domingo, 29 de maio de 2016

O Tal do Ego

Um leitor assíduo desse blog, Caio, levantou mais uma vez uma questão nos comentários que eu vou me encher de coragem e entrar nela. Quais seriam as características de um Ego saudável e por que os místicos falam tão mal do Ego? Eu mesmo já escrevi nessas mal tecladas linhas que levamos metade da vida para ter um Ego e a outra metade tentando nos livrar dele. Os místicos e iluminados diriam que essa é uma das tantas bobagens escritas nessas páginas: o Ego nem sequer existe, para que tentar se livrar de uma coisa inexistente? Me desculpe, rapazes, mas a vossa percepção não nos serve de nada. Nós mortais temos um centro ou uma ilha de comando que organiza as informações e os afetos on line em nosso Cérebro, percebe, processa as informações, estabelece objetivos e consegue atingí-los vez ou outra. Essa central é o tal do Ego.
Meu Ego sabe mais ou menos qual o tema desse post e quais as estratégias para desenvolver os parágrafos. Não sabe como vai ser a conclusão, nem o título que vai ser dado ao final da sua revisão. Como o texto e as ideias vão se encaixar e encadear, não temos, meu Ego e eu, muita certeza do que vai ser. Algumas ideias vão surgir, outras serão deletadas, outras são becos sem saída que não vão levar o texto muito longe. Se o Ego tentar controlar e escrever cada palavra, o texto perde a sua fluidez e fica um porre. É importante que as frases comecem a se construir e esse gestor que vai escolher o tom, o ritmo e as tiradas vai ser, se tudo der certo, o diretor da peça, não seu ator.
A Neurociência concorda com os místicos: o Ego não existe, é um constructo obsoleto da Psicanálise. Freud dividiu a Psique em Ego, Superego e Id. O Superego é o que permite a nossa existência social. Ele controla, avalia e reprime nossos instintos de paleo primatas, e permite a vida civilizada. Os deputados de Brasília, em sua maioria, podem ser classificados como donos de um Superego disfuncional, pouco dado a reprimir impulsos ou coibir algumas taras e comportamentos impróprios. Do Id viriam as pulsões primitivas que governam a nossa vida: a voracidade das pulsões orais, das necessidades de controle ou de possuir o outro, de tomar conta e ter o mundo a seus pés. E as pulsões sexuais, claro. Comer tudo, engolir tudo e gozar sem limites é o que vem do tal Id. Toda publicidade consiste em seduzir, afagar, cutucar o Id. Os vilões do cinema e da Disney são engraçados e interessantes porque vivem governados por suas pulsões primitivas e não medem esforços nem maldades para satisfazê-las. O Ego deveria estar entre essas forças antagônicas, tentando um impossível equilíbrio. Se vencer o Superego, a vida fica metódica e chata. Se o Id ficar solto, temos os comportamentos bestiais e incontroláveis, como esses primatas que participaram do estupro coletivo de uma adolescente na comunidade carioca.
Um Ego forte significa qualidades fundamentais para a vida, como Resiliência e Estofo. Um Ego fraco se desmancha diante de qualquer dificuldade. O Ego parece muito com o nosso Hemisfério Esquerdo: é ele que percebe o mundo e sente, dentro do nosso corpo que “Eu sou”. Esse “Eu sou” cria toda a divisão do mundo. Se eu sou, estou separado de ti, estou separado do mundo e, sobretudo, estou só. O Ego nos dá uma experiência primária de separação. Não podemos viver sem ela, mas não podemos mergulhar na separação, pois isso pode nos custar a vida. Suicídio tem a ver com a sensação infinita de separação e de falta de futuro ou saída. O Hemisfério Direito pensa por imagens, sente o mundo mais amplo e pensa em “Nós” antes de se afundar no “Eu”. Sem a ilusão da Separatividade, somos todos irmãos e gentis. A sensação se isolamento que cria seus fantasmas e demônios, alguns deles fatais.
Eu diria, Caio, que a única coisa pior do que ter um Ego é não ter Ego nenhum. Ou ter um Ego que não se sustenta nas tarefas da vida.
O tal do Ego vai se tornar sábio quando souber que é limitado, que não consegue controlar quase nada e que seu objetivo é colocar um calção confortável para mergulhar no rio da vida. E se deixar levar. Mas vou falar mais sobre isso no próximo post.

