de que aquele cansaço e aquela dor não são tão “reais” como possam parecer. Esse foi um grande insight para o tratamento dessa e de outras doenças que dependem do sistema de crenças entranhado nas redes neurais. Os portadores da Síndrome da Fadiga Crônica e da Fibromialgia tem uma impressão Central de que podem morrer de dor ou de cansaço se iniciarem qualquer tipo de movimento. Mudar esses pensamentos ajuda a mudar os sentimentos envolvidos. É bom lembrar que os sentimentos são profundos e entranhados, e que questioná-los de cara gera resistência de quem aprendeu, no decorrer de anos ou até décadas, a se enxergar como doente ou pautar sua identidade pela sensação de dor e limitação.
O trabalho das terapias, eu diria até, de todas as terapias que se pretendam curativas, é de desafiar esse sistema de crenças e estabelecer microtarefas e pequenos sucessos para contrapor ao medo e à paralisia. Nem todo mundo quer deixar esse lugar aquecido de que “sou doente e preciso de ajuda”. Mas o mundo está cada vez menos acolhedor para quem se ancora nessa posição. Uma das leis de Spinelli, talvez a 54 (os números são aleatórios), diz que na vida, ou vamos para frente ou vamos para trás. Parado ninguém fica, embora muita gente tente. A natureza pede pelo aprendizado e pela evolução, e essa é uma de nossas tarefas na vida. Como os grandalhões dos Seals, temos que jogar o jogo com as armas e as circunstâncias que estão lá, à disposição. Isso elimina uma série de quandos: quando eu tiver aquele diploma, quando encontrar amor verdadeiro, quando entrar aquela grana que estou esperando. Já dizia Jesus: “Levanta-te e anda”. Mesmo que andar, sem dúvida, traga dor nos primeiros passos.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Outra Resposta

O Livro de Jó, uma belíssima peça do Velho Testamento, é muito caro aos junguianos. Jung escreveu um de seus livros mais pessoais, chamado “Resposta a Jó”, do ponto de vista de quem sofreu, na carne e na alma, o embate entre a santidade e o pecado que é a nossa vida psíquica. Jó sofre as mais terríveis perdas e provações, a partir da provocação de Deus pelo Diabo, que duvida da sinceridade da fé desse homem em tudo fiel a seu caminho. Jó é torturado pela dor física e por falsos curadores, que buscam em alguma falha sua a origem de toda sua desgraça. Ele reage com ferocidade, o que me coloca em dúvida a expressão “paciência de Jó”. Jó não tem paciência nenhuma com a burrice da visão dos sacerdotes que entendem a sua doença como fruto de pecado, já que Deus não pode ser questionado. Jó prossegue em sua busca até ter a visão da Perfeição, o que torna quase irrelevante o sofrimento que vivenciou.
Fui uma vez à uma cerimônia numa Sinagoga, e ouvi o rabino afirmar que se fossemos retos na ação e fiéis a Deus, Ele em tudo nos protegeria e recompensaria. Jó entende na sua carne o erro da afirmação. Coisas ruins acontecem para pessoas boas, a mentira traz resultados mais rápidos que a verdade, a mesma chuva cai sobre o bom e o injusto. Não existe um sistema claro de recompensa. O que Jung responde a Jó é que não é nem um pouco fácil ser escolhido ou amado por Deus, e que o caminho é cheio de tensões e dores. E a dor pior de suportar é o incrível silêncio no meio dos barulhos e da algazarra dos “Faça Isso, Faça Aquilo” que infestam nossos olhos e ouvidos.
Uma vez li a entrevista de um jogador de futebol, Valdo, que jogou na seleção brasileira no final dos anos 80. Valdo estava em final de carreira no Santos e fora perguntado sobre a sua calma profunda. Ele deu um testemunho que daria inveja a Jó. Depois de uma breve doença, Valdo teve a pior perda que um ser humano pode experimentar, que foi a morte de sua filha. Apesar de todos os esforços dos médicos e todo o dinheiro que uma carreira de sucesso tinha proporcionado, a sua pequena foi embora como que levada por um vento ruim. Depois de muito tempo de dor e de dúvida, já que ele acreditava e temia a Deus, uma estranha serenidade tomou conta de sua vida. Tudo o que poderia acontecer de ruim aconteceu, e ele descobriu que não tinha mais medo. Aprendeu a diferenciar o que importa do que não importa na vida, e não se incomodava diante das pequenas coisas que nos perturbam todo dia. Talvez por isso fosse tão querido e procurado pelos jogadores mais jovens.
É lógico que o sofrimento pode tornar as pessoas mais medrosas e mais mesquinhas. Muitas delas batem no peito e transformam o próprio sofrimento em seu maior patrimônio e sua maior identidade. Mas outras pessoas tem a experiência paradoxal desse rapaz, em que o sofrimento leva a uma profunda interiorização e, mais do que isso, ao estabelecimento de uma relação intensa com esse mundo interno. As pessoas que encontram esse ponto de ancoragem no que chamamos de Alma e os junguianos chamam de Psique são mais tranquilas e quase que infestam o ambiente com sua calma. Era isso que o reporter notou naquele rapaz que vestia a camisa 11 de seu time.
Nossa civilização “O Segredo” procura todo dia pela criação de uma vida incrível, uma casa dos sonhos, um carro conversível, um relacionamento romântico. Felicidade é atribuída à capacidade de aquisição e consumo. Muita gente morre e destrói buscando essa felicidade. Quem sai da corrida nesse circuito oval encontra uma experiência mais consistente da riqueza interior. Como no caso de Jó, que deve ter sido o primeiro junguiano, a jornada dos escolhidos, que somos todos, é longa, dolorosa e sem grandes recompensas exteriores. Mas, no fundo da experiência, está a riqueza que aquele sacerdote prometia.

sábado, 17 de setembro de 2016

Wall-E e o Sonho de Jung

Wall-E é um robô obsoleto, catando e classificando lixo no planeta Terra, desertificado pela intervenção humana. Os habitantes da Terra viraram nômades perdidos pelo Universo, vivendo em estações e naves interplanetárias, presos na frente de telas de computador e de profunda apatia. O enferrujado e valente WaIl-E finalmente encontra, na paisagem devastada do planeta deserto, um pequeno broto de planta, um quase microscópico trevo, que representa a recuperação da terra, o chão, e da Terra, o planeta, de abrigarem a vida. Wall-E dá o alarme e uma pequena e mais moderna robô fêmea atravessará as galáxias para pegar a amostra e levar para os humanos sem lar. Essa é a prova que o planeta está ganhando vida, de novo. Finalmente o homem vai poder voltar de seu exílio.
Esse filme da Pixar me remete para um sonho muito antigo de Jung. Em seu sonho, ele anda com três amigos nas ruas escuras e empoeiradas de Liverpool. Ele fica sabendo que um de seus amigos havia optado por morar naquele lugar sujo, o que causa estranheza a todos. Chegam em um parque quadrado, que tem um lago em seu centro. Com a luz muito fraca, ele enxerga uma ilha no meio do lago, onde tem uma árvore, uma magnólia de flores vermelhas e nesse lugar, o sol nunca deixava de banhar as flores. Vendo esse milagre, entende como alguém tinha ido morar naquele lugar.
O sonho de Jung e a descoberta de Wall-E tem provavelmente a mesma origem simbólica: no meio da situação mais desesperadora e soturna, no meio da secura, do deserto ou da fuligem, nasce a nova vida, e nada detém a força que faz com que a vida floresça. É particularmente bonita a imagem do sonho, onde a árvore central é sempre banhada pela luz. Será que Jung descobriu a Árvore da Vida, sempre iluminada no mundo após a expulsão do Paraíso?
Uma das hipóteses junguianas para a nossa época repleta de doenças mentais epidêmicas é a sensação profunda de aridez de significado de nossa civilização tecnicista. Nascer-Crescer-Consumir-Morrer não parece um caminho inspirador ou com significado. Jung associou o sonho ao período de sua vida, que era especialmente difícil. Tinha sido expulso em pequeno espaço de anos da Psiquiatria e da nascente Psicanálise. Fora abandonado pelos poucos amigos e pesquisava, sem saber ao certo o que estava buscando, o núcleo central de sua teoria. Esse sonho mostrou para ele que sua busca estava indo no caminho certo, mesmo que ele, como o amigo do sonho, estivesse morando num lugar sujo e cheio de fuligem, e que ninguém entendesse como ou porque ele tinha se enfiado naquela situação de vida. Jung não tinha problemas financeiros, era um médico conceituado e procurado por pessoas de todo mundo e suas alunas montaram uma escola para ele transmitir as suas ideias. Mesmo assim ele se sentia perdido e sem saber se a sua busca iria dar em algum lugar. O sonho indicou que no fundo da Psique estava o facho de luz e a planta solitária do desenvolvimento. Difícil era fazer as pessoas olharem com os olhos de dentro.
Vivemos em um mundo unilateral, onde as pessoas compensam a ausência de orientação interna com a gana de acumular e adquirir. É feliz quem compra, é desesperado quem não pode comprar. Está muito fora de moda a ideia de que há, em nosso mundo interior, um núcleo de vida que sempre vai achar um caminho de manifestação.
Como Wall-E, Jung descobriu um broto de vida no deserto espiritual do homem moderno. A psicoterapia é um dos últimos lugares que convidam as pessoas a olharem para dentro. Bem no quintal de seu mundo interno, há um tesouro enterrado. Um tesouro que ninguém quer desenterrar. Só quem espera e escuta pode voltar a ouvir e ver. E precisa procurar muito para encontrar o trevo perdido.

sábado, 10 de setembro de 2016

Significado

Um paciente querido, em crise sobre o rumo a tomar em sua carreira, traz o seguinte sonho para a sessão: “Estava numa espécie de auditório, um lugar imenso, cheio de coisas e cacarecos. Chegando mais perto percebi que aquele lugar era uma espécie de sala de aula gigante, e que eu precisava me livrar daquela sujeira e porcarias para poder receber meus alunos”. Após uma carreira dedicada a formar bons profissionais, estava cada vez mais seduzido pelas responsabilidades e disputas de poder dentro da Instituição que dava suas aulas. O sonho ajudou-o a tomar a sua decisão: em vez de aceitar cargo de Coordenação, decidiu que seu lugar era dentro da sala de aula, onde, segundo o sonho, era o seu Templo. As sujeiras e tralhas que lá se acumulavam poderiam ser creditadas ao Ego vaidoso que queria ter Poder e Atenção. Dar aulas costuma ser tarefa menos valorizada nas universidades. O prestígio é medido por verbas, influência, publicações. Dar aula é para principiantes, ou uma terrível obrigação. Esse professor encontrou em seu sonho a resposta que procurava: o seu lugar era na sala de aula, mesmo que isso signifique uma espécie de exílio dentro da carreira.
É muito bom que esse Blog seja frequentado por poucos e bons leitores. Fico imaginando uma apresentação em um Congresso em que o palestrante afirme que um paciente tomou uma decisão importante baseada em um sonho. Conta a nossa história que o imperador Júlio César sonhou com uma voz que lhe pedia para não ir ao Senado no dia em que foi esfaqueado e morto pelos senadores de Roma. Talvez fosse melhor levar em conta esse sonho. O fato é que mesmo um psicoterapeuta que acredite que os sonhos são mais do que reencenações do que vivemos durante o dia, visando fixar memórias e dissipar tensões, achariam estranho tomar uma decisão importante baseada em um sonho. E se ficar na sala de aula fosse uma manifestação do medo de crescer e assumir novas responsabilidades, que são uma tendência inata e constante de todo processo de crescimento?
Talvez o melhor fosse mudar o ângulo dessa discussão. O tempo sempre dirá se a opção foi a melhor e vai oferecer outros indícios se é para seguir por esse ou por outro caminho. O que eu acho bem mais importante é que esse sonho ofereceu para meu cliente a noção de Significado. O auditório imenso e cheio de cacarecos é uma imagem muito significativa da confusão de valores que confundia tanto o sonhador como a instituição que trabalha: os debates sempre se situavam à atual posição que a Universidade ocupa no mercado e o esforço em captar mais clientes, digo, alunos. É como se a essência do que se faz ali, que é a transmissão do conhecimento e a criação de bons profissionais, estivesse completamente perdida em meio às questões do mercado. O tal do Mercado é a nova divindade que devemos reverenciar e proteger. O Ensino é um detalhe.
Algumas estimativas americanas dão conta que a terceira causa de morte em determinadas faixas etárias se relacionam com a reação ou má evolução após um procedimento médico. Alguns hospitais registram queda de índice de óbitos em semanas de congressos, quando uma parte do corpo clínico está ausente. Não considero que os médicos façam parte de algum grupo de extermínio ou esteja sob a orientação do Estado Islâmico, mas é uma ótima ocasião de parar e pensar sobre o que que é tudo isso, afinal? A prática médica se dá sobre a ideia da cura ou de guerras contra inimigos imaginários? Na minha área, por exemplo, uma senhorinha que perdeu o companheiro de décadas deve ser medicada porque está triste ou essa é uma reação perfeitamente normal e adequada? Se a medicação demorar a ser introduzida, a Depressão ficará mais grave e difícil de abordar?
Penso que muitos dos estragos perpetrados pela Medicina Moderna derivem muito mais da tentativa de antecipar problemas do que de corrigí-los. Nesse caso, os cacarecos da sala são os guidelines de tratamento e procedimentos, que devem ser seguidos mesmo que contra o interesse dos pacientes?
Esse post é sobre uma ideia portanto bastante fora de moda, que é a ideia do Significado. Significado com letra maiúscula para apontar justamente porque representa o que realmente importa. Como professores interessados em transmitir conhecimento, alunos interessados em conquistar esse conhecimento e médicos atentos à cura e melhora de qualidade de vida de seus pacientes. Veja o visitante desse blog que hoje está cada vez mais difícil de se limpar essas salas cheias de entulho, e cada vez mais difícil devolver às pessoas a sensação de Significado. Isso faz as pessoas adoecerem em nossos tempos difíceis.


