sábado, 29 de abril de 2017

Suicídio e Estudantes de Medicina

Alguns sonhos um terapeuta leva para sempre. Uma paciente, que tinha um risco suicida importante, me trouxe, há alguns anos, esse: “Estava em alto mar com o Marcelo (nome fictício). Tínhamos que atravessar nadando e era uma boa distância. Ele estava com medo, mas não tínhamos alternativa. Eu mergulhei e fui nadando com grande dificuldade até conseguir atravessar e chegar numa espécie de ilha, ou de banco de areia. Tomei o fôlego e procurei por ele, que tinha desaparecido. Acordei gritando”. Após alguns dias desse sonho, Marcelo, que era amigo de seus filhos, suicidou-se. Ela conseguiu atravessar o Vale da Morte. Ele não.
Já faz mais de uma década que estudos começaram a correlacionar o Suicídio com um traço genético, o alelo curto do transportador de Serotonina. Na época havia um grande entusiasmo pelos resultados dos medicamentos ISRS, inibidores da Recaptação da Serotonina na Depressão, então foram atrás dos genes relacionados. Como tudo em Medicina, o Suicídio tem uma causalidade multifatorial e não pode ser achado um “gene do suicídio”, mas encontrar uma correlação entre esse gene e o risco pode ser um grande alívio para todos que cercam um evento como esse. A pessoa que tira a própria vida não é necessariamente covarde nem corajosa, não é egoísta nem psicopata, mas pode estar manifestando uma tendência genética como da Asma ou do Diabetes. Temos famílias com traços depressivos, ou de bipolaridade que geram quadros mais ou menos graves e ainda assim não tem história de risco suicida. Em outras, pode-se localizar alguns casos atravessando gerações. Existe um traço genético e o Suicídio é uma doença, não uma falha moral.
Lúcia, leitora desse blog, pediu para eu comentar sobre uma matéria que saiu na Folha há duas semanas sobre quatro tentativas suicidas em estudantes do Quarto Ano da Faculdade de Medicina da USP, onde estudamos e onde ela dá aulas de Nefrologia. Tenho poucas informações sobre os casos, mas sei que não foi um pacto suicida nem eventos coordenados. A gloriosa Casa de Arnaldo fechou-se sobre o assunto e está em reuniões com o pessoal da Psiquiatria para aprimorar o atendimento dos casos de risco. Acho que perdeu uma excelente oportunidade de deixar que esse assunto fique preso entre as togas e os corredores da Academia, para abrir um amplo debate na sociedade e entre os alunos sobre o tema. Aliás, os últimos posts desse blog, sobre a série “13 Reasons Why”, do Netflix, abordaram esses dois temas que levaram a Faculdade de Medicina às páginas dos jornais: abuso sexual e estupro em festas alcoólicas dos alunos e agora as tentativas de suicídio. Os vetustos professores trariam um grande benefício à sociedade se abordasse esse assunto às claras, com organização de simpósios e debates sobre o tema, ou as dezenas de temas correlatos, até porque médicos e estudantes de Medicina são classicamente um grupo de risco para essa doença. Nos Estados Unidos morrem de 300 a 400 médicos por ano vítimas de Suicídio. Os médicos mais jovens, os residentes e os internos, por serem mais expostos aos traumas e ao estresse dos anos de formação, são os principais afetados. No caso da faculdade de Medicina, o quarto ano é um ano de particular tensão, pois vai anteceder a entrada dos alunos no hospital, como internos. O aluno tem que dominar um incrível volume de conhecimento e isso pode gerar a sensação de burnout que também já foi abordado em outros posts. No caso dos alunos que tentaram o suicídio, imagino que o burnout e a exaustão tiveram uma boa participação nos eventos. A sensação do medo e da incomunicabilidade, também.
O sonho da minha paciente me deu uma imagem em 3 D sobre o suicídio, por isso eu nunca o esqueci. Todos temos na vida momentos cruciais de travessia e transformação: deixamos uma fase e passamos para outra. A mudança é muitas vezes sentida como uma perda, ou é iniciada por uma perda: divórcio, demissão, morte de um ente querido, fim da faculdade e assim por diante. Esses períodos trazem um apagamento das referências e das regularidades da vida, o que pode afetar as pessoas mais vulneráveis, como os portadores de transtornos afetivos, os usuários de álcool e drogas e as pessoas com dificuldades com a própria regulação emocional. Portanto, adolescentes e jovens adultos são grupos de risco. Se forem estudantes de Medicina em períodos de alto estresse, mais risco ainda.
O sonho mostra a situação crucial desses períodos de transição: é como atravessar a nado um mar bravio. A travessia demanda paciência, preparo e cuidados de quem já nadou por lá. Isso nem sempre é possível. Algumas pessoas cansam e afundam, outras não. Os genes podem ajudar a entender, mas nada consegue explicar o Destino. Só sabemos que, nesses períodos de transição, é bom estar de olhos abertos e é melhor ainda dizer muitas vezes que aquilo é transitório e o que parece sem saída hoje, pode se abrir amanhã. E é sempre bom esperar pelo outro dia.