domingo, 22 de maio de 2016

O Pai, o Filho e o Invisível

Uma vez eu fiz uma entrevista que, acho eu, nunca foi publicada. Falava sobre Trindades, sua função mitológica e psíquica. Acho que ficou densa demais, e esse é um defeito de minhas locuções: muitas ideias condensadas, o que acaba empanturrando o ouvinte ou o leitor. Paciência. Estou relendo um livro que o autor divide a nossa relação com a Trindade Cristã em 3 grandes períodos: a Era do Pai, e, naturalmente, do Filho e do Espírito Santo. Uma trindade bastante familiar.
A Era do Pai é a do Deus do Velho Testamento, que escolhe seu povo e se encoleriza sempre que tem que admitir alguns escorregões no Paganismo. Elohim, ou Jeová, tem algumas alterações de Humor e manda Dilúvios ou destrói Sodoma e Gomorra com uma tempestade nuclear (o que Ele faria hoje em dia com Brasília, heim?). O Pai protegia e ungia seu povo escolhido para vencer inimigos e pestes, atravessar desertos ou engolir os perseguidores com as águas do Mar Vermelho.
Um rabino com profundo conhecimento da Torá veio trazer o Segundo Período, o do Filho. Deus não estava mais interessado em sacrifícios de filhos ou animais para ser aplacado. Seu nome era Jesus, e causava escândalo ao chamar Deus de Pai, e, mais escandalosamente, afirmar que ele próprio era o Caminho, a Verdade e a Vida. A relação do Filho com o Pai era de união, não de distância suplicante. Esse Deus é mais próximo e sabe de cada fio do cabelo de seu filho. Não é preciso temer um Pai que se derrama de amor por Seu Filho.
Se não me engano no Ato dos Apóstolos, Jesus afirma que é preciso que ele desapareça para que venha o Paráclito. O Paráclito é o Espírito Santo, que aparece como uma Pomba branca ou como o Fogo de Pentecostes. Confesso que fico pensando nessa imagem muitas vezes. Pego estrada para ir e voltar do trabalho e tenho bastante tempo para este tipo de pensamento. Fico pensando na retirada do Ego para que o Espírito se manifeste. Quando o Ego esgota os seus recursos, algo misterioso se manifesta. Um poeta escreveu: “É quando há o maior perigo que vem a salvação”. Ela se manifesta como inspiração, coincidência ou uma intervenção salvadora quando tudo parecia perdido. É a manifestação da maior das divindades, que é o Invisível.
Podemos dividir a nossa vida psíquica nessas três fases. A fase do Pai/Mãe, em que recebemos do mundo abrigo, alimento e cuidado para terminar o desenvolvimento que começou na fecundação. Vivemos em estado de encantamento e aceitação de tudo o que as figuras parentais nos dizem. Vivemos em estado de infância permanente, repetindo, imitando o que é imposto pela autoridade do Pai/Mãe. Uma imensa parte da humanidade e do nosso país vive psiquicamente nessa eterna infância, aceitando incondicionalmente o que a autoridade proclama, geralmente na TV.
Na fase do Filho, ocorre a diferenciação da Lei parental. O filho se descola procurando as próprias verdades e o próprio caminho. Psiquicamente o Ego ainda depende do Consciência Coletiva, mas começa a se preparar para adquirir a própria visão e assumir as escolhas. Eu pego muito no pé desses movimentos sociais que fazem manifestações contra o Papai/Mamãe Estado e querem que esse ser infinito pague sempre a conta. O Filho tem que se diferenciar do Pai e aprender a pagar as suas contas, senão fica preso numa eterna adolescência. Estamos num mundo em que muita gente fica presa nessa Adolescência, esperando tudo do Papai e oferecendo pouco em troca. Tem gente que até chega à Presidência da República pensando assim.
A Fase do Espírito Santo inclui um Ego desenvolvido, que lida com as dificuldades da vida com autonomia e trabalha internamente as próprias dificuldades, em vez de responsabilizar infinitamente o Outro por seus erros. Uma das contribuições de Jung para a Psique Moderna foi de colocar que a tarefa da Encarnação passa a ser uma tarefa pessoal de cada um. É dentro de nossa Psique que brigam o Bem e o Mal, a santidade e o pecado. Somos o receptáculo da Vida e dos dilemas do mundo. Não adianta seguir bovinamente um líder ou esperar as respostas em passeatas, mas na busca pessoal de um caminho que tenha Significado. Muito eu falo nesse blog sobre a época de profundo vazio de significado que vivemos, nessa época em que tudo é Coisificado, até o Amor. É tarefa de cada um procurar e cultivar em si a busca de significado. No encontro com o Outro, essas faíscas de Significado podem aparecer.
Nossa tarefa é equilibrar as três instâncias em nosso mundo interno: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Esse é o significado psíquico da Trindade. Moleza, não?