domingo, 4 de setembro de 2016

Esculpir a Vida

Eu lia os livros de James Hillman no estacionamento do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, na época de minha Residência Médica. Para encontrar lugar eu chegava muito cedo e meu jeito de fazer hora era ler a prosa fluente desse escritor e psicoterapeuta junguiano, falecido há poucos anos. Hillman dizia que a nossa mitologia e os relacionamentos são notas de rodapé do livro do Genesis. Passei muito tempo para entender do que ele estava falando.
O homem toma consciência da existência do Bem e do Mal e é expulso do Paraíso por Elohim. Não há dúvidas a respeito desse trecho. Ele vai ganhar o pão com o suor de seu rosto e a mulher vai parir em dor. Os homens de Brasília demonstram todo dia que suar para ganhar o pão é coisa para nós outros, os otários. Bom mesmo é intermediar a compra de uma nova sonda para a Petrobrás. A moderna anestesia também diminuiu em muito as dores do parto. Num país recordista mundial, não de medalhas olímpicas, mas de Cesarianas, as dores do parto são desconhecidas de boa parte das parturientes. Teria o Brasil eliminado as pragas bíblicas? Seria esse mais um “jeitinho brasileiro”?
Ganhar o pão com o suor do rosto representa a instalação do Real, coisa que muita gente não consegue em toda a vida: achar um caminho, procurar achar os meios de alimentar a si e aos seus. É tarefa muito séria e para muita gente uma benção. Não é nada fácil viver sem o vetor do Real e da necessidade diária de se aperfeiçoar e não perder o bonde. A lassidão leva ao vazio e ao desespero. Perder a fome pela vida pode ser uma perda definitiva.
Parir em dor também é uma manifestação do Real. Estou há mais de duas horas estudando, vendo vídeos e procurando inspiração para escrever esse post. Isso dói, incomoda e também é uma benção. Criar ou parir alguma ideia, projeto ou tarefa dói, incomoda e tira o ser humano de sua inamovível zona de conforto. Parir em dor e ganhar o pão criam dificuldades para se vencer todos os dias. Já descrevi em outros posts o termo para esse bom estresse, Hormese. Hormese é o quantum de dificuldade que nos deixa ligados e prontos para o constante e doloroso processo de recriação e transformação de cada dia. Sem esse processo, nossa evolução pode estagnar. Como se pode notar, sair do Jardim do Eden não é tarefa para maricas. Nem para senadores da República.
Ser expulso do Paraíso é um passo no desenvolvimento. Ganhar consciência do Bem e do Mal, também. O próximo estágio, a Árvore da Vida, tem sido a nossa lição de casa desde então. Mas isso é assunto para outro post, com muitas dores de parto.
Vivemos dentro de um sistema invisível de controle que se utiliza muito mal dessa estrutura mitológica. A doutrina do Pecado Original já traz o freguês ao mundo com dois pesos eternos para carregar: a Culpa e o Desmerecimento. Para piorar, Jesus ainda morreu por você. É mais uma culpa para a coleção.
Vivemos perdidos do Paraíso nos eternos ciclos de autorecriminação. Deveríamos ter mais sucesso, perder peso, ter uma vida diferente. Muito já foi escrito nesse blog sobre esse chat interior infinito. Nada é como deveria ser, não é mesmo?
Desejamos e temos culpa por desejar. Foi o desejo de poder que nos tirou do Paraíso, então temos que acatar o que padres, pastores e gurus no dizem: o bom é se conformar com uma realidade insípida, pois assim é a vida.
Eu muito espeto a nossa Civilização Autoestima e a incrível necessidade de aprovação e likes em redes sociais. O desejo de existir se estiver sendo visto. Mas há outra forma de alienação perpétua, que é a ditadura da realidade. Ou do desmerecimento. Ou de esperar pouco de si.
Expulsos do Paraíso, dependemos de nosso suor e dor para encontrar o caminho. Amar e odiar a si mesmo não nos leva muito longe. Mas ver a vida como uma massa de escultura que é minha tarefa martelar é mais difícil do que esperar que alguém venha modelar para mim. O Ego inflado é tão burro quanto o Ego deprimido. o Ego é um meio, não um fim. Um dia, quem sabe, vamos abandoná-lo na estrada, com alguma gratidão por seus serviços prestados. Até lá, vamos tentar deixar na vida uma marca que dure. Mesmo que pouca gente veja essa marca.

