quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O Animal Simbólico

Há uns dois anos encontrei um antigo conhecido e atual psquiatra estrelado e frequentador das páginas da Veja em um Congresso de Psiquiatria. Ele me saudou de forma entusiástica (o que não é muito comum no seu caso, por ser uma pessoa contida) e perguntou, nos corredores do evento, de bate pronto: " E aí, Spinelli, continua Junguiano?". Anos dedicados ao ofício me deram um certo treino para a resposta rápida. A primeira que me ocorreu foi: "E você, continua um Papagaio de Pirata da Indústria Farmacêutica?". Felizmente o treino inclue deter algumas respostas antes que elas sejam cuspidas boca à fora. Limitei-me a sorrir e a falar que estava para montar uma clínica de Psiquiatria Junguiana, se é que isso existe. Seguimos nosso caminho nos corredores, coincidentemente em direções opostas. No hard feelings. O interessante da pergunta é a questão implícita de que ser junguiano para a soberana Psiquiatria é algo como escrever em máquinas Olivetti, chupar balas Juquinha ou imprimir em impressoras matriciais esperando efeitos em 3D. Vou dar um exemplo das visões díspares, óbvio que puxando a brasa para a sardinha da Psiquiatria que eu gosto. Mas vou manter alguma imparcialidade, já que sou Psiquiatra Clínico também. Isso também me coloca em posição interessante: para os psicoterapeutas, eu sou um clínico. Para os clínicos, eu sou psicoterapeuta. Isso é um duplo exílio, mas felizmente eu o aceito com algum bom humor (e algum sofrimento, também).
Voltando à uma Psiquiatria Junguiana: imaginemos um vovozinho passando por um monte de dificuldades. Uso o exemplo porque o colega em questão é Psicogeriatra. Imaginemos um vovozinho que perdeu recentemente a sua companheira. Para piorar, uma Arritmia Cardíaca causou uma internação de sete dias em uma UTI. Após alguns poucos dias, ele começa a ter novas palpitações, mas o Eletrocardiograma não indica nova arritmia. Ele está triste e depois de algum tempo de entrevista começa a chorar. O Psicogeriatra é chamado, diagnostica uma depressão e dá o antidepressivo mais recomendado pela Literatura Médica. O vovozinho chega em meu consultório algumas semanas mais tarde. O antidepressivo da moda está lhe causando sintomas de pânico. O psicogeriatra da moda pede para ele aguente firme, que os sintomas iriam começar a melhorar. Ele não está melhorando e dá a impressão quase palpável de ter uma pedra no sapato de sua alma. Temos uma longa conversa sobre a velhice, a perda e a morte (temas normalmente muito agradáveis à nossa cultura, não é mesmo?). Ele chora e pede desculpas por isso. Vem pensando em suicídio. Coversamos sobre o suicídio e como ele é um risco real em situações em que a pessoa não vê perspectivas de futuro. Ele sai aliviado. Troco a medicação, uso um remédio fora de moda. Naquela noite, ele volta a dormir. Alguns dias depois, tem fome. Na semana seguinte, vai a um almoço de família e conta piadas. O psiquiatra biológico diria que eu acertei melhor os neurotransmissores do vovozinho. Eu diria que o homem é um animal simbólico. A morte, a perda, a velhice, são fatos biológicos e simbólicos que fazem parte da vida. Compreendê-los em profundidade dá a pessoa que está passando por esse momento uma sensação de conforto e, quem sabe, de aceitação dessa transformação. É isso que eu diria ao colega: continuo junguiano. Mais ortodoxo do que ficha telefônica, ou filme fotográfico.
Um ótima e simbólica passagem de ano a todos.

Um comentário:

  1. Graças a Deus que existe gente que lida com gente, não é mesmo?

    Já sabemos há muito tempo que somos feitos de muitas coisas diferentes, como lidar com apenas um aspecto da alma/corpo/mente humana?

    Pra mim não funciona e acredito que, pra muita gente também não.

    Já me assumi, esquisofrênica, bi-tri polar, paniquenta, tudo que quiserem que eu seja- humana. Rótulo é rótulo. Tem que saber que dentro tem algo que é sempre único - uma pessoa.

    O cara tem que ser muito criativo mesmo pra sempre reinventar uma nova abordagem. Dor de garganta as vezes é dor de alma. Dou graças a Deus MESMO que tem gente como você. Ufa!

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