domingo, 19 de fevereiro de 2017

Angel Heart

Tenho um bom tempo na estrada todos os dias para chegar ao trabalho. Sou um bom conhecedor de programas de rádio matinais. Passei a vida ouvindo o “Vam´bora ,vam´bora/ olha a hora/ vam´bora, vam´bora...”; Quem é paulistano e já passou perto de um rádio sabe do que estou falando, da vinheta milenar da Rádio Jovem Pan. Ouço também a CBN, que tem um programa “Liberdade de Expressão”, com o imorrível Carlos Heitor Cony e Artur Xexéo. O humor involuntário é o Cony fazendo citações culturais como o filme do Carlitos ou as fofocas de Marylin Monroe como se tivessem acontecido na semana passada. Outra referência que denuncia a idade do autor desse blog, parece que o Cony continua vivo dentro da revista Manchete: “Aconteceu, virou Manchete”. Pois aqui vai a minha lembrança Carlos-Heitor-Cony (oura referência geriátrica: sinto muita saudade do hífen): uma cena do filme “Angel Heart” com o irritante título brasileiro de “Coração Satânico”. Filme do final dos anos 80, onde um detetive vivido por Mickey Rourke busca um assassino pelo submundo de New Orleans, tudo isso com vastas doses de música negra e blues de raiz, daqueles de arrepiar todos os pêlos. Robert de Niro faz o papel do contratante e como a chance de alguém achar esse filme é baixa, aí vai um spoiler: ele é o Demônio em pessoa. Depois desse longo preâmbulo, a cena: O demônio encarnado, ao ouvir que um dos crimes em série foi dentro de uma igreja, observa que “Parece que a Religião produz mais ódio do que amor”. Ironia finíssima e sob medida para De Niro (dá para baixar o filme na internet, ops! Mas assistam mesmo assim).
Algumas pesquisas questionam a frase do Louis Cypher (Lúcifer, para quem não juntou os pontinhos), personagem acima citado do De Niro: as religiões, como tudo na vida, podem servir para juntar ou separar as pessoas. O livro de Jo Marchant, “Cura”, traz um capítulo em que descreve a história de Sheri Kaplan, que passou uma boa parte de seus vinte e poucos anos nas baladas nova-iorquinas até ser atropelada não por um taxi amarelo, mas pelo diagnóstico de HIV positivo, em 1994. Procurou grupos de ajuda e teve dificuldades em achar um para mulheres na sua condição, então fundou o Centro para Conexões Positivas. Alguns anos depois o grupo tem 1500 membros e orçamento de meio milhão de dólares. Sheri acredita que sua vida ganhou Propósito depois do diagnóstico e que a religião/espiritualidade ajudam no controle da doença. E ela não está sozinha. Mais da metade dos pacientes também tem essa crença. Já os pacientes que participam de religiões sectárias, que cultivam o ódio à concorrência, digo, às outras crenças religiosas, estão correlacionadas com progressão mais rápida da soropositividade até a doença estabelecida. Provavelmente não por punição divina, mas por uma maior carga de estresse e estressores nas pessoas que usam a crença religiosa ou política para uma guerra entre Nós e os Outros (A guerra do “Nós contra Eles” é bastante fácil de se encontrar nesses dias, não?).
Nesse mesmo capítulo a autora descreve a experiência de ter trabalhado no santuário de Lourdes, e da incrível atmosfera amorosa que cerca o lugar, repleto de doentes em situação de desespero e voluntários atenciosos acolhendo as pessoas, aquelas das quais nos afastamos instintivamente, com amor. O ambiente tem as vibrações do medo e da dor, mas também do amor e acolhimento. Parece que na vida essa é uma escolha diária e fundamental: escolher o medo e a separação ou a confiança e a conexão positiva. É claro que a vida moderna nos estimula muito mais para o isolamento e o medo. Por isso penso em experiências como de Sheri Kaplan, que transformou o isolamento e o absurdo do diagnóstico do HIV em uma busca profunda de conexão. E a busca se deu com a ação positiva, não com bla-bla-blá (olha o hífen de novo)
Eu responderia para Louis Cypher para ele curtir o blues e parar de encher o saco com ironias sobre a Religião: a verdadeira questão é o que pode levar alguém para a Conexão ou a Separação. E isso vale para tudo.

Um comentário: