quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Até o Osso - O Perdão

O filme “To the Bone” (“O Mínimo Para Viver”), produção original do Netflix, serviu de base para esses quatro derradeiros posts, que vão encerrar esse blog. Quem não conseguiu vê-lo saiba que teremos alguns spoilers nesse texto, mas apenas o estritamente necessário. Espero não estragar o filme e, pelo contrário, aguçar a vontade de vê-lo nos visitantes desse Blog.
A parte final desse filme fala de uma questão muito cara a esse escriba que vos tecla. Ellen, que é rebatizada de Eli pelo psiquiatra que a acompanha em sua internação, recebe todas as orientações e estímulos, positivos e negativos, para começar a comer e participar de sua recuperação. Após um período de melhora e esperança, ocorre uma situação traumática com uma das pacientes, que Eli presencia com Luke, seu amigo apaixonado. Isso desencadeia uma completa regressão: ela para de comer e claramente deprime. Deprime para valer. Finalmente, rompe com o seu tratamento e foge para a casa de sua mãe. Dr Beckham fala para a sua madrasta e irmã: “Muitas vezes uma paciente como Eli precisa ir até o limite do fundo do poço para escolher entre a Vida e a Morte” (não foi essa a fala, mas é essa a tradução spinelliana da mesma). Aí temos uma grande, grande questão.
Freud formulou muitas teorias, algumas circulares e forçadas, destinadas a referendar o seu apego quase religioso à sua teoria da Origem Sexual de todas as neuroses. Não vamos discutir isso agora. Mas Freud formulou também constructos grandiosos que não cansamos de comprovar com o avanço da Neurociência. Um deles é a Teoria do Conflito. Quando existe um conflito, uma tensão entre a vontade de prosseguir e a vontade de recuar, aí temos um sintoma e, posteriormente, uma doença. Eli passa o tempo todo na Via Crucis do Conflito e da Dúvida. Uma parte dela quer melhorar e embarcar no fluxo da vida, outra continua deslizando gradualmente para a morte. Freud também falou dessas Pulsões, de Eros e Tânatos disputando a nossa Alma. Todo dia. Jung descreveu esse processo como Tensão dos Opostos, o que está no post anterior. A Tensão dos Opostos, levada ao extremo, vai determinar, ou não, a Transformação. Isso é o que está contido na fala do Dr Beckham. Eli vai ter que descer mais profundamente no Vale das Sombras para decidir o caminho da Vida ou da Morte. Para isso, ela vai precisar da mais misteriosa das capacidades psíquicas, que é o Perdão.
Agora teremos o spoiler: Eli vai para o rancho onde sua mãe vive com a companheira. Elas praticam uma espécie de terapia esotérica com cavalos. A mãe de Eli é uma pessoa claramente frágil e despedaçada, que se ampara numa companheira particularmente dura e pouco sintonizada com a situação gravíssima que está diante de seu nariz. Na hora de dormir, ela finalmente pode falar a partir de seu coração com a menina. Acho essa a cena mais bonita e reveladora do filme. Ela descreve mais uma vez para a filha a Depressão Pós Parto grave que a afastou de seu bebê, na época de seu nascimento. Reconheceu que isso tinha um papel na Anorexia Nervosa de Eli e pedia perdão por isso. Dr Beckham alertou-a que estava perto de perder a sua filha. Na nossa Ciência Psiquiátrica, essa é a hora de internar, passar um tubo pelo nariz da paciente para alimentá-la na marra, ou enfiar nutrientes pelas suas veias até sair da situação de risco. Se fosse minha paciente, é o que eu faria, aqui entre nós. A mãe de Eli pede seu perdão e se oferece para dar a ela uma mamadeira de leite de arroz. A menina acha a proposta estranha, mas acaba aceitando depois da mãe pronunciar a frase mais impressionante do filme: “Se a sua opção for morrer, eu vou aceitar e respeitar, mas saiba que eu te amo muito”. Talvez essa seja a forma mais radical e profunda de amor: respeitar uma decisão dessas. Acolher o Mistério onde nossa mente não consegue penetrar. Respeitar um dos direitos mais estranhos que nosso livre arbítrio nos concede, que é o direito de acolher a própria morte. Espero que isso não seja entendido como uma defesa do Suicídio. Dedico minha vida e minha prática clínica a evitar suicídios. Não concordo e não aceito, mas posso compreender a capacidade humana de consentir com a própria morte. E entendo o amor desesperado daquela mãe que pode aceitar a escolha de sua filha em atravessar, ou não, aquele Limiar.
Essa é a grande questão que foi descrita acima. Podemos usar remédios, terapias comportamentais, hipnose, meditação, internação, medicação e soros intavenosos e toda a parafernália que os quase duzentos anos de Psiquiatria e Psicologia nos legaram. Mas todo tratamento busca, de uma maneira mais ou menos profunda, o sacramento do Perdão. E perdão nasce do Entendimento e da Compreensão. Não é gratuito e, sobretudo, não pode ser concedido por decreto.Nem por técnicas terapêuticas.
Perdão é concedido a quem o pede, como a mãe de Eli pede perdão por ter sido devastada por vários colapsos depressivos e isso ter afetado a vida de sua filha no limiar da vida adulta. Eli pede perdão por não conseguir superar o medo e se deixar engolir pela doença. As duas se abraçam, num grande gesto de Perdão de Si e do Outro. Se Eli vai finalmente se entregar para a Morte ou vai iniciar a sua jornada de cura, o leitor vai ter que ver o filme para descobrir. O que eu posso dizer é que passamos, muitas vezes, por essa Jornada de Transformação em nossa vida. Passamos pela Perda, resistimos ao calor que aquece a nossa Pedra, temos que encontrar a Letra que indica o caminho de volta, mas só atravessamos a crise pelo caminho do Perdão. Um beijo a todos. Obrigado por tudo.

domingo, 8 de outubro de 2017

Até o Osso - Jornada Noturna

Jung escreveu em algum lugar de sua imensa obra que a imagem de Cristo na cruz representa de maneira única a experiência humana. A tensão de opostos, o claro e o escuro, a santidade e o pecado, a pressão da vida invisível e a nossa necessidade de sobreviver, criar, viver no mundo material. A parte vertical da Cruz representa nossa pulsão de desenvolvimento espiritual, para cima ou para baixo. A parte horizontal é nossa vida material, como a flecha do Tempo.
A Tensão dos Opostos está em todos nossos sintomas, nossos impasses e medos. Uma forma particularmente dura onde essa tensão se manifesta é na Dúvida. Uma dúvida com D maiúsculo por conta do seu efeito em quem está preso dentro dela. Sempre penso que os exorcistas gritando com as meninas possuídas por demônios estão tentando o que se tenta quando estamos atolados na Dúvida e na Treva: a sensação de duvidar de tudo e de nada poder desatolar o que está atolado. Saia dessa Dúvida, encontre o Caminho. Esse deve ser o grito dos exorcistas.
No filme que serviu de base aos últimos posts desse blog, “O Mínimo para Viver”, disponível no Netflix, a personagem principal, Ellen, padece de uma doença gravíssima, a Anorexia Nervosa e pula de internação em internação sem conseguir ganhar peso. A Anorexia Nervosa talvez seja o transtorno psiquiátrico mais letal, seja por suicídio ou por complicações relacionadas à inanição. Eu vi uma paciente com esse quadro morrer com uma esquisitíssima infecção fúngica generalizada. A moça via com ódio e depois indiferença a nossa tentativa desesperada de alimentá-la, sem sucesso. Lembrei dela ao ver a saga da personagem. Ellen sabe que precisa comer, mas não consegue se mexer. Está paralisada no meio da Grande Dúvida. Paralisada com medo da comida. Comer significa algo pior do que morrer, que é enfrentar o Medo paralisante.
O filme mostra Ellen internada numa clínica, com pacientes anoréxicos e uma obesa. A grande Dúvida se manifesta em todas as tentativas de burlar o tratamento que todas as pacientes cometem: a vizinha de quarto vomita na sacola; Ellen faz flexões na cama e corre pela escada. O Cérebro Racional entende as tentativas da equipe e do psiquiatra panaca de ajudá-la, mas algo está bloqueado na Cruz. Ela não consegue se mover na direção da melhora. Só consegue resistir e, resistindo, emagrece ainda mais. Seu psiquiatra diz que ela precisa se mover, ela simplesmente não consegue.
“ Baby, baby/ Não adianta chamar/Quando alguém está perdido/ Procurando se encontrar”. É a segunda vez que eu cito essa música de Rita Lee. Esse é um ponto em que todo mundo, todo mundo pergunta ao médico e se pergunta: como posso ajudar? As tentativas de ajuda muitas vezes pioram a situação.
Eu chamo essa fase de A Letra porque me lembra a cena de Indiana Jones andando sobre as letras que compõem o Caminho. As letras são do nome de Deus, Iaveh, e ele cai no precipício se pisar na letra errada. Esse é o caminho delicado para sair da crise, ou da situação difícil. Pisar nas letras, sem poder dar um passo em falso. Tentar apressar não funciona, tentar resolver na porrada, menos ainda. Como ajudar? Não arredando pé de estar ao lado de quem está perdido, procurando se encontrar. Essa é uma dádiva, ter alguém que não tira os olhos de você. No caso de Ellen, um interno é apaixonado por ela, Luke. Ele é o anjo que não tira os olhos dela e tenta guiá-la ao caminho de volta. Numa sessão de terapia familiar, Ellen fala: “Lamento ter deixado de ser uma pessoa e ter virado uma doença”. Essa é uma batalha de todo dia: fazer o paciente deixar de ser uma doença e voltar a ser humano. Deixar de ser um paciente e passar a ser um agente da própria cura. Para isso, ela precisa acreditar. Até Jesus quando curava dizia: “A sua fé te curou”. A fé é o salto sobre a Grande Dúvida. Pode ser uma dádiva, mas é no mais das vezes uma Prática. Uma prática e uma conquista, que vem através da experiência. Ou através da caminhada no escuro. Campbell a chamou de Jornada Noturna. É um terrível e preciso nome para essa fase do processo. Na Jornada Noturna, só se sabe que temos que prosseguir, mesmo sem saber porquê. Ou para onde. Diria o poeta: “Navegar é preciso/Viver não é preciso”. Acho que sei do que ele estava falando.
O psiquiatra fala para Ellen: “As coisas ruins vão acontecer e não há nada que você possa fazer para evitá-las. Mas você vai precisar prosseguir e construir a sua vida. Não adianta tentar controlar tudo”. Ela entende (e muita gente entende assim) que ele não está nem aí para seu sofrimento é um louco tentando levá-la para lugar algum. Isso não é uma experiência incomum para um curador, ser entendido como um louco indiferente e sádico. Já passei por isso um par de vezes, pode-se assim dizer. O curador quer curar. Precisa que o paciente acredite e deixe de ser paciente, mas agente da própria cura.
A Jornada é longa e pior, não sabemos quando acaba. Só sabemos que navegar é preciso.

