domingo, 30 de outubro de 2016

Perdão

Era uma mulher excepcionalmente bonita, daquelas jovens americanas que ganhava concurso de Miss e era escolhida a Rainha da Festa de Formatura. Os olhos nas fotos tinham uma discreta tonalidade de tristeza, mas isso ficava imperceptível debaixo de toda a sua beleza. O casamento, os filhos e a paixão pelos cavalos deixavam os seus dias plenos e tudo parecia adequado ao American Dream. Ninguém sabia das bebedeiras do marido e de seus ciúmes cada vez mais obsessivos por sua bela mulher. Num belo e ensolarado dia, ela estava em seu rancho, quando a sua cunhada desceu da picape gigante. Foi quando, do nada, começaram a discutir. A cunhada, enlouquecida, fechou a porta do carro em sua mão e arrancou sem perceber que ela ficou presa no vão da porta. Ela foi arrastada por alguns metros e terminou com o rosto destruído em um leito de pedras. Ela parecia morta e foi levada quase sem vida para o hospital. Durante muitos anos foi submetida a várias cirurgias de reconstrução para voltar a ter um rosto humano. Hoje é uma mulher de meia idade que parece o personagem Duas Caras, do Batman, que tinha uma metade de rosto normal e outra deformada. Mas a sua expressão é serena e fala com um sorriso que o acidente impactou o seu casamento e seu marido virou ex marido. O impacto emocional foi tanto que ele mesmo tornou-se (ou consolidou-se) como um alcoólatra.
Durante a sua recuperação física, recebeu também atendimento psicológico. Não deu cabo da própria vida por conta de suas crianças, que precisavam da mãe, mesmo da mãe deformada. Na psicoterapia surgiu um fantasma mais profundo e sombrio de ter sido abusada física e sexualmente por seu pai. A beleza, que agora a abandonara, tinha lhe trazido mais sofrimento do que felicidade. A sua vida, como seu rosto, foi sendo gradualmente reconstruída. Conheceu um homem num casamento que não teve medo de puxar assunto sobre seu rosto e a experiência de ter sido bela e agora não ser mais. Ela estranhamente não se ofendeu e até ficou grata por ele falar de forma tão direta sobre algo que as pessoas fingiam não notar. Alguns encontros depois e eles estavam morando juntos. Ela finalmente encontrou a paz, depois de perder tudo o que achava que tinha em sua vida. Ela vira para a câmera e revela que tinha desistido de se perguntar por que aquilo tinha acontecido com ela, por que tinha sido sorteada para um destino de tanto sofrimento e como seria o seu futuro. A dor lhe ensinou a viver um dia de cada vez e tirar o melhor de cada dia, como uma laranja cheia de sumo.
Essa história é mostrada no documentário da Netflix, ‘”Happy”, sobre diferentes versões e estudos sobre a Felicidade ou a ausência dela. Recomendo para quem tem estômago forte. São histórias muito fortes.
Já vi chegar num Plantão uma menina que tentou se matar porque detestou o resultado de uma cirurgia plástica em seu nariz. Por essa lógica a moça do filme merecia umas trinta tentativas suicidas. É impressionante, mesmo para ela, ter tido a força necessária para atravessar todas aquela jornada sem saber onde ela iria dar.
Para mim, o mais impressionante não foi a força que ela recebeu de uma mão invisível para prosseguir. Diariamente eu testemunho jornadas tão dolorosas quanto essa, com pessoas chorando nos sofás do consultório enquanto descrevem as perdas de pessoas, de posse, de saúde, de identidade. Essas pessoas nunca imaginam ter tanta força interior para fazer essa travessia e, como a moça do filme, vão vivendo um dia de cada vez, um passo de cada vez, para chegar onde nunca imaginariam chegar. Mas o que me impressionou realmente foi a percepção profunda que não adiantava perguntar para a vida os porquês, não adiantava reviver as perdas e as dores. A única salvação era seguir caminho, sem olhar para trás e sem tentar adivinhar o que viria pela frente. Esse é o único Perdão possível. Culpar a si ou culpar a vida são caminhos que levam a um beco sem saída ou à morte. Não havia reparação possível. Se agora ela era feliz, o único motivo era levar a vida em paz, alinhada com seu coração. A vida em si, sem as dúvidas infinitas de nossa cabeça.
Borges faz um pequeno poema, em que descreve o encontro de Caim e Abel no Paraíso. Um olha para o outro e pergunta: “Sabe que eu não sei, se fui eu quem te matou ou o contrário?” E o outro também não sabia dizer quem matou quem. Borges conclui que não existe perdão, só esquecimento. Eu acrescentaria que não existe Perdão sem o abandono da Mágoa. Isso não é nem um pouco fácil.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Neurônios Quebrados

