sábado, 28 de março de 2015

Alice, Ainda

Mais uma vez, o título em Português é infeliz e trai o original. “Para Sempre Alice” é muito pior do que o “Still Alice” (“Ainda Alice”, em tradução livre), o título verdadeiro do filme que deu o Oscar de melhor atriz para Juliane Moore. Uma paciente riu muito quando eu falei que o antidepressivo que iria receber se chamava “Exodus”. Dar o nome para um medicamento de um livro da Bíblia que descreve um povo tentando se libertar da escravidão em quarenta anos no deserto é, sem dúvida, humor involuntário. Espero que ela melhore em menos tempo. Dar o nome de “Para Sempre Alice” para um filme que demonstra sem piedade o processo de apagamento de uma mulher que sofre da Doença de Alzheimer em sua forma mais agressiva, que é a de início precoce e familiar, é também humor involuntário.
Já ouço no consultório as pessoas aterrorizadas quando esquecem um nome de alguma coisa ou tem um “branco” no estacionamento e não conseguem lembrar onde deixaram o carro. Eu vou ficar igual à Alice, doutor? Espero que não, ou vai acabar se esquecendo de pagar a consulta. Humor negro é uma das boas especialidades médicas.
Alice tem uma boa vida, uma ótima carreira e dificuldades de Memória e Concentração que vão se revelar aos exames como uma Demência, tipo Alzheimer. O filme mostra a luta dessa professora de Linguística para tentar segurar o que resta de sua vida mental. A luta é inglória e a derrota quase certa. A impressão que o filme dá é que quanto mais ela luta, mais rápido a doença vai apagando a sua identidade. Não tem nenhuma Alice nesse filme que seja para sempre. Uma cena particularmente forte é quando ela pede para o marido, que é médico, para ele se afastar do trabalho por um ano, pois será o último em que “ela ainda estará por lá”. Ele pede para não falar assim. Depois ela percebe que ele se negou esse ano sabático para não presenciar seu sutil apagamento.
A última palestra de Alice é exatamente na associação de pacientes com a doença. O tema de sua aula é dolorosamente bonito: “A Arte da Perda”. O filme descreve exatamente esse processo de viver a perda e deixá-la ir, num desespero manso. Como o leitor pode notar, não é filme para a Sessão da Tarde. A vida vai indo embora, a identidade, a capacidade de participar dos eventos familiares, tudo vai indo embora. Gosto muito da frase de um poeta e místico que diz: “O Meu telhado caiu, que bom, agora eu posso ver as estrelas diretamente”. Acho que esse é o tal Desapego budista. É um terrível equilíbrio do Perder para Ganhar, dando uma visão direta da vida. Jesus também falou sobre isso, quando mandou não resistir ao mal e oferecer a outra face. É engraçado falar sobre isso numa época da geração autoestima em que todos são estimulados a lutar pelo meu; cadê o meu? Abrir mão, deixar ir, manifestar a Arte da Perda, tudo isso parece um papo deprê e sem sentido.
Alice vai perdendo tudo de forma mansa e delicada, mas ainda consegue se maravilhar com o seu neto pousado em seus braços. Talvez ela veja as estrelas diretamente.

domingo, 22 de março de 2015

O Silêncio é que Cura

Normalmente os dados da Literatura Médica são muito favoráveis ao uso da Meditação como forma de melhora em várias doenças, da Hipertensão Arterial aos Quadros Depressivos e a Ansiedade. Dados robustos mostram que a Meditação atua bem e traz melhoras nas doenças e uma sensação mensurável de bem estar aos seus praticantes. Quando eu sugiro aos pacientes alguma forma de Meditação, eles costumam me olhar com uma expressão entre curiosa e aflita. Ou a ideia vai parar naquela lista de coisas que sabemos que deveríamos fazer, mas não vamos fazer nunca, como perder peso, parar de comer carne ou começar a treinar para a São Silvestre deste ano, e a conversa para por ali, ou a pessoa confessa que não se enxerga parada meia hora em posição de lótus entoando mantras. Aquilo parece muito esquisito e pertencente a tradições de alguns carequinhas sorridentes do Tibet. Não é coisa de gente séria.
Os professores de Meditação, pelo menos os sérios, também não dão mole, na medida que não admitem serem didáticos ou proporem uma finalidade para a prática meditativa. No mais das vezes, mandam sentar lá e fazer. Não querem interferir na experiência do freguês, nem impor a sua própria visão ao aluno. Pratique, pratique, pratique. Para que? Sei lá para que. Pratique. Vai melhorar. Vai melhorar o que? Um monte de coisas. Mas vai melhorar o que eu quero que melhore? Não faço ideia. Fácil vender esse pacote? Facílimo.
Estava lendo um capítulo de um belo livro sobre Neuroplasticidade. Gosto muito do autor por motivos bastantes narcísicos: ele é desses raros colegas que gostam de aproximar Neurociência, Psiquiatria e Psicoterapia, veja só. Pensei que seria tombado pelo Ibama, ele também será. Ele escreve sobre um paciente que relatava um sentimento muito profundo e antigo de apatia, de falta de gosto na vida. O seu casamento tinha acabado, ele chegava à fase madura de sua vida sem saber amar ou se entregar para uma mulher e tudo parecia caminhar para o pior. O terapeuta, de forma destemida, resolveu atender o caso. O paciente trazia em seus sonhos, uma cena repetida, em que sentia uma sensação profunda, desesperadora, de perda e de necessidade de procurar pelo que fora perdido. Freud, em uma de suas intuições geniais, mencionou que esse tipo de sonho repetitivo, com cenas que trazem sensações vagas e terríveis de medo e tristeza, geralmente se referem a traumas muito antigos e não trabalhados na vida do sonhador, ou sonhadora. Durante essa análise, surgiu uma história impressionante: a mãe do paciente havia morrido sessenta anos antes, no parto de sua irmã caçula. Depois de algum tempo, o pai não deu conta de cuidar de sete filhos e o repassou para outros parentes. Aos três ou quatro anos, ele perdeu absolutamente tudo em sua vida. As sensações que apareceram em seus sonhos traduziam esses sentimentos muito antigos de perda e de “cadê todo mundo?”. É razoável de se propor que algo de seus problemas com vínculos afetivos surgiram dessa perda inicial.
O ambiente protegido da análise, o dedilhar delicado dos sentimentos, ajudaram na elaboração dessas dores antigas. Os efeitos não demoraram: o paciente experimentou melhora em suas relações pessoais, se engajou em novos projetos e arrumou uma namorada. Descobriu nessa nova relação um sentimento completamente novo: pela primeira vez teve ciúmes e temeu perder uma mulher. Ou, pelo menos, teve pela primeira vez consciência desses sentimentos estranhamente humanos.
Quando eu li esse texto, tive um estalo; é exatamente neste ponto que terapia e meditação se aproximam: na sensação de recuperação desse ambiente protegido que tivemos, ou deveríamos ter tido, em nossa primeira infância. A sensação de que tudo está bem e que tem alguém olhando. Nem que esse alguém seja o próprio meditador.
Uma paciente me pede muitas vezes para quebrar o silêncio da sessão e falar alguma coisa. Eu respondo que é o Silêncio que cura.

sábado, 14 de março de 2015

Maria, Marias

Uma moça vem ao consultório com um quadro de fadiga crônica. Uma característica de sua consulta chama a atenção: ela trabalha como empregada em casa de família e a sua patroa, vendo que seu estado só piora, resolve pagar por sua consulta que, é claro, recebe um desconto. Essa moça vagou por Centros de Saúde e Ambulatórios de Especialidades por meses, com crises de ansiedade que a acordavam durante a noite, um choro que aparecia nas horas mais impróprias e não queria parar, além de uma dificuldade cada vez maior para iniciar o sono, assim como uma dor no meio do peito na hora de acordar. Vagando de serviço em serviço de nossa Saúde Pública, ela acabou num Pronto Socorro, onde uma plantonista de bom coração imaginou que ela tivesse algo entre a Doença de Pânico e uma Depressão, prescrevendo para ela um antidepressivo com a recomendação de procurar um psiquiatra. Ela estava tão exausta de chorar que não protestou nem observou que já procurava por um especialista há meses. Tomou o Diazepam (já estou formado há um quarto de século, quanto tempo ainda vamos aguentar o paleontológico Diazepam nos Pronto Socorros?) que lhe deram e foi para a casa resignada. No dia seguinte tomou o antidepressivo à noite, antes de dormir. Os sintomas melhoraram, ela chorava menos e tinha menos pensamentos de morte. O que estava ainda atrapalhando era a sonolência que sentia o dia inteiro. Dormia no ônibus, dormia apoiada em seus cotovelos enquanto esperava a água do café ferver, dormia vendo a novela quando chegava em casa. Só não dormia na sua cama. Será que se fosse uma paciente abastada e tivesse essa hipersonia ela não teria ido parar em algum Laboratório de Sono e feito mil exames para estudar essa sonolência? Sinceramente, não sei. Um detalhe estava lá, saltando aos olhos: ela estava tomando seu antidepressivo à noite, como recomendara a plantonista. Esse medicamento estava interferindo em seu sono, provavelmente tornando seu sono pouco eficaz. Sonolência diurna intermitente sugere sono pouco eficaz. A conduta de sua consulta foi trocar a medicação para o período da manhã. Melhorou o sono, a choradeira e a sua disposição para trabalhar. Quando ela saiu da consulta de seu retorno, seus olhos estavam marejados. Falou que orava por mim todo dia. Sua vida estava de volta. Lembrei a ela que o que eu fizera foi trocar o remédio da noite para a manhã. “Pode parecer pouco, doutor, mas para mim significou muito”.
A parte difícil dessa história é imaginar quantas Marias (vamos dar esse nome fictício para ela) estão por aí, batendo de serviço em serviço precisando de um diagnóstico e tratamento que não chegam. O sintoma psiquiátrico tem esse aspecto particularmente cruel: não aparece a olho nú, não causa febre, não tem cheiro e não aparece nos exames convencionais. O doente ainda precisa ouvir que aquilo é frescura ou falta de tanque de roupa para lavar. Uma pessoa próxima pode sugerir que é falta de fé ou simplesmente preguiça. Quem dorme o tempo todo é vagabundo, não é mesmo?
Para quem pensa que Depressão é doença de madame ou de gente desocupada, saiba que as camadas menos favorecidas da população são as mais atingidas e sofredoras dessa doença que já é das causas mais importantes de sofrimento humano e de afastamento da força trabalhadora. Há milhares de Marias e Josés penando pelos corredores dos hospitais com uma doença que é grave, é crônica e é recorrente, mas também perfeitamente tratável. Agradeci mentalmente à patroa de Maria, que deu a ela e a mim a chance de tratá-la. Outra teria simplesmente mandado a empregada embora.
Espero viver e clinicar bastante para ver todas as Marias diagnosticadas e tratadas. Espero trabalhar num país em que o governo não culpe os médicos pelas mazelas da Saúde Pública. Mas espero também ter uma classe médica que encontre um jeito de fazer chegar a ajuda a quem ninguém se importa em ajudar.

domingo, 8 de março de 2015

Croissant e Comunhão

O título da autobiografia do padre, psicanalista e escritor Jean Yves Leloup já é, em si, uma espécie de resumo de sua jornada humana e espiritual: “O Absurdo e a Graça”. Não foram poucas as vezes em que Leloup se encontrou na sua vida no miolo do Absurdo, do Não Sentido que acaba drenando a vida e a sanidade de muitos. Quando imagino o querido ator Robin Williams se enforcando com a própria cinta na solidão de seu quarto, imagino a sua Alma tragada pela sensação de Vazio e Absurdo.
Jean Leloup acredita, ou mais do que acreditar, passou em sua vida por muitas situações onde o Absurdo e o desespero foram a condição transitória que abriu o caminho da Graça, mesmo quando ela não era de forma nenhuma esperada. Aguentar o embate com o Absurdo, essa é a tarefa mais sofrida, até porque não podemos prever a Graça.
Eu pensava muito nisso durante a missa que celebrava a Primeira Comunhão de uma sobrinha querida. Pensava durante a Homilia, que é uma pequena pregação do padre sobre o sentido do Evangelho e do Sacramento que as crianças estavam recebendo. O discurso do sacerdote para as crianças foi perfeita e absolutamente ininteligível. Falava alguma coisa como compromisso mas se deteve com mais rigor em levantar a bola das catequistas, sobretudo uma senhora que fazia gestos largos para reger as crianças nas músicas. Fiquei com uma imensa vontade de tomar o microfone do rapaz e começar toda a prédica do zero. Começaria pelo livro de Leloup, e por uma história de sua infância: o menino Jean Yves vivia solto, com uma mãe pouco motivada em cuidar dele. A situação era suficientemente grave para ele ficar até três dias sumido, sem aparente intervenção de seus pais. O menino vivia, portanto, como um sem teto. Numa dessas andanças ele passava fome nas ruas de Paris e passou na frente de um bistrô. O garçom chamou a sua atenção: uma senhora que acabara de sair deixou para ele dois croissants e uma xícara de café com leite. Foi comendo aquele lanche que o menino teve a sua Primeira Comunhão. Foi comendo a refeição depois de dois dias de fome que ele experimentou pela primeira vez a Graça. Talvez naquele momento ele tenha virado um sacerdote. Esse é o sentido da Comunhão: dividir para multiplicar. Dividir o Pão Vivo, que é aquele que mata as fomes que não cansamos de ter.
No final da cerimônia, as crianças foram chamadas para tirar foto com a padre, sob os flashes dos fotógrafos oficiais. Quando o seu nome era chamado, cada criança recebia as palmas e os gritos de urrú dos familiares, como se fosse uma formatura. O bate papo dos que já tinham gritado pelo seu formando, digo, comungante, era cada vez mais alto e constrangedor. Uma música antiga de Renato Russo tocava na minha cabeça, se não me engano o nome dela é “Monte Castelo” em que ele musicou e misturou um soneto de amor de Camões com uma Epístola de São Paulo. Se eu fosse catequista, essa seria a primeira aula, com a música tocando ao fundo: “Ainda, que eu falasse a língua dos homens, e falasse a língua dos anjos, sem amor, eu nada seria...” Misturar o amor pelo Outro com o amor pela mulher amada é o significado da verdadeira Comunhão. Explicar para as crianças que a Comunhão pode ser dar de comer para uma criança que está perdida de si e de qualquer forma de proteção, essa para mim seria uma boa catequese.

segunda-feira, 2 de março de 2015

Asa de Borboleta

Sempre gostei muito, e sempre tive uma suave intuição de entender o conceito do “Efeito Borboleta”, enunciado pela primeira vez nos anos setenta, em um seminário de Meteorologia. O princípio é de que um pequeno ou microscópico evento, como o bater das asas de uma borboleta na floresta tropical pode provocar um furacão na costa do Pacífico, no Hemisfério Norte. Um evento ínfimo, imperceptível, pode atuar em escala produzindo mudanças globais. Essa é a percepção que tudo está interconectado.
Onde o Micro e o Macro interagem é uma grande questão. O filme “A Teoria de Tudo” deu o Oscar de melhor ator para o rapaz que interpretou o físico britânico Stephen Hawking, mostra a trajetória desse homem através de uma doença degenerativa devastadora, a Esclerose Amiotrófica Lateral, o que criou um homem sem corpo e uma cabeça fantasticamente pensante. A própria tentativa, de Hawking e da Física Moderna, de achar um vínculo, um sistema que englobe o Universo em expansão com os eventos subatômicos, tem uma sutil e delicada ironia: qual o efeito subatômico que gera essa e outras doenças degenerativas? Por que é uma doença que acomete muitos ex atletas de alto desempenho, que sofrem muitos traumas e muitos microtraumas? Qual será o Efeito Borboleta que vai produzir essa doença catastrófica, que deixa de joelhos a Medicina? Onde o micro da comunicação entre as células leva a uma doença que destrói o organismo como um todo?
Já escrevi em alguns posts sobre a eterna tensão entre Micro e Macro na nossa vida. Atendo diariamente pessoas doentes das macro expectativas não realizadas: o candidato a Steve Jobs torturado numa pequena empresa de TI; a candidata ao amor cinematográfico e eterno torturada entre casos que não viram relacionamento e homens que não criam vínculo, e assim por diante. Muita gente esperando que algo que faça sentido entre voando pela sua janela, porque não conseguem sair de casa para procurar. Autores procurando pelo grande livro, místicos buscando a iluminação, doentes procurando a cura definitiva, todo mundo está procurando por alguma coisa, diz a velha música do Eurytmics.
Um lugar da Medicina que procura juntar os efeitos subatômicos com as mudanças multissistêmicas é a Homeopatia, onde quantidades subatômicas de determinadas substâncias podem produzir mudanças profundas da resposta de um organismo, como a Resposta Imune, por exemplo. Lá é um lugar onde se pode examinar o Efeito Borboleta. Estranhamente, eu nunca me mobilizei para estudar esse tipo de abordagem e continuei com meus medicamentos alopáticos. Muito provavelmente porque essa medicação, quando bem empregada e associada a outras abordagens terapêuticas, pode trazer imenso alívio para o sofrimento humano. Mas há outro motivo: há uma imensa gama de interações e de efeitos macro e micro de um tratamento. A intervenção macro produz efeitos profundos, de dentro para fora, de fora para dentro. Mesmo a Alopatia produz esses efeitos.
Dizem os místicos que uma de nossas tarefas na vida é tornar sutil o grosseiro, libertar a energia presa na matéria na direção da Luz. Perceber o sutil e a sua infinita cadeia de relações é uma tarefa dos seres em busca de sua consciência e do significado. Outro dia recebi o e-mail de uma esposa preocupada, que atribui as variações de humor e angústias de seu marido à uma possível bipolaridade. Ele tem uma profunda angústia de Vazio e de Não Sentido, não tem achados compatíveis com a Doença Bipolar, embora tem muita gente graúda que diria que ele é um Bipolar. É bem difícil traduzir para ambos que o significado pode estar no Micro, não no Macro. Ele queria ser um homem de negócios poderoso, mas pode fazer diferença num pequeno comércio. Um pequeno ato de boa vontade pode melhorar a crise hídrica. Um trabalho honesto pode ser uma alternativa para a sensação de avacalhação que acomete o povo brasileiro que entende as notícias. O problema é que, se eu disser isso, posso acabar diante de um psiquiatra, que vai me achar um pouco Bipolar.