domingo, 24 de julho de 2016

Orquestra de Instrumentos Desafinados

Há um episódio antigo de House que eu vivo procurando e não acho. Sou capaz de assistir toda a série até encontrá-lo. Se algum dos visitantes desse blog souber onde está, agradeço. Neste episódio, a equipe de House trata uma professora de alunos especiais que é absolutamente apaixonada por seus alunos, a maior parte deles autistas. Ela vibra e envolve seus alunos com Atenção plena e uma mente desperta, já que aproveita cada pequeno momento com eles. Como qualquer paciente do Dr House, ela vai ficando cada vez mais doente nas várias tentativas de tratamento. Lá pelas tantas, House, com a sua habitual crença na humanidade, levanta a hipótese que a própria bondade da moça deve ser um sintoma de doença. Não é possível tanta dedicação desinteressada. A menina deve ter um tumor Cerebral ou coisa que o valha. É lógico que as médicas da equipe ficam completamente injuriadas e afrontadas pela hipótese. Acho que no final do episódio, quando a moça é finalmente curada, continua amando trabalhar com seus alunos. House perdeu essa.
Será que somos evolutivamente comandados por genes egoístas que nos usam como vetores de sua transmissão? House conta sempre com o pior da natureza humana em seus pacientes e equipe, sempre dizendo que todo mundo mente, as pessoas não mudam e todo mundo morre mesmo. Acaba desdenhando de qualquer capacidade de nobreza ou de intenção altruísta de todos, e costuma quase sempre estar certo. A jovem professora é apaixonada por seus alunos especiais e vive por eles, mesmo sendo mal paga e tendo resultados terapêuticos limitados. Tem que ter alguma coisa errada.
Alguns estudos descrevem uma síndrome de Burnout específica de profissionais de ajuda. O Burnout são na verdade quadros depressivos desencadeados pelo mais puro esgotamento energético. Os neurotransmissores são queimados e desperdiçados, daí o nome Burn/Out. Trabalhar exposto a algumas das situações de maior sofrimento humano e piores resultados terapêuticos geram maior risco de esgotamento. É muito difícil encontrar alguém que se apaixona pelo som que sai das orquestras de instrumentos quebrados das instituições. Mesmo na prática clínica lida-se no dia a dia com as tentativas infinitas de se transformar naquilo que não se é, tentar ter aquilo que não tem e com a luta contra os pensamentos recorrentes de querer mais, mais, mais.
As chamadas Psicoterapias Profundas estão meio fora de moda, assim como a Introspecção. Procura-se técnicas e mais técnicas para domar ou reprocessar os próprios sentimentos, o que acaba criando uma inversão e uma tentativa de novo recalque. Eu não quero lidar com os sentimentos, então vou vomitá-los no colo dos terapeutas e impedir qualquer forma de cura ou tratamento. Ou vou me engajar na nova técnica de reprocessamento cognitivo que vai finalmente domar o Cérebro Emocional. Os terapeutas querem curar os pacientes e ficam muito frustrados pelas recaídas e fracassos. Ninguém quer ser sócio do fracasso. Todos tentam, freneticamente, comandar as emoções sem precisar ir muito fundo.
Quando assisti ao episódio que agora não sei em qual temporada está enfiado, fiquei com muita inveja da professora apaixonada por seus alunos, mesmo e sobretudo os que não melhoram. Sou obstinado com as melhoras e os alívios das dores e do sofrimento, mesmo sabendo que por melhor afinados que sejamos, continuamos sendo uma orquestra de instrumentos desafinados que vez ou outra contempla grandes harmonias. As terapias que funcionam são aquelas que lançam as pessoas para dentro de seus medos e fantasias, para perder o medo do espelho que está nos olhos do Outro. Para isso, vamos teimosamente puxar os pacientes para onde eles não querem ir, que é seu Mundo Interno. O desafio é aprender, como a personagem, a se apaixonar pelos casos que não tem jeito, ou tem pouco jeito para se dar.