As mãos trêmulas afastam uma mecha de cabelos tendendo aos grisalhos. A voz treme também. Ela finalmente desabafa a respeito de sua filha, que já passou por vários psiquiatras, terapeutas e outras formas de ajuda, com resultados que não se mantém. Confessa que foi procurar outro profissional, nessa longa peregrinação, e o colega sugeriu aumentar a dose dos medicamentos que eu já havia indicado. Sua filha não tolerou a nova dose e, mais uma vez, interrompeu, ou não seguiu, o tratamento. Alguns dizem que ela é uma Depressiva, ou um nome mais horrível, uma Distímica, outros como eu entendem que os sintomas depressivos derivam de uma severa Fobia Social (o nome atual é Transtorno de Ansiedade Social, mas Fobia Social descreve muito melhor o seu quadro do que uma simples ansiedade). Confesso que fico incomodado com a atitude dessa senhora. Já tenho olhos e ouvidos calejados por mais de duas décadas na estrada, isso vai te ensinando a tolerar esse tipo de autoengano e de projeção, mas continua me causando cansaço ter que sugerir que a dificuldade de sua filha tem a participação de todo o núcleo familiar e não vai melhorar com uma simples mudança da dose da medicação. Precisamos marcar uma conversa a três, com a presença de sua filha, para que ambas melhorem o entendimento do seu quadro clínico e o longo caminho de reconstrução. Ela suspira impacientemente, dizendo que vai marcar um horário, mas ambos sabemos que isso não vai acontecer. Mas não posso deixar de tentar fazer a coisa certa, mesmo que a chance de dar certo não seja muito animadora. Mas a paciente em si, o objeto do meu interesse no caso, foi orientada sobre a natureza dos sintomas e da formação de suas redes neurais baseadas no medo e, sobretudo, da necessidade de enfrentar esses medos todo dia. Algumas semanas ela vai conseguir manter as suas atividades e rotinas, em outras vai ficar em casa, sem energia para sair do quarto, até porque sair do quarto significa enfrentar os gritos de sua mãe.
Está ficando mais difícil ajudar esses pacientes a atravessar a jornada na direção da fase adulta de nossa vida. Jovens apáticos, desmotivados e intoxicados pelos blá blá blás de pais enlouquecidos e pouco eficazes é uma realidade da nossa clínica. A mistura explosiva de regras pouco claras com um assédio constante de críticas e decepções mantém muita gente com o caminho interrompido e restrita à uma vida virtual de jogos online ou gritos animados de youtubers. Um neurotransmissor pouco citado, o Glutamato, tem efeito tóxico na transmissão nervosa. Quando eu vejo essas apatias profundas, a falta de energia em começar qualquer atividade, penso que essas relações tóxicas tem muita ação do Glutamato. A pessoa não consegue sair do lugar e iniciar as atividades mais rotineiras. O mundo exterior parece cheio de predadores e congelar parece a única opção.
Os remédios ajudam mas não tem o efeito mágico esperado pelas pessoas e pela indústria farmacêutica. Não adianta consertar a neurotransmissão se essas redes neurais de medo e repulsa não forem trabalhadas. Elas são profundas e o trabalho é longo e paciente. A senhora de mãos trêmulas tenta dobrar o mundo à própria prepotência e estende a sua filha aos médicos como um aparelho doméstico que precisa ser consertado. Ela quase fala para consertá-la de uma vez. Outro dia houve uma trollagem (termo que demorei a aprender o que significava no mundo virtual) nos comentários desse blog onde uma visitante anônima afirmou que os terapeutas induzem em seus pacientes a dependência, o que gera maior lucro e fidelização. Existe essa situação nas clínicas por aí? Sem dúvida. Um caso como esse me lembra a necessidade de uma profunda reconstrução dos laços pessoais e familiares para tirar essa menina de dentro de seu quarto. Isso leva tempo. Todos, familiares, escola, amigos, terapeutas precisam estar conscientes que são parte do problema e se possível, da solução. Não adianta o jogo de empurra de mandar para alguém que tente consertar o rádio quebrado.
Vejo a senhora ir embora depois de invadir minha sala com sua angústia. Seus dois filhos tem dificuldades em achar um caminho dentro da vida adulta. Você pode educar para evitar o erro ou para perseguir o sucesso. Pode ter uma perspectiva de explorar o futuro ou se agarrar aos medos passados. Para vencer o medo, precisamos mais de mãos dadas do que de dedos apontados.

