domingo, 26 de fevereiro de 2017

In- Poderamento

Durante os anos oitenta esteve em voga uma classificação ou tipologia humana que ainda hoje reverbera em nossos conceitos e que, aqui entre nós, eu gosto muito: são os tipos A, B e C. Os tipos A são os Durões, pessoas que são autoexigentes, perfeccionistas e que tendem a se sobrecarregar de tarefas e de obrigações. São competitivas e buscam a excelência em tudo o que fazem. As pessoas tipos C são exatamente o seu oposto: são mais frágeis e dependentes, tendem a interiorizar a tensão e acumular mágoas que se tornam eternas, remoídas dia a dia na lista de dores e sofrimentos intermináveis. Tem dificuldades em tomar iniciativas própria e preferem que lhe digam o que fazer. As pessoas tipos B, as mais comuns, tem características dos dois tipos anteriores, funcionando hora em um polo, hora no outro. A Psicossomática correlacionava os pacientes tipo A como de maior risco de doenças cardiovasculares. Os tipos C teriam maior chance de ter Doenças Oncológicas. Como tendemos a colocar a culpa da doença encima dos doentes, então censuramos o tipo A como muito estressado e o tipo C como muito passivo e ressentido. Podemos imaginar que o tipo A é Coxinha e o tipo C é Mortadela.
Hoje sabemos que as pessoas adoecem independentemente de sua tipologia, então vemos Coxinhas com doenças graves e crônicas e Mortadelas tendo doenças do coração, muitas vezes por fatores genéticos e ambientais que não estavam na classificação. Mas eu continuo achando e constatando na prática clínica que há estressores adrenérgicos e cortisólicos. Tudo hoje em Psiquiatria estuda e dá ênfase ao Cortisol, hormônio diretamente vinculado ao Estresse e aos estressores. Mas as curvas de reação ao estresse incluem uma resposta inicial Adrenérgica e uma resposta crônica mediada pelo Cortisol. Quase sempre estamos acostumados a relacionar esses hormônios a doenças e a situações negativas, mas não duramos minutos sem eles.
Outra desinformação é aquela que imagina que o contrário do estresse é o relaxamento. Muitas crises de Pânico são justamente desencadeadas por momentos de relaxamento. Usando técnicas de relaxamento em algumas situações de consultório, já tropecei em crises de ansiedade na hora do relaxamento. O contrário da ansiedade é a Resiliência. Não estou chamando os ansiosos de covardes. O medo provoca uma reação de contração existencial, de inibição de exploração do ambiente e de necessidade absoluta de controle e defesa.O medo gera medo.
A ansiedade provoca essa sensação de medo do Devir, de esperar pelo futuro com armas em punho, ou com a alma encolhida de dor. O medo afeta os tipos A, B e C. Os tipos A tem medo de perder o movimento e a vontade de potência, diria Nietzsche (aliás, ele muito falou desses tipos, décadas antes de serem descritos). O tipo C tem medo de perder o apoio. Não acredita ter força para dar conta da própria vida. Talvez o pior dos mundos seja o tipo B, que carrega em si esses dois medos.
Sempre tenho birra dos termos da moda, um deles é o Empoderamento, tradução literal do Inglês, “Empowerment”. Eu preferiria o In-Powerment. Aumentar o poder interior, a capacidade de viver internamente o medo e a coragem, sem sair berrando de ódio ou se agarrando na barra da saia de alguém. In-Powerment ou Impoderamento é a essência do trabalho terapêutico, para reforçar a capacidade de interiorização e resolução de problemas como uma capacidade de diálogo interior antes da passagem ao ato. Há uma diferença entre ter vontade de bater no chefe e dar uma paulada em sua cabeça. Vivemos tempos de linchamento virtual em que muita gente se sente autorizada a externar seus desaforos antes de qualquer reflexão, então vivemos num mundo de surtados e histéricas, ou de surtadas e histéricos. O contrário do medo é a capacidade de reflexão. Reflexão demanda coragem e força interior. É mais fácil surtar.