domingo, 17 de julho de 2016

As Atenções

Uma amiga descreveu a demissão de sua chefe, que cometeu o erro de tirar as suas férias em um momento vital de publicação de relatórios de sua área, o que deixou seu chefe, e o chefe do chefe, expostos na apresentação dos resultados. A sua viagem, programada há mais de seis meses e autorizada por ambos os chefes abandonados por escrito, deu-se nesse momento vital e os maus resultados foram jogados em suas costas, que não estava lá para se defender. Eu falei para a minha amiga atônita que a demissão foi bem justificada. Como assim? Ela faltou com uma das três atenções. Posso explicar.
Daniel Goleman, no livro “Foco”, descreve três tipos de Atenção fundamentais para a nossa sobrevivência e, eu ousaria acrescentar, para a sobrevivência de nosso planeta. Atenção em Mim, Atenção ao Outro e Atenção ao Momento e ao Devir. Ele não usou esses termos, portanto é esse que vos tecla que está lá tomando as suas liberdades de tradução. A gerente em questão, portanto, não falhou em apenas uma, mas em duas atenções. Saiu-se bem apenas em uma: Atenção para si. Programou as férias com antecedência, em época e lugar bacanas para ela e sua família e voltou descansada e refeita para seu trabalho, que logo descobriu, não estava mais lá. Falhou nas outras duas Atenções: a Atenção ao Outro e a Atenção ao Momento. Se olhasse melhor para os chefes, notaria algumas características importantes: pouco domínio dos dados que ela obtinha e muito pouca vontade de ficarem expostos diante do Board da Empresa. Sujeitos mimados e covardes, como muito gestores, precisavam de sua presença para evitar lambanças. Ela estava imersa entre a água de coco e o picolé, entre uma e outra passada de filtro solar, enquanto os chefes se lambuzavam com planilhas incompreensíveis. Outra falta grave de Atenção foi a falta de percepção na publicação dos dados. Com o intuito de viajar tranquila, ela publicou o relatório no site da empresa e foi fazer as malas. O timing da publicação foi desastroso, permitiu aos adversários dos gestores meterem o pau nos números antes da reunião da diretoria. Você quer dizer que concorda com a demissão? Perguntou a minha amiga mordendo os lábios, o que não costuma ser bom sinal. Como estou ligado ao Outro, percebi que a resposta poderia causar decepção à pessoa querida. Mas é claro que eu concordo, respondi, atento às minhas convicções. Estamos na maior crise econômica desde o Plano Collor, milhões de pais de família em casa engrossando as estatísticas de desemprego, é uma boa ocasião para prestar muita Atenção à todas as prováveis e improváveis cascas de banana do caminho.
O Capitalismo está fundado na ideia da Livre Iniciativa como mola propulsora da Economia. Teoricamente todos podem prosperar e criar o seu próprio destino. Temos livre arbítrio e Democracia, dizem. Na verdade, o tal do hiper capitalismo cria uma sociedade de castas, onde uma minoria cada vez menor toma conta de uma fatia cada vez maior dos recursos financeiros e naturais do planeta. Uma arma poderosa para o domínio das massas excluídas sempre foi a alienação e a inconsciência. Quando os excluídos se manifestam, são logo taxados de bárbaros e xiitas. A sociedade paga um preço cada vez mais alto pela sua falta de Atenção. Estamos, como a pobre gerente, faltando com a Atenção ao Outro e com a Atenção ao Momento. Não está numa boa hora para queimar exemplares do Alcorão em praça pública nem fazer charges de Maomé sentado na privada. Uma arma potente de alienação é semear o Individualismo. Sob esse aspecto, estamos numa época pré Apocalipse. Enquanto as pessoas estão dando trombadas nas ruas olhando seus celulares, existe uma multidão de pessoas que já perceberam que não vão ter acesso aos Paraísos de consumo nem às castas de bem nascidos que ainda vão fazer as festas pagas com dinheiro público. Se prestarmos Atenção ao Outro e ao momento, poderemos começar a ouvir e tentar incluir os futuros homens bomba e os motoristas de caminhões desgovernados, atirados contra a multidão de inocentes.
Não dá mais tempo para olhar só para o próprio umbigo. Temos que prestar Atenção ao Outro e ao Momento de extrema tensão e perigo que atravessamos todo dia. Não adianta colocar flores nos asfaltos banhados de sangue, no dia seguinte. Temos que tirar os olhos das telas infinitas que nos protegem do Real.