domingo, 16 de outubro de 2016

O Tempo e a Barriga

Jo Marchant é uma conceituada jornalista inglesa da área de Ciências, autora de um livro muito bacana chamado “Cura”, lançado pela Editora Best Seller neste ano. O livro fala sobre os efeitos da mente sobre o corpo e, diga-se, sobre vários temas abordados nesse blog, como o Midfulness, os efeitos Placebo e Nocebo, as alterações no corpo e Sistema Imune causadas pelo Estresse. De Jung ela não fala, e com certeza diria que uma parte importante dos posts desse blog são um Mambo Jambo metafísico, sobretudo na parte junguiana dele. Mas Jo é uma pesquisadora inquieta e que busca evidências concretas da ação da Mente sobre o Corpo, nesse ponto, estamos no mesmo barco.
Nesse livro, os capítulos são sempre abertos com vinhetas clínicas, histórias de pacientes que servem de ilustração para o capítulo em questão. Uma das minhas vinhetas preferidas tem como personagem ela própria, a autora do livro, e seus dois partos. Ela talvez não tenha percebido, mas nos partos de seu casal de filhos experimentou a profunda divisão de ponto de vista masculino, predominante, e feminino, abrindo passagem, em nossa Cultura e vida.
No seu primeiro parto, Jo começou a ter contrações antes do final da gestação, o que virou um trabalho de parto prematuro. As contrações não eram eficazes e o bebê estava em posição desconfortável, de frente para o canal de parto e desencaixado. Muitas vezes o próprio trabalho de parto ajuda a corrigir essa dificuldade para achar o encaixe. Mas o tempo estava passando e a parteira seguiu o protocolo de romper a bolsa e introduzir medicamentos para tentar facilitar e finalizar a expulsão do bebê pelo canal de parto. O efeito foi exatamente o oposto: sem o líquido amniótico para facilitar a correção de posição, a cabeça do bebê foi sendo comprimida em direção à pelve, levando a sofrimento fetal. Ela foi rapidamente levada para uma Cesariana de Urgência. Nos primeiros dias de Pós Parto, estava esgotada, deprimida e tendo crises de ansiedade próximas do Pânico. O bebê perdeu peso e ela ouviu broncas da Enfermagem e da Pediatria sobre como deveria estar cuidando melhor do bebê. Já atendi alguns casos de Depressão Pós Parto em que a puérpera (a mãe nem é chamada de mãe, pela Medicina, o seu nome passa a ser Puérpera) passa a ter crises e depressão desencadeadas pelos números: quanto leite deveria estar saindo, quantas gramas o bebê perdeu, como as curvas e os gráficos de avaliação deveriam estar se comportando. Jo e o bebê sobreviveram a tudo isso, sem muitas sequelas. Muita gente não tem a mesma sorte.
O segundo parto, três anos depois, foi bem diferente. Jo optou por um parto domiciliar, ajudada por duas parteiras experientes, que acolheram seus medos, conduziram o seu comportamento nas contrações, com uma sensação importante de achar um ritmo progressivo que conduzia o bebê para o Canal de Parto. Com a percepção desse tempo, ou dessa temporalidade, o parto chegou a um ponto em que um ruído estranho anunciou que o bebê estava perto da fase expulsiva. De repente, tudo parou. O bebê não saía. Seria a hora de correr para o centro Cirúrgico e fazer outra Cesariana de Urgência. A parteira falou: ele vai sair quando estiver pronto. Alguns minutos depois, o seu filho estava limpo e em seus braços. A sua filha acordou e veio ver seu irmãozinho, mamando placidamente nos braços de sua mãe. Esse pós parto foi muito melhor do que o primeiro, em todos os parâmetros clínicos.
Os avanços da Ciência tornaram o Parto um procedimento extremamente seguro para mães e bebês. Morrer no parto é assunto para literatura de séculos passados. O saber acumulado, os protocolos e a precisão nos procedimentos diminuem os riscos para os personagens principais da Gravidez e Parto, o bebê e a mãe (ou Puérpera). Tudo isso graça a uma visão mais objetiva e masculina que a Ciência nos proporciona. Essa visão é muito cara à autora do livro e dos partos, Jo Marchant. Exatamente por esse motivo que eu achei encantador ela ter optado por uma abordagem completamente diferente no seu segundo parto. Uma abordagem muito mais próxima de nosso Feminino Ancestral, onde a jovem mãe é acolhida e guiada por mulheres mais velhas e calejadas que “acham”, de maneira intuitiva e com uma percepção profunda, os ritmos e os tempos das contrações e da descida do Feto (que vai virar recém nascido só quando sair de lá) pelo Canal de Parto. No capítulo que se segue, a autora demonstra os dados que corroboram que esse tipo de assistência tem incontáveis vantagens sobre o processo tipo “linha de montagem” das maternidades e suas equipes. Frise-se que, para mães de primeira viagem, a assistência hospitalar continua sendo a indicação mais prudente. Mas confesso que a parte que mais me encantou foi a frase da parteira: “Ele vai sair quando estiver pronto”. Isso foi bonito demais e estranhamente metafísico. Contra todas as estatísticas e cronômetros, como diria Caetano, o tempo parou para olhar para aquela barriga. E o tempo se cumpriu, exatamente pela ausência de intervenção humana. A cura tem mais relação com esse Não Tempo do que conseguimos perceber.