sábado, 23 de setembro de 2017

Até o Osso - A Pedra

Para quem não leu o último post, uma rápida atualização: 1 - Faltam mais três posts para esse blog terminar; 2 - Estamos falando das fases de uma Transformação Psíquica, usando como base o filme do Netflix - “To the Bone” , traduzido (?) como “O Mínimo para Viver”. As fases da Transformação foram chamados por esse escriba de : 1 - A Perda; 2 - A Pedra; 3 - A Letra; 4 - O Perdão. Na verdade, gostei dos Pês que iniciam e da sonoridade das palavras. Os sons e os trocadilhos. Mas não é disso que vou falar.
A Perda inicia a jornada. Pode ser uma perda boa. Quando nasce um filho, você perde tudo o que foi a sua vida antes disso. Nada será como antes. É uma ótima perda. Existe uma porcentagem de pais tendo Depressão Pós Parto. Será que somos uma geração pilhada demais? Depois de 612 posts desse blog, podemos concluir que sim. Somos. O fato que a Perda seria melhor chamada de “Ponto de Mutação”, “Ponto de Virada”. Algo assim. No caso do filme “To the Bone”, Ellen faz um blog ou posta nas redes sociais seus desenhos e sua cultura anoréxica. Sim, existem grupos de Cultura Anoréxica, onde se partilha qual o melhor caminho para a morte por inanição. Ellen posta seus desenhos e fala sobre o que sabe, que é o Desespero e o mergulho na Dor. Vivemos uma civilização tão Apolínea em sua obsessão pelo correto, o simétrico, o design perfeito para a sua vida e o Photoshop magnífico para seu perfil no Instagram, não é? Ellen mostra o seu caminho de dor e de visceralidade, na mutilação do próprio corpo que não consegue evitar. Ellen é Dioniso despedaçado. É o espelho invertido de nossa sociedade obesa. Uma de suas fãs se suicida, e deixa o bilhete dedicando o ato a ela, sua musa. Ellen descamba na Anorexia, entra e sai de clínicas e fica pulando entre as casas dos pais separados. Ela não sabe, mas esse é o Ponto de Virada.
Uma família despedaçada, se engalfinhando na terapia familiar. Um pai ocupado demais correndo atrás de dinheiro. Ananké berrando entre as refeições (se o leitor quiser saber sobre Ananké, favor ler o post anterior). Descer ao Inferno é mais fácil que voltar. Para voltar, a Pedra. Ela vai achar o caminho ou se perder de vez.
No treinamento dos feiticeiros e xamãs mexicanos, uma das passagens da iniciação era viver ou trabalhar com o Tirano. Chefes, cônjuges, figuras parentais, tudo serve para treinar esse núcleo indestrutível que precisamos criar internamente, quando vivemos sob pressão. Os xamãs passam por provas inacreditáveis e vibram quando encontram um bom Tirano para treinar a resistência ao sofrimento. Ficariam felizes hoje com a vida no Mundo Corporativo. Temos muito tiranos por lá.
Enquanto a Pedra não se forma, estamos sempre dilacerados pelas dúvidas, os medos, os fracassos. A Internação de Ellen na Clínica Limiar tem essa característica de trabalhar, a todo custo, a Pedra. Ellen tem horror de engordar. Se comer, imagina que vai ficar gorda, e mais gorda e mais gorda até explodir. Ela tem pavor de comer. Pavor das calorias. Para tomar as decisões, para enfrentar o medo aterrorizante, ela precisa tolerar a frustração, o medo, as inevitáveis decepções que todo dia a vida joga em sua cara. Para passar o limiar, é preciso ter um núcleo forte. Resiliente. Essa é a Matéria Prima da Pedra Filosofal. Quem não cria a Pedra Interior, passa a vida escorregando em um Ego de gelatina. Por isso é importante passar pelo crivo da vida. E muitos se perdem no caminho.
Na Perda e na Pedra, Ellen sente a dureza da caminhada. O calor da prova, e vai ser provada quase todo dia. Ela e as outras meninas internadas tentam a todo custo fugir da Comida, que significa Engordar. Engordar significa crescer. Todas sabem que Ananké, a deusa da Necessidade, manda que comam, que voltem para a Vida, que enfrente o Medo terrível de perder o controle.
Terapeutas passam o dia moldando as pedras, ou vendo as pedras se fortalecerem muito, muito devagar. São muitas tentativas e muitos erros para se ganhar consistência. E consciência. Vivemos numa época em que ninguém mais quer bater o creme de leite até ele virar manteiga.
O filme mostra o papel da equipe, mostrando os nervos expostos do Real: a balança, as refeições, a necessidade de encontrar a vida onde ela se perdeu, em meio aos vômitos e os laxantes. Acho que perdemos, como sociedade, a capacidade de dar esperança para essas crianças durante a jornada. Não tem nada mais cruel nesse filme do que o retrato dos pais, egoístas, autocentrados e, acima de tudo, autocomplacentes. Talvez esse narcisismo primário que deixe os jovens à deriva.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Até o Osso

Numa das cenas iniciais do filme do Netflix “To the Bone” (“traduzido” lamentavelmente em “O Mínimo para Viver”) a madrasta de Ellen, a personagem principal desse filme novamente polêmico, mostra o corpo desnutrido e caquético de sua enteada com o celular e pergunta: você acha isso realmente bonito?
Desta vez, a polêmica do Netflix é com a Anorexia Nervosa, Em Thirteen Reasons Why, a polêmica era sobre suicídio em adolescentes. Podemos reunir todo o material do gênero e criar um grupo, sobre Relatos de um Amadurecimento Difícil. Álcool, Drogas, Bullying, Skin-Cutting, Violência e Suicídio, são muitos os Mata Burros que obstruem o caminho do jovens, que há tempos espelham nossos tempos revoltos.
A madrasta de Ellen é um personagem bem interessante, pelo estereótipo de madrasta perua e sem noção, que parece estar empurrando a enteada para a morte. Com o decorrer do filme dá para perceber que ela é a única figura parental que persiste no tratamento e enfrentamento do inferno pessoal que Ellen está passando. Ela que trás um bolo inacreditável. com hamburguer de açúcar escrito : “Coma Ellen”. Dois erros brutais. Na Anorexia, o objetivo nunca é a beleza em si, a magreza é um valor absoluto. Uma pessoa portadora desse Transtorno Alimentar não consegue enxergar como está o seu corpo, muito menos atribuir alguma beleza àquele corpo de prisioneiro do Holocausto.O que está em questão é o medo, o horror de ganhar peso. O medo carregado de terror de ver o corpo mudando e ganhando forma. Portanto, mostrar o espelho e perguntar se acha aquilo bonito é duplamente errado na Anorexia Nervosa: a pessoa não enxerga a magreza e não quer ser bela ou desejável, apenas quer evitar o ganho de peso mesmo que à custa da própria vida. Um bolo escrito (“Coma Ellen”) vai apenas criando um nojo e uma repulsa progressiva por qualquer tipo de comida. Num trecho do filme, Ellen menciona que morre de fome e sonha com comida a maior parte de tempo. Mas morre de medo do ato de comer.
Na Internet e na blogosfera existem grupos de apoio para Anorexia Nervosa. A questão é os Pro Anas, grupos que defendem e estimulam o comportamento de restrição alimentar, magreza extrema e uso de medicamentos para reduzir o peso. Ellen tem um desses blogs, o que acaba criando um problema. Uma de suas “seguidoras” morre, e seus pais enviam e publicam as fotos do que restou de seu corpo. A dificuldade de inserção de Ellen, sua tendência autodestrutiva se exacerbam depois desse evento. Não ganha mais peso e vive sendo expulsa das clínicas e dos tratamentos.
Ananké é a deusa grega da Necessidade. Não sei se alguém percebe, mas ela aparece na Bíblia bem cedo. E eu sei que Bíblia não é um tratado de Mitologia Grega. Pois logo no Genesis, quando Elohim expulsa Adão e Eva dos Jardins do Eden, ele profere as tarefas, ou os castigos: “Eva, parirás em dor”; “Adão, ganharás o pão com o suor de teu rosto”. Aí está Ananké. Ou a boa e velha Realidade. Toda a criação da vida envolve a dor. E ganhar o pão é uma tarefa bem complexa desde que deixamos o Eden. Trabalhar, se formar, produzir, consumir. Nasça, estude, cresça, consuma, morra. Essas são as leis da deusa Ananké. Elas pareciam mais simples no tempo de meus pais. Parecem mais difíceis no tempo de meus filhos. Eu sei que Ananké anda fazendo a festa nesse tempo de transição de Economia, de mundo, de Consciência. Muita gente está sentindo o descolamento e a falta de encaixe nas leis de Mercado. Sim, as leis de mercado são o lugar de Ananké.
Ellen parou a faculdade, não tem amigos e seu blog foi encerrado pela morte horrível de uma seguidora. A sua mãe é uma Bipolar em constante enfrentamento de quadros depressivos e seu pai trabalha o tempo todo e não aparece no filme. Mas é sempre um personagem das conversas. “Seu pai queria ter vindo, mas teve uma reunião importante”; “houve um imprevisto e seu pai não vai voltar”; “Você sabe, alguém tem que pagar as contas”.
A mãe destroçada e o pai obcecado pelo trabalho deixam Ellen nas mãos de Susan, moderna madrasta dos contos de fada. Susan não para de falar. Não entende nada do que está acontecendo e lembra a Ellen que ela não tem para onde ir. Ananké? Sim, ela mesma.
Ananké é a deusa da passagem estreita. Angústia e a sensação de aperto na garganta deriva de Ananké. Como escrevi no último post, nossa vida é como uma sequência de estações e transições. As transições estão cada vez mais difíceis e muitos jovens estão morrendo para fugir da passagem apertada do Real. Os terapeutas trabalham freneticamente nessas transições. Como o psiquiatra de Ellen, que vai receber as chicotadas de sua língua irônica.
Acho que o filme começa com a Perda: Ellen perde seu único contato com o mundo. Como diria Rita Lee: “Não adianta chamar/ Quando alguém está perdido, procurando se encontrar”. Ellen está perdida. O filme vai descrever a sua jornada em meio à Escuridão. Vamos falar sobre isso nos próximos e derradeiros posts.



sábado, 9 de setembro de 2017

Se o Grão Não Morre

Esse Blog chegou na semana passada ao post de número 610. Como já anunciado em Julho deste ano, ele vai ser encerrado agora em Outubro, e o autor dessas mal tecladas linhas vai se dedicar a outros projetos. Vamos encerrá-lo então com 615 posts, número que soma 12, o mesmo de seguidores do Blog. Apesar das manifestações de desespero e inconformismo de ao menos 2 dos seguidores, vamos dar cabo desse projeto. O projeto de dar cabo do Blog. Bem, vocês me entenderam. Vamos ao post de hoje. O 611 :
Um amigo foi a um churrasco onde dois “inteligentinhos” (termo cunhado/explorado por Luiz Felipe Pondé) diziam do futuro do planeta ser de um Paraíso Terrestre onde todos serão Socialistas e Vegetarianos. Uma visão anterior ao Neolítico, onde os proto humanos eram caçadores e coletores e não havia hierarquia, chefias ou curtidas em Facebooks pré históricos. A carne era um artigo de luxo e aparecia muito raramente em meio à exploração de frutas, raízes e grãos. De fato, todos eram “socialistas” antes do termo ser imaginado, e a Raça Humana sobreviveu muito mais pela sua capacidade de colaboração do que de genes egoístas competindo entre si. Com a Revolução do Neolítico, a terra passou a ser cultivada, nasceu a Agricultura, e, com ela, o trabalho, os papéis sociais e as hierarquias foram se complexificando. Homens passaram a explorar outros homens e os perdedores da disputa eram feitos de escravos, enquanto que uma casta de Homens Deus exigiam e faziam sacrifícios de jovens e de animais para que a terra continuasse frutificando em boas colheitas (hoje em dia eles guardam milhões em apartamentos, mas essa é outra história). O sonho igualitário acabou, com a estratificação de funções e responsabilidades. Acabou o paraíso sem hierarquia, que não existe nem nos mosteiros budistas, mas resiste na cabeça de marxistas e professores de Sociologia. As crianças não passam fome em Cuba, dizem, mas se quiserem se desenvolver e pertencer ao mundo, vão ter que subir no bote e atravessar o mar quando crescerem. Mas não é esse o assunto do post.
Junto com a Agricultura, veio a Mitologia fundada em deuses agrícolas. Não é à toa que Jesus é morto e desmembrado simbolicamente, desce às profundezas da terra e ressuscita no Terceiro Dia. A Morte e a Ressurreição são as forças intrínsecas da Vida, em seu Eterno Ciclo de Transformação. Sempre que o homem tenta dominar essa força da vida, grandes tragédias ocorrem, como podemos ver nos noticiários. O fato é que a Morte como condição geradora da Vida chegou à Mitologia através do salto tecnológico que foi dominar o Grão, de onde surgiam novos frutos e alimento. A vida se dá na morte do Grão.
Talvez dessa mudança cultural do Neolítico e o domínio de tecnologias ainda mais avançadas, da Fala e da Escrita, que surgiu o que Jung chamou de Arquétipos: o Céu, a Terra, o Dia, a Noite, a Mãe, o Pai, o Herói, a Criança Divina. Tudo o que o homem via e em seu assombro pintava nas paredes foi fundando uma Mitologia, em que as forças inerentes à Vida e à Morte foram virando Deuses que protegiam ou se enfureciam com os humanos. As trapaças da sorte e do azar passaram a ser regidos por deuses de formato e afetos muito parecidos com os dramas de nosso desenvolvimento. Os Mitos hoje viraram as celebridades e suas histórias glamurosas e tragicamente humanas. Marte e Afrodite se deitam nas páginas dos tablóides ou nos sites de fofocas.
A vida humana nasce na Primavera, onde o grão finalmente floresce ou se manifesta. Os primeiros setênios de nossa vida são dedicados a formar a nossa estrutura como planta psíquica. Erros de formação e feridas nesta fase vão nos acompanhar em toda a vida como virtude ou doença. A fase Heróica ou de maturidade, que coincide com os anos de adulto jovem até a meia idade, seria o Verão: chuva, reprodução e calor interno e externo. Na meia idade e maturescência seria o Outono, onde se perde o vigor e o calor da juventude, mas, se tudo der certo, vem o ganho da serenidade e das temperaturas amenas. Em alguns casos, a Sabedoria que pode conduzir os jovens e proteger as crianças. O Inverno vem com a perda de algumas funções e do calor de outras fases. Jung dizia que às perdas do Corpo corresponde uma grande expansão energética da Psique. Como cantou Caetano, o homem velho deixa a vida e morte para trás. O Inverno é um período de interiorização e contemplação da vida e do mundo. Ou de dor e infortúnio, como vemos em muita gente.
Um bom trabalho terapêutico é seguir e traduzir para as pessoas as diversas fases da vida, onde, como o Grão, morremos e ressuscitamos muitas vezes. Nos próximos quatro posts vou falar sobre essas fases, que se repetem em nossas vidas e estações: A Perda, a Pedra, a Letra e o Perdão. Vou usar um filme que está no Netflix, que muito curti: “To the Bone” ou “O Mínimo Para Viver” como base para as diferentes fases de nossa vida e do processo de Transformação. Isso pode dar origem a outros Blogs e outras falas no Futuro.

