quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O Animal Simbólico

Há uns dois anos encontrei um antigo conhecido e atual psquiatra estrelado e frequentador das páginas da Veja em um Congresso de Psiquiatria. Ele me saudou de forma entusiástica (o que não é muito comum no seu caso, por ser uma pessoa contida) e perguntou, nos corredores do evento, de bate pronto: " E aí, Spinelli, continua Junguiano?". Anos dedicados ao ofício me deram um certo treino para a resposta rápida. A primeira que me ocorreu foi: "E você, continua um Papagaio de Pirata da Indústria Farmacêutica?". Felizmente o treino inclue deter algumas respostas antes que elas sejam cuspidas boca à fora. Limitei-me a sorrir e a falar que estava para montar uma clínica de Psiquiatria Junguiana, se é que isso existe. Seguimos nosso caminho nos corredores, coincidentemente em direções opostas. No hard feelings. O interessante da pergunta é a questão implícita de que ser junguiano para a soberana Psiquiatria é algo como escrever em máquinas Olivetti, chupar balas Juquinha ou imprimir em impressoras matriciais esperando efeitos em 3D. Vou dar um exemplo das visões díspares, óbvio que puxando a brasa para a sardinha da Psiquiatria que eu gosto. Mas vou manter alguma imparcialidade, já que sou Psiquiatra Clínico também. Isso também me coloca em posição interessante: para os psicoterapeutas, eu sou um clínico. Para os clínicos, eu sou psicoterapeuta. Isso é um duplo exílio, mas felizmente eu o aceito com algum bom humor (e algum sofrimento, também).
Voltando à uma Psiquiatria Junguiana: imaginemos um vovozinho passando por um monte de dificuldades. Uso o exemplo porque o colega em questão é Psicogeriatra. Imaginemos um vovozinho que perdeu recentemente a sua companheira. Para piorar, uma Arritmia Cardíaca causou uma internação de sete dias em uma UTI. Após alguns poucos dias, ele começa a ter novas palpitações, mas o Eletrocardiograma não indica nova arritmia. Ele está triste e depois de algum tempo de entrevista começa a chorar. O Psicogeriatra é chamado, diagnostica uma depressão e dá o antidepressivo mais recomendado pela Literatura Médica. O vovozinho chega em meu consultório algumas semanas mais tarde. O antidepressivo da moda está lhe causando sintomas de pânico. O psicogeriatra da moda pede para ele aguente firme, que os sintomas iriam começar a melhorar. Ele não está melhorando e dá a impressão quase palpável de ter uma pedra no sapato de sua alma. Temos uma longa conversa sobre a velhice, a perda e a morte (temas normalmente muito agradáveis à nossa cultura, não é mesmo?). Ele chora e pede desculpas por isso. Vem pensando em suicídio. Coversamos sobre o suicídio e como ele é um risco real em situações em que a pessoa não vê perspectivas de futuro. Ele sai aliviado. Troco a medicação, uso um remédio fora de moda. Naquela noite, ele volta a dormir. Alguns dias depois, tem fome. Na semana seguinte, vai a um almoço de família e conta piadas. O psiquiatra biológico diria que eu acertei melhor os neurotransmissores do vovozinho. Eu diria que o homem é um animal simbólico. A morte, a perda, a velhice, são fatos biológicos e simbólicos que fazem parte da vida. Compreendê-los em profundidade dá a pessoa que está passando por esse momento uma sensação de conforto e, quem sabe, de aceitação dessa transformação. É isso que eu diria ao colega: continuo junguiano. Mais ortodoxo do que ficha telefônica, ou filme fotográfico.
Um ótima e simbólica passagem de ano a todos.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Magnificat