sábado, 27 de agosto de 2016

Nise

Uma leitora desse blog, Luana, deu a dica que eu pedi no post de 24 de Julho. O episódio de House em que ele investiga uma professora de alunos especiais que é apaixonada pelo seu ofício e por seus alunos é “Big Baby”, o décimo terceiro episódio da quinta temporada. House imagina que o estado de imensa alegria da professora em contato com alunos tão irritantes pode ser um sintoma da doença que fez a moça tossir sangue dentro da sala, na frente de seus alunos queridos. O animado Kutner, um dos médicos da equipe, fica particularmente ofendido com a visão cínica e desapaixonada do Dr House, sempre pronto a desmascarar milagres ou atos de fé. A professora é torturada por toda sorte de procedimentos diagnósticos esdrúxulos e num deles fica numa banheira gelada para ver se vai ter uma parada cardíaca induzida pelo frio. Enquanto treme debaixo dos cubos de gelo, Kutner puxa assunto para distraí-la, ela começa a contar de um aluno que gostava de tocar em jornais. Não chegava a ler nenhum deles, mas tocava as folhas gostando da textura. Ela pensou que talvez pudesse criar o que se chama de Objeto Intermediário com Papel Maché, para criar um sistema de comunicação e ter acesso ao mundo interno do menino. Deu certo, e foi um longo encontro afetivo no meio do papel de jornal molhado. House fez cara de nojo, perguntando quanto tempo faltava para a Parada Cardíaca.
Eu não tinha conseguido ver o filme – “Nise: O Coração da Loucura” no cinema. Agora chegou em DVD e pude assistí-lo, finalmente. O filme fala sobre o trabalho pioneiro da psiquiatra Nise da Silveira no Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro, em meados do século passado. Quando Nise morreu, eu estava internado por uma Apendicite Supurada. Lembro de ter chorado muito, não pela sua morte em si, pois felizmente ela foi muito longeva e morreu pacificamente e cheia de aniversários para contar. O meu choro se deu pela nota curta do jornal que falava de seu trabalho pioneiro de recuperação dos pacientes através das artes como pintura e escultura, que deu origem ao Museu “Imagens do Inconsciente”, e da obra grandiosa dessa mulher, que em tudo estava à frente de seu tempo. Fiquei com pena de um país que dedicava tão pouca atenção à uma brasileira de tamanha envergadura e importância. Aquela psiquiatra e terapeuta espetacular mereceu apenas algumas poucas linhas de obituário. Agora, felizmente, está retratada em um filme.
Na época também tinha ocorrido um atentado em que um jovem estudante de Medicina disparou uma metralhadora num cinema. O rapaz era um paciente psiquiátrico e está preso até hoje. Foi uma triste sincronicidade a morte da mulher que ouviu a alma da doença mental armada de pinceis e tintas, com um rapaz vivendo em isolamento dentro de seus demônios, que ninguém conseguiu fazer pontes de papel maché para conseguir escutá-lo. Nise foi uma das introdutoras do pensamento de Carl Jung no Brasil, e levou ao mestre as pinturas de seus pacientes tidos como incuráveis. Jung ficou impressionado e grato com o trabalho da pequena grande psiquiatra brasileira, que coletou mais material que qualquer um de seus seguidores.
Nise, como a professorinha do episódio de House, encontrou um caminho para chegar na psique soterrada pela doença. Uma paciente querida me contou que, quando estava em estado catatônico, ouvia as vozes das pessoas longe, como se estivesse em outro planeta. Ela tentava responder ao que lhe falavam, mas sua voz não saía, como em nossos piores pesadelos. Ela lembrava de meus esforços para fazer contato e da tristeza de não conseguir responder. Mas acabamos achando o caminho. Ë disso que se trata todo gesto terapêutico, toda tentativa de tratamento: achar o caminho, restabelecer a comunicação, recuperar a capacidade do paciente de lidar com a sua doença e transformá-la em outra coisa. No caso dos loucos de Nise, transformaram a sua dor em arte. Jung chamaria isso de Função Transcendente.
Já escrevi em outro post que compaixão não é pena. Compaixão é se apaixonar junto. É conexão com o outro que sofre ou que ri. Nessa época em que as pessoas vivem com o nariz enterrado em seus celulares e que compaixão se mede pelo número de “Likes” nas redes sociais é um alento trazer as pessoas de volta para o bom e velho encontro presencial. Aquele que pavimentamos com camadas de lágrimas e de olhares atentos. E é um prazer lembrar de Nise da Silveira.

