domingo, 26 de junho de 2016

O Resto é Silêncio

O livro “Psicologia Quântica” de Robert A, Wilson conta a parábola de um estudante do Zen que caiu na besteira de ler o livro “O Processo” de Kafka, onde havia uma pequena história dentro desse livro angustiante, que eu vou resumir aqui: “ Um homem chega à Porta da Lei, em busca de acesso. O guarda diz que, se esperar pelo tempo suficiente poderia, num futuro incerto, passar pelo portal. O homem espera e, nessa espera, vai envelhecendo. Tenta subornar o guarda, que aceita o seu dinheiro para que “não perca as esperanças”. Finalmente, ele fica velho e se pergunta por qual motivo só ele aguardava junto ao portal. O guarda lhe diz que aquela porta foi feita só para aquele senhor,que está muito velho para entrar por ela. E, agora, a porta vai se fechar para sempre. Ela se bate e o homem morre”. O estudante zen fica obcecado por essa parábola. Não consegue mais meditar nem pensar em nada. Finalmente, vai ao seu mestre e pede ajuda para entendê-la. O mestre aceita alegremente a tarefa, mas convida o aluno para entrar na sala de meditação. Ele acompanha o mestre, que, ao entrar na sala, bate a porta na sua cara. Ele experimenta o Despertar”.
Quem já estava perdido na primeira parte deve ter ficado pior com um Despertar que se dá quando alguém bate a porta na sua cara. Essas duas parábolas podem ter todo tipo de interpretação, inclusive a melhor de todas, que é não ter nenhuma interpretação. Eu converto as histórias em filme e fico apreciando as duas em sua fantástica ironia e espera, sem tentar nenhuma interpretose, essa doença dos analistas ou da mente analítica. No limite, as duas historietas indicam a insuficiência da mente analítica para decifrar a Verdade que se esconde dos controles do Ego. Mas como não pretendo nenhuma leitura definitiva, posso dar a minha, que não vai machucar ninguém.
A porta batendo na cara do aluno é uma passagem bem bonita. Representa a ausência de resposta como uma resposta profunda. O mestre se recusa ao papel de Mestre e lança o aluno para dentro do Silêncio. E, no silêncio, ele se ilumina.
Não gostamos de Silêncio nem do Vazio. Para nossa mente ocidental, as coisas, as ideias, as filosofias devem ser examinadas, testadas, explicadas até que tudo tenha um como e um porque. Não gostamos de silêncios nem de paradoxos. O mestre lança o aluno para dentro desse Vazio, porque é o vazio que nos ampara. E o silêncio que produz as respostas, ou os caminhos. Procuramos no Outro a orientação, a sabedoria, a fórmula infalível de sucesso e do bem viver. Por isso temos tantos gurus, coachs, guias e experts para dizer como e quando. Não sabemos o como e muito menos o quando, mas somos ótimos engenheiros de obras prontas. Podemos escrever tratados sobre o que e onde deu errado, mas não antevemos nem uma coisa nem outra.
O homem na Porta da Lei representa nossa espera pela autorização do Outro. Talvez seja um resíduo de nossa experiência primordial nos ciclos parentais, onde o mundo é determinado e controlado pelo Outro. Podemos existir a partir desse Olhar, durante um longo período de nosso desenvolvimento. O homem espera na porta da Lei que o Outro finalmente o autorize, como uma criança olhando para os pais em busca de aprovação. Ele morre sem saber que a autorização só poderia partir de si mesmo.
Um bom terapeuta acompanha seu cliente na experiência do Vazio. Esse é um assunto sério. O Vazio é percebido como Absurdo e Não Sentido, e muita gente adoece e morre nessa travessia. Uma paciente há alguns anos me trouxe um sonho em que nadava no mar na direção de uma ilha, junto com um amigo de seus filhos. Depois de muito esforço, conseguiu completar a travessia. O menino, não. Na vida real, ela atravessou um duro período de Depressão. O amigo de seus filhos não conseguiu, o que seu Inconsciente percebeu que aconteceria.
Demora muito para entendermos que há uma ordem emergente no meio do Caos. O monge se ilumina porque percebe essa Ordem Profunda, quando para de tentar entender o que não se pode entender. Difícil é esperar no meio da Incerteza.