domingo, 3 de setembro de 2017

As Pedras nas Mãos

Um caso que esteve e está nos jornais de hoje e da semana é situação repetitiva de homens sendo presos em transporte público após ataques sexuais a mulheres. A situação causou escândalo quando os agressores foram soltos pelos juízes sob alegação de que era um Ato Libidinoso, não um Estupro. Os juízes foram execrados e espinafrados pela mídia, que sugeriu que a brandura da deliberação se deu porque o objeto da agressão sexual não era irmã ou filha dos juízes. Não sei sobre o caso do Rio de Janeiro, mas vou colocar a minha colher no caso do rapaz de São Paulo, Diego de Novais, preso novamente neste final de semana por repetir o mesmo ato, na mesma região (entre a Avenida Paulista e Brigadeiro), tendo sido dominado pelos passageiros e levado para a Delegacia e para as manchetes de jornal.
A moderna Neurociência foi inaugurada em meados do Século Dezenove, quando um operário chamado Phineas Gage sofreu um acidente de trabalho, na construção de uma ferrovia em Vermont, EUA. Uma carga de explosivo fez entrar uma barra de ferro abaixo de sua bochecha, destruindo sua órbita ocular e saindo pelo Crânio. A barra de ferro atravessou massa encefálica da região Frontal de seu Cérebro. Para assombro dos médicos e colegas, Phineas Gage sobreviveu ao acidente praticamente sem sequelas e pode, depois do período de convalescença, voltar ao trabalho. Mas nunca mais foi o mesmo: passou a ser desatento, desrespeitoso às ordens e à chefia. Passou a beber demais e a perder empregos. Não obedecia mais comandos nem aceitava conselhos. Terminou a vida como atração de circo, o homem que sobreviveu à uma barra de ferro na cabeça. Seu caso elucidou o papel do Córtex Orbitofrontal no controle de impulsos e organização de cognição e de comportamento. O seu Crânio e a barra de ferro são hoje peças de museu.
Diego de Novais é nosso Phineas Gage trágico e tupiniquim. Mais de um século depois ele sofre com a mesma ausência de tratamento e recursos que Phineas sofreu há um século e meio atrás. A sua tragédia não se dá por falta de conhecimento científico, mas pela conjunção de uma família pobre e com extrema privação social e cultural e a dificuldade de estabelecer e manter esses casos em tratamento. Diego sofreu um acidente com história de TBI (Traumatic Brain Injury), lesão cerebral por trauma. Ficou quinze dias internado no Hospital das Clínicas, passou por duas cirurgias e saiu praticamente ileso, como Phineas Gage. Como Phineas, nunca mais foi o mesmo: não parou em emprego, tornou-se isolado socialmente e quieto. Três anos depois do acidente, começou a ter o comportamento sexual abusivo/impulsivo. Já teve muitas passagens e BOs por repetir o ato impulsivo de se masturbar se esfregando em mulheres dentro de coletivos. A característica orgânica de seu comportamento se mostra na repetição pueril do ato, sem controle da ação e previsão de consequências, mesmo com a repercussão que teve nessa semana. Ouvi uma entrevista de seu pai na rádio e fiquei tocado por aquele senhor, evidentemente muito simples e semianalfabeto, dizendo que esperava que seu filho recebesse tratamento para poder entender o que tinha feito e pedir desculpas às mulheres atacadas. Lamento dizer que isso não vai acontecer. O que o tratamento pode fazer é reduzir a sua impulsividade e ensinar a modular os impulsos, mas, depois de onze anos do acidente, o rapaz já perdeu muito de sua reserva cognitiva. Ele não vai entender a complexidade da situação ou o sentimento das vítimas.
O problema se deu pela conjunção do despreparo e dificuldade de entendimento de sua família para a busca de ajuda e a falta de recursos de nossa Saúde Pública. Some-se o fato que Diego tem um quadro clínico que está na franja, na exata interface entre a Psiquiatria e a Neurologia. O seu quadro é psiquiátrico, de perda de capacidade cognitiva e transtorno de controle de impulsos e comportamento sexual impróprio, mas a lesão que provocou o quadro foi neurológica. O quadro pode ficar pinguepongueando entre as especialidades, sem alguém que o assuma. Quem deve assumir o caso, na minha opinião, é o Psiquiatra, que deve estar aparelhado para entender e medicar o rapaz. Isso acontece, em nossa Saúde Pública? Melhor não perguntar.
O caso todo mobiliza uma imensa compaixão: compaixão até pelo juiz, que opera no meio de nossa desgraceira social e não pode encarcerar alguém que se masturba no ônibus, pois não temos mais onde alocar gente que comete crimes muito piores. Compaixão pela família e pelo rapaz, um excelente candidato a ser espancado e morto na rua ou na cadeia, agora que sua foto está em todos os jornais. Compaixão até pela Imprensa, tomada por justa fúria feminista diante das agressões sexuais que mulheres sofrem em coletivos diariamente, mas pinta como monstro um deficiente.
Vivemos um período de notícias e fatos transmitidos em tempo real que subtraem nossa capacidade de reflexão e entendimento. A falta de entendimento é a origem dessa e de outras tragédias de nossa Saúde Pública.

domingo, 27 de agosto de 2017

Millennials

O paleontólogo Jay Gould descreve a evolução das espécies em períodos longos de estabilidade, até a eclosão de uma catástrofe, quando muitas espécies desaparecem, mas há um salto de criação na natureza, com a formação de novas espécies que evoluem muito mais rápido do que se esperaria por mecanismos darwinianos. Isso abole a evolução cega e aleatória proposta por Darwin: existe uma inteligência evolutiva, um vetor invisível no processo. Traduzido em termos atuais, quem se reinventa, evolui e prospera, quem estaciona, perece. A tal história do ideograma chinês para Crise, onde perigo e oportunidades estão no mesmo símbolo, se aplica. A transição é o momento de maior perigo. Uns crescem, outros sucumbem. É um período de perda e de oportunidade.
Muito tem se falado sobre os milennials, a geração nascida no entorno da virada do século. Como eles são diferentes e desadaptados ao nosso Hipercapitalismo. Respeitam pouco a autoridade, não tem paciência com os processos e querem resultados e gratificação rápida. Pelo ângulo de visão dos tiozinhos, como eu, são mimados pela geração de pais que aderiram à infantolatria, a adoração das crianças e da infância como território mágico de prazer e ausência de frustração. Criamos então uma geração de mimados e idólatras, que se acham pelo simples fato de estarem no mundo? Tudo deve ser resolvido em cliques e recorta e cola, sem demandar esforço ou reflexão? O Princípio do Prazer se sobrepõe ao Princípio de Realidade, ou a Realidade, como entendemos, deixa de ter o primado da Existência?
E se essa geração vem para fundar outros jeitos de estar no mundo? A Era Digital criou uma crise gigantesca no mundo. Nada ficou intocado. Profissões deixam de existir, nichos de mercado desaparecem, os velhos sistemas de controle se tornam mais intensos e fascistóides. Vivemos a ditadura da superfície, perdendo o que nos torna humanos, que é a capacidade de reflexão?
Os milennials não se adaptam a empresas tradicionais, com horários fixos e chefes engravatados. Buscam os processos mais rápidos e fluidos, as microintervenções e a criação de grupos operativos horizontalizados. É a decadência da Imago Paterna, ou a glorificação definitiva de um único Pai, como um profeta dos novos tempos. No filme Steve Jobs, esse paradoxo é exposto em DRs intermináveis sobre essa metáfora paterna. Steve Jobs está lançando o iMac, e é tratado como um deus e profeta pela sua legião de fãs, mas é confrontado nos bastidores por sua filha, Lisa, para quem foi um pai ausente e autoritário. Essa dualidade é muito bem exposta, entre o profeta da Era Digital e o Pai odiado por filha e comandados. Um engenheiro chave de sua revolução digital fala isso com todas as letras: sempre te odiei, a o que Steve responde que isso é uma pena, pois sempre gostei muito de você. O Millennial ama o profeta e odeia o Pai que lhe força a crescer.
Se a nossa vida é uma jornada, onde períodos de estabilidade são seguidos por violentas crises de mudança e transformação, os terapeutas tem sido chamados cada vez mais para ajudar esses millennials a fazer a sua transição. Alguns amigos e colegas tem pedido a nossa ajuda para olhar por seus filhotes a fazer essa caminhada entre uma vida protegida da infância e da adolescência para um mercado selvagem na vida adulta. O meu mestrado foi em Psiquiatria da Adolescência, o que é segredo, porque pessoalmente acho um pé no saco as mães chorosas e os pais omissos dos adolescentes disfuncionais. Sempre atendi mais adultos e idosos. O fato é que acabei me ferrando, vinte anos depois do Mestrado, pois a Adolescência se deslocou para o período entre os vinte e os trinta anos da galera. Eles são os atuais adolescentes, que exprimem em carne viva as dores do mundo. Eu sobrevivo ao meu “castigo” tentando entender a sua mensagem, o que eles estão percebendo nesses novos e acelerados tempos que as velhas fórmulas e os velhos entendimentos arquetípicos não dão mais conta. Ajudo os filhos dos outros e rezo para que ajudem meus filhos nessa travessia cheia de perigos, mas que é mais difícil, ou impossível, para quem se acovarda ou foge à luta.
Os millennials podem trazer um mundo mais colaborativo, menos consumista, mais ligado no tempo do Hiper Presente e menos alienado de valores e propósito. Em vez de censurar e torcer o nariz, é melhor acender os ouvidos e os olhos para o que está vindo. Porque estamos numa crise evolutiva daquelas. As pessoas entre dezoito e vinte e cinco anos são um grupo de risco nessa crise. A Psiquiatria e os economistas estão demorando a enxergar essa situação. Pais, terapeutas, lideres, empresas, devem parar de chorar as pitangas e tentar ajudar essa turma a nadar até encontrar terra firme. Ou meio firme.

domingo, 20 de agosto de 2017

As Pontas do Mundo

Um lugar comum de entrevistas de emprego e de Coaching é a tal pergunta: “Como você se enxerga em cinco anos?”. Eu consigo entender que a construção de planos ou de intencionalidades seja importante. Até o delinear de um prazo, também é ok. Mas talvez a maior fonte de sofrimento humano seja a perspectiva de enxergar os próximos anos e ter que ter um plano, um projeto, uma garantia. Os planos macro sepultam o entrelaçamento de pequenos momentos que compõe o que temos, que é a infinidade de aqui agoras que vão se bifurcando em quase futuros. O Macro é inimigo do Micro. Nosso Cérebro caça regularidades e garantias. Foi projetado para isso. Nossa tarefa é reprogramá-lo.
“A vida é o que acontece enquanto você está fazendo seus planos”. Essa pode ser uma boa resposta para a tal pergunta de manual de autoajuda, ou de estagiária de RH: espero que a vida aconteça enquanto os coachs programam o futuro. A vida corre nas bordas do que se espera dela. Eu me vejo em cinco anos tentando arredondar as pontas do mundo, como faço hoje. Todo dia.
Fiquei bastante tocado com uma matéria da Folha, de alguns anos atrás, em que uma moça de origem muito humilde descreveu como ficou feliz após tornar-se budista. Ela era faxineira, e a principal descoberta foi que podia ser muito feliz sendo faxineira. Tornou-se uma profissional cuidadosa e sentia que cada movimento da vassoura tinha significado e devia ser caprichado. Em vez de fazer planos de carreira, como virar a Faxineira das Estrelas ou lançar alguma marca de pano de chão com a sua grife, tratava de estar presente em cada momento de seu dia. Em vez de fingir que limpa e tentar se livrar do serviço o mais rápido possível para poder voltar a viver fora da casa da patroa, ela consegue tirar um grande prazer em fazer o seu trabalho direito, sem checar seus e-mails ou postagens no Face a cada doze segundos. A vida é o que acontece quando você não está postando nas redes sociais. Se antes o Futuro nos roubava uma imensa parcela de nosso presente, agora o Presente se nos escapa na tentativa de atualizar o Passado. Postamos o que comemos, onde estivemos, quem apareceu na Selfie. O postar das fotos e dos comentários é uma constante luta para registrar o que já passou e ou ler os comentários que funcionam como um Espelho. Recebo um like, logo existo. Vou para lugar nenhum, com muitos seguidores.
A meditação é, entre outras coisas, uma disciplina para entrar na cascata infinita de aqui agoras entre uma respiração e outra. Uma boa sessão de terapia é uma tentativa de entrelaçamento delicado do que me torna e me impede. Uma trama delicada de lembranças, associações e novas sínteses. Liberamos as dores e os falsos programas de vida, revemos as crenças para construir não outro Futuro, mas outro estar no mundo. Um novo e renovado compromisso com estar no mundo.
Uma personagem da série Big Little Lies descreve o choro de seu bebê ao nascer. Ela pede perdão por tê-lo trazido ao mundo, tendo sido concebido por um estupro. Ela sente na criança um horror de vir a esse mundo, e quase se arrepende de ter levado a gestação até o fim. Na série, ele é um menino doce que sempre é acusado de estar machucando uma aluna. Uma boa terapia poderia ajudar a criança e sua mãe de desembaraçar essa fantasia, construir uma nova história fora desses territórios de violência. A mãe tem a fantasia de que o filho vai herdar a violência de seu pai, o menino sofre com isso sem perceber. A mãe constrói sem perceber tudo aquilo que pretende evitar.
Tentamos desembaraçar essas tramas de passado, esses medos do futuro, enquanto a Vida acontece indiferente a todo esse labirinto de blá blá blás. Como dizia um mestre zen, meu cachorro não está nem um pouco preocupado com o sentido da vida. E eu diria, nem como vai se enxergar daqui a cinco anos.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