domingo, 21 de agosto de 2016

Solve e Coagula

Depois de uma Era de Ouro, com seus cavaleiros da Távola Redonda, o Rei Arthur caiu doente e a sua terra secou, pois ela dependia de seu Rei para frutificar e criar vida. O Reino empobreceu, os ideais se dispersaram e a tristeza tomou conta das conversas abafadas. Os cavaleiros que restaram saíram ao mundo à procura do Cálice Sagrado, pois só tomando a água mágica, sorvida de dentro do Santo Graal, a doença do Rei poderia ser curada enfim. Sir Percival vagou pelo mundo por muitos anos procurando pelo caminho do Graal. Fo preso em um bosque cheio de sortilégios, onde via as armaduras dos seus companheiros apodrecendo junto com seus cadáveres. Percival foi levado, a partir desse supremo desespero, à presença do Senhor do Graal e fracassou. Fugiu assustado da responsabilidade. Vagou pelo mundo carregado em sua vergonha. Foi atacado por um mendigo, que reconheceu ser o maior dos cavaleiros, Sir Lancelot. Caiu em um rio pútrido, onde foi despojado de sua armadura e sua força. Foi levado novamente ao Castelo Invisível, e, diante do Senhor do Graal, respondeu que o Cálice servia a Ele, a quem chamou de Senhor e de Mestre. Percival obteve assim o Santo Graal e salvou o seu Rei.
Essa história belíssima para mim representa a importância do erro e da derrota. Sobretudo do que acontece depois. Diego Hypólito fracassou bisonhamente em duas Olimpíadas, caindo de bunda e de cabeça na prova que levou quatro anos treinando. A seleção de vôlei masculino de Bernardinho ganhava a final da Olimpíada de Londres com uma certa facilidade, de dois sets a zero, quando a Rússia, comandada por um gigante fora de sua posição, pulverizou os brasileiros virando o jogo para três a dois. Nunca uma medalha de prata foi tão sofrida. Hoje no primeiro lugar do pódio, Bruno e Serginho estavam aos prantos, provavelmente lembrando de uma sequência inédita de vice campeonatos nesses anos, como uma maldição. Com certeza, a lembrança mais intensa deve ter sido da medalha e do pódio amargos de quatro anos antes. Dessa vez, a cor da medalha era diferente.
A Alquimia dos antigos repetia em seus textos: “Solve e Coagula”. Talvez eles não soubessem, mas estavam resumindo os movimentos intrínsecos da vida e da Psique. Passamos por ciclos de início, crescimento, apogeu, decadência e morte. Todos nós e todos os processos. É por isso que os budistas insistem que a Impermanência é uma lei inexorável da vida. O Rei Arthur viveu isso na própria carne, como um jovem armeiro que virou o mais glorioso dos reis, para ver os seus cavaleiros e seu reino padecer de seus próprios erros. O “Solve e Coagula” dos alquimistas representa as coisas que se dissolvem na água e são lentamente aquecidas e trabalhadas para virar a Matéria Prima da Pedra Filosofal. Representa as fases da vida que se expandem e retraem, como as próprias estações do ano. Saímos do estado de solução para o estado de firmeza onde não vamos mais tremer diante da responsabilidade ou do perigo.
Diego Hypolito mergulhou numa profunda depressão depois de suas derrotas, duvidando de si e de suas opções. Pensou em desistir de tudo e levar uma vida tranquila, longe dos holofotes. Ouvi ou li mais de um jornalista dizendo que Bernardinho estava superado no início titubeante da seleção de vôlei na RIO 2016. Serginho estava cansado e aposentado da seleção, imaginando que nessa Olimpíada seria apenas um torcedor. Todos eles voltaram inteiros, para não titubear dessa vez.
Depois do período de dissolução, que para muita gente pode ser uma noite escura de alma, o Coagula representa a retomada do treino, da luta, da busca, até criar em nossa Psique um núcleo muito firme, um diamante interno que aguenta qualquer temperatura. Ou qualquer adversidade. Muita gente se desmancha, ou se perde, na dureza dessa forja.
Sir Percival perdeu tudo o que tinha e o que era, para, do meio do rio de lama, ser testado uma segunda vez e, dessa vez, sentir-se digno diante de seu Senhor. Somos todos Percival. Ou tentamos ser.

domingo, 14 de agosto de 2016

Tente Outra Vez

Estava revendo um texto de Agosto de 2012, desse blog, sobre a derrota da judoca Rafaela Silva na Olimpíada de Londres. Estava bem treinada e era superior à adversária, quando pegou a perna da mesma no chão. O golpe era irregular e isso determinou a eliminação de Rafaela, que ficou pregada no tatame, em prantos, sem acreditar que tudo se perdeu de maneira tão definitiva numa fração de segundo. Depois da derrota, ainda chorando muito, lembrou de uma passagem da sua infância que acabou inspirando o meu post: Rafaela viveu uma infância muito pobre na favela da Rocinha. Ganhou de seu pai um par de sandálias e foi brincar. Com medo de gastá-los, deixou-os de lado. Quando voltou, eles não estavam mais lá. O pai falou que nunca mais ela iria ganhar outras. Certamente imaginou que a menina não dera valor ao presente, comprado com seu dinheiro suado. Rafaela Silva, em Agosto de 2012, sentiu que tinha perdido de novo as suas havaianas. Eu acabei o post, em tom profético, dizendo que no Rio em 2016 o povo brasileiro daria para ela um par de havaianas de ouro. Quatro anos depois, Agosto de 2016, e Rafaela foi buscar a única medalha de ouro do Brasil até agora nessa Olimpíada que é mais uma cagada do Lula que temos que limpar.
Na Copa do Mundo, em 2014, a seleção brasileira dava sinais muito cedo de seu estado de nervos. Chorava no hino, chorava nos (poucos) gols, chorava no túnel, no aquecimento. O capitão Tiago Silva caiu em desgraça quando ficou à beira do campo, aos prantos, enquanto o Brasil decidia nos pênaltis a sua sorte contra o Chile. Lugar de Capitão do time era com os colegas, acalmando, incentivando, passando confiança. Para ficar chorando na beira do campo sentado na bola eu poderia fazer por muito menos dinheiro. Nessa Olimpíada vejo atletas brasileiros saindo das derrotas se descabelando de chorar, ou comemorando de maneira enlouquecida vitórias em fases classificatórias que, diga-se, servem para classificação. Vivemos há muitas décadas numa sociedade de espetáculos e todo mundo quer virar um trend topic por algumas horas. Fico imaginando se essa choradeira é para sair nas fotos das agências ou faz parte da nossa querida companheira de jornada histórica, a autoindulgência. Fico com muita inveja de ver esses monstros, como Michael Phelps ou Simone Biles, olhando a subida já algo rotineira da bandeira e do hino sem choradeira nem descabelamento. O olhar é de absoluta serenidade. Uma alegre e contida serenidade de quem sabe que fez o que se preparou longamente para fazer. Nada mais do que isso. Simone Biles, a pituca de 1,45m que está ganhando tudo e pulverizando recordes na Ginástica Olímpica, chegou a afirmar que sente que está mostrando com alegria para as pessoas aquilo que ensaiou. Como se fosse uma competição estudantil, não o maior evento esportivo do planeta.
Escrevi um post recente sobre a função estruturante da tristeza e agora estou implicando com a choradeira de nossos atletas olímpicos? Quem escreve esse blog? Numa semana é o Médico, na outra é o Monstro?
Vou responder com Rafaela Silva. A sua dor em 2012 foi legítima e intensa. E serviu para ela concentrar toda a dor e, sobretudo, toda a sua raiva em quatro anos de treinos e dedicação, com a medalha de ouro na cabeça. Antes da luta ela entrava no tatame gritando e esmurrando o peito, como se dissesse: agora é minha vez, não tem para ninguém. E saiu com a medalha de ouro, falando impropérios para quem a linchou nas redes sociais 4 anos atrás.
Fico feliz de estar escrevendo esse post agora à noite, porque se fosse cedo também iria desancar o Diego Hypólito, que também teve um ataque quando conseguiu completar a sua série há dois dias sem cair de cabeça ou de bunda, como nas Olimpíadas anteriores. Iria incluí-lo na lista da choradeira irritante da derrota. Hoje ele ganhou uma bela e inesperada medalha de prata, e citou, em sua entrevista, que já caiu de bunda, já capotou de cabeça e agora caiu em pé com uma medalha no peito. Nessa sarabanda de derrotas e decepções chorosas que tem sido várias modalidades da Rio 2016, Diego venceu quando já é um atleta bem pior do que nas outras edições, mas dessa vez estava inteiro em cada movimento.
Rafaela e Diego canalizaram toda a frustração e derrota na vontade de escrever outra história para eles. Nisso, podem ser um alento para esse país que anda tão derrotado.
Como na música de Raul Seixas: “Basta ser sincero e desejar profundo\ Você será capaz de sacudir o mundo\ Tente outra vez.”

