terça-feira, 23 de junho de 2015

O Homem que se Curva

Esta postagem atrasou-se por rezões de férias desse escriba, assim como as péssimas condições de internet do hotel que estávamos em Roma. Quase tive um siricutico na Capela Sistina, mas acho que vou falar sobre isso em outra postagem. Quero mesmo é falar sobre Indiana Jones. Mas o que tem a ver Indiana Jones e Roma? Será que eu errei de filme? E de herói?
Antes de iniciar esse post, vou aumentar o suspense com uma afirmativa de bate pronto: o quarto filme da série de Indiana Jones NUNCA deveria ter sido filmado. E tenho dito. Mas calma, me explico:
Estava em Roma, numa falsa catedral, o Pantheon. Na verdade é um imenso templo pagão que os romanos construíram para honrar os seus deuses. Com o tempo, o politeísmo caiu fortemente de moda e o Catolicismo tornou-se a religião do Império Romano. Isso se refletiu no Panteão, que foi reprocessado e reciclado para virar uma catedral católica. Ficou um tanto esquisito, mas esse também não é o assunto de hoje. O que me tocou, no altar dessa catedral foi uma pintura em que um homem se prostrava diante das imagens de Cristo e dos santos ajoelhado, recurvado sobre as mãos dobradas sobre o peito. O meu filho me percebeu compenetrado e perguntou no que estava pensando, de certo imaginando um transe místico. Respondi, prontamente, estou pensando no Indiana Jones.
A trilogia de Indiana Jones mudou a história do cinema e lançou Harrison Ford ao estrelato. No primeiro filme da série, o herói/arqueólogo recuperava a Arca, não a de Noé, mas a Arca de Abraão, a arca da aliança de Deus e o homem. No segundo filme, “Indiana Jones e o Templo da Perdição” nosso herói busca por preciosidades do mundo pagão. O terceiro e melhor filme da série é “Indiana Jones e a Última Cruzada”, onde o herói, acompanhado de seu pai, personagem impagável de Sean Connery, vai procurar pelo maior símbolo da Cristandade, o Santo Graal. O Velho Testamento, o Paganismo e o Cristianismo e o seu significado mitológico são recuperados por Dr Jones e seu olhar científico. Só que ele cava nem mais fundo que a Ciência consegue cavar.
Na “Última Cruzada” para quem não lembra, ou nunca viu, Indiana Jones precisa buscar o Cálice do Graal para salvar seu pai, baleado por um nazista. Para não ser morto em sua tentativa, ele precisa decifrar instruções no livro de seu pai. A primeira é: “Só o Penitente vai passar”. Indiana percebe, numa fração de segundo antes de ter a cabeça ceifada por uma espada, que o penitente se curva diante de Deus. Ele se dobrou diante Dele, e sua vida foi poupada. Com o fim do Império Romano, o mundo viu a chegada da Idade Média, Esse e outros períodos de trevas e superstição se seguiram. Vivemos uma Idade Média às avessas: nós modernos, não nos curvamos diante de nada.
Lembro de um paciente que, durante uma crise de Pânico, dobrou-se aos pés de seu pai e implorou seu perdão, após tantos anos de desdém e ataques em que ridicularizara aquele homem e sua fraqueza. A Crise de Pânico fez com ele se curvasse, como o homem da pintura, diante do Mistério Tremendo. Indiana Jones também se curvou e era nisso que eu pensava olhando para o afresco do Pantheon.
Jung tinha razão: os deuses viraram doenças.