O tipo A pode ser alguém com coragem de arriscar e procurar novos caminhos. O tipo C pode ser a pessoa generosa que se sacrifica para os outros brilharem. O tipo B pode ser o polivalente, que tem repertório para tomar a frente ou cuidar da retaguarda, dependendo da situação. Seja qual for o tipo predominante, viver hoje é um ato de coragem e resiliência.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Angel Heart

Tenho um bom tempo na estrada todos os dias para chegar ao trabalho. Sou um bom conhecedor de programas de rádio matinais. Passei a vida ouvindo o “Vam´bora ,vam´bora/ olha a hora/ vam´bora, vam´bora...”; Quem é paulistano e já passou perto de um rádio sabe do que estou falando, da vinheta milenar da Rádio Jovem Pan. Ouço também a CBN, que tem um programa “Liberdade de Expressão”, com o imorrível Carlos Heitor Cony e Artur Xexéo. O humor involuntário é o Cony fazendo citações culturais como o filme do Carlitos ou as fofocas de Marylin Monroe como se tivessem acontecido na semana passada. Outra referência que denuncia a idade do autor desse blog, parece que o Cony continua vivo dentro da revista Manchete: “Aconteceu, virou Manchete”. Pois aqui vai a minha lembrança Carlos-Heitor-Cony (oura referência geriátrica: sinto muita saudade do hífen): uma cena do filme “Angel Heart” com o irritante título brasileiro de “Coração Satânico”. Filme do final dos anos 80, onde um detetive vivido por Mickey Rourke busca um assassino pelo submundo de New Orleans, tudo isso com vastas doses de música negra e blues de raiz, daqueles de arrepiar todos os pêlos. Robert de Niro faz o papel do contratante e como a chance de alguém achar esse filme é baixa, aí vai um spoiler: ele é o Demônio em pessoa. Depois desse longo preâmbulo, a cena: O demônio encarnado, ao ouvir que um dos crimes em série foi dentro de uma igreja, observa que “Parece que a Religião produz mais ódio do que amor”. Ironia finíssima e sob medida para De Niro (dá para baixar o filme na internet, ops! Mas assistam mesmo assim).
Algumas pesquisas questionam a frase do Louis Cypher (Lúcifer, para quem não juntou os pontinhos), personagem acima citado do De Niro: as religiões, como tudo na vida, podem servir para juntar ou separar as pessoas. O livro de Jo Marchant, “Cura”, traz um capítulo em que descreve a história de Sheri Kaplan, que passou uma boa parte de seus vinte e poucos anos nas baladas nova-iorquinas até ser atropelada não por um taxi amarelo, mas pelo diagnóstico de HIV positivo, em 1994. Procurou grupos de ajuda e teve dificuldades em achar um para mulheres na sua condição, então fundou o Centro para Conexões Positivas. Alguns anos depois o grupo tem 1500 membros e orçamento de meio milhão de dólares. Sheri acredita que sua vida ganhou Propósito depois do diagnóstico e que a religião/espiritualidade ajudam no controle da doença. E ela não está sozinha. Mais da metade dos pacientes também tem essa crença. Já os pacientes que participam de religiões sectárias, que cultivam o ódio à concorrência, digo, às outras crenças religiosas, estão correlacionadas com progressão mais rápida da soropositividade até a doença estabelecida. Provavelmente não por punição divina, mas por uma maior carga de estresse e estressores nas pessoas que usam a crença religiosa ou política para uma guerra entre Nós e os Outros (A guerra do “Nós contra Eles” é bastante fácil de se encontrar nesses dias, não?).