domingo, 10 de julho de 2016

Bom Dia, Tristeza

Meus filhos cresceram com os filmes da Pixar, e eu, claro, virei um fã. Os filmes invariavelmente tem um tema junguiano da Jornada Arquetípica, do herói de origem humilde que, por acaso ou por cometer um pequeno erro, é lançado numa jornada heróica onde vai enfrentar monstros e perigos nunca imaginados. Não assisti o “Procurando Dory”, devo reparar essa falha na minha filmografia até a próxima semana, mas posso usar o primeiro filme da série, o Nemo, como um bom exemplo de Jornada Arquetípica. Nemo desenvolve um Estresse Pós Traumático quando perde a sua companheira e filhotes num ataque de barracuda. Ele vira um pai superprotetor e neurótico de seu único filho, Nemo. O Erro Fundamental ocorre durante uma brincadeira de Nemo com seus amigos, que o faz sair dos limites protegidos pelos corais. Ele é capturado por um mergulhador e seu pai vai ter que superar seus medos e traumas para atravessar o mar infinito atrás de seu filho perdido. Ele vai ser ajudado por muitos amigos e situações onde pequenas coincidência e acasos vão indicando o caminho até Nemo. Essa é a Jornada Arquetípica, uma metáfora da nossa vida e desenvolvimento.
A última obra prima da Pixar foi o Divertida Mente. O filme contou com a assessoria de um time de Neurocientistas para criar o mundo interno de uma menina de 11 anos, Riley, que passa por uma difícil transição em sua vida. As Emoções Básicas comandam sua Cognição na Sala de Controle. Como nos outros filmes, ocorre um Erro, e a Alegria e Tristeza se perdem dentro do Cérebro da menina. As suas reações passam a ser comandadas pela Raiva, o Medo e o Tédio. Ela se torna claramente uma pré adolescente, portanto. Alegria comete o erro fundamental, quando tenta a todo custo controlar a Tristeza que está contaminando a Psique de Riley. No meio da briga, elas são sugadas para as zonas de Memória e vão precisar atravessar um longo caminho para voltar à Sala de Controle. O problema é que as pontes que poderiam levá-las de volta também estão desmoronando: as relações com a Família, a Amizade, a Brincadeira e o Hóquei sobre o gelo, que fundamentavam a identidade de Riley, começam a desmoronar no meio da desadaptação à nova vida em San Francisco.
O filme fala sobre muita coisa interessante e poderia gerar uma dezena de posts, mas hoje vou falar sobre a função estruturante da Tristeza. Como o pai de Nemo tem a ajuda da desmiolada Dory e através de suas trapalhadas vai achando o caminho até seu filho, a decidida e algo obsessiva Alegria vai precisar rebocar a Tristeza no começo, mas no decorrer da jornada vai ser aconselhada e algumas vezes salva pela Tristeza. Uma cena particularmente bonita é quando a Alegria revê uma cena muito alegre de Riley sendo jogada para cima por sua equipe de Hóquei, em triunfo. Com a ajuda da Tristeza, ela recupera a cena inteira. Riley tinha errado a última jogada e seu time perdeu o jogo. Ela estava sobre o galho de uma árvore chorando e seus pais se aproximaram, acolhendo a Tristeza. Foi aí que seu time chegou e a jogou para cima, reconhecendo a sua importância. Dona Alegria percebe que só entrou em cena pela função estruturante da Tristeza e a interiorização da perda e do luto. Ninguém começou a cena comemorando uma derrota ou uma frustração.
Acho que as crianças são muito pressionadas em nossos dias pela tirania da Alegria. As mães ficam como cães de caça vigiando o tempo todo se as crianças são suficientemente felizes e surtam completamente quando as outras emoções tomam conta da Sala de Controle de seus filhos. Um de meus consultórios tem uma criança na vizinha que chora desconsolado por horas. A sua mãe varia o lidar com a situação com gritos que aumentam a choradeira até a perfeita apatia de simplesmente não fazer nada para acolher a Tristeza. Ele chora, chora, e ninguém faz nada. Do lado de um consultório de Psiquiatria e Psicoterapia. Quando a cena é dominada pela Alegria, aí tudo dá certo, todos brincam e se divertem no quintal. Mas a Tristeza, o Cansaço e a Raiva desencadeiam uma profunda intolerância e Raiva silenciosa em sua mãe. A criança fica abandonada no meio desses sentimentos. Parece que ela só será amada se estiver alegre. Essa é a tirania da Alegria, que aparece nas famílias esfuziantes dos comerciais de Margarina (esse deve ser outro efeito colateral da margarina, além da gordura Trans).
Jung pensou a nossa Psique como um sistema continuamente em Equilíbrio/Desequilíbrio, onde o Caos demanda muita energia para sua Organização. Não existe nesse sistema uma emoção boa ou ruim em si. Há lugar para a Alegria, a Tristeza, o Medo, a Raiva, a Repulsa e a Atração: todas tem a sua função Estruturante/Desestruturante dependendo da ocasião. Acho que ele estaria muito incomodado com a ditadura da Puerilidade que determina o nosso tempo.