sábado, 13 de junho de 2015

O Imbecil Corporativo

Outro dia fui contactado por uma representante de uma grande empresa, querendo a minha ajuda diante da alarmante (para a empresa) escalada de processos de abuso moral ou outros processos trabalhistas por doenças psiquiátricas causadas por condições insalubres de trabalho. Quando li a mensagem fiquei todo animado. No mínimo daria para iniciar uma série de palestras, ou, quem sabe, um estudo sobre redução de estresse e melhora de condições de trabalho, que eu poderia implantar na empresa. Nem que fosse um projeto piloto. Fui todo pimpão perguntando como ela queria iniciar o projeto, daí percebi como estava enganado. A moça não estava interessada em se perguntar por que a sua empresa estava batendo o recorde de processos trabalhistas, nem muito menos como criar melhores condições de trabalho. Ela queria construir estratégias de defesa para invalidar todos os processos, desacreditando os reclamantes. Minha filha, quem te deu o meu contato? Isso é uma pegadinha? Mandei procurar um especialista em maldades jurídicas para defender sua preciosa corporação.
Um cliente meu, engenheiro, afirmou que o pensador mais influente de nosso tempo não é Freud, nem Marx, nem Darwin (meu palpite). O cara é Henry Ford, que inventou a produção em série. Tudo o que a vista alcança é produção em série. A Medicina é produção em série, quantos atendimentos, quantos procedimentos, qual o custo-benefício. O quantitativo se sobrepõe ao qualitativo e tudo, absolutamente tudo o que te cerca é medido por sua produtividade. Outro dia veio um rapaz com uma planilha pedindo um planejamento para a sua terapia, quanto tempo para os resultados aparecerem e quais parâmetros indicariam o sucesso ou o fracasso de nossa empreitada terapêutica. Sugeri a ele procurar profissionais de outras linhas terapêuticas. Terapia Junguiana definitivamente não era a melhor opção para ele. Ele saiu com uma cara de que eu não era um profissional muito científico. Aqui entre nós, tem umas vinte páginas de Filosofia da Ciência em minha Dissertação de Mestrado. Posso passar o dia discutindo o que é e o que não é Ciência, mas no caso, não iria me dar ao trabalho. O rapaz e a moça citados sofrem de um quadro cada vez mais frequente e grave, que é o Transtorno de Imbecilidade Corporativa. O quadro é insidioso e consiste em converter um bando de incautos que recheiam seu jargão corporativo com algumas expressões em Inglês, como expertise, follow up, dropout e adotam a Bíblia corporativa de aumentar a produção e esmagar subjetividades o tanto quanto possível. Depois de algum tempo a Imbecilidade Corporativa ganha ares de Verdade Absoluta. O que vale é acelerar a velocidade da linha de produção. Produtividade e Qualidade Total são a Boa Nova e o dogma. E ai de quem discordar. Os infiéis serão abatidos a tiros de exclusão do mercado e letras escarlates que indicam que está fora de jogo. Vai prestar concurso, amigo, o mundo corporativo não te quer mais.
Nossa época produz muita solidão em meio aos fabulosos castelos de Caras e as postagens nas redes sociais. O maior vazio é o de Significado. Em segundo lugar vem o vazio de Pertencimento. Algumas empresas já se dão conta que é melhor gastar com as pessoas do que com processos trabalhistas. O hipercapitalismo subtrai ainda mais a subjetividade das pessoas: todos são peças de engrenagem substituíveis, anônimas, que serão descartadas mais cedo ou mais tarde quando passarem da idade ou apresentarem sinais de desgaste. As empresas que vão sobreviver a essa maré de imbecilidade serão as que entenderem que as pessoas precisam, quase desesperadamente, pertencer e fazer algo que tenha significado. Saber que se faz parte de algo, e que esse algo é mais do que linha de montagem, é o que diminui o sofrimento corporativo e a escalada de adoecimento e confronto que florescem nas empresas. Mas devem durar bastante os imbecis correndo atrás de suas planilhas.

domingo, 7 de junho de 2015

Indícios de Ferida

Borges escreveu uma cena em que Dante Alighieri finalmente chega ao Paraíso e compreende toda a sua vida, marcada pelo sofrimento e separação de sua amada Beatrice, morta prematuramente como era comum na época. Dante observa a sua obra colossal e sua busca a partir daquela ferida e pode, finalmente, agradecer à vida por ter passado por tudo aquilo.
Assisti a uma palestra de um monge budista, há muitos anos, que afirmou em suas últimas palavras que só estaríamos prontos para o caminho da Iluminação quando pudéssemos agradecer profundamente pelos pais que a vida tinha nos dado. Lembro até hoje de uma moça na cadeira da frente que ficou profundamente emocionada com aquela frase tão singela quanto incompreensível para um jovem terapeuta. Uma parte importante da Psicoterapia é levantar as dores e as lacunas legadas por nossos pais, nossos avós, nossas culturas. Uma simples frase de um pai, do tipo “Você não vai ser nada na vida” pode custar anos de trabalho interno para ser compreendida, recontextualizada e, finalmente, transformada em outra coisa, de preferência, numa coisa melhor. Agradecer por isso? Bem, me parece uma manobra psíquica mais radical.
Lembro de uma passagem que, salvo engano, já citei em algum desses 500 posts deste blog, do livro de Victor Franckl, “Em Busca de Sentido”, que descreve a saga deste homem, preso dentro do início da Segunda Guerra em um campo de concentração. Franckl salvou-se cuidando de perseguidores e perseguidos, olhando desde a sua condição de psiquiatra para entender o coração do absurdo. Muitas histórias incríveis ficaram dessa observação. Numa delas, uma moça confessava para ele, poucas horas antes de morrer de desnutrição e infecções repetidas, que era muito grata aos nazistas por tudo o que aprendera naquele lugar. Confessou que vivera, até então, uma vida de futilidade e proteção em sua família, que era muito rica e fora despojada de tudo por sua origem judaica. Naquele lugar de horror ela aprendeu sobre suas capacidades e vínculos que nunca teria conhecido em sua vida de mocinha mimada.
Agradecer pelas dificuldades, as perdas e as mágoas que a vida impõe a todo mundo exige um trabalho interno e externo muito profundo, como dessa moça, contemplando a própria vida poucas horas antes de terminar sua jornada. Vivemos num mundo onde antes as pessoas ficam obcecadas pelas próprias feridas e gostam de imputá-las ao Outro: o abuso sofrido, a indiferença velada, a falta ou excesso de empenho de nossos pais, ou mestres, ou de quem deveria servir como mentores mas acabaram servindo como obstáculos em nossa jornada de desenvolvimento. Abençoar o sofrimento está muito longe de sermos masoquistas ou usar a ferida como um manto de glória. Significa encontrar nesses eventos a sua característica de totalidade. Somos feitos das coisas que deram certo e errado.
Reagir contra as adversidades é uma parte importante de nosso crescimento. É muito difícil ajudar quem acha que a vida lhe deveria ser servida numa bandeja, sem demandar nenhum esforço, nenhuma aprendizagem.
Transformar a Ferida em Pedra de Toque é um trabalho e tanto para as terapias e para nosso desenvolvimento pessoal. A parte mais difícil é o Perdão.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Spinosa e Eu