Nesse mesmo capítulo a autora descreve a experiência de ter trabalhado no santuário de Lourdes, e da incrível atmosfera amorosa que cerca o lugar, repleto de doentes em situação de desespero e voluntários atenciosos acolhendo as pessoas, aquelas das quais nos afastamos instintivamente, com amor. O ambiente tem as vibrações do medo e da dor, mas também do amor e acolhimento. Parece que na vida essa é uma escolha diária e fundamental: escolher o medo e a separação ou a confiança e a conexão positiva. É claro que a vida moderna nos estimula muito mais para o isolamento e o medo. Por isso penso em experiências como de Sheri Kaplan, que transformou o isolamento e o absurdo do diagnóstico do HIV em uma busca profunda de conexão. E a busca se deu com a ação positiva, não com bla-bla-blá (olha o hífen de novo)
Eu responderia para Louis Cypher para ele curtir o blues e parar de encher o saco com ironias sobre a Religião: a verdadeira questão é o que pode levar alguém para a Conexão ou a Separação. E isso vale para tudo.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Para Não Dizer que Eu Não Falei de Flores

Estava dando uma aula sobre o significado, o papel de uma Depressão na vida de uma pessoa. A Depressão exige uma parada. A Depressão exige uma interiorização. Em termos alquímicos, ou junguianos, toda morte busca a ressurreição, toda doença busca a sua cura, a doença é tarefa, a Depressão pode ser um caminho. Terminei a aula com os versos de “Flores”, dos Titãs: “A dor vai curar essas lástimas/O soro tem gosto de lágrima/As flores tem cheiro de morte/A dor vai fechar esses cortes” e passei o último slide: “Flores, flores/ As flores de plástico não morrem”. Olhei para a plateia cheia de psicólogos e psicólogas aprendizes e falei: - Era isso que eu queria dizer para vocês: só as flores de plástico não morrem. Muito obrigado. Depois de um breve e intenso silêncio, as palmas vieram, por todo o anfiteatro. Um breve silêncio para entender o paradoxo que, para morrer, precisamos estar vivos. E se estamos vivos, morremos várias vezes, já que não temos o conforto e a permanência das flores de plástico.
Essa aula foi nos anos noventa. Dificilmente ela seria possível num Simpósio de Psiquiatria dos dias de hoje, onde a Depressão é sempre um erro: um erro de ativação, ou inativação genética, um erro por excesso de Cortisol, um erro de regulação emocional. Um erro a ser corrigido com medicação adequada e orientação cognitiva. Algo que uma peça clássica diria que é uma história cheia de som e fúria, que significa nada. Consertamos neurônios como um gesso que permite a consolidação de uma fratura. E ponto.
Eu adoro essa música. “Chorei até, ficar cansado de ver os meus olhos no espelho/Chorei por ter despedaçado as flores que estão no canteiro/ Os punhos, e os pulsos cortados e o resto do meu corpo inteiro/ Há flores subindo o telhado e embaixo do meu travesseiro”. Fico pensando que flores que o sujeito da música tinha despedaçado e estavam no canteiro. Teria sido um amor perdido? A falta de jeito de um homem em cuidar da delicadeza de um amor? O que fica depois são os punhos e os pulsos cortados, como o resto do corpo inteiro? As flores no telhado, no travesseiro, em tudo que o homem vê é o que foi perdido, e, portanto, passa a existir em tudo. Há flores em tudo o que se vê, as flores quebradas e espalhadas no telhado.
A dor vai curar essas lástimas/ O soro tem gosto de lágrima. Aqui é que está o significado e a esperança. São lindos esses versos. A dor só vai ter significado se vier para curar essas lástimas. A dor vai fechar os cortes. O choro e o soro têm gosto de lágrima. A dor é o que cura e as lágrimas são o soro.
Diz a primeira das quatro nobres verdades budistas que o fundamento de nossa vida consciente é o sofrimento. E a base do sofrimento é a ânsia, a falta, a inquietude que faz com que sempre acabemos por despedaçar as flores que estão no canteiro. Uma das tarefas duras dessa jornada é transformar dor em cura, lágrima em soro e transformar para sempre, o cheiro das flores, que não vão ter cheiro de morte. Isso é re-significar a dor, a perda, a depressão. Re-plantar as flores despedaçadas.
