domingo, 26 de março de 2017

Caos \ Harmonia

Gosto muito de um filme dos anos 90 que não é muito conhecido e já foi descrito nesse blog, que é “Seis Graus de Separação “, um filme do início da carreira de Will Smith. O seu personagem irrompe na casa de um casal elegante de Nova York no meio da noite, supostamente após sofrer um assalto. Ele afirma que é colega dos filhos do casal, estudante de Harvard e filho de um famoso ator de Holywood. A conversa toma toda a noite. O rapaz é encantador. Lá pelas tantas, a dona da casa traz um quadro original de Kandinsky, artista russo muito importante no início do século vinte. A obra tinha duas faces, uma de cada lado, uma tela grudada na outra. De um lado, figuras harmônicas e regulares, no lado oposto, uma tela abstrata e carregada de fúria. A dona da casa mostra os dois lados do quadro repetindo: “Caos, controle, caos, controle... que tal?, que tal?”.
Talvez essa cena, ou esse quadro de Kandinsky, demonstrem as forças fundamentais da vida e da Consciência. Na Física são as leis da Entropia, em que os sistemas de energia tendem a uma maior Entropia, isso é, ao Caos. Acho que um dos grandes temas desse blog é o esforço de desenvolvimento e consciência que se precisa imprimir à vida para dar forma ao Caos. As coisas tendem à desordem e a perder a forma criada pelo esforço humano.
Nossa Psique também é tensionada pelas forças do Caos e Controle. Ou talvez eu prefira a tensão entre Caos e Organização. Entre Harmonia e Descontrole. Aqui vai a grande questão: tentamos controlar o fluxo interminável de pensamentos de nossa mente através do esforço de nosso Lobo Pré Frontal. Até nossa ruga de expressão, no cenho, bem no centro da testa, manifesta esse esforço muscular de manter o foco no meio da cascata de estímulos e de interesses que criam o Caos em nossa cabeça. Isso pode ser visto na mesa de trabalho de qualquer pessoa: começa a responder um e-mail, pipoca uma mensagem do grupo do WhatsApp, um balão anuncia uma atualização no Facebook, uma foto bonita aparece no Instagram. Isso termina em exaustão e na queixa: “não consigo ter foco”.
Já falei do método dos treinos da Marinha Americana, os Navy Seals, para manter o foco nas tarefas: subdividir as mesmas em microtarefas e terminar uma de cada vez. Uma terapia de Conclusão: responder o e-mail, completar a planilha, agendar a ligação e, cada vez que se completa uma tarefa, um Yes! Uma autocomprimento. Uma forma de estímulo e de prazer de concluir as microtarefas, as micromissões. É a técnica do Capitão Nascimento de nossa mente: missão dada é missão cumprida, guerreiro. Ou pede pra sair, p...!! As empresas contratam os palestrantes motivacionais para fazer as intervenções bate palminhas para criar algum foco na galera e concluir as tarefas. Até o jargão corporativo fala disso: vamos alinhar com tal assunto, vamos alinhar aquela discussão, vamos alinhar. Alinhar é a tentativa de estabelecer um foco que se mantenha, controlando a tendência natural ao Caos que tem nas organizações: fofocas, rivalidades, boicotes, omissões e traições que são o dia a dia de qualquer agrupamento humano. Normalmente demanda muito esforço e algum chicote para o tal do “alinhar” dos grupos.
O verdadeiro líder é aquele que consegue não criar o alinhamento, mas a visão compartilhada, a visão que vai ficar fixada no Córtex Frontal par se chegar no objetivo comum. Mas antes de chegar, o objetivo tem que ser comum.
Voltando ao quadro de Kandinsky, o caminho da harmonia passa pela aceitação de que ela sai do Caos. Você não consegue domar o Caos. A atenção consciente te eleva acima da bagunça, da tendência à entropia, à permanente tendência ao se desorganizar. Depois de conseguir cumprir as tarefas dos Navy Seals, uma forma superior do foco é através da criação de Harmonia, ao esforço sem esforço, ao esforço relaxado, pela criação de uma relação com a tarefa. Odiar a tarefa não ajuda a concluí-la. Odiar o seu trabalho não ajuda o dia a ficar melhor. O melhor é criar um estado de atenção serena para organizar as tarefas, as estratégias, a conclusão dos projetos. Mas do que adianta criar essa harmonia internamente se o mundo continua mergulhado no Caos e na Fúria? A sua responsabilidade começa internamente. Não adianta tentar reformar o mundo e ser um inferno para quem está ao seu lado.