sexta-feira, 21 de abril de 2017

Hannah Baker

Este post é a continuação do anterior, e vai se basear na série do Netflix que causou muita polêmica no seu lançamento, mas a mesma já esfriou, já que a ação de indução de suicídios esperada e alertada por “especialistas” não ocorreu, pelo menos até agora. A série é “13 Reasons Why” e, para quem não viu, vou cometer a indelicadeza de indicar o post anterior para saber do que se trata.
Numa das cenas finais da primeira temporada, Clay Jensen, cuja jornada na direção da verdade é o verdadeiro tema da série (na opinião desse escriba), vira-se para o conselheiro (?) estudantil, e observa que está mais do que na hora das pessoas reverem o jeito como se tratam naquele lugar. Está mais do que na hora de uma política de acolhimento e gentileza. Isso foi escrito antes de Donald Trump virar o homem mais poderoso do planeta. Pensando bem, até o fato de ter um imbecil comandando a América pode ampliar o debate sobre a necessidade de rever a subjetividade darwiniana que opera em nosso mundo. Renato Russo dizia: “Há tempos, nem os santos/Tem ao certo a medida da maldade/ E há tempos são os jovens que adoecem”. “13 Reasons” reflete uma sociedade doente, a nossa. Duas doenças principais: a Exclusão e a Incomunicabilidade. Os jovens adoecem, em meio à incompetência de pais, professores e terapeutas em entender o que ocorre e como operar com isso. Hannah Baker teve pais amorosos e presentes, uma escola com aulas sobre Inteligência Emocional e Autoestima, um Conselheiro Estudantil de plantão e várias, várias oportunidades fracassadas de trabalhar sua sensação permanente de exclusão. Como acontece em muitas tragédias, uma comédia de erros de mal entendidos e pequenas e grandes violências a empurravam, o tempo todo, de volta à exclusão e incomunicabilidade. A maior de todas foi morrer sendo profundamente amada por Clay e vemos, em desespero, a infinidade de oportunidades que os dois tiveram de manifestar, expressar esse amor, mas na hora H sempre calavam seus sentimentos com medo de mais uma rejeição.
A série mostra uma geração de filhos únicos esmagados pelas expectativas de seus pais. Uma geração que cresceu ouvindo que são muito especiais e, lamento dizer, pouco aparelhada para lidar com as dificuldades de crescimento. Dificuldades inerentes ao crescimento, e ao desmoronamento do mundo cor de rosa das Frozens e Moanas.
Hannah Baker deixa sete fitas cassete com descrições de pequenos e grandes abusos e traições que sofreu. A jornada de Clay é descobrir a sua responsabilidade nessa morte e trazer à tona o que todos tentam evitar, que é a Verdade. Acho que o subtema mais bacana da série não é nem a reflexão sobre a cultura do estupro em festas pseudo inocentes nem o suicídio da narradora, mas a Compaixão. No final das contas, todos, perpetradores e vítimas do bullying real e virtual sofrem, tem medo e vergonha para ocultar sob a capa de suas Personas. Clay Jensen demora para ouvir as fitas porque sente na carne o que Hannah sentiu, e vai também se aprofundando na própria covardia e omissão, até não conseguir mais aguentar a si mesmo. Não consegue mais aguentar seu próprio silêncio covarde e começa a berrar a verdade para quem quer ocultá-la a qualquer custo. Clay vai descobrindo, aos trancos e barrancos (literalmente em trancos e em barrancos) a sua capacidade de sentir o que o outro sente, que é a Compaixão.
Talvez a série seja um exercício de Sentir, e esse seja o seu fio condutor: sentir e expressar, em meio aos jogos de poder e de histeria que vivemos em nosso tempo.
Hannah Baker fala de um mundo em que estamos desenraizados, perdidos de nossa Alma. Nos séculos passados uma série de estudiosos e antropólogos descreveram o fenômeno do suicídio em massa de tribos indígenas que foram desenraizadas e perderam contato com a sua terra e sua matriz cultural. Hoje vemos homens bomba explodindo a mensagem contra a sua exclusão e incomunicabilidade. A cyber cultura cria a ditadura das Personas. Não se busca mais a própria Verdade, mas emoldurar a vida com Photoshops e felicidades de plástico e de Redes Sociais. A perda de raiz afeta a todos, pois há também aumento das taxas de suicídio entre pessoas entre os cinquenta e sessenta e cinco anos, igualmente um período em que as pessoas podem sentir o medo e a exclusão diante do que vem pela frente.
Clay Jensen, no final das contas, tem razão. Está na hora de colocar os dedos nas feridas e está na hora de nos tratarmos melhor.