Fiquei reconfortado com uma notícia da Folha de São Paulo, no suplemento Folha Teen, dando conta de um movimento de repúdio ao consumismo, o movimento dos Sem Compras, pessoas que estão boicotando o corre corre e a loucura consumista que transforma um dos mais belos mitos cristãos em um festival de pacotes de presentes que lamentamos receber todos os anos. Tem sempre um presente mala que abrimos entre sorrisos amarelos e alegria de plástico, não é mesmo?
O aniversário de Jesus foi arbitrariamente colocado no dia 25 de Dezembro para coincidir com o Solstício de Inverno no Hemisfério Norte. A história do nascimento do menino Jesus é a história de um percurso problemático. Começando pelo momento da Anunciação, o Magnificat, quando surge o anjo do Senhor para uma menina recém saída da adolescência, dizendo que o Espírito Santo seria manifesto em seu ser, na forma de um filho. Bendita és tu entre as mulheres, disse o anjo. A menina estremece diante da visão e da Revelação do Mistério, como estremecemos diante do novo e do não conhecido. Com a coragem instintiva de uma mulher ela aceita, incondicionalmente, a tarefa. Para as pessoas da época, o que inclue o seu futuro marido, a menina que aceitava o Mistério incompreensível era uma adúltera, crime punido na época (e ainda hoje no Irã) com a morte por apedrejamento. Ela aceitou a tarefa, mesmo que isso custasse a sua vida, como muitas mulheres no decorrer da história arriscaram e arriscam a própria vida por seus bebês. A Concepção Imaculada representa o nascimento do menino-Deus sem que o mesmo passe pela corrupção de nossa vida encarnada. Apesar da concepção feita na perfeição, o nascimento do menino Jesus será problemático, mostrando as feridas da condição humana. Maria tem medo, José tem dúvidas, Herodes ouve falar do menino-Luz e quer matá-lo. Como as nossas jornadas, nossos processos de transformação, aquela gravidez vai enfrentar o medo, a dúvida, o cansaço impedindo nossa chegada a Belém.
Na Mitologia Grega, o deus Eros é filho da Artimanha e da Pobreza. O menino Jesus na manjedoura representa o nascimento na pobreza, no improviso, no meio dos perigos que atravessamos e da Graça necessária para que as coisas corram bem. Nessas semanas eu tentava explicar para um cliente cujo filho estava para nascer o significado desse nascimento conturbado. Nos meses que antecederam o nascimento de seu filho, aconteceu um pouco de tudo em sua vida: mudança de emprego, internação e cirurgia de urgência, crises de ansiedade e medo de não dar conta daquele pequeno milagre envolvido pelos lençóis hospitalares. O bebê nasceu, mesmo depois de um percurso tão cheio de sustos. Os recursos para criá-lo também vão surgir. O caminho se faz ao caminhar, disse o poeta.
Ficamos vendo os Papais Noéis sorridentes, as famílias felizes em torno dos perús Sadias nas propagandas, tudo parece tão bom e fácil em tempos de Natal, não é ? O que esquecemos é que por trás daquelas luzinhas e pacotes de presentes, celebramos uma menina que há mais de vinte séculos falou um gigantesco Sim, Seja feito segundo a Tua vontade.

domingo, 19 de dezembro de 2010

O Mal que entra pela boca

Há alguns dias a Folha publicou um estudo dando conta do aumento de consumo pelas famílias recém ingressadas na classe média pelos Anos Lula. Existem evidências de que o aumento de capacidade de compra leva esse grupo a consumir mais açúcares de absorção rápida, também conhecidos como carbohidratos e menos arroz e feijão, peça fundamental de nossa alimentação brazuca há décadas. Parece que vamos passar rapidamente do Fome Zero para o Diabetes Zero como grande programa de segurança alimentar. Outro estudo que eu li recentemente já documenta crianças nascendo com frequência cada vez maior de uma chave genética de propensão à Obesidade. O princípio é fácil de entender: gestantes com uma dieta pobre em fibras e vitaminas e uma dieta cheia de farinha e açúcares, as chamadas calorias vazias, transmitem ao feto a informação de que está faltando comida aqui do lado de fora, o bebê já nasce com um mecanismo poupador de gordura. As mamães que trocam o arroz e feijão pelas bolachas, chocolates e batatinhas fritas mandam uma mensagem falsa aos seus bebês. É como se fosse ativada uma chave genética que diz, cuidado pessoal, está um inverno brabo lá fora e está faltando comida. Vamos juntar gordura. A Medicina, com a sua esperteza habitual, já começa a dosar colesterol de bebês e recomenda a suspensão do uso de leite após os dois anos de idade. Oferecendo menos comida talvez vamos aumentar a obesidade, porque o organismo ainda recebe a informação de que está faltando comida. A Medicina Chinesa trata a maior parte das doenças com orientações dietéticas, o que a nossa Medicina ocidental acha hilariante ou coisa de uma mentalidade pré científica.
Temos então no período pós industrial uma alimentação altamente inflamatória, com alto índice de sal e gorduras e baixo índice de vitaminas e fibras. O aumento das doenças ligadas ao sobrepeso e à Obesidade encontra tratamentos com resultados pífios e cirurgias bariátricas criando talvez mais fome celular. Será que é estranho ler sobre isso num blog de um psiquiatra?
Há décadas que a Psiquiatria e a Medicina colecionam fracassos no tratamentos das Doenças de Adicção. Alcoolismo, Dependências Químicas e agora os Transtornos Alimentares são fronteiras ainda pouco conhecidas com resultados pouco animadores. Em um outro post levantei se estamos numa época de obsessivos, mas podemos estar realmente numa época de compulsões e dependências. Dependemos de açúcares, de guloseimas, de diversão, de trabalho, dependemos mesmo da sensação de que precisamos de algo para ontem. Nossos pools genéticos tentam acompanhar esta correria, o que se traduz por doenças crônicas, oncológicas, autoimunes. Não dá para pisar no freio de uma vez, podemos concordar. Há uma música do Renato Teixeira, linda na voz de Maria Bethânia, que diz: "Penso que viver a vida seja simplesmente/Descobrir o ritmo e ir tocando em frente/Como um velho boiadeiro levando a boiada/Vou levando a vida pela longa estrada eu vou...". Talvez um bom pedaço do trabalho de um bom psiquiatra seja ajudar o paciente descobrir o ritmo para ir tocando em frente, à moda dos boiadeiros levando boiadas. Poruqe não há a menor dúvida de que a correria precisa mudar. Para ontem.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Expectativas, de novo.