Eu sei que hoje estaria fora de moda, mas terminaria a aula dizendo, mais uma vez, que só as flores de plástico não morrem.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Segurança e Autoestima

Uma leitora desse blog e Coach aprendiz levantou uma questão: a relação entre Insegurança e Autoestima, sob uma perspectiva psicológica e não de autoajuda. Como não sei indicar nenhum livro ou artigo que fale diretamente sobre isso, então vou tentar fazê-lo nesse post. Não tem tu, vai tu mesmo, ou, no caso, vou eu mesmo.
Parece haver uma relação inversa entre a sensação de segurança e a capacidade de gostar de si mesmo. Mas podemos inverter a situação e olhar o lado escuro da Segurança e da Autoestima. Chego a usar nesse blog a expressão Geração Autoestima para me referir a um tipo específico de pessoa que cresceu com pais e professores muito interessados em sua autoestima e cansaram de ouvir o quanto eram especiais e únicos, mesmo sem nenhuma razão objetiva para se sentirem nem uma coisa, nem outra. Isso gera pessoas que se sentem naturalmente merecedoras de amor, entusiasmo e incentivo, e que ficam muito indignadas quando sua singularidade não é respeitada ou mesmo reconhecida. Do ponto de vista da segurança, são pessoas que aparentam muita confiança em suas infinitas possibilidades, desde que o Papai, ou o Patrão, ou o Estado, forneçam todos os recursos para a sua inata vocação à felicidade. Dar de cara com um mercado de trabalho cada vez mais competitivo, em que cada um vai ser tratado como uma peça substituível é um choque de realidade que derruba muita gente para sempre. Muitos ficam vagando pelo mundo, esperando que alguém finalmente reconheça a sua capacidade incrível e original (Alguns ficam mandando mensagens ao mundo em seus blogs dominicais). Muitos querem ser ouvidos e pouca gente está disponível para escutar. A Civilização Autoestima criou uma infinidade de mi mi mis a respeito de como o mundo não é como deveria ser e como a culpa é da Globalização ou do Neoliberalismo. Ou da Operação Lavajato.
Freud disse que uma das funções da Psicanálise era de adaptação e instalação da realidade na vida dos pacientes. Talvez por isso não seja muito popular até hoje. Realidade não é um prato que se come quente. Escapar da realidade com sonhos de uma vida incrível talvez seja uma droga pesada da modernidade. Transportar nossos sonhos para o mundo virtual parece mais seguro que pegar condução e aguentar chefes e clientes permanentemente surtados.
Essa é a primeira resposta para a pergunta da querida missivista virtual: a excessiva ênfase na Autoestima e na Segurança tem criado uma multidão de órfãos de reconhecimento e de segurança fornecida pelo suor de outro alguém. Como o tal Outro oferece as duas coisas e não entrega, então temos uma indústria de busca pela sonhada Segurança e a fundamental Autoestima. Interromper essa busca pode mesmo causar o colapso do Capitalismo.
Não podemos controlar o mar, mas podemos pegar um jacaré nas ondas. Segurança e Autoestima são construções diárias, que passam pelos testes mais duros e implacáveis da tal realidade. Tem duas palavras em inglês de difícil tradução: Relatedness e Connectedness, que adoro e se referem à capacidade, ou não, de estabelecer Relações e Conexões com o Eu, o Outro e o Mundo. Segurança é a capacidade de lidar com um mundo inseguro. A segurança é um estado interno, não pode ser fornecido por papais e mamães ou outras figuras substitutas. Autoestima é um derivado da capacidade de estabelecer relações e conexões. Geralmente alguém obcecado pela própria Autoestima é também alguém muito inseguro e que gosta pouco de si e do mundo.
Nesse mundo em que nossos instintos mais baixos são cutucados em todas as mídias, em que medo, insegurança, ódio e separação estão muito em moda e até elegendo Trumps e seus filhotes, criar estima é mais importante que autoestima e adaptação é mais importante que segurança. Para ambas as tarefas, é importante um coaching de capacidades de criar relações e conexões, começando com o nosso próprio mundo interno, que é onde começa tudo. Espero que a Claudia continue mandando perguntas depois desse post.