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Sintonia Fina Emocional

Uma palavra mágica hoje nas terapias comportamentais é Regulação Emocional, e isso tem bons motivos. A primeira vantagem do termo é substituir a fantasia de Controle. Muita gente chega em terapia com a queixa: “Eu não consigo me controlar”. Isso deriva de décadas de observações do tipo: “Controle-se; Calma!; Engole o choro”. Os Afetos e as Emoções são animais ariscos, e quando alguém tenta controlá-los ou engoli-los, os resultados não costumam ser bons. E olha que tem uma grande parcela da humanidade tentando. Tem um ditado oriental que diz: “Você quer controlar o seu rebanho? Dê um pasto grande para ele”. Esse é um ótimo ditado para nossas Emoções e Sentimentos: eles dão menos coices se encontram um espaço interno de desenvolvimento. Um espaço para serem observados, cuidados, de preferência alimentados, para que não sejam animais no cativeiro. Nossa cultura darwiniana pode muitas vezes entender sentimentos como fraquezas; a funcionária “espanou”, o gerente “surtou”, fulano “não dá conta”. Sentimentos são pontos fracos a serem controlados, e tome ansiolíticos e indutores de sono para aguentar o tranco.
Outro aspecto do lidar com os afetos é a cegueira emocional. Muitos chefes focados apenas em resultados estão perdendo seus empregos, não porque as empresas se incomodem tanto assim com os maus tratos, mas antes pelo aumento de custos de processos de assédio moral que estão começando a receber. E os caras tem razão de reclamar quando demitidos: na hora da cobrança e da pressão, o que vale são os números, na hora da demissão, você deveria ter sido mais humano com as pessoas? Não é incomum que chefes não se lembrem ou não consigam notar a sua própria rispidez, ou ter gritado durante uma reunião. A cegueira emocional não permite perceber as alterações no seu próprio estado de humor ou o impacto das palavras nos olhos das pessoas. A cultura do “Apenas faça!”gera prejuízos humanos, recalls e contabilidade criativa, o que já levou empresas grandes à quebradeira. Investir em Atenção e Regulação Emocional gera lucro pessoal e coletivo. Mas como regular afetos?
O primeiro passo já foi mencionado: um bom jeito de regular afetos é percebendo-os em mim e no outro. Dar espaço não significa fazer reuniões em que todo mundo dê gritos primais ou esmurre travesseiros, nem chore gritando pela mamãe. Dar espaço é dar validação aos sentimentos. Tem uma cena no filme da Pixar já tão mencionado nesse blog, Divertida Mente, em que a Tristeza se aproxima de Bing Bong, o amigo imaginário da menina Riley. Ele começa a lembrar de como era divertido ser o amiguinho daquela menina alegre e amada. A Tristeza, para desespero da chatinha Alegria, vai dando validação para os sentimentos de luto e saudade da época em que Bing Bong era uma figura central na Psique de Riley. Bing Bong chora lágrimas de balas e caramelos. Após manifestar e ter seu choro validado, ele “enxuga” as lágrimas e volta para a jornada. A Alegria pergunta para a Tristeza: “Como você fez isso?”. A dona Tristeza responde: “Eu só deixei ele falar”.
Vivemos numa ditadura da Alegria que torna a modulação de afetos uma tarefa e tanto: as mães querem que a infância seja um paraíso de brincadeiras e boas lembranças, evitando o grande vilão que espreita todas as cabeças maternas, e que não está no Divertida Mente: o espectro do Trauma. Nenhuma criança pode sofrer traumas, a infância tem que ser um oásis de alegrias e divertimento. Isso gera outra consequência futura, que é muita gente não querer virar gente grande por medo da terrível responsabilidade. Ou dos trancos que a vida dá em todo mundo. Se eu não crescer, não sofrerei traumas. Esse é o trauma por medo do trauma.
Na vida corporativa, temos outro fantasma, a Motivação: funcionários tristes ou insatisfeitos ganham a pecha de desmotivados, ou, pior, criadores de problemas. Não dão conta. Em tempos de degola de empregos, como os atuais, isso pode fazer muita diferença. Nos feedbacks, a palavra de ordem: “Você precisa se controlar”.
Regular emoções é antes de tudo, lidar com elas.Envolve identificá-las, manifestá-las, elaborá-las. Vamos precisar disso em família, no trabalho, nas relações. Como tudo o que propomos, é mais fácil falar do que fazer. Mas para fazer é preciso praticar. A partir de aqui e agora.