Já vou me desculpando com as meninas, maioria entre os leitores desse blog, mas vou falar de futebol de novo. Mas por uma boa causa.
Tenho alguns clientes gaúchos, todos umas figuras, portadores daquele senso de humor tão devastador quanto engraçado e característico de seu povo. A maioria aqui é colorada, apelido dado à camisa vermelhíssima do Internacional de Porto Alegre. Com certeza, as cores e a rivalidade trazem ecos de Ximangos e Maragatos peleando nas paisagens gaúchas. Pois nessa semana o Colorado foi para o mundo árabe jogar o Campeonato Mundial de Clubes. Fizeram uma grande festa, jogadores pegaram nos microfones cercados de foguetório para prometer raça e suor na busca da vitória e de mais uma estrela encima de seu glorioso escudo. Com meu ouvido seletivo de psicoterapeuta eu separei duas frases proferidas antes do jogo semifinal (é um campeonato que o time sulamericano já entra na semifinal). O jogo era contra um time africano, do Congo, chamado Mazembe. Um jogador do Mazembe falava que quando o time entrava em campo alegre e unido ele tinha a sensação de que nada de ruim poderia acontecer com eles. Já o técnico do Colorado, Celso Roth, trovejava a importância de se respeitar os africanos (cujo time que teria muita dificuldade de jogar a série B no Brasil). Celso Roth vaticinava: "É um jogo que precisamos atingir o erro zero". Ai, ai, aquilo me doeu nos ouvidos. Não existe erro zero, em nenhuma esfera de atividade humana. No dia seguinte, o Mazembe fez o primeiro gol quando seu atacante dominou a bola, ajeitou o corpo e bateu no ângulo do goleiro Renan apenas observado por uma zaga catatônica. Ninguém se moveu para pelo menos ficar na frente, dificultar o chute. Pareciam pregados no chão. Quando o time brasileiro tentou reagir, deu de cara com um goleiro francamente presepeiro, que pula de frente em algumas bolas e comemora os gols dando pulinhos encima da própria bunda. O cara parecia se agigantar diante dos atacantes. No final do jogo, o segundo gol dos africanos, o golpe de misericórdia. Mais pulinhos para o goleiro. Impressionante como a história sempre se repete e não tem nenhum manual de Psicologia Esportiva que ensine isso: quando você cria uma expectativa de perfeição, do tem que ganhar, todas as engrenagens do Inconsciente trazem a dúvida, o será? Temos falado muito disso nos quadros obsessivos amorosos. Quando o outro vira a razão de ser de alguém, o "tem que dar certo" desencadeia uma comédia de erros e desencontros, frequentemente terminando em lágrimas e caixas de bomboms na frente da TV a cabo. Não há situação que queremos que dê certo que não possa dar errado. Isso tem que estar na nossa consciência, ou volta como um fantasma, na pior hora.
Tem uma história zen que eu adoro, que ilustra bem o nosso assunto: Havia no mosteiro um grande mestre, admirado e amado pelos monges. Esse homem tido como iluminado pediu a seus discípulos que deixassem a sala de meditação "perfeita" para a sua volta. Durante alguns dias, os jovens aprendizes se esmeraram em limpar cada milímetro da sala, buscando durante esse processo a perfeição da limpeza, harmonia, equilíbrio no recinto de suas meditações. Quando o mestre chegou de viagem, pôde ver que a sala estava fechada há algum tempo, para que nada perturbasse a sua perfeição. Entrou no recinto, observou os detalhes e, subitamente, saiu. Voltou com um punhado de terra, de folhas e de sujeira que os homens trazem para dentro de suas casas, e espalhou-as pela sala. Alguns monges correram para impedí-lo, ele sorriu e falou: "Agora ela está perfeita".
As vidas, as relações, as dietas e os times de fiutebol são cheios de defeitos, de erros, de imperfeições. As nossas tentativas de diminuir, cuidar, observar os erros são legítimas. Mas o melhor método não é buscar o "Erro Zero", mas antes estarmos atentos a eles, prontos para corrigí-los, em vez de ocultá-los. Os jogadores africanos cometeram vários erros, alguns quase infantis. Mas, na sua alegria, acreditavam que nada de ruim poderia acontecer com eles.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