sábado, 15 de abril de 2017

Uma Única Razão

Recebi um e-mail apavorado da mãe de uma paciente me confidenciando que a filha estava assistindo a nova série do Netflix, “13 Reasons Why”, que trazia uma advertência, sobre “cenas gráficas de estupro e suicídio”. Ela tentou perguntar sobre a série, a filha desconversou e fechou o computador. Minha filha vai ser contaminada por esse vírus? Sugeri que ela assista a série, mesmo sendo muito chata, com personagens caricatos e pouco verossímeis, e discuta a trama com a sua filha.
A série trata da história de uma adolescente que cansa de sofrer vários tipos de abuso na torturante jornada do Ensino Médio e comete suicídio. O nome da série “Treze Razões Pelas Quais” se refere à descrição, em fitas cassetes deixadas gravadas para as pessoas que, direta ou indiretamente, causaram a sua morte, de todos os abusos que levaram à tragédia. Parece que a série é sobre a menina que se matou, Hannah Baker. Eu discordo. A jornada de transformação é de Clay Jensen, um colega que era apaixonado por Hannah e que vai ouvir, fita após fita, os horrores que a menina passou debaixo de seu nariz. Clay vai tentar entender a morte absurda e, mais absurdo, a própria incapacidade de viver a sua vida com alguma coragem e alguma verdade. Aliás, acho que o tema verdadeiro dessa série não é o suicídio, mas a Verdade e o que fazemos para evitá-la. Clay mente o tempo todo, para os pais, os professores, os colegas e, sobretudo, para si próprio e para Hannah. Pessoalmente, acho Clay uma somatória de covardias e esquivas que o levam sempre a chorar o leite derramado. O leite mais derramado de todos é a morte da menina que ele amava e deu o maior mole para ele, e nada. Nada. Dá um tempo, Clay.
Não sei se devia ter mandado a mãe da paciente ver a série. É um autêntico filme de terror para os pais: Hannah deixa as fitas para seus inimigos, desafetos e amigas falsianes, mas não deixa um mísero bilhete para os seus pais, que, até onde assisti, eram pais amorosos e presentes. Talvez eu descubra que eram alcoólatras e abusadores, mas mesmo assim, os perseguidores tem muito mais consideração da menina do que as pessoas do mundo mais afetadas e devastadas pela sua morte.
Na série, país, professores e pessoas do mundo adulto são um bando de retardados sendo constantemente engrupidos pelos adolescentes, pregando mentiras o tempo todo. A mãe de Hannah, particularmente, implora feito um zumbi para receber um fragmento de verdade que a ajude a compreender a perplexidade da sua perda. Todos a mantém dentro da mentira e da omissão. Um terror. É claro que os filhos adolescentes imaginam estar tapeando os pais o tempo todo. Mas não somos assim tão sem noção. Dá um tempo.
Quanto ao título da série, também pode ser mudado. Não há treze razões para a morte de Hannah, mas apenas uma: todos temos uma Ferida e um Imprinting na vida. A tarefa de uma boa análise é encontrar os dois e cuidar deles. No caso de Hannah, a Ferida é a sensação de Exclusão: todas as tentativas de fazer parte, de se inserir, terminam mal e pior, terminam em violência. Hannah tem a Impressão profunda do não pertencimento, o que gera mais e mais decepções. A principal é a sensação de que, de alguma forma, vai acabar sofrendo abusos. E isso realmente acontece. Essa é a Única Razão.
A série é construída em torno da noção que esse microtraumas vão criando uma chaga na alma até levar ao suicídio. Talvez seja a única questão verdadeira sobre suicídio que está abordada no roteiro. De fato, essas fantasias darwinianas de disputa de espaço e poder, as microcovardias e as tempestades de mentiras podem abrir uma fenda que vai virar um terremoto mais adiante.
Para os alarmistas de plantão que esperavam um aumento de tentativas ou de suicídios por conta dessa série, acho que não vai ser o caso. A maior causa de morte em adolescentes e adultos jovens nos Estados Unidos é o Suicídio. No Brasil não é assim porque nossos jovens morrem mais vítimas de violências como acidentes e balas perdidas, mas os números estão aumentando. A série coloca uma lupa no assunto e abre debates sobre esses microtraumas que as pessoas sofrem, sobretudo se a pessoa for mulher e com a sensibilidade de Hannah. Isso é um efeito sem dúvida benéfico.
É importante colocar o foco nessa direção e debater, confrontar, esmiuçar o assunto sem medo e sem se esconder atrás do medo e da omissão. Isso vai ajudar o debate a sair do clichê e colocar dedos em feridas, antes que seja tarde.