segunda-feira, 20 de março de 2017

Nascida para Brilhar

Desde criança ela ouvia a sua mãe dizer que ela tinha nascido para brilhar. Nas peças da escola isso se confirmava, pois era a mais jeitosa e desinibida com os papéis, além de ser uma menina bonita. Quando as coisas não corriam como queria, ou naqueles dias em que o desânimo parece engolir toda a nossa vida, sua mãe aparecia com um sorriso e perguntava: Quem nasceu para brilhar? Ela acabava se animando. Quando foi procurar ajuda já não se sentia tão brilhante: casou com um homem crítico que gostava de atacar, sempre, a sua vontade de fazer coisas e ter destaque. Junto com a vontade de brilhar havia o medo, principalmente o medo de não ser assim tão brilhante, nem tão nascida para brilhar. O marido insistia em frisar que nada havia nela de brilhante, mas apenas que ela era uma mulher mimada e pouco prática, vivendo a vida de selfie em selfie. Na verdade a sua maior dúvida, a mais profunda, era essa: deveria se livrar do marido e dar expressão à sua necessidade de atenção, ou de expressão artística, ou, no limite, deveria abrir mão da projeção de sua mãe e levar uma vida comum, com trabalho, marido e filhos e cheiro de alho na mão depois de fazer o macarrão no Domingo?
Talvez nosso mundo infestado com imagens e informações acabe criando essa indisposição contra a vida Real. E isso hoje começa na infância, com a infantolatria, a transformação de bebês e crianças em estrelas de filmes, montagens e álbuns intermináveis no Instagram. Andy Warhol falou que no futuro todos teriam direito a 15 minutos de fama. Os Snapchat tornaram esse tempo próximo a segundos. Fotos, vídeos, exposição das crianças em todas as mídias criam essa necessidade de brilhar. Já posso ver claramente as crianças entrando em processos de luto quando crescem e perdem a fofice que chamava tanto a atenção. Ficam perdidas sem os olhares encantados da infância. Algumas procuram por esse olhar a vida toda.
O mercado de trabalho reclama dessas crianças “nascidas para brilhar” no ambiente de trabalho, querendo atenção, reconhecimento e um cuidado particular com sua autoestima. Imagine o que encontram em nossos tempos de crise econômica devastadora. Não é à toa que muitos ficam presos no meio do caminho entre a adolescência e a vida adulta, recusando-se a entrar no jogo ou assumir responsabilidades. As responsabilidades são a porta de entrada para o Real.
A moça que segundo a mãe, tinha nascido para o brilho e o glamour continuou vivendo a vida com a sensação que ela lhe pregou uma peça. Talvez seja candidata a um divórcio ou cair na lábia de algum colega de trabalho que toque naquele ponto que o marido sufoca: que ela é linda, é maravilhosa, é especial. Ela evita impor aos filhos a fantasia de que nasceram para brilhar. Prefere dizer que nasceram para viver e viver é uma construção. Mas ela deixou o tratamento antes do maior entendimento: que ela é bem mais feliz deixando as pessoas brilharem do que querendo toda a atenção para si. Oferecer a sua atenção é muito melhor do que disputar, em desespero, quem brilha mais, quem recebe mais admiração. Fazer o macarrão de Domingo pode ser um jeito de colocar seu brilho no mundo, e isso deixa a sua marca, a sua impressão. O que não deu tempo de perceber, mas talvez um dia ainda aconteça, é que vivemos num tempo de zumbis narcísicos se arrastando pela energia que pensam, está no Outro ou na superfície, no número de curtidas de uma foto.
Viver a vida no presente permite uma impressão profunda. Isso é o que brilha, em cada minuto que se segue. Vivemos o grande dilema de uma vida que não se sustenta na correria e na disputa dos espelhos.