A Rede Social

Não é incomum as pessoas diagnosticadas com algum Transtorno Ansioso ou Depressivo levantarem a questão: "O que está acontecendo? Por que o meu pai e meu avô não tinham depressão e hoje todo mundo tem? Isso é invenção da Psiquiatria, da Indústria Farmacêutica ou está todo mundo louco, mesmo?". A resposta a essa pergunta pode levar alguns tratados em tamanho de Bíblia. Talvez vivamos numa das épocas mais insalubres ao nosso Sistema Nervoso de todos os tempos. A alimentação da Era Industrial, cada vez mais vazia de nutrientes, uma alimentação inflamatória, ou seja, que aumenta a atividade inflamatória de nosso organismo, o que favorece as doenças mais letais, cuja letalidade aumenta com o tempo a despeito dos bilhões gastos em remédios e prevenção. A falta de atividade física e de exposição ao sol. Se a camada de Ozônio do planeta continuar diminuindo, a exposição ao sol vai ser um luxo, uma possibilidade remota. As atividades noturnas invertem o ciclo vigília-sono, deixam o sono cada vez menos regido pela luz solar, criando insônias e fusos horários bagunçados. Mas um fator tão falado quanto misterioso é o stress, ou estresse. Somos criados para ele. Medo, antecipação de futuro, expectativas, dores, tudo isso vem sendo amplamente debatido nesse blog. E são estressores permanentes para mim e para todos.
Fui assistir no final de semana o Harry Potter, mas dei de cara com salas lotadas (mais um estresssor) e acabei vendo esse filme sobre o Facebook, " A Rede Social". O filme é chato e dá um foco quase exclusivo na disputa em torno da paternidade desse site, da idéia que o gerou para divisão dos bilhões de dólares que ele rende em todo o mundo. O personagem Mark, criador do site,é interpretado de uma forma convincente e para mim impressionante. Logo no primeiro diálogo ele conversa com uma moça bonita, com quem está saindo. Ela tem dificuldade em acompanhar o que ele fala, porque costuma alternar dois ou três assuntos simultaneamente. Consegue em uma conversa fazer alusão à origem modesta da moça e à faculdade igualmente modesta que cursa, levando um merecido pé na bunda ao final da mesma. Mark não consegue conversar um assunto por vez, não consegue se conectar afetivamente com humanos se não for por uma tela de computador, é o mais jovem bilionário do planeta e não consegue ser adicionado no Facebook da mulher que ama. Não consegue nem articular um pedido de desculpas pelas incontáveis grossuras que dirigiu à essa pessoa. Talvez essa seja uma fonte de estresse inteiramente nova em nossa jornada humana: depois de anos tentando concorrer com a máquina, agora tentamos pensar e processar informação em ritmo digital. A humanidade pode estar se dividindo em humanos que funcionam analógica ou digitalmente. Não se trata de ficar à beira da estrada criticando a caravana, ou latindo para ela. Uma das tarefas da Psiquiatria e da Psicoterapia vai ser mais do que recolher e restabelecer os neurotransmissores feridos e os receptores em pandarecos dessas pessoas. Vamos precisar adaptar as pessoas a seguir esse ritmo do planeta sem que se tornem como o rapaz do filme, um verdadeiro Midas moderno: tudo o que ele toca vira ouro, mas isso pode acabar matando-o de fome.
O desafio é fazer as pessoas ficarem ágeis, espertas, rápidas, sem perder a ternura.
A tecnologia é ótima, traz benefícios incontáveis. Mas os homens estão ficando cada vez mais vazios, como a comida que devoram nos fast foods.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Vivendo e Aprendendo a Jogar