domingo, 9 de abril de 2017

Matrix

No início desse novo século um filme sacudiu a nossa concepção de cinema, que foi o Matrix. Acho que foi uma das maiores realizações dessa jovem arte, a fusão e a espiral de mitologias e a questão fundamental que assola a modernidade: apesar de tanto acesso a um quantum inimaginável de conhecimento, talvez estejamos mais presos na Matrix do que nunca. Isso apesar de toda porradaria, que era o tributo a se pagar para ver o que interessava.
Para que não lembra, os humanos seriam autômatos vivendo uma vida dentro de um estado de sono ou de alienação permanente, ligados a um gigantesco sistema chamado de Matrix. Os medos, o sofrimento, a própria vida seria um estado de sono e de imersão num esquema de repetição de desejos e frustrações que nos deixam em uma vida circular, repetitiva. Os budistas chamam essa repetição infinita de Samsara. Matrix é o Samsara? Pode ser.
Um filme mais recente, The Discovery, lançado recentemente no Netflix, tem uma frase muito bonita que resume o Samsara. Vai ficar um pouco deslocada, mas se eu tentar explicá-la vai gerar um grande spoiler e não vou fazer isso. O filme é sobre um cientista que descobre e revela aos mundo provas da continuidade da vida após a Morte. Haveria uma troca de nível com a mesma, uma ampliação de consciência, coisa que os místicos afirmam há muito tempo. Isso gera, no filme, uma epidemia mundial de suicídios. As pessoas começam a morrer para atingir o próximo nível. O filho do cientista é um neurologista cético que tenta demover o pai dessa pesquisa. É dele a frase mais importante, que “ A vida é uma sequência de erros que vamos repetindo infinitamente, até a velhice e a morte” .
A Mitologia grega tem uma imagem parecida: após a morte, os homens seriam condenados repetir no Mundo dos Mortos os erros se não bebessem da água da lagoa da Memória: só o relembrar de tudo pode nos libertar de nossos erros ancestrais. Talvez por isso que o trabalho terapêutico produza uma viagem no tempo para relembrar o que foi esquecido ou freudianamente reprimido. Nossos medos, nossas mágoas, nossos ressentimentos podem criar uma vida de repetição permanente dos mesmos esquemas, os mesmos erros, as mesmas neuroses que nos deixam apartados de nós mesmos e dos encontros amorosos que poderíamos ter.
Nossa Matrix é a repetição inconsciente do mesmo sistema de crenças, dos mesmos preconceitos e buscas vazias que carregam o dia a dia. Dinheiro, segurança, beleza, sucesso, iluminação, tudo o que se busca pode ser usado pela Matrix para manter as pessoas correndo em suas rodinhas como ratos. A Matrix pode ser a Mente e a sua tentativa de tudo dominar e reduzir: a Mente acredita poder fazer tudo isso. Quem fica encantado com um bebê sorrindo e olhando maravilhado para a Vida está contemplando um estado psíquico em que a Mente Autocentrada ainda não se instalou. Desde Piaget sabemos que esse estado iluminado não dura muito. Com dois anos aquele bebê encantador já virou um monstro de egocentrismo. Levamos a vida inteira para tentar transformar esse monstro que precisa de atenção, segurança , afeto, pode é tudo que puder engolir em alguém sintonizado com algo maior que a própria falta. Sair do padrão infinito de repetição, então, é para poucos. Tentamos criar faíscas de Consciência entre os martelos e as bigornas da existência é a nossa tarefa, em ambos os lados dos divãs.