domingo, 19 de junho de 2016

A Inveja do Útero

Estou voltando de um evento que gosto muito e já citei em alguns posts passados: o Congresso de Cérebro, Comportamento e Emoções. É um Congresso multidisciplinar, que tenta fazer pontes entre Psiquiatria, Neurologia, Neuropsicologia e outras áreas do que se está se firmando como uma tendência: todas essas disciplinas se fundirem na Neurociência Cognitiva. Uma coisa que para mim era particularmente atraente era a aproximação da Psiquiatria careta com as Artes e com visões não ditadas pelos laboratórios, que pagam a conta do convescote e vendem seus peixes. Esse Congresso propaga essas mensagens, claro, mas fornece outras, muitas outras.
Neste ano o Congresso foi em Buenos Aires, que é sempre agradável de visitar e desagradável de retornar e medir na balança os efeitos da estadia. A Argentina vive hoje os mesmos efeitos de terra arrasada que se observa nas chamadas economias bolivarianas, como observamos aqui no Brasil. Não são os coxinhas que sofrem, nem os mortadelas que ainda se agarram às suas mamatas, mas os mais pobres mesmo, que ficaram mais pobres depois de anos de farra distributivista. Mas não vou me deter nesse assunto. Estava falando do Congresso, que neste ano foi menor e mais pobre, muito pelo paradoxo de se fazer um congresso brasileiro em solo argentino. A verba foi menor e a programação sofreu com isso, embora com muito esforço para segurar a pose. Hoje a Folha traz uma matéria sobre o Congresso e dois filmes que foram objetos de algumas mesas redondas animadas: os fabulosos “Relatos Selvagens” e “Divertida Mente”. Como já escrevi alguns posts sobre o segundo filme, vou fazer um comentário sobre o primeiro.
“Relatos Selvagens”, ou “Contos Selvagens” é um excepcional filme argentino de 2014, que apresenta seis pequenas historietas sobre pessoas no limite que reagem de maneira violentíssima e trágica diante dos absurdos da vida moderna. O filme antecipou de maneira impressionante o episódio de um piloto da Lufthansa, onde o piloto se trancou na cabine e jogou o avião contra os Alpes. Espero que não o tenha inspirado. O filme mostra os passageiros tentando em vão bater na porta e implorar ao enlouquecido piloto que não faça aquilo. Como não é o cinemão americano, não há ninguém dentro ou fora do avião com superpoderes, e ele acaba caindo. O episódio do filme mais comentado é o de um casamento, onde a noiva percebe, meio por acaso, que seu noivo está tendo um caso com uma das convidadas, uma morena maravilhosa que trabalha em seu escritório. Ao perceber que está sendo enganada, a pequena e enfurecida noiva inicia uma sequência de atos enlouquecidos de vingança, como transar com o maitre e arremessar a tal sirigaita em espelhos do salão. O comentarista/pesquisador que falou sobre o filme fez uma leitura pobre da personagem, afirmando que ela seria uma Borderline incapaz de modular ou comandar os próprios impulsos, destruindo assim a festa, o noivo e a suposta amante.
Para começo de conversa, o filme sintoniza com o momento fabulosamente grave que estamos vivendo em nosso mundo. As pessoas estão acometidas pelo desespero e por uma sensação difusa de não saída; explodem em qualquer lugar ou situação. A palavra “surtar” ou “surto” está incorporada ao nosso dia a dia. Está todo mundo surtando. Basta dar uma olhada no noticiário da semana: estupro coletivo, assassinato em massa em boate gay, deputada assassinada na Inglaterra, um candidato à presidência como Donald Trump, sempre visto como piada e agora com chances reais de se eleger o homem mais poderoso do mundo, gente, o que está acontecendo?
Fui acusado delicadamente de machismo após o post “O que Os Homens Querem”, em que na verdade descrevi uma imagem de Anima numa personagem de filme. Que é o que os homens querem, mas não levam. Mas, de novo, não é o assunto do post. Essa cena do casamento no “Relatos Selvagens” não descreve só uma mocinha surtada em ciúmes destruindo o próprio casamento. É uma cena profundamente feminista, muito além dessas feministas militantes que em tudo se sentem agredidas pelo desejo masculino. É uma reação extremada ao pior machismo, que é desposar uma mulher bonita, interessante e inteligente para tratá-la como um bibelô ou uma retardada. O orgulho boçal de levar a namoradinha e deixá-la a poucos metros da mulher a quem acabou de jurar o seu amor, essa é a agressão do “tudo pode” de nossa falta coletiva de bússola ética. A moça faz o noivo vomitar, chorar e implorar que pare com aquilo. O seu falso orgulho de machinho calhorda é pulverizado pela força uterina de ser mulher. Isso é que é Feminismo, meninas. Por favor não façam isso comigo, mas isso sim é que é a força do Feminino. O colega leu mal a personagem. Ela não é uma Borderline. É uma mulher no topo de seu desejo e integridade. Para além das boas maneiras que as vovós ensinavam e, pior, o politicamente correto perpetua. Seria o filme um vômito contra a camisa de força do Politicamente Correto?