domingo, 24 de julho de 2016

Orquestra de Instrumentos Desafinados

Há um episódio antigo de House que eu vivo procurando e não acho. Sou capaz de assistir toda a série até encontrá-lo. Se algum dos visitantes desse blog souber onde está, agradeço. Neste episódio, a equipe de House trata uma professora de alunos especiais que é absolutamente apaixonada por seus alunos, a maior parte deles autistas. Ela vibra e envolve seus alunos com Atenção plena e uma mente desperta, já que aproveita cada pequeno momento com eles. Como qualquer paciente do Dr House, ela vai ficando cada vez mais doente nas várias tentativas de tratamento. Lá pelas tantas, House, com a sua habitual crença na humanidade, levanta a hipótese que a própria bondade da moça deve ser um sintoma de doença. Não é possível tanta dedicação desinteressada. A menina deve ter um tumor Cerebral ou coisa que o valha. É lógico que as médicas da equipe ficam completamente injuriadas e afrontadas pela hipótese. Acho que no final do episódio, quando a moça é finalmente curada, continua amando trabalhar com seus alunos. House perdeu essa.
Será que somos evolutivamente comandados por genes egoístas que nos usam como vetores de sua transmissão? House conta sempre com o pior da natureza humana em seus pacientes e equipe, sempre dizendo que todo mundo mente, as pessoas não mudam e todo mundo morre mesmo. Acaba desdenhando de qualquer capacidade de nobreza ou de intenção altruísta de todos, e costuma quase sempre estar certo. A jovem professora é apaixonada por seus alunos especiais e vive por eles, mesmo sendo mal paga e tendo resultados terapêuticos limitados. Tem que ter alguma coisa errada.
Alguns estudos descrevem uma síndrome de Burnout específica de profissionais de ajuda. O Burnout são na verdade quadros depressivos desencadeados pelo mais puro esgotamento energético. Os neurotransmissores são queimados e desperdiçados, daí o nome Burn/Out. Trabalhar exposto a algumas das situações de maior sofrimento humano e piores resultados terapêuticos geram maior risco de esgotamento. É muito difícil encontrar alguém que se apaixona pelo som que sai das orquestras de instrumentos quebrados das instituições. Mesmo na prática clínica lida-se no dia a dia com as tentativas infinitas de se transformar naquilo que não se é, tentar ter aquilo que não tem e com a luta contra os pensamentos recorrentes de querer mais, mais, mais.
As chamadas Psicoterapias Profundas estão meio fora de moda, assim como a Introspecção. Procura-se técnicas e mais técnicas para domar ou reprocessar os próprios sentimentos, o que acaba criando uma inversão e uma tentativa de novo recalque. Eu não quero lidar com os sentimentos, então vou vomitá-los no colo dos terapeutas e impedir qualquer forma de cura ou tratamento. Ou vou me engajar na nova técnica de reprocessamento cognitivo que vai finalmente domar o Cérebro Emocional. Os terapeutas querem curar os pacientes e ficam muito frustrados pelas recaídas e fracassos. Ninguém quer ser sócio do fracasso. Todos tentam, freneticamente, comandar as emoções sem precisar ir muito fundo.
Quando assisti ao episódio que agora não sei em qual temporada está enfiado, fiquei com muita inveja da professora apaixonada por seus alunos, mesmo e sobretudo os que não melhoram. Sou obstinado com as melhoras e os alívios das dores e do sofrimento, mesmo sabendo que por melhor afinados que sejamos, continuamos sendo uma orquestra de instrumentos desafinados que vez ou outra contempla grandes harmonias. As terapias que funcionam são aquelas que lançam as pessoas para dentro de seus medos e fantasias, para perder o medo do espelho que está nos olhos do Outro. Para isso, vamos teimosamente puxar os pacientes para onde eles não querem ir, que é seu Mundo Interno. O desafio é aprender, como a personagem, a se apaixonar pelos casos que não tem jeito, ou tem pouco jeito para se dar.

domingo, 17 de julho de 2016

As Atenções

Uma amiga descreveu a demissão de sua chefe, que cometeu o erro de tirar as suas férias em um momento vital de publicação de relatórios de sua área, o que deixou seu chefe, e o chefe do chefe, expostos na apresentação dos resultados. A sua viagem, programada há mais de seis meses e autorizada por ambos os chefes abandonados por escrito, deu-se nesse momento vital e os maus resultados foram jogados em suas costas, que não estava lá para se defender. Eu falei para a minha amiga atônita que a demissão foi bem justificada. Como assim? Ela faltou com uma das três atenções. Posso explicar.
Daniel Goleman, no livro “Foco”, descreve três tipos de Atenção fundamentais para a nossa sobrevivência e, eu ousaria acrescentar, para a sobrevivência de nosso planeta. Atenção em Mim, Atenção ao Outro e Atenção ao Momento e ao Devir. Ele não usou esses termos, portanto é esse que vos tecla que está lá tomando as suas liberdades de tradução. A gerente em questão, portanto, não falhou em apenas uma, mas em duas atenções. Saiu-se bem apenas em uma: Atenção para si. Programou as férias com antecedência, em época e lugar bacanas para ela e sua família e voltou descansada e refeita para seu trabalho, que logo descobriu, não estava mais lá. Falhou nas outras duas Atenções: a Atenção ao Outro e a Atenção ao Momento. Se olhasse melhor para os chefes, notaria algumas características importantes: pouco domínio dos dados que ela obtinha e muito pouca vontade de ficarem expostos diante do Board da Empresa. Sujeitos mimados e covardes, como muito gestores, precisavam de sua presença para evitar lambanças. Ela estava imersa entre a água de coco e o picolé, entre uma e outra passada de filtro solar, enquanto os chefes se lambuzavam com planilhas incompreensíveis. Outra falta grave de Atenção foi a falta de percepção na publicação dos dados. Com o intuito de viajar tranquila, ela publicou o relatório no site da empresa e foi fazer as malas. O timing da publicação foi desastroso, permitiu aos adversários dos gestores meterem o pau nos números antes da reunião da diretoria. Você quer dizer que concorda com a demissão? Perguntou a minha amiga mordendo os lábios, o que não costuma ser bom sinal. Como estou ligado ao Outro, percebi que a resposta poderia causar decepção à pessoa querida. Mas é claro que eu concordo, respondi, atento às minhas convicções. Estamos na maior crise econômica desde o Plano Collor, milhões de pais de família em casa engrossando as estatísticas de desemprego, é uma boa ocasião para prestar muita Atenção à todas as prováveis e improváveis cascas de banana do caminho.
O Capitalismo está fundado na ideia da Livre Iniciativa como mola propulsora da Economia. Teoricamente todos podem prosperar e criar o seu próprio destino. Temos livre arbítrio e Democracia, dizem. Na verdade, o tal do hiper capitalismo cria uma sociedade de castas, onde uma minoria cada vez menor toma conta de uma fatia cada vez maior dos recursos financeiros e naturais do planeta. Uma arma poderosa para o domínio das massas excluídas sempre foi a alienação e a inconsciência. Quando os excluídos se manifestam, são logo taxados de bárbaros e xiitas. A sociedade paga um preço cada vez mais alto pela sua falta de Atenção. Estamos, como a pobre gerente, faltando com a Atenção ao Outro e com a Atenção ao Momento. Não está numa boa hora para queimar exemplares do Alcorão em praça pública nem fazer charges de Maomé sentado na privada. Uma arma potente de alienação é semear o Individualismo. Sob esse aspecto, estamos numa época pré Apocalipse. Enquanto as pessoas estão dando trombadas nas ruas olhando seus celulares, existe uma multidão de pessoas que já perceberam que não vão ter acesso aos Paraísos de consumo nem às castas de bem nascidos que ainda vão fazer as festas pagas com dinheiro público. Se prestarmos Atenção ao Outro e ao momento, poderemos começar a ouvir e tentar incluir os futuros homens bomba e os motoristas de caminhões desgovernados, atirados contra a multidão de inocentes.
Não dá mais tempo para olhar só para o próprio umbigo. Temos que prestar Atenção ao Outro e ao Momento de extrema tensão e perigo que atravessamos todo dia. Não adianta colocar flores nos asfaltos banhados de sangue, no dia seguinte. Temos que tirar os olhos das telas infinitas que nos protegem do Real.