sábado, 8 de outubro de 2016

A Vida Bela

Confesso que sempre tive uma certa bronca do filme de Roberto Benigni, “A Vida é Bela”. Sempre desconfiei que uma parte de minha longa antipatia se deu porque esse filme ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em vez do brasileiro “Central do Brasil”, que sempre foi infinitamente melhor. Isso, claro, partindo do princípio que o Oscar deveria dar o prêmio para os melhores, o que, em si, é um evento meio raro de ocorrer. Mas, para quem não lembra, “A Vida é Bela” conta a história de Guido, um judeu italiano que é preso durante a Segunda Guerra em um Campo de Concentração com seu filho, Josué. Para não se separar de seu filho, o que seria a morte certa para ele, Guido consegue escondê-lo no Campo inventando uma espécie de gincana, onde eles devem se esconder dos guardas nazistas e não pode chorar nem fazer barulho, senão ele pode perder pontos. Se Josué ganhar o jogo, recebe um tanque de guerra. O filme é uma fábula sobre o humor e a inventividade humanas diante dos sistemas de controle totalitários, que punem com a morte o diferente e o dissidente. Mas estudos recentes mostram que Guido, ou o roteirista (o próprio Roberto Benigni, que ganhou o Oscar de melhor ator por esse filme, em 1999) sabiam mais sobre Neurociência do Estresse do que se pensava.
Estudos recentes demonstram que preparar uma pessoa para um evento adverso pode ajudar em sua resiliência, mas também pode causar complicações. Por exemplo, alertar o paciente antes de uma injeção de que vai receber uma injeção e vai sentir uma picada e uma ardência parece ajudar o paciente a ser mais preparado e resistente à dor, certo? Errado. Para uma significativa parcela de pacientes, alertar sobre a dor acabou por aumentar a sua percepção da mesma e o incômodo com a picada. Esse é o efeito Nocebo. Os laboratórios vivem tentando colocar guias de perguntas e respostas dos Transtornos Psiquiátricos na recepção dos médicos. A informação ajuda a preparar as pessoas para as diferentes situações da clínica das doenças e a compreensão de como enfrentá-las, certo? Errado. Nunca aceito esses folhetos, por achar que induz alguns pacientes a superestimar seus sintomas e a gravidade das doenças. É por esse motivo que recomendo aos pacientes ficarem muito longe das bulas dos remédios, que é assunto de advogados, não médicos. As bulas fazem os pacientes esquecerem porque estão sendo medicados, tamanha a quantidade dos efeitos colaterais listados. Isso também pode ter um efeito Nocebo.
Estamos acostumados a entender o Stress como um fator muito importante de desencadear ou causar as doenças mais importantes de nosso tempo. No trânsito caótico de São Paulo dou de cara com aqueles adesivos americanos de “No Stress”. A única condição que posso associar a No Stress é a morte. Estamos acostumados a entender o estresse e os estressores como algo a ser evitado e combatido, certo? Errado. Como Guido muito bem percebeu salvando o seu filho dos algozes nazistas, o importante não é o Stress em si, mas como o percebemos e sobretudo, como lidamos com ele. As reações podem ser de terror ou desafio. O terror paralisa, encolhe, faz a pessoa se retrair para prevenir danos. O desafio transforma o estresse em um jogo que vamos ganhar ou perder, mas vai ser divertido jogar. Guido transforma a mais horrível das experiências humanas, que é estar preso num campo de extermínio, num jogo onde Josué vai ter que crescer rápido para aprender a jogar. Ele não sabe, mas é um jogo de sobrevivência e artimanha.
Crianças e adultos sofrem muito dentro de aparelhos de Ressonância Magnética, que parece com ser enterrado vivo num caixão imenso e barulhento, além de usar uma máscara para proteger o rosto. As equipes estão sendo treinadas nos Estados Unidos para criar outras sensações nos pacientes. O tubo da Ressonância vira uma nave espacial, a máscara é um capacete de Homem Aranha. Pode ser usado incenso e música para tudo parecer um dia no Spa. Tudo para mudar a percepção de nossos fantasmas, que não serão mais tão fantasmagóricos assim. Transformar estresse em desafio é a grande tarefa para terapeutas, líderes e coachs. Isso pode fazer diferença entre vida e morte das pessoas, como o filme (incrível) “A Vida é Bela” demonstra.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Sobre Levantar e Andar

