segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Neurônios Quebrados

As mãos trêmulas afastam uma mecha de cabelos tendendo aos grisalhos. A voz treme também. Ela finalmente desabafa a respeito de sua filha, que já passou por vários psiquiatras, terapeutas e outras formas de ajuda, com resultados que não se mantém. Confessa que foi procurar outro profissional, nessa longa peregrinação, e o colega sugeriu aumentar a dose dos medicamentos que eu já havia indicado. Sua filha não tolerou a nova dose e, mais uma vez, interrompeu, ou não seguiu, o tratamento. Alguns dizem que ela é uma Depressiva, ou um nome mais horrível, uma Distímica, outros como eu entendem que os sintomas depressivos derivam de uma severa Fobia Social (o nome atual é Transtorno de Ansiedade Social, mas Fobia Social descreve muito melhor o seu quadro do que uma simples ansiedade). Confesso que fico incomodado com a atitude dessa senhora. Já tenho olhos e ouvidos calejados por mais de duas décadas na estrada, isso vai te ensinando a tolerar esse tipo de autoengano e de projeção, mas continua me causando cansaço ter que sugerir que a dificuldade de sua filha tem a participação de todo o núcleo familiar e não vai melhorar com uma simples mudança da dose da medicação. Precisamos marcar uma conversa a três, com a presença de sua filha, para que ambas melhorem o entendimento do seu quadro clínico e o longo caminho de reconstrução. Ela suspira impacientemente, dizendo que vai marcar um horário, mas ambos sabemos que isso não vai acontecer. Mas não posso deixar de tentar fazer a coisa certa, mesmo que a chance de dar certo não seja muito animadora. Mas a paciente em si, o objeto do meu interesse no caso, foi orientada sobre a natureza dos sintomas e da formação de suas redes neurais baseadas no medo e, sobretudo, da necessidade de enfrentar esses medos todo dia. Algumas semanas ela vai conseguir manter as suas atividades e rotinas, em outras vai ficar em casa, sem energia para sair do quarto, até porque sair do quarto significa enfrentar os gritos de sua mãe.
Está ficando mais difícil ajudar esses pacientes a atravessar a jornada na direção da fase adulta de nossa vida. Jovens apáticos, desmotivados e intoxicados pelos blá blá blás de pais enlouquecidos e pouco eficazes é uma realidade da nossa clínica. A mistura explosiva de regras pouco claras com um assédio constante de críticas e decepções mantém muita gente com o caminho interrompido e restrita à uma vida virtual de jogos online ou gritos animados de youtubers. Um neurotransmissor pouco citado, o Glutamato, tem efeito tóxico na transmissão nervosa. Quando eu vejo essas apatias profundas, a falta de energia em começar qualquer atividade, penso que essas relações tóxicas tem muita ação do Glutamato. A pessoa não consegue sair do lugar e iniciar as atividades mais rotineiras. O mundo exterior parece cheio de predadores e congelar parece a única opção.
Os remédios ajudam mas não tem o efeito mágico esperado pelas pessoas e pela indústria farmacêutica. Não adianta consertar a neurotransmissão se essas redes neurais de medo e repulsa não forem trabalhadas. Elas são profundas e o trabalho é longo e paciente. A senhora de mãos trêmulas tenta dobrar o mundo à própria prepotência e estende a sua filha aos médicos como um aparelho doméstico que precisa ser consertado. Ela quase fala para consertá-la de uma vez. Outro dia houve uma trollagem (termo que demorei a aprender o que significava no mundo virtual) nos comentários desse blog onde uma visitante anônima afirmou que os terapeutas induzem em seus pacientes a dependência, o que gera maior lucro e fidelização. Existe essa situação nas clínicas por aí? Sem dúvida. Um caso como esse me lembra a necessidade de uma profunda reconstrução dos laços pessoais e familiares para tirar essa menina de dentro de seu quarto. Isso leva tempo. Todos, familiares, escola, amigos, terapeutas precisam estar conscientes que são parte do problema e se possível, da solução. Não adianta o jogo de empurra de mandar para alguém que tente consertar o rádio quebrado.
Vejo a senhora ir embora depois de invadir minha sala com sua angústia. Seus dois filhos tem dificuldades em achar um caminho dentro da vida adulta. Você pode educar para evitar o erro ou para perseguir o sucesso. Pode ter uma perspectiva de explorar o futuro ou se agarrar aos medos passados. Para vencer o medo, precisamos mais de mãos dadas do que de dedos apontados.

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