De Alma e Sentido

No post anterior acabei falando da palestra de Mia Couto e sua advertência sobre não perder a Alma para atender as pessoas. A Medicina deveria ser exercida com Alma. Isso não dá para se ensinar nas cadeiras da Faculdade de Medicina. A Alma não aparece nos microscópios, nem nos aparelhos de Ressonância Magnética. Se está fora da Física, então é Metafísica. Se é Metafísica, é lixo, perante a Ciência Materialista. Pois a Ciência Materialista é como o governo Temer, demora para morrer. Se Einstein cunhou no início do século passado a equação da Relatividade, em que matéria e energia são estados diferentes de condensação e se complementam, ou seja, a matéria em si não existe, então, tecnicamente a Ciência Materialista bateu as botas nessa ocasião. Sem mencionar a Física Quântica, que jogou outras pás de cal. Mas esse é outro assunto.
A entrevista psiquiátrica foi substituída pela aplicação de escalas padronizadas, visando quantificar sintomas e achados para um diagnóstico menos subjetivo. Isso criou a Torre de Babel de escalas, competindo entre si como youtubers tentando ganhar um nicho de público. Isso significa a perda da Alma na entrevista. Lembro de uma consulta em que a cliente me descrevia detalhadamente a sequência de perdas dos últimos anos de sua vida: mudança de emprego, perda de sua mãe e tia depois de longo processo de doença, mudança de casa, desadaptação ao chefe. Uma odisseia moderna que chamamos de crise de meia idade. A sua descrição era detalhada e mostrava como tinha atravessado toda essa sequência de lutos e se organizado internamente em sua nova vida. Só estava com problemas para dormir, daí a consulta. Se ela tivesse sido entrevistada por um computador, digo, por uma escala padronizada, teria o diagnóstico de uma Reação ao Estresse, em curva de recuperação. Só faltou um detalhe. Durante a entrevista, a sua fala lógica e articulada transmitia em mim (veja o pronome, “em” mim, não “para” mim) uma profunda, cortante sensação de tristeza. Depois da tristeza, um cansaço, mas não um cansaço físico, um cansaço de Alma. Como uma vida em preto e branco. Os outros parâmetros clínicos estavam ok e ela estava vivendo bem. Era uma pessoa “funcional”, outro critério derivado da Revolução Industrial para medir a melhora do paciente: ele funciona? Está em condições de pertencer à Sociedade de Consumo? Então beleza. Pois ela estava bem e funcional, com uma dificuldade em dormir que parecia de fácil manejo. E o contato com ela transmitia uma profunda tristeza. Falei com ela sobre isso e introduzi um medicamento para esse estado de esgotamento, que fica sob o guarda chuva da Depressão. A resposta clínica foi impressionante até para mim mesmo, que levantei a hipótese diagnóstica. Felizmente ela aceitou a hipótese e tomou a medicação. E foi como enxergar colorido de novo.
A Alma está conectada com o Cérebro Emocional. Está diretamente correlacionada com nossa capacidade de sentir. Sentir a mim mesmo, sentir o outro. A virtualização do mundo está amortecendo a capacidade de sentir. O luto passou a ser uma foto ou desenho em redes sociais. A solidariedade é uma mensagem inbox. Tudo rápido, um clique e já vamos rir de um vídeo engraçado. A perda da Alma se relaciona à perda da temporalidade do corpo. Sim, porque é o Corpo que gera as sensações de Alma. O neurocientista Antônio Damásio formulou essa teoria, do Marcador Somático. Nosso Cérebro é moldado e se organiza pela sensação primeira de ter um corpo e, dentro desse corpo, tem uma mente que pensa e sente. Pensar e sentir são atividades integradas, que o autor desse post chama de Pensentimento. A Alma se localiza na fenda entre Pensamento e Sentimento, mas começa e termina na Sensação e no Sentimento. A Neurociência diria que se funda nos Neurônios em Espelho, que nos permitem bocejar quando alguém boceja e também sentir a dor do Outro quando o Outro não consegue mais sentir nada.
Salvo engano desse escriba, no Juízo Final dos Egípcios, após a morte, a Alma Imortal do finado ou da finada era pesada numa balança. O peso a ser medido deveria ser o da quantidade de vivências e de participação efetiva na vida que a pessoa conseguiu ou não, adquirir. O peso da alma talvez fosse medido pela capacidade de ver com os olhos do coração. E na quantidade de amor vivido e gerado. Isso parece um mambo jambo metafísico para a Ciência Materialista. Mas a matéria nem sequer existe, não é mesmo? Colocamos a alma naquilo que faz sentido. Procuramos então por Alma e por Sentido.

domingo, 6 de agosto de 2017

Morrer de Alguém

Mencionei em post anterior uma palestra do escritor moçambicano/português Mia Couto no Brain Congress em Porto Alegre, em Junho desse ano. O fio condutor de boa parte da sua exposição foi sua experiência, na África, com um caçador que estava perdendo a visão mas ainda assim conseguia enxergar o rastro da caça com os olhos de seu coração. Mia Couto ficou tão tomado pelo encontro que marcou uma consulta com uma oftalmologista na África do Sul, tentando socorrer o amigo. No dia da consulta, compareceu o irmão do tal homem, que “tinha os mesmos olhos”. Mia imaginou que, já que o homem falava e vivia no meio de metáforas, aquela fosse apenas mais uma verdade simbólica que não era verdade no mundo real. Mas estava enganado. A médica observou que a degeneração da Retina do homem que foi, o paciente “errado”, tinha base genética e tiraria a visão dos dois irmãos. Mia concluiu que realmente tinham os mesmos olhos, que compartilharam a luz e agora adentrariam juntos o escuro. Quando pode voltar a visitar a África, não se sabe quanto tempo depois, o escritor recebeu a notícia que o velho caçador havia morrido. Como bom ocidental e bom curioso, quis saber do que o homem tinha morrido. Como essa cultura vive por meio de metáforas, disseram que ele não havia morrido de algo, mas de “alguém”. Quando uma pessoa morre, morre pelo caminho de alguém. Como já escrevi no post, lembrei muito de meu pai nessa palestra. Meu pai morreu “de” minha avó. Minha avó morreu da morte de sua mãe. Aos oito anos de idade, seu mundo desabou com a morte prematura de sua mãe na era pré antibióticos, e a menina que seria a minha avó viu seu pai cair no mundo e foi mandada com sua irmã para o Colégio Interno. Ser mandado para o Colégio Interno era a ameaça fantasmagórica de muitas infâncias antigas. Os pais, quando perdiam a esposa, não se viam na obrigação de cuidar dos filhos. As crianças órfãs eram distribuídas entre outros familiares ou entregues para a criação de padrinhos. Chico Xavier viveu e morreu de sua mãe, também falecida precocemente. A sua mediunidade se manifestou muito cedo quando justamente conversava com a sua mãe, enquanto sofria abusos na mão de uma tia amarga e violenta. O fato é que minha avó passou a vida com medo de ser roubada, com medo de perder tudo o que tinha. Quando ela morreu, foi um grande trabalho a limpeza de seu apartamento. Ela guardava de tudo, barbantes, papeis de presente, caixas. Hoje seria medicada como acumuladora. Ela ficou a vida toda temendo que a vida lhe desse outra rasteira. Meu pai internalizou profundamente esse medo e também buscou defender-se do devir, buscar a segurança e evitar as altas e as baixas das marés da vida, que sobem e descem para todos. Esse medo teve um papel importante na sua morte prematura.
Morrer “de alguém”, então, é uma percepção profunda e metafórica da Ferida Arquetípica que nos constitui. O tal do Pecado Original, na minha opinião, é exatamente esse: é vir ao mundo com a tarefa de cuidar da ferida de seus antepassados, sua cultura, sua história. A sensação mais triste do Ego, que é a da Separação. Nosso mundo darwiniano reforça nas pessoas a sensação de solidão e de Separação. Chico Xavier encontrou em seu mundo interno o caminho de sua mãe. Teve sorte de viver em outro tempo, pois no nosso seria medicado e diagnosticado com Esquizofrenia Infantil. Eu prefiro imaginar que ele achou dentro de si o que buscamos em nossas terapias, que é cuidar da ferida para não morrer dela. Evitar de morrer da ausência de alguém que pode nunca ter partido.
Mia Couto fez uma recomendação muito séria para a plateia de psiquiatras, neurologistas e neurocientistas que bebiam de suas palavras: nunca percam a sua Alma no lidar com os seus pacientes. Nunca esqueçam da imensidão que é a vida de cada um. Eu diria para ele que a grande questão é estar junto quando se atravessa grandes desertos no escuro. Isso é clinicar com Alma.

domingo, 30 de julho de 2017

O Fim, o Início e os Meios

O escritor argentino Jorge Luis Borges passou u bom período de sua vida como escritor tentando encontrar a sua voz de criador, a forma pela qual conseguiria fazer fluir a sua literatura. Quando finalmente ficou feliz com o que nascia da sua pena, tratou de sumir com tudo o que tinha escrito antes e não representava o que ele tinha vindo ao mundo para manifestar. Seus textos foram ficando cada vez mais curtos, com uma espécie de fusão de prosa e poesia, que foram virando a mesma coisa. Num de seus contos, um explorador procurava em meio a deserto e paisagens inóspitas uma tribo, um agrupamento humano que se dizia, tinha encontrado a fonte da imortalidade. Depois de uma longa procura, encontrou a tal tribo, e, com grande surpresa e desolação, percebeu que a imortalidade tinha transformado aquela gente em selvagens, que não falavam mais e ficavam grunhindo em total inconsciência, na miséria e na nudez. Termina assim o conto. Borges deixa a metáfora pendente sobre a cabeça do leitor e ele que se vire com isso. Eu entendo que ele descreve que, a percepção da Morte e da finitude talvez seja a característica que nos constitue como humanos. Perceber que nosso tempo é finito e que há um futuro com o qual temos que lidar e, quem sabe, criar, talvez seja uma das maiores fontes de angústia do humano, mas é também o aguilhão que nos espeta para frente. O que vou construir, o que aprender, qual consciência ampliar, o que experimentar, quanto gozo gerar e receber, isso tudo impulsiona um homem na direção do que será o mundo após a própria morte. O conto mostra que, sem a percepção da finitude, o ser humano deixa de ser movido por essa angústia fundadora e perde a razão de viver. Esse é o paradoxo do conto. O que nos permite viver é a Morte.
Por falar em finitude, tenho namorado a ideia de parar com esse blog nesse ano em que ele completa sete anos de vida e mais de seiscentos posts publicados até aqui. Tem um belo apanhado de assuntos aleatórios que representam algumas das melhores e piores ideias desse autor. Posso continuar com outros textos e temas diferentes. Quem sabe, um blog que tenha um tema específico, como Foco, Motivação, Jornada da Alma. Como escrevi no post anterior, fazer um texto em Animus e outro em Anima, em espaços diferentes e sem os textos dominicais. Sem um ritmo específico, ou com uma ausência de ritmo. Vou continuar com esse blog até Outubro e aproveitar essa sensação de tempo se esgotando para deixar esses textos mais afiados, mais sinceros, mais definitivos. Tem muito material para o visitante tomar contato com as impressões do autor e está na hora de mudar de formato e de voz. Talvez até escrever um blog de verdade, porque a estrutura desse aqui é muito mais de uma coluna de ensaios, artigos, crônicas. Tem sido um passeio bacana dentro desse caminho que compartilhamos todos, como buscadores. Eu, Caçador de Mim, diria Milton Nascimento.
Minha vida como terapeuta e médico me ensinou e me ensina a força, a potência de silenciar. Como o silêncio torna intenso o que foi dito e, mais ainda, o que pode ser dito mais adiante.
Agradeço aos seguidores (todos os doze) e aos visitantes, que são bem mais numerosos. Vamos botar um pouco de pimenta nesse angú. Vamos visitar cada post como se fosse o último. É o fim que dá sentido ao início e o meio.