Estava vendo um vídeo sobre treinamento dos Seals, grupo de elite da Marinha Americana que se tornou notório após a operação que culminou com a morte de Osama Bin Laden. Os Seals são treinados para atingir o melhor desempenho em situações de caos e onde tudo está dando errado. Improviso, tolerância a frustração, adaptabilidade. Mas o que mais me impressionou foi o sistema de micro aquisições que preparam a pessoa para realizações maiores. Os Navy Seals são treinados a realizar micro tarefas diariamente para criar o método e o hábito de terminar o que começaram e ganhar confiança para executar tarefas mais complexas e difíceis. É claro que os caras podem ficar adictos com o jogo de se propor desafios toda hora e perderem a dimensão do Significado que toda essa malhação e gritaria deveriam trazer, mas a divisão das tarefas em microtarefas, a sensação de conseguir terminar e passar para a próxima fase, a ampliação de repertórios de aprendizado, bem, isso não difere muito do que deveria ser uma psicoterapia.
Existem entidades fantasma na Medicina que muito vem aumentando em frequência e importância, mas pela ausência de lesões anatômicas claras ficam numa espécie de limbo terapêutico. A Síndrome da Fadiga Crônica e a Fibromialgia estão entre essas entidades fantasmagóricas. As duas são na realidade muito parecidas e eu chego a arriscar que são na verdade a mesma doença, com nomes diferentes. As duas se caracterizam por um cansaço crônico e progressivo, dores generalizadas pelo corpo, tanto em grupos musculares como em articulações, uma sensação meio tóxica de desânimo e falta de iniciativa, com dificuldade para iniciar e manter tarefas ou mesmo qualquer tipo de movimento. Tudo parece convidar a pessoa a ficar parada no lugar com medo da dor, com medo de sair ou de se arriscar no mundo exterior. Um tratamento que começou a dar resultado nesses casos foi justamente fazer microtarefas físicas, como andar alguns metros dentro de casa, fazer alongamentos e mover pequenos pesos. Claro que essas microtarefas são cercadas de medo e da exacerbação das dores no início, e é esse começo difícil que precisa ser enfrentado para se criar um sistema de aprendizado muscular, mas, sobretudo, de um aprendizado cerebral de que aquele cansaço e aquela dor não são tão “reais” como possam parecer. Esse foi um grande insight para o tratamento dessa e de outras doenças que dependem do sistema de crenças entranhado nas redes neurais. Os portadores da Síndrome da Fadiga Crônica e da Fibromialgia tem uma impressão Central de que podem morrer de dor ou de cansaço se iniciarem qualquer tipo de movimento. Mudar esses pensamentos ajuda a mudar os sentimentos envolvidos. É bom lembrar que os sentimentos são profundos e entranhados, e que questioná-los de cara gera resistência de quem aprendeu, no decorrer de anos ou até décadas, a se enxergar como doente ou pautar sua identidade pela sensação de dor e limitação.
O trabalho das terapias, eu diria até, de todas as terapias que se pretendam curativas, é de desafiar esse sistema de crenças e estabelecer microtarefas e pequenos sucessos para contrapor ao medo e à paralisia. Nem todo mundo quer deixar esse lugar aquecido de que “sou doente e preciso de ajuda”. Mas o mundo está cada vez menos acolhedor para quem se ancora nessa posição. Uma das leis de Spinelli, talvez a 54 (os números são aleatórios), diz que na vida, ou vamos para frente ou vamos para trás. Parado ninguém fica, embora muita gente tente. A natureza pede pelo aprendizado e pela evolução, e essa é uma de nossas tarefas na vida. Como os grandalhões dos Seals, temos que jogar o jogo com as armas e as circunstâncias que estão lá, à disposição. Isso elimina uma série de quandos: quando eu tiver aquele diploma, quando encontrar amor verdadeiro, quando entrar aquela grana que estou esperando. Já dizia Jesus: “Levanta-te e anda”. Mesmo que andar, sem dúvida, traga dor nos primeiros passos.