domingo, 15 de maio de 2016

Compaixão ou Complacência

Estava vendo no Youtube um vídeo do (infelizmente) falecido escritor e dramaturgo Ariano Suassuna, autor do “Auto da Compadecida”. O homem era demais. Sobretudo como contador de “causos”. Tinha um amigo que não era ateu. Acreditava em Deus, mas não simpatizava com Ele. A mulher, pelo contrário, vivia com o terço na mão e era daquelas carolas de ir em duas três missas ao dia. Uma seca terrível atacava a região, a vaca seca de leite e de água. A senhora com o terço na mão pedido misericórdia, ele blasfemando que diacho de Deus era Aquele para deixar tanta desgraceira. A velha avisa para o marido que agora daria certo, fizera uma promessa para o menino Jesus de Praga. O velho deu de ombros. Durante a mesma noite caiu uma tempestade que quase trouxe abaixo a sua casa. A senhora exultava em sinais da cruz. O velho não se fazia de rogado. Ao amanhecer a enxurrada tinha levado seu estábulo e matado seus bichos. Olha a praga que seu santo fez!, gritou o velho, mais ainda antipatizado com o Criador.
A pequena historieta pode ou não ter alguma origem na realidade, provavelmente pouca. Mas representa duas atitudes opostas e estranhamente semelhantes com a vida e o destino. A atitude passiva da senhora, que empunha o terço e pede ajuda a todos os santos, e o ceticismo estéril do velho, que não acredita em nada e blasfema contra a vida. A seca está ruim, a chuva está pior. Nada nunca está bom.
Acredito que o Bolsa Família tenha mérito como programa de renda mínima e erradicação da fome. Já dizem nas redes sociais que, com a aparência do novo presidente, vai se chamar Bolsa Família Addams. Ele daria um bom marido da Mortícia, sem dúvida. O que o programa tem de muito perigoso é criar duas ou três gerações de brasileiros inaptos à sobrevivência. Como os dois velhos, que em vez de cavar uma cisterna ou tentar irrigar sua terra passavam o tempo implorando ou blasfemando contra Deus, criam-se famílias que acreditam num Estado Mãe que sempre terá leite e dinheiro público esguichando de suas tetas. Essa fantasia levou ao colapso do ciclo petista. Não o Bolsa Família, mas a ideia mágica de um Estado Deus que conhece o milagre da multiplicação das verbas, jogadas no ralo da incompetência e da cleptocracia. O dinheiro acaba, a paciência de quem paga a conta, também.
Já falei em outros posts que alguns dos casos mais difíceis de se tratar é de pessoas presas em um comportamento dependente. Alguém vai precisar resolver o problema que não seja o sujeito. Uma variante é o paciente que espera que algum remédio vai despertar magicamente o interesse pela vida, ou, mais do que isso, pela Busca. Uma das tragédias do Espectro do Autismo é que as crianças portadoras não tem comportamento exploratório e não brincam. A exploração do ambiente e as brincadeiras que produzem o aprendizado e as capacidades operativas vão possibilitar a sobrevivência. Quem se cristaliza na Dependência não consegue explorar, nem buscar, nem aprender.
Das muitas desgraças de estar na América católica, talvez uma das piores seja a confusão cultural entre Compaixão e Complacência. A Compaixão transforma, a Complacência envenena. A Compaixão permite que as pessoas se movam para ajudar. A Complacência distribui benesses que não vão gerar desenvolvimento, só mais imobilidade.
O propósito de todo processo de aprendizagem e desenvolvimento é explorar, criar, botar o pé na estrada de novos conteúdos e áreas desconhecidas do saber. A vida digital dá as pessoas a impressão que tudo está à distância de um click, não precisa de um caminho dentro do aprendizado. O Assistencialismo gera nas pessoas a impressão que a ajuda vem de uma maneira mágica. Quem não aprende a procurar, não vai aprender a achar. Não adianta ficar com o terço na mão nem blasfemando contra o tal do Golpe.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Ponto de Mutação