Sou muito grato ao filósofo Baruch Spinosa por dois grandes constructos de sua obra: o paralelismo psicofísico e a doutrina dos afetos. Imagino os leitores e leitoras desse blog com uma interrogação na testa: de onde vem isso, cara pálida? Sabemos que esse blog já elogiou o Felipão antes do Sete a Um, já fez previsões sobre resultado de um Big Brother, já discutiu a qualidade de uma média com pão na chapa, e fez recentemente a crônica sobre um cachorrinho puxado na rua por sua dona esquizofrênica, ou seja, há uma variedade de temas possíveis. Podemos falar, eventualmente, até de Psiquiatria. Aliás, falar do incrível Spinosa é falar de Psiquiatria.
É grande a minha admiração pelo filósofo que antecipou em sua obra o Iluminismo, dando preferência à Razão sobre os dogmas de qualquer Religião, o que lhe custou a desgraça e a expulsão de sua comunidade judaica e que viveu uma vida de solidão modesta, de estudos e construção de sua obra. Isso em pleno século XVII.
Irving Yalon, autor de “Quando Nietzsche Chorou” é um psicoterapeuta que gosta de escrever livros de Ficção Histórica, tomando muitas vezes como base a vida de um grande filósofo, que acaba psicanalisado por outro personagem, o que historicamente é um samba do crioulo doido, mas como leitura de entretenimento é divertido. Eu pessoalmente fico sempre frustrado por Yalon se dedicar mais a algumas fofocas da vida dos filósofos do que ao seu sistema de pensamento. Li o seu último livro: “O Enigma de Spinosa”, onde esse defeito não pôde muito se reproduzir: não havia como falar das fofocas da vida do homem de quem não se conhece quase nada de sua vida; até seu retrato pintado é fictício, ninguém sabe como era a cara de Baruch. Yalon fez uma ficção sobre o processo de exclusão de Spinosa de sua comunidade e imaginou que a mesma se deu por conta de suas ideias. Em paralelo, Yallon conta a história de um oficial nazista, Alfred Rosemberg, que confiscou os livros do Museu Spinosa durante a Segunda Guerra, para tentar entender como um judeu, uma raça que ele se dedicou a odiar e perseguir, tinha conseguido construir uma obra gigantesca. Yalon vai construir as trajetórias dessas duas vidas separadas por quase três séculos, unidas pela obra do filósofo.
Spinosa me ajuda de duas formas em minha prática clínica: supera a dualidade cartesiana e delineia uma doutrina de afetos. Descartes fez uma distinção clara entre a Mente e a Matéria, entre Corpo e Espírito. Praticamos uma Medicina baseada quase unicamente no Corpo e suas disfunções. Tem um dedo de Descartes nisso. A Mente seria uma produção do Corpo e estaria sujeita a ele. Nossas doenças mentais são fruto de problemas de nosso Cérebro. Spinosa tinha uma concepção mais avançada que essa, quase um século antes. Para ele, Corpo e Mente são instâncias diferentes mas que operam em paralelo e se influenciam mutuamente. A Neurociência moderna confirmou essa ideia. Os pensamentos e as formações mentais podem produzir mudanças em nosso corpo. A Mente pode produzir desde doenças inexistentes ou até criar situações que determinam pior funcionamento inflamatório ou da resposta imune. O Corpo influencia a Mente e a Mente também cria alterações corporais. Isso parece óbvio para qualquer um, mas tem muita gente que duvida e faz piada desta teoria até os dias de hoje.
Outra ideia spinosiana diz que você não consegue derrotar ou dominar um Afeto, uma Paixão, com a sua Racionalidade. Um Afeto só pode ser suplantado por um afeto mais profundo. Para escolher entre comer ou não a torta deliciosa que está na geladeira não adianta que nosso Cérebro Racional indique que isso vai atrapalhar a dieta, é melhor comer uma maçã ou descascar uma mexerica. Spinosa já sabia que essa argumentação não dá nem para o começo e só serve para comer a torta, a pizza e o sorvete que estão por lá. O único afeto que derrota um afeto é uma paixão visceral por manter a dieta, ou, num caso mais dramático, a paixão de um alcoolista de não recair, tornando o objeto da tentação uma coisa boba, sem graça. A Paixão pelo objetivo tem que ser maior do que a Paixão pelo fruto proibido e pela recaída. Tudo isso eu aprendi com o incrível Spinosa. Uma paixão, um afeto, só pode ser vencido por outro afeto: força de vontade na verdade é força de desejo.