Antes de mais nada, gostaria de me desculpar com meus poucos e fiéis leitores pela semana de silêncio. O final de ano costuma ser difícil para psiquiatras. Assim que as primeiras imagens de Papai Noel e de famílias risonhas em torno de Panettones Bauducco ou perús Sadia começam a bater nas telas de nossas TVs,e as pessoas começam a enlouquecer, tentando resolver tudo até o dia 15, para depois começarem os lutos de Natais da aurora de nossas vidas, que o tempo não volta mais. Mas não é sobre o Natal que vou falar. Não hoje. O fato é que os posts vão ficar mais raros nessa época, mas espero não bater nenhum recorde negativo de postagens em Dezembro.
Estava respondendo um e-mail há pouco, falando justamente sobre um tema recorrente em Natais e finais de ano: expectativas frustradas. Parece que uma dimensão do drama humano deriva quase sempre dessas expectativas. Uma medida obbjetiva da maturidade de uma pessoa é justamente a capacidade de dimensionar as expectativas dentro do Real e tolerar a frustração quando as mesmas não dão certo. Isso parece muito chato e é mesmo. Durante meus anos como psiquiatra e psicoterapeuta lembro de ter deixado muitos poucos casos. Eu saí de um caso de uma moça que se agarrava com todas as forças ao próprio sofrimento. Dizia que não faria nada para melhorar a própria vida, já que Deus era o grande culpado por sua dor. Ele a colocara numa família disfuncional, Ele colocara homens desprovidos de afeto e de humanidade em sua vida, portanto, Ele tinha feito a sujeira, deveria também fazer a faxina. Algumas vezes em terapia, o terapeuta sair do caso é a única manobra que resta para a pessoas notar o que ela mesmo está falando ou fazendo. Não tenho muita esperança que essa moça tenha recebido, diretamente dos céus, um homem maravilhoso que finalmente redimiu a sua infância difícil e a sua vida solitária. Conheço muito pouco a respeito de Deus, mas imagino que, se jogamos poquer com ele, a nossa aposta Sempre vem antes. Ficar esperando que a Graça venha antes de nossa aposta, é sempre uma bobagem. Apostamos muito, perdemos outras tantas vezes, para viver e aprender a jogar, como dizia a música antiga.
Eu estava teclando exatamente sobre isso no e-mail: como é difícil dar alguns sonhos como perdidos e seguir em frente. Como é difícil agradecer pelo o que já fizemos e temos, em vez de lamentar nas ceias de fim de ano o que não conseguimos fazer. Devemos sacrificar todos os sonhos? Como viver, então? Mas abrir mão, em alguns momentos, nos deixa numa suave e profunda leveza. Quem sabe?