Vivemos num estado de hipnose coletiva, então eu sempre fico curioso sobre quem está mexendo nas cordinhas que nos movem feito marionetes. No meu ofício, por exemplo, não são poucas as pessoas que acusam a Psiquiatria de criar entidades clínicas fantasmas, dando remédios que não passam de placebos, escravizando pacientes que passam a depender, ou acreditar que dependem, das balinhas mágicas que prescrevemos em receitas carbonadas. Como eu posso abrir mão de muita coisa nessa vida, mas não posso abrir mão de duvidar, não me canso de notar as técnicas de persuasão da indústria farmacêutica e a discreta e eficaz imposição de um jeito de diagnosticar e tratar o sofrimento psíquico. Mas não vejo a tal máfia de avental querendo sodomizar o mundo com remédios cada vez mais caros e geradores de dependências e dependentes. Vejo, antes, o mundo ficando cada vez mais maluco e a Psiquiatria correndo atrás da loucura vertiginosa de nosso tempo, sem conseguir alcançá-la. Outro dia soube da história de um paciente, dependente químico, que saiu de sua internação e voltou para matar o psiquiatra que o havia internado. Senti um gelo no Estômago ao perceber o risco que é tentar encontrar alguma ordem no mundo que sempre é puxado para o Caos. Mexer com a alma humana e suas dores pode colocar os profissionais em situação de risco, e do pior dos riscos, que é o invisível. Os profissionais de Saúde Mental ficam então esmagados entre o sofrimento que tentam aliviar, os interesses econômicos e sociais envolvidos nos tratamentos e a impotência diante da progressão em espiral das doenças. Ainda assim tem muita gente que, como eu, se diverte de ver as pessoas melhorando, superando dificuldades, ampliando Consciências. Mas não é sempre que isso acontece.
Nos últimos anos a Neurociência descobriu uma região do Cérebro, o Giro do Cíngulo Anterior, que é o X de muitas questões. Essa região funciona como uma espécie de maestro que modula a Atenção, a Execução, o processamento de emoções e o tempo da resposta das funções executivas. Quando alguém passa por um tratamento, pode achar que vai tomar um remedinho e tudo voltará a ser como antes. Se o tratamento for bem sucedido, nada será como antes. A palavra mágica passa a ser Modulação, e a tal Modulação passa pelo Cíngulo Anterior. Priorizar, manter um objetivo em mente, não jogar o computador na parede, não matar o chefe ou o psiquiatra, tudo isso tem a ver com Modulação. Quem não desenvolve essa capacidade apanha da vida todo dia: perde empregos, afasta namorados, aborta projetos e briga com tudo e com todos. Sobretudo e pior que tudo, perde a capacidade de fazer a leitura do Real e se posicionar adequadamente diante dessa leitura.
Os medicamentos, quando bem empregados, devolvem ao paciente a sua capacidade de leitura da vida e modulação de afetos. Quando mal empregados, acabam sedando e encurtando o repertório de resposta das pessoas diante das dificuldades. É claro que existem situações clínicas severas que a sedação é o recurso para o curto circuito dos afetos e dos riscos para a vida do paciente e dos que o cercam. Mas este é um último recurso, não o único.
O sofrimento psíquico permite que o paciente olhe para aquilo que não quer olhar. Os medos, as dores, os traumas e a necessidade de cuidar disso. Pode parecer piegas, mas o simples fato de olhar para isso já produz uma transformação. Olhar, compreender, reposicionar são algumas das coisas que se conversa num processo de tratamento, enquanto os medicamentos começam a fazer efeito.
Muita gente que ataca os tratamentos e as medicações nunca tiveram a experiência de ver uma pessoa que passa por um transtorno sentir o alívio de suas dores e a gratidão pelo bom emprego dos medicamentos. Olha para tudo pelo viés de suas teorias de conspiração.
Na língua chinesa, o ideograma de Crise tem em si o ideograma da Oportunidade. As doenças podem realmente funcionar como Ponto de Inflexão, onde deixamos para trás o que não serve mais. Pode ser uma longa travessia até a dor virar transformação, e muita gente não quer pagar o preço nem da travessia, nem da transformação. Mas Jung dizia que a vida quer sempre ser reconquistada. Vamos reconquistá-la, então.


domingo, 1 de maio de 2016

De Traumas e Feridas

Foi no final do século dezenove e no início do século vinte que um jovem neurologista, Sigmund Freud, começava a aplicar a hipnose a suas pacientes portadoras da pior e mais desconhecida doença da época, a Histeria. Histeria vem de Hystera, que é Útero em grego. Os médicos gregos acreditavam que a doença se originava por movimentos do Útero dentro do corpo, causando problemas nervosos. Histeria seria então uma doença nervosa que afetaria as mulheres, sendo muito rara em homens. O termo Histeria foi abandonado pela Psiquiatria por trazer dentro de si esse erro e preconceito.
Freud descobriu em suas sessões de Hipnose que a cena que aparecia na técnica trazia muitas vezes uma cena traumática. Voltando à cena, as pacientes experimentavam uma forte liberação emocional, que ele chamou de Catarse. Após a Catarse, as pacientes ficavam exaustas emocionalmente, mas o sintoma desaparecia como num passe de mágica. Mulheres cegas, paralisadas, catatônicas, subitamente voltavam a seu estado normal, para espanto dos jovens médicos apinhados nos anfiteatros. Freud desenvolveu, na fase inicial de sua obra, a Teoria do Trauma. Um trauma poderia ficar gravado em um estrato profundo do Cérebro. Uma Mente dentro da Mente, que Freud chamou de Inconsciente, foi revelada nessa teoria. Vivências traumáticas reprimidas, quando presas no Inconsciente, surgiriam à luz do dia como sintomas: medos, fobias, explosões de raiva e desmaios que deixavam atônitos os médicos. Nenhum Útero sairia do lugar. As experiências traumáticas reprimidas estavam na origem de tudo.
Freud abandonou essa teoria alguns anos depois, em favor da Teoria da Sexualidade, e isso acabou sendo uma pena. A Neurociência consegue validar de maneira muito mais clara a Teoria do Trauma do que a origem sexual das neuroses. As experiências traumáticas criam cicatrizes profundas em nossas psiques e estão muito relacionadas a sintomas e quadros psiquiátricos. Os Traumas criam mecanismos de defesa, como Esquiva, Projeção, Negação. Podem atravessar gerações.
Há alguns anos assisti um filme peruano chamado “A Teta Assustada”. Eu nem sabia que havia cinema no Perú. O filme descreve um fenômeno entre mulheres do interior do Perú de colocar uma batata dentro de suas vaginas, o que gerava todo tipo de doenças ginecológicas. Os médicos do país começaram a relatar o estranho quadro, que lembrava as histéricas de Freud. Depois de muito estudo, finalmente descobriram o motivo do estranho hábito: nas vilas arrasadas pela guerrilha do Sendero Luminoso, muitas mulheres foram repetidamente estupradas. A batata era uma forma de tornar suas vaginas pouco atraentes para os estupradores. A personagem principal do filme era uma moça que aprendera com sua mãe como afastar os agressores sexuais. Ela tinha a doença da Teta Assustada, sendo medrosa, tímida, passando a maior parte do tempo trancada em casa, não permitindo a aproximação de nenhum pretendente.
No livro “Mindfulness e Psicoterapia” há uma citação de um mestre Zen que muito nos interessa na ajuda ao Trauma: “O que não podemos Conter, não podemos Processar. O que não podemos Processar, não conseguimos Transformar; e o que não conseguimos Transformar nos assombra todo dia”. Essa frase resume a importância da descoberta de Freud, que ainda ajuda milhares e milhares de pessoas em todo mundo. Para Conter o que aconteceu, é preciso Revelar. A Escuta e a Atenção delicada do terapeuta permitem que a verdade seja dita em um ambiente seguro. Poder acolher a Ferida é o primeiro passo para a Cura. Muita gente tem vergonha de suas feridas e passa a sua vida fugindo delas. Isso costuma piorá-las. Ir de encontro à dor, criar um espaço para lidar com ela, ajuda a Processá-la e, finalmente, Transformá-la é um caminho difícil, frustrante, mas ainda hoje em dia, maravilhoso.
No filme, a moça que tem a tal “Teta Assustada” acaba indo trabalhar como empregada na casa de uma senhora. Inevitavelmente, ela acaba se relacionando com os outros criados da casa, homens inclusive, para ela fonte de pavor. Um caseiro mais velho vai se aproximando delicadamente, como que percebendo o medo da moça. Um trauma que atravessou uma geração. Ele se oferece a acompanhá-la até o ponto de ônibus, pouco fala, mas vai ganhando sua confiança e amizade. O filme descreve essa aproximação se transformando em amizade, a amizade em amor. Sem divãs nem medicamentos, ela vai superando os pavores com a capacidade de conter, processar e transformar que existe em toda relação amorosa. É daí que vem a Cura. Como no filme, vai ser necessário muito tempo e delicadeza para cuidar, limpar e cicatrizar as feridas. Mas pode ter certeza que vale a pena.