domingo, 16 de julho de 2017

Jovens que Adoecem

Um grande filósofo/ensaísta que anda muito fora de moda foi Gaston Bachelard. Capaz de ser extremamente preciso em seus ensaios filosóficos e igualmente poético e suave em suas reflexões sobre a lentidão e o repouso. Dizia Bachelard que ele escrevia livros em Anima e Animus, ou seja, com a sua Psique feminina e masculina. Quem ler com atenção as mal tecladas linhas desse blog vai notar essa alternância de posições. Com uma tendência maior a escrever em Animus, textos mais analíticos e com alguma posição a se tomar. Se usarmos uma leitura política, podemos achar que esse blog é linha de expressão da mais pura ideologia coxinha, quando aponta os delírios anos 70 da escumalha bolivariana que tomou conta da esquerda da América Latina, também alcunhada de América Latrina por alguns. Vazou um vídeo da senadora Gleisi Hoffmann (cujo marido é acusado de desviar centenas de milhões de reais de créditos consignados de velhinhos), antevendo a nauseante pantomima na votação da reforma trabalhista que ela e suas colegas senadoras protagonizaram. A senadora tem feito uso abundante do jus esperneandis desde que ela e sua galerinha foram apeados do poder, sempre com resultados pífios, o que se repetiu nessa votação. Na gravação, ela desenha a sua estratégia de obstrução da votação e radicalização da tensão social, com aprofundamento da crise econômica e do desemprego para levar a um cenário de convulsão social. Isso é tão Che Guevara, não é mesmo, qual é o próximo passo, treinar uma guerrilha no Araguaia? Vamos continuar com a fantasia de um senhor do século XIX que nunca ganhou um tostão com seu trabalho e dizia que o Capitalismo só terminaria com a Luta (ou a Guerra) de classes? Que coisa mais moderna e lúcida. Com excelentes resultados, diga-se.
Em outros posts, o autor parece tomar o lado dos trabalhadores, com os abusos e as perversões do Capitalismo. Estamos caminhando, nesse hipercapitalismo, para uma linha de rompimento do tecido psíquico do mundo: todo mundo querendo consumir ou realizar seu sonho de consumo, as empresas querendo vender mais e reduzir custos, aumentando lucros, está levando o planeta à asfixia. Na China que os sistemas se uniram à perfeição: trabalho semi escravo e trabalhadores anencéfalicos do Comunismo e hiperprodução/consumo/desastre ecológico do Capitalismo. Estamos ferrados pelos dois lados, pela esquerda bolivariana arcaica e pelos lobos famintos da direita, que perpetuam a miséria e o atraso?
No Matrix, o personagem principal, Neo, é colocado diante de duas pílulas coloridas: com uma ele pode viver a sua vida em sono profundo, trabalhando e produzindo para sua energia ser sugada pela Matrix, uma rede de máquinas infinitas que se alimenta da energia, criatividade e esperança humana ( As grandes corporações e os conglomerados econômicos e de mídia?) Pode, por outro lado, tomar outra pílula e enfrentar esse sistema, para devolver às pessoas o direito à Consciência. Quem se lembra desse filme sabe qual foi a escolha de Neo.
Vivemos nesse mundo em que a Matrix é disputada pelos discursos dos perversos de plantão, de um ou de outro lado do escopo do discurso político: o objetivo é a dominação do espaço em que as pessoas estacionam seu Sistema de Crenças, de preferência com uma passividade bovina. Convivemos com a tentativa de apropriação do Estado pela escumalha petista por treze anos. A derrocada dos obesos e empanturrados peemedebistas e tucanos deixa um vácuo perigoso de poder e de discurso, propício a novos “salvadores” e aventureiros tipo Collor. Ou Bolsonaro.
Como dizia Renato Russo “há tempos, nem os santos/ tem ao certo a medida da maldade/ e há tempos são os jovens que adoecem”. Perdemos a noção do tamanho da maldade e os jovens desejam sair desse país, como o poeta percebeu.
Tomar a pílula da Consciência ou da Realidade significa continuar apontando a Sombra dos Sistemas que buscam, à esquerda e à direita, subtrair das pessoas sua capacidade de percepção e reflexão. Em tempos de um novo fascismo, o das redes sociais, a fuga para discursos binários e para o ódio gratuito também tem sido discutido nesses posts.
O partido que se toma nesses escritos é o da Consciência, em tempos que o discurso político disputa o primado da ignorância e da estupidez.

domingo, 9 de julho de 2017

Esperar no Silêncio

O menino segurava a mão de seu avô, no cenário chuvoso do funeral de sua mãe. Um cenário chuvoso é sempre mais adequado aos funerais. Pergunta ao seu avô, que era um Pediatra, por que não tinham conseguido tirar o tumor da cabeça de sua mãe. O avô explicou que o tumor estava espalhado e se interpenetrava nos tecidos do entorno, não dava para ser retirado. Não havia nada a fazer. O menino cresceu e virou um médico, com uma particular motivação em entender as situações em que, apesar de todos os conhecimentos e recursos, as vidas se vão e nada se pode fazer. Virou pesquisador não de Oncologia, mas de Choque Séptico, uma causa bastante importante de morte hospitalar, com o agravante de se dar algumas vezes de forma paradoxal, interrompendo uma curva de melhora clínica. Descobriu que essa entidade clínica, ao contrário do que se pensava quando me formei, está menos relacionada com atividade de bactérias resistentes ao tratamento do que a um estado de completo esgotamento do organismo em manter o próprio equilíbrio, gerando quedas abruptas de pressão arterial e parada cardíaca. Hoje está pesquisando as formas de evitar que esse estado de exaustão se estabeleça, antes que seja tarde. Como no romance de Mary Shelley, ele cria uma rixa com a Morte a partir da perda de sua mãe. Ao contrário do Dr Victor Frankenstein, ele não está criando monstros a partir de sua dor. Porque a dor pode criar monstros que nunca nos abandonam.
O Tao Te King, assim como o Taoísmo, usa um conceito muito difícil de apreensão pelas nossas mentes ocidentais, que é o Wu Wei, a “Ação pela Não Ação”. Conceito bem difícil para a Medicina. Tratamos a doença e a morte como predadores à espreita. Temos que antecipar seus ataques. Muito estrago se faz a partir dessa fantasia: procedimentos invasivos, caros, condutas e atitudes proativas que podem gerar outras complicações. Pois se toda ação gera uma reação, o que fazer pelo poder da Não Ação? A hora de maior aflição, que é a hora em que não se sabe mais o que fazer, talvez seja a hora de esperar na Não Ação?
O que eu consigo entender sobre a Não Ação é que ela não significa simplesmente cruzar os braços ou deitar as armas. Significa aquele momento de silêncio em que nada há a fazer senão esperar. Mas esperar à espreita; à espreita de algo que vá se manifestar. No filme Apollo 13, entrevistam a mãe de Jim Lovell, supostamente demenciada, sobre seu filho, preso dentro de uma espaçonave entre a Terra e a Lua. Ela se recorda de um episódio em que seu filho voava sobre a costa do Pacífico e seu jato teve uma pane elétrica. Jim perdeu todos os instrumentos de navegação e passou a voar às cegas, no meio da noite do outro lado do mundo. Em vez de se desesperar, o piloto entrou em perfeito Wu Wei, e esperou no meio do silêncio e do escuro, que parecia mortal, o que viria em seu auxílio. Foi quando notou que a Lua se refletia nas algas da costa, fazendo um rastro prateado. Isso serviu para a sua orientação e ele seguiu aquele rastro até achar as luzes das cidades e o caminho para a sua pista. Podemos chamar isso de sorte, ou de Mistério. Fica ao gosto do leitor. A velha senhora resumiu o que foi o resgate de seu filho: pode ser que ele não tenha achado um jeito ainda, mas vai achar.
Herdei de Jung (e Jung herdou do Taoísmo) o gosto pela ação médica que restaura o equilíbrio. A Ação delicada e, em algumas situações, a Ação pela Não Ação. Não que seja fácil e, muitas vezes, o terapeuta é confinado à Não Ação pela Defesa do próprio paciente. Acho que, como o colega cuja história descrevi acima, também tive uma pendenga com a Morte quando vi meu avô se esvaindo num Cãncer de Esôfago, lá pelos idos dos anos setenta. Não gosto das situações onde não há nada a fazer, mas imagino, como o piloto que perdeu os seus aparelhos, que sempre vai acontecer algo se eu esperar no Silêncio.

domingo, 2 de julho de 2017

Trincheiras Corporativas

Ana (nome fictício), veio para consulta depois de um período em que começou a apresentar crises ansiosas dentro do ambiente de trabalho. Tinha uma sensação profunda de desconforto na boca do Estômago, a boca ficava seca, as mãos suadas e tinha uma espécie de mau pressentimento, como se algo muito ruim estivesse para acontecer. A princípio achou que aquilo fosse cansaço, bebia café, chá, água com açúcar. A situação com sua chefe não estava nada bem, e sua ansiedade a deixava mais distraída e com dificuldade em concluir suas tarefas. Ela passou a evitar contato com a chefe e chegou a chorar no meio de uma reunião onde seus resultados ruins foram expostos diante de seus pares. Foi sugerido a ela que “não estava tolerando a pressão” e que “estava espanando”. Ela já tinha ouvido essa expressão e sabia muito bem que ser taxada dessa forma era o caminho mais curto para a demissão. Felizmente o tratamento reduziu seus sintomas e ela conseguiu retomar suas funções por alguns meses. Mas sua chefe continuou cismada e caçando seus erros, até que teve outra crise de choro em outra reunião. Corremos com a medicação, mas ela acabou sendo desligada da empresa no final do mês. Está cogitando acionar a empresa, embora seja difícil caracterizar o ambiente de trabalho como causador de sua doença.
Foi na Primeira Grande Guerra, talvez a mais brutal da história, que foi descrita a Neurose de Guerra, uma doença que acometia os soldados nas trincheiras ouvindo as bombas e os morteiros zunindo sobre suas cabeças até entrarem numa espécie de colapso, com tremores, paralisias, pesadelos e explosões emocionais que os impediam de combater. Steve Stahl, famoso psiquiatra americano, escreveu um livro, de ficção, “Shell Shock”, com o relato de que nessa Guerra, alguns soldados que receberam o diagnóstico de Neurose de Guerra eram fuzilados como covardes e desertores pelo Exército Inglês. Como os arquivos da Primeira Guerra Mundial foram abertos após setenta e cinco anos da mesma, foi só muito recentemente que essas execuções tornaram-se públicas e que as famílias pediram que esses soldados fossem reabilitados como doentes, não covardes.
O Transtorno de Estresse Pós Traumático é uma condição psiquiátrica conhecida, estudada e tratada há cerca de três décadas, embora seja uma condição muito comum na história humana. É o corresponde moderno da Neurose de Guerra. A exposição repetida a experiências estressantes ou de ameaça podem gerar lesões em áreas Cerebrais como o Hipocampo e predisporem a Depressão, Alcoolismo e uso de Drogas, além de se correlacionar com risco aumentado de Suicídio. Apesar de tudo isso, lamento dizer que em variados locais de trabalho ou de exposição a situações estressantes, como abusos verbais, físicos e sexuais, o aparecimento desses tipo de quadro clínico é ainda entendido como sinais de preguiça, frescura ou falta de resiliência. Com mais de treze milhões de desempregados, ser taxado assim pode significar uma espécie de morte profissional. E algumas pessoas entendem isso de maneira literal. O modelo de gestão de pessoas baseado em criação de monitoramento de resultados sob pressão gera uma tensão semelhante a dos soldados nas trincheiras. Quando o funcionário “espana”, seus sintomas são vistos como sinais de fraqueza ou de inaptidão ao serviço. Ambientes de trabalho de maior apoio e redes sustentadas de comunicação são mais protetores, geram melhores resultados e maior produtividade. Não sou eu quem diz, são todos os estudos e a Neurociência. Curiosamente, o sistema darwinista de pressão Top-Down nas organizações criam a cultura de que o melhor gestor é o que consegue extrair o máximo de produtividade com o mínimo de gastos e investimentos. Como os capatazes dos navios negreiros. Isso ainda persiste.
Chegam cada vez mais vítimas desse sistema nos consultórios. A gestão por bullying cria cada vez mais vítimas de ambos os lados das trincheiras corporativas. Vejo pacientes terem crises ansiosas e sensação de Pânico quando se sugere que possam voltar ao trabalho. O rombo da Previdência aumenta a pressão dos peritos para devolver as pessoas ao seu trabalho. Muitos deles sequer ouviram falar em TEPT, o Transtorno de Estresse Pós Traumático, assim como muita gente vai continuar achando que isso é desculpa de quem quer fugir de suas responsabilidades.
As empresas e as políticas públicas só vão mudar quando essa Guerra silenciosa gerar mais e mais prejuÍzos, não humanos, mas econômicos. Isso deve gerar programas de gestão de comunicação e criação de ambientes mais colaborativos de trabalho. Para o bem de todos.
Até lá, vamos evitar que nossos soldados sejam fuzilados pelos gestores, com bons tratamentos e terapias. Os psiquiatras que devem estar de plantão nas trincheiras.