domingo, 2 de abril de 2017

Responsabilidade

Toninho era um rapaz bonito que trabalhava de ascensorista em um prédio que eu tinha consultório. Não sei porque ainda tinha ascensorista, pois era um prédio razoavelmente moderno. Para mim vinha a calhar, pois minha sala ficava em andar alto e isso era um suplício para pacientes claustrofóbicos ou com medo de elevador. Parecia que o ascensorista dava uma certa confiabilidade ao transporte, em caso de pane no meio do caminho. Mas não é disso que vou falar. Toninho era um sujeito um pouco negativo, desses que andam com uma nuvenzinha negra encima da cabeça. Reclamava do zelador, do tempo e da situação da Economia. Eu me limitava a ouvir, já que viagem era curta e meu ofício é ouvir mesmo. Palpite meu, só fazendo a ficha. Mas, como sou observador, também por dever de ofício, notava que tudo acontecia com o rapaz: sua pele tinha espinhas, ficava muito resfriado, defeito grave para ascensorista, e vez ou outra eu pegava um analgésico pois estava com dor de cabeça. Um dia entrou bandido no prédio, disse a rádio peão que para roubar um doleiro e adivinha quem estava de serviço? Pois é. Toninho levou uma coronhada, ouviu ameaças de praxe e ainda teve que dar depoimento na delegacia para um delegado que achou que ele estava envolvido e era cúmplice dos meliantes. O prédio teve que mandar um advogado condômino para livrar a cara dele, que era bom rapaz, só um pouco rabugento. E absolutamente honesto. Mas foi aí que Toninho começou a se fazer a pergunta certa: por que essas coisas não param de acontecer comigo? Toninho foi levado à Igreja Evangélica pelos colegas e, meio desconfiado, aceitou Jesus. Fui notando que a sua atitude foi mudando com o tempo. Em vez de reclamar e apontar um bom motivo para ficar mau humorado, começou a dar bênçãos e a desejar um bom dia. Como eu continuava sendo bom ouvinte, começou a dar testemunho e cantar os hinos baixinho. O fato é que Toninho deixou de ser um chato rabugento e pessimista e se tornou um chato cantor de hinos. Mas a vida dele, sem dúvida, melhorou. Arrumou uma boa moça para casar, caiu nas graças do zelador, que também era crente, e parou de consumir meus analgésicos. Ou foi pedir para outro médico “cristão”, já que eu não me pronunciava muito sobre o assunto.
Quando eu trabalhava em um postinho de saúde numa área pobre e violenta da Zona Sul de São Paulo, também aumentei os lucros da Igreja Universal. Mandava os moleques envolvidos com o tráfico para virarem crentes, única forma de se afastarem de suas funções sem uma reprimenda do traficante. Reprimenda é uma forma de dizer. Sabemos como são as punições nessa corporação.
Na recente polarização entre coxinhas e mortadelas, me vi classificado como um coxinha hardcore e esse blog não ajudou muito a melhorar a fama. O que realmente me irrita é a cristalização do discurso da vítima. Ou a cronificação da miséria pelo discurso assistencialista. Cheguei ao auge do meu discurso reacionário quando lembrei, na época das invasões de nossas escolas, que nossos alunos estavam dando aula de Democracia e os professores incentivavam esse caminho, mas ninguém explicava porque São Paulo é o estado da União que mais gasta com ensino público e nossos resultados sempre são tão ruins nas avaliações nacionais e internacionais. Nossos sindicatos se alinham com Cuba em muitas questões, mas não são avaliados e cobrados continuamente como seus colegas cubanos.
O tema desse posto é a responsabilidade, como diz o título. Pode parecer que a entrelinha seja um alinhamento com Edir Macedo ou com a Direita podre e bolsonárica que pede a volta dos militares ao poder. Ai meu Deus. Não, não sou alinhado à nada disso. Mas o que melhorou a vida do Toninho ou dos moleques do postinho não foi fazer passeatas por mais verbas para isso ou aquilo. Foi a noção de que a injustiça e a exclusão são responsabilidade de todos e, sobretudo, uma responsabilidade individual. Não é fácil fazê-lo. Mas ficar culpabilizando A, ou B, ou C não faz ninguém sair do lugar. Outro dia eu escrevi nesse blog que a responsabilidade do Caminho é do caminhante. Ajudar é mostrar o mapa, polir as botas e ajustar a bússola, mas a responsabilidade precisa ser ensinada desde o Jardim da Infância. Não adianta culpar o Outro. Como disse o poeta, o caminho se faz ao se caminhar.