domingo, 3 de julho de 2016

Atenção Plena, e Relaxada

Nesses vinte e cinco anos de Psiquiatria que eu vivi, houve uma incrível multiplicação de alternativas terapêuticas para os quadros psiquiátricos. Nem dá para se comparar o que aconteceu em termos de medicamentos e estratégias para diminuição do sofrimento psíquico. Os tratamentos foram se tornando mais rápidos e direcionados, os sistemas de neurotransmissão mais compreendidos, chegando às portas da manipulação genética. Quando a Fluoxetina foi introduzida na Rede Pública nos anos 90, o argumento da Indústria Farmacêutica é que as pessoas ficariam cada vez mais felizes e portanto adoeceriam menos. A melhora da angústia do viver levaria à economia de recursos e diminuição de gastos com a Saúde. Como se sabe, não foi isso o que aconteceu. Os quadros depressivos se tornaram mais frequentes e mais graves, os índices de suicídios estão cada vez mais prevalentes e epidêmicos. “Surtar” virou um termo corriqueiro em nossa vida diária. Entendemos melhor as doenças e elas estão ficando mais frequentes e graves. Onde estamos errando e onde está nosso ponto cego?
Desde os anos 90, o trabalho pioneiro de John Kabat-Zinn vem adaptando para o Ocidente uma série de conceitos e métodos budistas para tranquilização da mente e redução de estresse. Agrupou isso em um nome, Mindfulness. Pode ser descrito como uma forma de criação de um observador interno, que assiste à nossa própria vida, observa calmamente os pensamentos em ebulição de forma ativa e não julgadora. Isso vai produzindo uma observação serena de nosso labirinto de pensamentos, medos e desejos que ficam dando espirais e piruetas dentro de nossas redes neurais.
Temos em nosso Cérebro um Sistema de Recompensa que é ativado e está relacionado com as Dependências de Drogas, por exemplo. Nosso mundo está inflamado por vários motivos, mas um deles deriva claramente da superestimulação dos sistemas de Recompensa. Vivemos uma espécie de novo moralismo, que é o Moralismo Hedônico. Tudo deve ser intenso, todos os sentidos devem ser estimulados, todos devem transar como astros pornô ou comer como candidatos do Masterchef. Todas as fotos nas redes sociais são de Revista Caras e todos devem ser, obrigatoriamente, hiperestimulados. As crianças estão deprimindo cada vez mais cedo, as mulheres estão enfartando como os homens e uma em cada três pessoas vai ter Câncer em sua vida. Obesidade, Diabetes, Câncer e Transtornos Psiquiátricos podem estar vindo do mesmo lugar, que é a fornalha de desejos e buscas de intensidade. Tudo é muito intenso e descansar pode significar perder alguma coisa. Já atendi mais de uma pessoa que não consegue dormir ou descansar por medo de perder alguma balada, ou postagem, ou prazer que pode estar se perdendo no sono.
Mindfulness, Yoga, Pilates, Tai chi, Psicoterapias, Relaxamento, podem ser uma reação contra o mundo inflamatório. Olhar de fora os pensamentos girando em pistas ovais é uma forma de reduzir e começar a organizar a correria e a ânsia permanente de estímulo. Inicialmente pode-se dizer que essa desaceleração provoca desconforto. Muita gente sai correndo na primeira aula, no final da primeira sessão. Desacelerar parece errado. A Inflamação provoca grandes abstinências. Os benefícios demoram a aparecer e todo mundo quer as coisas resolvidas numa clicada.
Estamos perto de uma Psiquiatria, ou, mais profundamente, de uma Medicina voltada para o Positivo e o Integrado. Talvez o mundo exploda primeiro, mas vamos correndo para desinflamá-lo. Com Atenção Plena, e Relaxada.