domingo, 10 de julho de 2016

Bom Dia, Tristeza

Meus filhos cresceram com os filmes da Pixar, e eu, claro, virei um fã. Os filmes invariavelmente tem um tema junguiano da Jornada Arquetípica, do herói de origem humilde que, por acaso ou por cometer um pequeno erro, é lançado numa jornada heróica onde vai enfrentar monstros e perigos nunca imaginados. Não assisti o “Procurando Dory”, devo reparar essa falha na minha filmografia até a próxima semana, mas posso usar o primeiro filme da série, o Nemo, como um bom exemplo de Jornada Arquetípica. Nemo desenvolve um Estresse Pós Traumático quando perde a sua companheira e filhotes num ataque de barracuda. Ele vira um pai superprotetor e neurótico de seu único filho, Nemo. O Erro Fundamental ocorre durante uma brincadeira de Nemo com seus amigos, que o faz sair dos limites protegidos pelos corais. Ele é capturado por um mergulhador e seu pai vai ter que superar seus medos e traumas para atravessar o mar infinito atrás de seu filho perdido. Ele vai ser ajudado por muitos amigos e situações onde pequenas coincidência e acasos vão indicando o caminho até Nemo. Essa é a Jornada Arquetípica, uma metáfora da nossa vida e desenvolvimento.
A última obra prima da Pixar foi o Divertida Mente. O filme contou com a assessoria de um time de Neurocientistas para criar o mundo interno de uma menina de 11 anos, Riley, que passa por uma difícil transição em sua vida. As Emoções Básicas comandam sua Cognição na Sala de Controle. Como nos outros filmes, ocorre um Erro, e a Alegria e Tristeza se perdem dentro do Cérebro da menina. As suas reações passam a ser comandadas pela Raiva, o Medo e o Tédio. Ela se torna claramente uma pré adolescente, portanto. Alegria comete o erro fundamental, quando tenta a todo custo controlar a Tristeza que está contaminando a Psique de Riley. No meio da briga, elas são sugadas para as zonas de Memória e vão precisar atravessar um longo caminho para voltar à Sala de Controle. O problema é que as pontes que poderiam levá-las de volta também estão desmoronando: as relações com a Família, a Amizade, a Brincadeira e o Hóquei sobre o gelo, que fundamentavam a identidade de Riley, começam a desmoronar no meio da desadaptação à nova vida em San Francisco.
O filme fala sobre muita coisa interessante e poderia gerar uma dezena de posts, mas hoje vou falar sobre a função estruturante da Tristeza. Como o pai de Nemo tem a ajuda da desmiolada Dory e através de suas trapalhadas vai achando o caminho até seu filho, a decidida e algo obsessiva Alegria vai precisar rebocar a Tristeza no começo, mas no decorrer da jornada vai ser aconselhada e algumas vezes salva pela Tristeza. Uma cena particularmente bonita é quando a Alegria revê uma cena muito alegre de Riley sendo jogada para cima por sua equipe de Hóquei, em triunfo. Com a ajuda da Tristeza, ela recupera a cena inteira. Riley tinha errado a última jogada e seu time perdeu o jogo. Ela estava sobre o galho de uma árvore chorando e seus pais se aproximaram, acolhendo a Tristeza. Foi aí que seu time chegou e a jogou para cima, reconhecendo a sua importância. Dona Alegria percebe que só entrou em cena pela função estruturante da Tristeza e a interiorização da perda e do luto. Ninguém começou a cena comemorando uma derrota ou uma frustração.
Acho que as crianças são muito pressionadas em nossos dias pela tirania da Alegria. As mães ficam como cães de caça vigiando o tempo todo se as crianças são suficientemente felizes e surtam completamente quando as outras emoções tomam conta da Sala de Controle de seus filhos. Um de meus consultórios tem uma criança na vizinha que chora desconsolado por horas. A sua mãe varia o lidar com a situação com gritos que aumentam a choradeira até a perfeita apatia de simplesmente não fazer nada para acolher a Tristeza. Ele chora, chora, e ninguém faz nada. Do lado de um consultório de Psiquiatria e Psicoterapia. Quando a cena é dominada pela Alegria, aí tudo dá certo, todos brincam e se divertem no quintal. Mas a Tristeza, o Cansaço e a Raiva desencadeiam uma profunda intolerância e Raiva silenciosa em sua mãe. A criança fica abandonada no meio desses sentimentos. Parece que ela só será amada se estiver alegre. Essa é a tirania da Alegria, que aparece nas famílias esfuziantes dos comerciais de Margarina (esse deve ser outro efeito colateral da margarina, além da gordura Trans).
Jung pensou a nossa Psique como um sistema continuamente em Equilíbrio/Desequilíbrio, onde o Caos demanda muita energia para sua Organização. Não existe nesse sistema uma emoção boa ou ruim em si. Há lugar para a Alegria, a Tristeza, o Medo, a Raiva, a Repulsa e a Atração: todas tem a sua função Estruturante/Desestruturante dependendo da ocasião. Acho que ele estaria muito incomodado com a ditadura da Puerilidade que determina o nosso tempo.