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Ego e Não Ego

Há um vídeo no Youtube (TED Talks) de Jill Bolte Taylor, uma neurocientista que relata com humor e emoção a experiência de um Acidente Vascular Cerebral, chamado de Derrame pelo público leigo, que ela teve há mais de uma década. Jill descreve com precisão e humor negro o seu Cérebro Esquerdo desligando e perdendo o comando de sua mente, enquanto sua alma era invadida por sensações de plenitude e bem aventurança, as mesmas sensações que místicos descrevem em suas iluminações. À medida que as preocupações, as pressas e o medo foram sendo colocados de lado ou mesmo deixavam de existir, Jill se sentia maravilhada com o espetáculo de luz e energia que observava no chuveiro ou entrando pela janela. Em alguns momentos, seu Hemisfério Esquerdo se ligava novamente e gritava: “Nós estamos tendo um AVC, vai procurar ajuda!”. Jill realmente chegou a ligar para seu laboratório, mas logo depois voltava a se maravilhar com o espetáculo de sua vida se esvaindo. Esses sentimento de plenitude e graça cedeu à um sentimento ainda maior de rendição. Ela finalmente se rendeu e se preparou para a sua passagem. Não havia medo nem dor. Todos os anos de medo e toda a carga emocional acumulada, agora se desprendiam e a energia era fluida e seguia em outra direção.
Um amigo do laboratório suspeitou que algo não estava bem e pediu uma ambulância para resgatá-la. Ela acordou alguns dias depois perplexa de ainda estar viva. A sua recuperação completa levou quase dez anos. E a sua grande contribuição vem da visão de um Derrame visto de dentro, pelos olhos de uma neurocientista. Jill voltou da morte com a sensação de que há algo muito maior em nossas redes neurais do que nossa racionalidade. A sua Mente Racional, que sempre guiara a sua vida e suas escolhas, foi se apagando na medida que um pequeno sangramento se espalhava pela lateral de seu Cérebro Esquerdo; nesse processo, ela voltou a enxergar o mundo com o maravilhamento dos olhos de uma criança, que tudo vê como novidade e como alegria. Alegria de Ser.
Falei que iria complementar o último post, sobre o Ego. O que chamamos de Ego é esse complexo de funções que percebem, interpretam e interagem com o ambiente visando preservar a vida. O Ego tem os medos e as fúrias de tentar viver num mundo seguro e previsível, onde comida, abrigo e prazer sejam garantidos e protegidos. Quando esses a prioris estão ameaçados, ele se torna triste, irritável, inquieto com a vida e o mundo. Na maioria das vezes, essas tais ameaças nem existem. Nosso Ego pode também agredir ou matar quando possuído pelo medo, pois uma de suas funções é usar seu medo para proteção, necessária ou não. Um de seus subprodutos é a gana pelo controle. Quem tem necessidade de controlar tudo vai vendo a vida entrar em estado de ressecamento e, estranhamente, tenta controlar tudo com ainda mais força, gerando mais sofrimento.
Penso que o Sofrimento que o Buda apontou como sendo a essência de nossa vida consciente é essa sensação de que sempre falta algo, e quando esse algo for encontrado, vai cessar o sofrimento. Isso gera mais sofrimento. A roda de sofrimento e a busca de sua cessação talvez seja a fonte de muitas tradições espirituais. Abandonar o Ego é deixar tudo o que nos dá a sensação de existência e segurança. Salvo alguns iluminados, não é algo para se fazer de um dia para outro. Mas vivências como a de Jill B. Taylor ao menos demonstram que, o que se procura, na vida e nas terapias, é um sentido de abandonar os medos e as ilusões de controle. Quando conseguimos, vamos na direção da experiência direta da sensação de maravilha, aquela que aparece quando deixamos de enxergar pelo filtro do medo. Podemos ver isso nos olhos das crianças ou nos lampejos de felicidade que se enfiam entre nossas infinitas preocupações.