segunda-feira, 26 de junho de 2017

O Som e a Cura

Não foi muito lido o post em que eu descrevo as formas de Reação ao Estresse e como a programação interna determina como vai ser o desempenho diante da situação difícil. A reação Fight or Flight, ou Bater ou Correr e o Congelamento, que são as reações mais comuns, ou a reação de Desafio, onde o sujeito se agiganta diante do medo. Usei exemplos de futebol, como o timeco (des)montado por Rogério Ceni, que se congela quando toma gol. Não vou repetir o erro e falar de futebol de novo. Acho que vou fazer um blog só para isso.
A Reação de Desafio se manifesta quando uma pessoa se enfurece e se expande diante de uma dificuldade, ao contrário da reação natural, que é o medo e o encolhimento. No laboratório, os pesquisadores chamam a Reação de Desamparo Aprendido, quando um camundongo desiste de enfrentar uma situação adversa e se entrega para um predador ou para de nadar. Ratinhos mais valentes e medicados com alguns antidepressivos se mantém ativos por mais tempo.
Está chegando uma nova indústria farmacêutica no Brasil, e ela trouxe como cartão de visita um aplicativo chamado Parkinsounds, voltado para a DP, Doença de Parkinson. Essa doença degenerativa compromete algumas capacidades neurais, mas seu principal achado é a dificuldade motora, com tremores, lentificação e perda da capacidade de andar e se movimentar adequadamente. O aplicativo foi concebido para usar as músicas que o paciente gosta e adaptar o seu ritmo para acompanhar outro ritmo, o da marcha do doente. Enquanto ele faz seu trabalho de fisioterapia, seus passos tentam acompanhar o ritmo da música, como um marca passo musical e interno reorientando os movimentos. As melhoras depois de alguns meses são impressionantes. A música recria a musicalidade dos movimentos.
Li uma matéria sobre Michael Phelps, o maior medalhista olímpico e maior nadador de todos os tempos, e alguém perguntou o que tocava em seus fones de ouvido antes da prova. Ele respondeu que era uma música forte e pauleira, mas hoje eu me pergunto se ele também não encontrou um aplicativo onde a música ditava o ritmo de suas braçadas, criando um monstro dentro da piscina, que se expande e se agiganta diante do medo. Ou que ele aprendeu a colocar a música nas braçadas, ficando invencível.
Vivemos uma época de hiperestímulo, e um desses estímulos é o de prevalecer numa selva darwiniana de competições invisíveis. O medo de ficar para trás, ficar obsoleto ou, em última análise, ficar inteiramente só em meio à balbúrdia das pressões do Mercado cria também uma multidão de camundongos humanos congelados em seus pensamentos, até chegar ao estado de desamparo clínico, que chamamos de Depressão. Como no caso desse aplicativo Parkinsounds, posso imaginar que ele possa ser o início do fim da era medicamentosa em Neurociência. Em algumas décadas, os psiquiatras poderão ser substituídos por aplicativos que vão produzir ondas de pulso em áreas afetadas pela Depressão e Ansiedade, para restaurar a função perdida ou simplesmente recuperar a neurotransmissão após um dia difícil no trabalho. Em vez de temer que a Psiquiatria vire uma empresa de taxi em meio aos carros do Uber, gosto de imaginar que as doenças que são tratadas no dia a dia são na verdade doenças de áreas desativadas ou pouco ativadas no Cérebro que provocam nas pessoas dores psíquicas profundas. As técnicas meditativas são um aplicativo milenar, disponível para todos, para mandar ondas de estímulo para todas as áreas pouco ativas do Cérebro. Manda pulsos de serenidade e a sensação de expansão do que está contraído pelo medo. E é gratuito.
As doenças mentais podem se manifestar quando o Cérebro perde seu estímulo e sua Música. Um bom terapeuta busca recuperar as harmonias perdidas, e isso não vai poder ser substituído por um smartphone.

domingo, 18 de junho de 2017

Vivemos para Descansar do Sonho

Estava meio desavisado no Brain Congress de Porto Alegre há três dias. Neste ano, o Congresso foi mais pobre em conteúdo e me fez correr mais atrás de coisa boa, então lá estava eu desavisado numa palestra sobre a “Neurociência ajudando a repensar o ser humano”. Nem atinei para o palestrante, um certo Mia Couto, provavelmente homônimo do grande escritor português/moçambicano, aquele que pode dar um prêmio Nobel para a nossa língua, a última Flor do Lácio. Quase capotei na cadeira quando ouvi que Mia Couto era mesmo Mia Couto, convidado de honra do Presidente para a sua palestra. Imediatamente tive a sensação que deveríamos ter todos os dias de nossa vida, de uma imensa gratidão e privilégio de estar lá, num Congresso de Psiquiatria, Neurologia e Neurociência ouvindo aquele homem. A sensação foi incrível: e pensar que todos os dias temos o privilégio de ver, tocar e sorrir para tanta gente especial e nem percebemos. Pois a presença modesta e bem humorada do romancista me deu a sensação que devia cultivar todo dia, a de gratidão. Estava grato de estar lá, depois de um dia exaustivo de gráficos, tabelas e saber científico. E Mia começou a contar histórias. Em tudo que descrevia, em todas histórias que ele contava, havia um viés de um narrador que fala escrevendo. Quem já assistiu uma aula show do infelizmente falecido Ariano Suassuna também tinha essa impressão. Os “causos” que saiam de sua boca não eram relatos factuais, mas a mágica de uma história que nos transportam para outras histórias. Uma viagem nos caminhos da Memória.
Mia Couto contou uma história de um homem que conheceu em viagem para a África, acho que no Zimbábue. O homem estava perdendo a visão mas conseguia guiar a todos em suas expedições e caçadas. O velho africano falou para o maravilhado escritor, que transforma tudo o que ouve em livros, que "só consegue enxergar quando caça". Mia ficou perplexo, porque alguns anos antes escreveu um livro em que um de seus personagens era cego e dizia: “Eu só enxergo quando escrevo”. Dizem que a vida sempre acaba imitando a Arte. Um tempo depois, o homem morreu e o escritor/narrador voltou para a sua cidade. Ele não foi enterrado, mas “semeado” debaixo de uma árvore. Quando perguntou do que ele morrera, percebeu que não havia esse conceito na tribo. As pessoas não morrem de algo, mas morrem de “alguém”. Como morrer de sua mãe e volta para seu seio. Uma morte freudiana perfeita. Mia se lembrou, então, da primeira vez que morreu de “alguém”: foi de seu pai, que viu chorando espantado aos sete anos.Ver o pai chorando foi como morrer. Nunca imaginou que seu pai pudesse chorar. Eles estavam exilados em Moçambique nos anos setenta quando chegou o aviso que seu avô, pai de seu pai, havia morrido em Portugal. O menino amedrontado e perplexo tentou consolar seu pai, que falou que seu avô podia ter morrido em Portugal, mas naquela casa ele nunca morreria. No decorrer dos anos, eram tantas as memórias, os sons, os gostos e as cores que era como se a família corresse pelos quartos, rindo e contando histórias.E o menino escritor nunca sentiu a morte de seu avô que não conhecera. Ele passeava pelas salas, indiferente à Morte. Lembrei do meu pai assobiando um samba de João Nogueira. O assobio encheu a sala da Memória, no meio do Congresso. Talvez as duas qualidades que nos tornem humanos seja a Linguagem e a Memória. Através delas prosperamos, crescemos, desejamos e adoecemos. Através delas, o escritor virou um livro que falava. Em vez da Neurociência ajudar a repensar o humano, foi o humano que ajudou a repensar a Neurociência. Pois não há Ciência e não há cura se não houver Alma, daquele que cura e daquele que é curado. Na pratica clínica, nem sempre sabemos quem é quem. Só era perceptível, embora a voz do escritor não o tenha mencionado, que é a Alma que diferencia os técnicos dos curadores, e não existe cura sem preparo técnico. Mas o preparo técnico sem Alma também pode ser inútil.
Senti uma pena profunda de imaginar que o mundo está mudando para esse tipo de literatura, para o mundo que é percebido, processado e recriado desde o olhar imenso do narrador. Os livros já nascem como roteiros, não de cinema, mas de séries do Netflix. Quanto tempo teremos pessoas debruçadas em livros que abrem esse Olhar mágico?
Foi viajando nessas ideias e percepções que vi a palestra de Mia Couto terminar, e quase mil congressistas aplaudirem de pé a aula em que o humano reinventou a Ciência, como os verdadeiros artistas fazem. Eu lembrei de um sonho meu recente, onde afastava as pessoas para poder chorar a morte de meu pai. O velho caçador africano disse a Mia Couto que vivemos para poder descansar do sonho. Eu precisei do sonho para abrir espaço para o choro. O sonho não tem tempo, já que meu pai morreu há quase vinte e cinco anos. A mágica do sonho e da poesia me fez chorar na palestra de Mia Couro, de saudade de meu pai.

sábado, 10 de junho de 2017

O Fogo ou o Gelo

Certa vez ouvi Casagrande comentar em entrevista que jogar contra o Flamengo de Zico era uma arte. O Corinthians da época, início dos anos 80, era também forte, mas faziam um pacto de levar o jogo na maciota e, comentário dos mais engraçados, era importante NÂO fazer um gol no Flamengo no começo do jogo. “A ordem era levar o jogo em Banho Maria, para não acordar os caras...”, conta Casão bem humorado. “Se fizesse um gol eles acordavam e vinham para cima... Aí ninguém segurava”. Reza a lenda que uma ordem parecida era dada aos adversários do Chicago Bulls nos tempos de Michael Jordan: todos eram proibidos de dar entrevistas provocando o cara ou dizendo que ele estava velho. Sobretudo, era proibido fazer alusões à sua idade. Michael Jordan, como o Flamengo de Zico, se inflamava quando provocado e conseguia transformar a raiva em concentração, mas uma concentração inflamada pela raiva que fazia o seu desempenho se ampliar. Teve um gaiato que quase apanhou do time porque provocou o homem e levou 45 pontos no placar feitos por Michael Jordan, sem contar desarmes e assistências. A raiva o tornava um monstro.
A Neurociência está começando a distinguir reações diferentes diante do estresse. A diferença principal entre elas é a utilização da reação do estresse como Desafio, Raiva Explosiva ou Paralisia. Não há dúvidas que as pessoas estão mais acostumadas a ativar a reação de medo ou raiva do que de enfrentamento divertido.
O São Paulo, do chato Rogério Ceni, por exemplo. É um time todo cheio de deslocamentos e concepções táticas que Rogério passou muito tempo aprendendo como jogador e treinador aprendiz. Mas suas invenções de Professor Pardal logo desmoronam na primeira bola que entra no gol do São Paulo. O time continua moderno, bacana, tático, mas não consegue ter a reação adrenérgica de Desafio, que é abrir os Brônquios, fazer o Coração bombear o sangue com mais força ou encher os músculos de sangue com a certeza de que vai conseguir virar o resultado. O São Paulo é o contrário do Flamengo de Zico: quando toma um gol, é ativada a Reação de Medo, o time perde a alegria e não consegue acreditar na vitória.
Foi feito um estudo de resposta ao Estresse em que dois grupos de alunos foram testados em períodos de provas finais. Um dos grupos recebeu a orientação de que a Reação de Estresse era boa para a performance porque aguçava o raciocínio e levava mais sangue para o Cérebro. O outro grupo não recebeu nenhuma orientação a respeito e foi só mandado para a prova. O primeiro grupo teve uma resposta significativamente melhor quando foi orientado indiretamente a transformar o medo em reação de desafio e enfrentamento. Essa reação transforma o medo em uma tensão divertida, que pode provocar um prazer de enfrentar e passar por cima da dificuldade (ou do adversário). Já a reação de medo de perder, que causa uma contrição de energia, cria uma situação inversa: tudo dá errado e o que se teme mais acaba acontecendo.
É curioso que tanta gente chegue para tratamento de doenças relacionadas ao estresse, sobretudo estresse profissional, onde os gestores não tem a menor noção de um saber tão óbvio e intuitivo: um ambiente de trabalho de desafio e apoio mútuo é muito mais produtivo que nossos correspondentes modernos de navios negreiros, onde as pessoas são massacradas com metas inalcançáveis e chicotes de cobranças e berros da gerência. Diga-se também que os funcionários que se entregam à uma moleza reclamona e medrosa também são grandes candidatos à fila de desemprego. A reação mais comum é o medo, que é evolutivamente mais antiga do que transformar o medo em excitação/combate. Mas é muito importante propagar o saber, agora cientificamente comprovado, que é sempre melhor se divertir pelejando do que se esconder no banheiro. Como dizia o Capitão Rodrigo de Erico Veríssimo: “Não está morto quem peleia”