domingo, 5 de dezembro de 2010

A Paz Invadindo Meu Coração

Esse título me ocorreu junto com a música belíssima de Gilberto Gil: "Vim parar na beira do cais/ Onde a estrada chegou ao fim/ Onde o fim da tarde é lilás/ Onde o sol arrebenta em mim/ O lamento de tantos ais". A música descreve o poeta se refugiando no final de uma tarde de briga, de sofrimento amoroso, do "Só a guerra faz nosso amor em paz". Pessoas sofrem pela presença e pela ausência de parceiro e de parceria. Não é incomum que a paz venha acompanhada da tristeza das batalhas, amorosas ou não. O fato é que somos sempre compelidos à guerra. Somos soldados do BOPE invadindo as favelas de nossas dificuldades, tentando vencer as batalhas que não vencemos: batalhas para perder peso, batalhas para encontrar o verdadeiro amor, batalhas para encontrar o conforto econômico e o futuro protegido, batalhas que nos consomem no dia a dia deixando sempre um gosto de que algo ainda não está bom no final da tarde lilás.
Uma das minhas birras com os livros de AutoAjuda (os terapeutas costumam torcer o nariz com esses livros que são como locutores de FM berrando aos nossos ouvidos que devemos ser felizes, magros, animados, positivos) é justamente essa coisa de jogar sempre para o amanhã o que poderia ser vivido hoje. Pense positivo e conquiste o carro, o namorado, a mansão de seus sonhos. Outro dia estava lendo um jornal e fiquei emocionado com uma matéria sobre a religião no dia a dia das pessoas; o repórter colheu um depoimento de uma senhora muito simples que havia se convertido ao Budismo e descobrira que poderia ser útil e feliz sendo uma boa empregada doméstica. Desde este insight imenso, ela cultivava uma atitude alegre e caprichosa em tudo o que fazia, tornando-se uma ótima profissional, além de realizada. Muita gente torceria o nariz diante desse texto dizendo que isso é estimular a alienação e o conformismo, as pessoas precisam querer crescer, a senhora deveria voltar a escola, ser empreendedorista e virar diarista, montar uma empresa de faxinas, fazer MBA e depois, sim, após o terceiro infarto do miocárdio, gozar da alegria da meta alcançada. Esses são nossos valores, ou a ausência deles, que nos tornam alienados de algumas verdades simples, que costumam ser as maiores verdades: não temos como antever e muito menos controlar o futuro. Gastamos muita energia com ele. Devemos ser imprevidentes, viver o limite, desprezar os planejamentos? Muito pelo contrário. Podemos planejar, cuidar e expandir as fronteiras de nosso futuro, é uma das vantagens de nosso Neocortex recém conquistado em nossa jornada evolutiva. Mas a serenidade da senhora, que transforma cada pequeno ato de limpeza e arrumação com algo transcendente é um exemplo do estado neurofisiológico que devemos praticar. Todo dia. Um estado que me lembra a paz, inavadindo meu coração.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Harry Potter e o Herói Ferido

Quando Sidarta Gautama atingiu a iluminação sob a árvore Bodhi, teve alguns momentos de dúvida, mesmo sendo o Iluminado: como transmitir ao mundo das pessoas perdidas na roda infinita de nascimentos e morte a Verdade que encontrara? Com certeza, as Quatro Nobres Verdades foram um método compacto e didático de ensinar o caminho da Libertação. Vamos nos concentrar na primeira Nobre Verdade: a natureza de nossa vida é o Sofrimento. A boa notícia é que podemos cuidar do sofrimento, alcançando através dele a nossa transformação.
Freud redescobriu essa Nobre Verdade quando descreveu a sensação de Falta, de insatisfação na base de todo ato ou pensamento humano. É como uma coceira que nunca termina, como uma sensação permanente de incompletude que impulsiona nossos melhores e piores atos.
Harry Potter tem uma cicatriz bem no topo de sua testa. Ela é o resultado do pior momento de sua vida, do qual nem se recorda: o arquivilão, Voldemort, tentou matá-lo quando era bebê, a sua mãe se colocou na sua frente e esse ato levou à morte de seus pais e à dissolução do corpo de Voldemort, que levou bem uns quatro livros para ir se materializando de novo. No último livro da saga, dividido em duas partes nos últimos filmes da série, J.K. Rowling vai descortinar a ferida de um grande personagem, Alvo Dumbledore. Aparece também as dores de um vilão que não era tão vilão assim, Severo Snape. Dumbledore, na sua fúria de bruxo brilhante e sedento de poder, causou não intencionalmente a morte de sua irmã. Snape perdeu a mulher de sua vida, a única que verdadeiramente amou, a mãe de Harry. Tom Ridle, que viria a ser o Lorde das Trevas, passou a sua infância em orfanatos. J.K. Rowling maneja com elegância a saga desses heróis, trágicos e feridos. Durante toda a saga, vemos os medos, as dores e a busca inconsciente de redenção de todos eles. Sucesso, poder, reconhecimento, reparação, tudo isso desfila na tela e nas páginas como parte intrínseca do drama humano. O futuro ameaçador, o medo desse futuro, perpassa também todos os episódios e todos os anos da vida desse personagem Harry Potter que, como nós, vai ter que tolerar a frustração e o medo de não cumprir a sua missão, falhar diante de seus amigos e diante de si mesmo. No momento de seu confronto final, Harry vai oferecer um sacrifício. Voldemort, que representa nosso Ego prepotente, tentando impor a sua vontade ao mundo, não cosegue entender o amor, sobretudo o amor de quem pode oferecer a própria vida para salvar a vida de quem nem conhecemos. Nesse momento, Harry ultrapassa a própria ferida e a transforma em via de transformação. Talvez este seja o caminho menos percorrido: o caminho de se encontrar, finalmente, a paz de espírito, depois de uma longa jornada.