domingo, 12 de março de 2017

Meu Coração Está Com Pressa

Sei muito pouca coisa sobre a Cabala, uma delas é que, ao lado da Árvore da Vida há duas colunas: de um lado a Misericórdia, de outro o Rigor. A vida precisa dos dois princípios para evoluir, talvez por isso a Árvore da Vida fique exatamente no meio desses dois pilares. Não é fácil equilibrá-los, mas é mais difícil transformar quem sofre de excesso de Misericórdia do que de excesso de Rigor. As pessoas que se cristalizam na posição de dependência e autopiedade são muito difíceis de se mover do lugar. As pessoas que sofrem pelo perfeccionismo e autoexigência conseguem aprender a relativizar a própria dureza. Quem vive da própria moleza tem mais dificuldade de mudar de tendência.
Edward Edinger descreveu em um livro memorável o sonho de um paciente seu, que tratava de um mundo apocalíptico: o mundo tinha acabado e iria começar de novo. O paciente estava entre as pessoas que iriam herdar o mundo. Essas pessoas eram examinadas e só as pessoas com Pressão um pouco alta seriam escolhidas. As pessoas com Pressão muito alta ou muito baixa pereceriam.
Esse é um tipo de sonho que é maior do que as questões pessoais do paciente. São chamados sonhos arquetípicos ou coletivos, sonhos que trazem uma mensagem universal, sobre algo que afeta a mente do planeta. Parece um complemento do Apocalipse de São João, e certamente não foi descrito por um médico, senão só restariam na Terra as pessoas com níveis pressóricos e exames normais. No sonho em questão, as pessoas um pouco mais Yang sobreviveriam ao fim do mundo. Voltando aos posts anteriores, os tipos A e C radicais são sobreviveriam. Sobrariam os tipos B+, isto é, os tipos equilibrados, mas com um pouco mais de pimenta, ou de força. Uma ligeira pendência para o lado do Rigor, pode-se assim dizer.
Hoje em dia vemos uma multiplicação de cursos e técnicas de Meditação. Para nosso mundo com excesso de atividade mental, o relaxamento e a capacidade da Mente observar a si mesma e modular sua resposta afetiva parece um bom refresco. Observando o Ego medroso, podemos ampliar a Consciência e apaziguar a “Monkey Mind”, a mente que fica macaqueando preocupações, planos, apegos, desespero nesse infinito blá-bla-blá interior. Só há um problema: as pessoas tem uma imensa dificuldade em esfriar o sistema e observar a mente de macaco pulando de galho em galho. Muita gente reclama que meditar é muito chato e muito sem propósito. Nossas mentes ocidentais foram criadas para fazer tudo com um método e um objetivo. Sair disso é ficar no Vazio, e não gostamos de Vazio. Como nas academias a Yoga virou a Power Yoga, também gostaria de criar a Power Mindfulness, estados de Meditação mais intensificados e dinâmicos. Uma ferramenta para isso é a Respiração , que pode ampliar o Arousal, isto é, a capacidade de se estar ligado, com o giro alto, para estar presente em tudo, com um pouco mais de intensidade. Um jeito de estar presente com uma exclamação.
Tenho a impressão que o sonho do paciente de Edinger, que deve ter sido relatado nos anos sessenta, ainda fala muito sobre o nosso tempo. Quem é estressado demais e de menos está adoecendo. É preciso um pouco de Pressão, mas uma pressão equilibrada pela Atenção Plena.
Na entrega do Oscar, o cara que devia entregar o envelope com o melhor filme ficou muito ocupado tirando selfies e tuitando, o que gerou a entrega do envelope errado e o maior vexame da história da premiação. Uma desatenção que gerou um prejuízo para a sua empresa de alguns milhões de dólares, além dos danos irreparáveis em sua imagem. Vivemos num mundo de distraídos e autoindulgentes, que eu chamo nesse blog de Civilização Autoestima. Estamos atolados no pilar da Misericórdia, ou da Permissividade, e é por isso que graçam as seitas e os fundamentalistas querendo salvar o mundo com bombas e tiros.
Precisamos de Atenção e Rigor, para cuidar da Vida e do mundo ameaçado com o desequilíbrio.
Pode causar algum estranhamento aos leitores desse blog essa afirmação. Estou ok com isso. Precisamos de Atenção, de Intensidade e de Propósito. Dizia Renato Russo: “Meu coração está com pressa/Quando a Esperança anda dispersa/ Só a Verdade é que liberta/ Chega de maldade e ilusão”. Como dizia o poeta, venha que o que vem é Perfeição.