domingo, 4 de junho de 2017

Constelações Familiares

Eu costumo dizer que Constelações Familiares são uma mistura de Psicodrama com Sessão Espírita. Baixa tudo o que é santo por lá, e alguns acabam grudando. Mas não vou usar esse post para atacar esse trabalho, apenas para alertar sobre sua potência e necessidade de uso consciente.
Cibele, leitora dessas mal tecladas linhas, me pediu duas vezes para abordar esse assunto nos comentários do Blog. Eu me fiz de rogado, porque conheço, mas não aplico a técnica. Li alguns livros de Bert Hellinger, criador das Constelações Familiares, e me encantei com seu alcance. Aliás, escrevi Hellinger errado no outro post e ainda não fui corrigir. De certa forma, falar do trabalho como um estrangeiro pode me ajudar a manter distância e equilíbrio. Distância e equilíbrio nem sempre são minhas melhores qualidades.
Uma senhora uma vez me descreveu a técnica familiar de sempre cortar a ponta das peças da carne antes de assá-las. Finalmente alguém perguntou o motivo de excluir quase um terço da peça do prato final. Ela foi perguntar para a sua avó porque cortavam as pontas das peças de carne. A avó lembrou que eram muito pobres e tinham uma assadeira pequena. Para caber a peça de carne, era necessário cortar as pontas. O resto serviria como mistura a semana inteira. Podemos dizer que esse episódio ilustra o que a Psicologia chama de Esquema. Esquemas são sistemas de crença e de comportamento que as famílias, os clãs, os países e as culturas adotam como o Certo e a Verdade mesmo que não baseado em nenhuma razão objetiva. Junguianos chamariam isso de Complexos Familiares, imprintings de memória e comportamento que se espalham de geração em geração. Essa é a raiz da Cultura e de algumas tragédias.
Nas Constelações Familiares, o terapeuta/facilitador (não gosto do termo facilitador, mas não vou falar disso hoje) levanta uma questão, que se manifesta como sintoma. A pessoa fala de ataques de medo imotivado, que lhe causam tremores. As pessoas presentes na Constelação começam a ocupar papéis do drama inconsciente que se desenrola: o pai autoritário, as crianças quietas na mesa do jantar. Entra uma visita. Alguém está escondida atrás da porta, tremendo. A paciente lembra da história de uma moça, de origem judaica, que sua família escondeu dos nazistas durante a guerra, que ficava escondida atrás das portas mesmo depois que a guerra acabou. Ela percebe que sempre treme quando algo bate à sua porta na vida.
A Psicologia da Gestalt esteve muito em moda nos anos setenta, hoje mal se fala sobre ela. Gestalt quer dizer totalidade. Quando algo está foracluído da consciência, atua como sintoma. A Gestalt fazia vivências para incluir e trazer de volta ao sistema o que estava represado, reprimido. Isso é um ponto importante em muitas correntes de Psicologia: revelar o que foi recalcado e integrá-lo. Uma paciente minha interrompeu a vivência de Constelação Familiar quando a terapeuta a fez olhar para a amante de seu pai, que teve um filho dele, e pedir perdão pelo desprezo e ódio que tinha recebido em todos aqueles anos. Ela não pode se libertar do Esquema familiar de que aquela mulher era uma vaca, destruidora de casamentos. Coincidentemente ou não, seu casamento não ia bem, justamente porque ela não conseguia confiar no marido nem ter uma boa vida sexual com ele. Mas não dava para pedir perdão à tal da Megera, que continuou atuando nas sombras. A Gestalt não se fechou.
As Constelações Familiares fazem então o trabalho da velha Gestalt: trazem os elementos dispersos para dentro do Todo. Bert Hellinger, que não era nem junguiano nem freudiano, buscava nas vivências Integração, Reparação e, se tiver sorte, Perdão, como arma potente e terapêutica. Mas...E sempre tem um Mas, já peguei à unha duas pacientes que saíram dessas vivências com um forte risco suicida. Ficar mexendo indiscriminadamente nos complexos familiares pode fazer o terapeuta tropeçar em algumas granadas e, pior, granadas que podem explodir semanas depois das vivências. Não me oponho que meus pacientes participem, mas porque sei que vou estar na retaguarda se o caldo entornar. Quando os pacientes estão na vigência de quadros psiquiátricos maiores, como Depressão ou Transtorno de Pânico, nunca autorizo a ir cutucar o Inconsciente em momentos de fragilidade. Existe um oba oba de aplicações de técnicas potentes, por terapeutas que fizeram cursos de fim de semana. Tem muita gente bondosa e bem intencionada mexendo onde não sabe e não deve mexer.
Eu não acredito em terapias, acredito em terapeutas. Diz o ditado taoísta que o Método certo aplicado pela pessoa errada sempre vai dar errado; o Método errado aplicado pela pessoa certa, pode dar certo. Portanto, ao se submeter às Constelações Familiares, fique de olho em Quem e Como aplica. Aliás, isso vale para todas as terapias.


domingo, 28 de maio de 2017

Haters

O Ministério Público investiga um comentário feito em redes sociais após o pavoroso atentado terrorista em Manchester, Inglaterra, nesta semana. A moça escreveu algo como “Que pena que isso não aconteceu na Bahia, para explodir aqueles escurinhos kkkk”. Adorável, não ? Um comentário em redes sociais é um comentário público, sujeito às penas da lei, portanto espero que a moça passe algumas horas de trabalho social trocando crianças “escurinhas”. Poderia ajudá-la a ampliar sua limitada visão da vida.
O atentado de Manchester foi perpetrado por um inglês de origem líbia, com as características dos lobos solitários que tem servido a grupos terroristas: origem pobre, família de imigrantes, de base islâmica ou não, que são recrutados após frequentar sites e chats de ódio. Passam por treinamento na Síria para atentados realizados por pequenas células ou mesmo uma pessoa só. O rapaz de 22 anos que explodiu artefato caseiro (e potente)na saída de um show repleto de crianças e adolescentes e seus pais, para vingar “as crianças mortas na Síria” em bombardeios de aliados, passou por todo esse processo. Seu pai na Líbia, recusou-se a acreditar que seu filho poderia ter planejado e perpetrado o ato monstruoso. Dizem os sites que ele jurou vingar a morte de um amigo após atropelamento, aparentemente um acidente. Menciono isso para mostrar a característica indiscriminada do ódio: vou vingar crianças bombardeadas por americanos e meu amigo atropelado, matando crianças em show na minha cidade. Explodir o outro é uma forma de explodir o silêncio que o cerca. Ou a falta de significado, uma doença de alma muito grave de nossa modernidade.
O comentário da moça, com seus “kkk s” após a tragédia, talvez seja o sintoma de outra doença de nossa época , que é fazer comentários nauseantes para atrair atenção ou mostrar que “você não está nem aí “. A tal da trolagem.
Na semana passada assisti ao novo clipe de Mallú Magalhães , “Você Não Presta”. A princípio achei que fosse um remake de Jorge Benjor. A música é completamente Jorge Benjor. Mas não , a música e letra são da Mallú, jovem prodígio da MPB que estourou em 2010 com 15 anos. O som talvez seja um passo para sua maturidade musical, ainda mais precoce. O clipe tem um corpo de baile de street dance que embeleza cada estrofe. Não são corpos perfeitos, nem panicats saradas, a dança nem sempre segue a música, muitas vezes contracena com ela. Gostei do samba rock, gostei do balé . Mallú canta bem e dança mal, tornando a dança que a cerca mais relevante. Pois isso gerou comentários de um vlogueiro/vogleira que viu numa cantora branca cercada de bailarinos e bailarinas negros e mulatos uma exploração/exposição dos corpos negros. Uma exploração racista de corpos negros usados de forma ornamental. Isso ganhou um volume tal, com a adesão de pessoas de movimento negro, que a artista veio a público pedir desculpas (?!) se o vídeo transmitia essa impressão.
Os “Haters”,ou os "Detestantes", sempre infestaram a internet. A diferença é que agora estão ampliando o seu volume, criando falsas acusações, generalizações enlouquecidas e a busca reiterada da polarização, do “nós contra eles”. Manifestantes quebraram e incendiaram prédios da Esplanada dos Ministérios nessa semana, mostrando aos coxinhas “como se faz manifestação”. A polarização é uma saída fácil , pois desliga nossa capacidade de pensar e empatizar com o outro. Uma artista de 20 e poucos anos vira uma racista, uma moça deseja que a bomba exploda os escurinhos, um deputado comemora a violência da manifestação, um rapaz com a mesma idade da Mallú detona um artefato para matar o maior número possível de crianças num show.
É óbvio que há uma diferença profunda, dramática, entre os vários casos descritos, mas há entre eles um ponto em comum: está na hora das pessoas de bem levantarem sua voz contra a cultura do ódio. Está na hora de parar de tratar isso como fenômeno passageiro. Está na hora de uma mobilização contra o ódio e a exclusão, que são, em algum ponto, o combustível da dominação e da ignorância. Não concordo com o pedido de desculpas emitido pelo estafe de Mallú Magalhães. Concordo de coração com o comentário de uma moça, que infelizmente vou ter que dizer que é afrodescendente, pois isso deveria ser irrelevante, que mencionou que foi ver o clipe por conta da polêmica e tinha adorado e se “convertido” à Mallú. Palmas para ela. Ou para elas.

domingo, 21 de maio de 2017

Observador Interno

Já vi mais de uma vez no Netflix o documentário “Free The Mind”, e não tenho certeza se ele já foi citado ou não nesse blog. Uma parte das mais emocionantes enfoca uma escola experimental, ligada a uma faculdade, onde as crianças, na Educação Infantil, recebem aulas diárias de Meditação e Educação Emocional. O foco principal do documentário é sobre um menino com diagnóstico de Déficit de Atenção e que apresenta muitos sintomas na classe e como a escola e as professoras fazem para ajudá-lo. Muitas vezes o menino explode, chora e tem várias dificuldades em lidar com seus medos e angústias. As professoras dão para ele um brinquedo, daqueles comuns nos Estados Unidos, que são aquelas bolas de vidro com umas casinhas e paisagens que, ao ser chacoalhadas parecem cheias de neves circulando, como uma chuva. Se os movimentos param, a “neve” vai assentando, como se a chuva estivesse parando. A função do brinquedo, nessa escola, é mostrar para o menino que as emoções podem sair do controle ou mesmo explodir, até que tudo parece muito bagunçado e caótico, mas, se ele ficar olhando sem fazer nada, a raiva ou o medo vai passando e se autorganizando.
O garoto morre de medo de andar no elevador, pois ficou preso nele uma vez. O filme mostra as múltiplas tentativas das professoras tentando ajudá-lo a superar o medo. Ele fracassa inúmeras vezes, até finalmente subir no elevador com sua bolinha de vidro, chacoalhada várias vezes para indicar a sua confusão interna. Numa das tentativas ele fica olhando fixamente para a “neve” se assentando, até o elevador chegar ao seu destino e ele poder descer, calmamente. O mais curioso é a atitude das professoras, que não fazem muito alarde quando ele consegue finalmente superar o medo. Ninguém comemora ou faz festa para a pequena grande conquista do garoto, como era de se esperar. Acho que foi de propósito. Provavelmente uma tentativa de não criar mais uma grande emoção quando o garoto entrasse no elevador de novo. Entrar com os amiguinhos e ir para outro andar é o absolutamente natural, não precisa criar um sistema de recompensas para cumprir a tarefa.
Parece uma manobra pueril para se adotar com uma criança muito pequena. Mais alguns anos e é capaz do menino jogar a bola na cabeça de algum desafeto. Será que os resultados dessa educação emocional serão duradouros? Espero que sim. Uma manobra tão simples como essa tem um fundamento muito profundo e genial: as emoções apresentam um período de instalação e outro de recuperação. Um dos sintomas de desregulação emocional é a Labilidade Afetiva, justamente quando as emoções pulam de um afeto a outro sem nenhuma modulação. Por exemplo, isso se observa quando a pessoa começa a chorar na conversa e, com uma brincadeira, passa imediatamente a gargalhar e fazer piadas. Uma paciente chegou uma vez no Pronto Atendimento batendo boca com a enfermagem porque queria ser atendida sem fazer a ficha e passando na frente das outras pessoas. Minha colega observou que seu cabelo estava lindo e as duas entabularam uma conversa sobre xampus e escovas. Ela foi atendida enquanto o acompanhante fazia a ficha. As atendentes olharam maravilhadas. A manobra foi justamente aproveitar o estado de labilidade e superficialidade de afetos para mudar o assunto e desfazer o climão que ameaçava virar uma briga mais grave. Salvo em quadros psiquiátricos, as emoções não pulam de galho em galho. Elas levam um tempo para se instalarem e outro tempo para mudar de grau ou de forma de expressão.
Dar o brinquedo para a criança ensina duas coisas incríveis: criar um observador interno para acompanhar as emoções em sua montanha russa, sem interferir ou se fundir com elas; criado esse observador, a segunda tarefa é observar os flocos de neve subirem e descerem, até a fúria se dissipar. Fico imaginando os padres, depois do “Eu vos declaro marido e mulher” entregando a tal bolinha para os noivos levarem para casa. Quanta terapia de casal vai se economizar se os pombinhos aprenderem a observar a raiva subindo e descendo antes de falar absurdos ou fazer acusações, cobranças e ataques de nervos em geral.
Pensando melhor ainda, vou parar de escrever e procurar um brinquedo desses na Amazon. Vou andar com isso na minha mão o tempo todo.

domingo, 14 de maio de 2017

As Paralelas

Atendi uma vez uma moça que tinha participado de um Reality Show, acho que desses de cozinha, de chef, ou de bolo, sei lá, não sou nada bom com esse tipo de programa. Acompanhei o Big Brother um ano que meu filho curtia e era um pretexto para assistirmos juntos e torcer por um candidato ou torcer para cair o biquíni das moças no banho. Reality Show? Quando se coloca uma câmera apontada, toda a realidade desaparece. Vivemos numa sociedade de espetáculo, tudo sob a câmera é uma encenação. A moça entrou no programa por acaso, caiu no gosto do público, virou finalista. Quando acabou, passou a ser reconhecida na rua, amada, admirada, detestada, por ter aparecido dentro das casas de milhões de brasileiros em horário nobre. A imprensa a procurava, quais serão seus próximos passos? Ela passou a ser esmagada por sua Persona televisiva. Começou a ficar com medo de sair de casa. Recusou os convites, os projetos. Sem perceber, engajou-se num projeto de morte: decidiu, ao contrário da imensa maioria, que iria matar aquela sub celebridade que o programa, a mídia, a família e os patrocinadores queriam transformá-la. Voltou para o anonimato e passou um bom tempo trancada em casa, até ser esquecida. O problema foi o custo da reclusão: não conseguia mais sair de casa, não sabia qual carreira seguir, nem como se reconectar com o mundo. Falei bastante sobre isso na única consulta que tivemos. Ela falou bem de mim para a terapeuta que a encaminhou, mas nunca mais apareceu.
Lembrei dela quando li sobre a morte de Belchior. Há poucos anos ele havia virado um trend topic de redes sociais por ter abandonado uma Mercedes no estacionamento do Aeroporto e sumido. Aquilo parecia uma cena suicida. Foi tanto o bafafá que ele acabou aparecendo para avisar que estava bem e vivendo no Uruguai, já que era apenas um rapaz latino e americano. Morreu recluso numa pequena cidade do Sul, com uma Dissecção de Aorta, no sofá da sala. Vagou de cidade em cidade, protegido por um pequeno círculo de amigos que o apoiavam no seu processo de morte do cantor e compositor Belchior, décadas antes do desfecho noticiado pela imprensa. Tinha o projeto de fazer mais de três mil ilustrações para a “Divina Comédia”, de Dante Alighieri. Disse para uma repórter que as suas músicas já estavam gravadas na memória da cultura e já tinham a sua vida. Agora ele precisava cuidar daquele projeto. Dizia também que planejava retomar sua carreira. Parecem todos projetos inexistentes, que ele usava para enganar a si mesmo e a quem o procurasse. O que foi provavelmente acontecendo foi um afastamento entre criador e criatura, onde o artista, o cantor, o poeta, o desenhista, começaram a tomar distância da criatura, o artista pop, a celebridade, o Belchior. Abandonar o carro e sair fugido da própria vida. Como a moça do reality show, Belchior teve a urgência de se livrar de si mesmo e do que as pessoas esperavam dele. Acho que, infelizmente, acabou se perdendo de si e da realidade. Passou a viver entre livros e discos antigos, os seus últimos interlocutores.
Nessa época de retração econômica e recessão brutal, todo dia chega ao conhecimento histórias de pessoas que se perdem da própria identidade, ou perdem o caminho dessa entidade abstrata chamada Mercado. O isolamento vai gerando uma realidade paralela, onde projetos pouco realistas enchem o tempo, enquanto se espera que o tempo dê marcha a ré para o tempo em que as coisas fluíam e os ventos da vida estavam a favor. Não é fácil recomeçar e talvez seja ainda mais difícil reconhecer que se pegou um atalho errado e recomeçar do zero.
Semana passada fui para um simpósio no Rio. Do ônibus que nos levou ao local do evento eu via que o Cristo Redentor mantinha seus braços abertos. A noite estava bonita e, durante todo o caminho, os versos tocavam em minha cabeça: “No Corcovado, quem abre os braços sou eu/ Copacabana, essa semana o mar, sou eu/E as borboletas do que fui pousam demais/Por entre as flores do asfalto em que tu vais”. O poeta pode morrer esquecido, ou exilado de si mesmo, mas ele no final das contas, tem toda razão: as músicas tem vida própria e sabem cuidar de si mesmas. E continuam soando dentro de nós.

domingo, 7 de maio de 2017

Quietude de Coração

Alguns Domingos é bem difícil cavar uma pauta para esse Blog, e aí me acorrem fantasias terríveis, como depois de seiscentos posts está mais do que na hora de parar com isso e decretar no mínimo uma pausa para essas postagens. Ou acabar com elas e começar outra coisa. Um blog que seja um blog, por exemplo, com um texto curto e dois parágrafos, no máximo três. Os textos saem longos, parecem uma coluna ou um ensaio, agora que vivemos o fim da mídia impressa e a inoperância dos ensaios. O meu mau humor vai melhorando quando o tema começa a aparecer, gradualmente, até começar a tomar forma.
Dessa vez fui atrás dos vídeos da Monja Cohen, que responde às questões que as pessoas lhe enviam. Numa delas ela fala sobre Aquietar a Mente. No vídeo, ela menciona uma coisa muito curiosa, que, ao adentrar um silêncio cada vez mais profundo com a prática do zazen, (uma meditação zen budista que é a sua formação), ela começa a distinguir sons específicos que derivam desse silêncio. Como se o mergulho nessas camadas mais profundas de vazio trouxessem uma sonoridade própria. Uma outra experiência sensorial.
O silêncio não é nada popular em nossa cultura. Eu moro num condomínio fechado, e, como tal, muita gente vem fazer churrasco por aqui, em busca de alguma tranquilidade. Estranhamente, essa tranquilidade é invadida por aparelhos de som com os mais variados gostos musicais. De rock anos 70 e 80 até pagodes ou, ai meu Deus, esse sertanejo cheio de ai ais e ui uis que teima em não sair da moda. Assim você mata o papai, grita o cantor no som perto da piscina. Mata mesmo. De desgosto. Pronto. Estou ficando rabugento de novo.
Aquietar a mente significa desprender a atenção do som e dos pensamentos, rabugentos ou não. Apaziguar o incômodo e a estrutura “Se...Então” que existe dentro de todos os pensamentos. “Se” o churrasco acabar e o som for desligado, “Então” estarei em condições de apaziguar os pensamentos. Se o vizinho parar de gritar “é Campeão!” para o Corinthians, então vou poder aquietar meus pensamentos.
A Mente não consegue apaziguar a si própria. Tentar parar os pensamentos acabam tornando-os mais circulares e mais insistentes. Aquietar a Mente tem para mim um especial apelo, porque significar usar o Sentimento de Quietude por sobre o blá blá blá do Pensamento, que insiste em classificar, rotular, analisar e, por vezes, se exasperar por mais uma música pseudo sertaneja bombando nas caixas de som do vizinho.
O aquietar da Mente inclui parar de brigar com os sons e deixar que eles se propaguem, sem interferência ou resistência. No Novo Testamento, Jesus descreve exatamente isso quando manda oferecer a outra face após uma bofetada, ou dar a capa se já levaram a túnica. Sempre achei, e ainda acho, que essa fosse o manifesto de uma das atitudes humanas mais difíceis de desenvolver, que é o Não Revide. Somos condicionados a sempre revidar, sempre tentar dar um empurrão de volta em quem está incomodando. Um líder magrelo, banguela e seminú derrubou o Império Britânico com o Não Revide, o Mahatma Gandhi. Donald Trump silenciou a sua queda vertiginosa de popularidade bombardeando a Síria após uso de armas químicas pelo inacreditável Bashar Al – Assad. O revide gerou a sensação de segurança, deu ao Cabeça de Laquê uma aura de macheza. O Olho por Olho faz mais sucesso que o Não Revide.
Dar a outra face talvez seja a descrição para esse aquietar da Monkey Mind, nossa Mente de Macaco pulando de galho em galho e de susto em susto para uma sensação mais ampla de espaço e de oxigenação. Não é à toa que as técnicas meditativas se apoiem tanto na respiração, na percepção de entrada mais ampla de ar nos Pulmões, que é exatamente o contrário da respiração curta da Mente de Macaco, sempre à espreita de riscos ou de ataques que podem vir do nada, como um islamita amarrado numa bomba para vingar o ataque de Trump.
Aquietar a Mente, ou Dar a Outra Face, significa uma abertura para o devir, para o que vem pela frente, que pode ser um passarinho cantando ou o som do churrascão aqui do lado, ao som de “Vai Corinthians!” (Aliás, uma dúvida cruel: como o time mais popular do estado pode ter um nome tão difícil de pronunciar pela maior parte de sua torcida?). Viu? A Mente continua pulando de galho em galho. Vamos voltar para aquietá-la. O melhor instrumento para isso é o Coração.

sábado, 29 de abril de 2017

Suicídio e Estudantes de Medicina

Alguns sonhos um terapeuta leva para sempre. Uma paciente, que tinha um risco suicida importante, me trouxe, há alguns anos, esse: “Estava em alto mar com o Marcelo (nome fictício). Tínhamos que atravessar nadando e era uma boa distância. Ele estava com medo, mas não tínhamos alternativa. Eu mergulhei e fui nadando com grande dificuldade até conseguir atravessar e chegar numa espécie de ilha, ou de banco de areia. Tomei o fôlego e procurei por ele, que tinha desaparecido. Acordei gritando”. Após alguns dias desse sonho, Marcelo, que era amigo de seus filhos, suicidou-se. Ela conseguiu atravessar o Vale da Morte. Ele não.
Já faz mais de uma década que estudos começaram a correlacionar o Suicídio com um traço genético, o alelo curto do transportador de Serotonina. Na época havia um grande entusiasmo pelos resultados dos medicamentos ISRS, inibidores da Recaptação da Serotonina na Depressão, então foram atrás dos genes relacionados. Como tudo em Medicina, o Suicídio tem uma causalidade multifatorial e não pode ser achado um “gene do suicídio”, mas encontrar uma correlação entre esse gene e o risco pode ser um grande alívio para todos que cercam um evento como esse. A pessoa que tira a própria vida não é necessariamente covarde nem corajosa, não é egoísta nem psicopata, mas pode estar manifestando uma tendência genética como da Asma ou do Diabetes. Temos famílias com traços depressivos, ou de bipolaridade que geram quadros mais ou menos graves e ainda assim não tem história de risco suicida. Em outras, pode-se localizar alguns casos atravessando gerações. Existe um traço genético e o Suicídio é uma doença, não uma falha moral.
Lúcia, leitora desse blog, pediu para eu comentar sobre uma matéria que saiu na Folha há duas semanas sobre quatro tentativas suicidas em estudantes do Quarto Ano da Faculdade de Medicina da USP, onde estudamos e onde ela dá aulas de Nefrologia. Tenho poucas informações sobre os casos, mas sei que não foi um pacto suicida nem eventos coordenados. A gloriosa Casa de Arnaldo fechou-se sobre o assunto e está em reuniões com o pessoal da Psiquiatria para aprimorar o atendimento dos casos de risco. Acho que perdeu uma excelente oportunidade de deixar que esse assunto fique preso entre as togas e os corredores da Academia, para abrir um amplo debate na sociedade e entre os alunos sobre o tema. Aliás, os últimos posts desse blog, sobre a série “13 Reasons Why”, do Netflix, abordaram esses dois temas que levaram a Faculdade de Medicina às páginas dos jornais: abuso sexual e estupro em festas alcoólicas dos alunos e agora as tentativas de suicídio. Os vetustos professores trariam um grande benefício à sociedade se abordasse esse assunto às claras, com organização de simpósios e debates sobre o tema, ou as dezenas de temas correlatos, até porque médicos e estudantes de Medicina são classicamente um grupo de risco para essa doença. Nos Estados Unidos morrem de 300 a 400 médicos por ano vítimas de Suicídio. Os médicos mais jovens, os residentes e os internos, por serem mais expostos aos traumas e ao estresse dos anos de formação, são os principais afetados. No caso da faculdade de Medicina, o quarto ano é um ano de particular tensão, pois vai anteceder a entrada dos alunos no hospital, como internos. O aluno tem que dominar um incrível volume de conhecimento e isso pode gerar a sensação de burnout que também já foi abordado em outros posts. No caso dos alunos que tentaram o suicídio, imagino que o burnout e a exaustão tiveram uma boa participação nos eventos. A sensação do medo e da incomunicabilidade, também.
O sonho da minha paciente me deu uma imagem em 3 D sobre o suicídio, por isso eu nunca o esqueci. Todos temos na vida momentos cruciais de travessia e transformação: deixamos uma fase e passamos para outra. A mudança é muitas vezes sentida como uma perda, ou é iniciada por uma perda: divórcio, demissão, morte de um ente querido, fim da faculdade e assim por diante. Esses períodos trazem um apagamento das referências e das regularidades da vida, o que pode afetar as pessoas mais vulneráveis, como os portadores de transtornos afetivos, os usuários de álcool e drogas e as pessoas com dificuldades com a própria regulação emocional. Portanto, adolescentes e jovens adultos são grupos de risco. Se forem estudantes de Medicina em períodos de alto estresse, mais risco ainda.
O sonho mostra a situação crucial desses períodos de transição: é como atravessar a nado um mar bravio. A travessia demanda paciência, preparo e cuidados de quem já nadou por lá. Isso nem sempre é possível. Algumas pessoas cansam e afundam, outras não. Os genes podem ajudar a entender, mas nada consegue explicar o Destino. Só sabemos que, nesses períodos de transição, é bom estar de olhos abertos e é melhor ainda dizer muitas vezes que aquilo é transitório e o que parece sem saída hoje, pode se abrir amanhã. E é sempre bom esperar pelo outro dia.