domingo, 5 de março de 2017

Paz Guerreira

Fiz uma certa questão de escrever sobre os tipos de Personalidade no último post para posicionar melhor o ponto de vista deste escriba que assina o blog. Para quem chegou agora e não quer ler o post anterior, há uma antiga classificação de tipos de Personalidade que divide as pessoas em três grupos: tipo A, B e C. Os tipo A são pessoas mais adrenadas, autoexigentes e perfeccionistas, apegadas a sucesso e aquisições. Tendem a valorizar mais as tarefas do que as pessoas. Os tipos C são pessoas mais passivas e dependentes, que tendem a seguir, não liderar, e muitas vezes tem dificuldades em manifestar ou lutar por suas vontades e desejos. São mais focadas em pessoas e cuidados, menos obcecadas por resultados. Borges escreveu em um texto que já publiquei aqui: “Bem aventurados os ricos sem arrogância e os pobres sem ressentimentos”. Estava falando da doença dos tipos A, que é a arrogância e o desprezo pelo Outro, ou mesmo do humano. Falava também da doença dos tipos C é o ressentimento e a inveja, sobretudo atribuir o sucesso alheio a roubo, trapaça, sorte. Os tipos B teriam características dos outros dois tipos. São mais equilibrados e podem usar as características positivas (ou negativas) dos outros tipos. Como o pensamento Junguiano entende que a saúde está no equilíbrio e não nos excessos, então buscamos, interna e externamente, ser mais B do que A ou C. Mas antes de tudo, que cada um seja o que é, ou que consegue ser.
Escrevo sobre isso porque quem ler atentamente os quase 600 posts desse blog vai achar o autor meio esquizofrênico, capaz de defender apaixonadamente posições tipo A ou tipo C, algumas vezes na mesma semana. Em outros posts, espero que os mais frequentes, a busca é sempre pelo equilíbrio e a união das tendências. A Alquimia chamava isso de “Coincidência de Opostos”; por exemplo no termo “Paz Guerreira”. Tem um TEDx no Youtube que a moça propõe um “Egoísmo Altruísta”. Não assisti à aula mas gostei da ideia. Tem a ver com a Coincidência, depois a União dos Opostos. Diziam os alquimistas que só podemos juntar o que podemos separar. Essa é uma tarefa dos terapeutas e da vida: buscar sempre o equilíbrio. Tentamos modular os excessos dos tipo A, ativar e acelerar os tipos C, ou tornar os tipo B mais completos. Uma das questões com relação às terapias é enfrentar uma das frases do Dr House: “People don’t change”, ou, em tradução livre: “As pessoas não mudam”. Isso quer dizer que as pessoas tem uma constituição, uma estrutura de personalidade que se mantém estáveis durante a vida. Tenho dois filhos e uma cachorrinha, e todos tem características de personalidade e temperamento que já apresentavam quando eram bebês. Isso não significa que não tenham que aprender ou desenvolver outras habilidades e trabalhar seus pontos fracos, mas a personalidade se estabelece de forma estrutural e muda a sua estrutura em situações limite, como tragédias ou lavagem cerebral (que ainda não tentamos, mas dá vontade às vezes).
Acho pessoalmente que vivemos uma época em que a Cultura estimula e premia os tipos A, mas cria diariamente milhões e milhões de tipos C, pessoas anestesiadas e paralisadas diante da vida e das telas de computadores, ou afogadas em mídias sociais que lhe subtraem a experiência do Real. O tipo C mais prevalente e perigoso é uma doença da modernidade, a alienação de Si e do Outro. Se alguém disser que o autor puxa mais a brasa para a sardinha do A do que do C, também estaria certo.
Sendo qual for o tipo de Personalidade, que o Taoísmo chama de Yin e Yang, os tipos A tem prevalência de Yang e C de Yin. Seja qual for a predominância de seu tipo, a busca é do equilíbrio das tendências e a participação no jogo da Vida. Talvez esse seja o grande tema desse blog, em tantos temas e textos diferentes.