domingo, 28 de agosto de 2011

Mudança

Estava escrevendo esse post, quase na metade dele, quando perdi a conexão e tive que reconectar esse netbook. Péssima notícia,tudo o que eu escrevi tinha se perdido e lá vamos começar de novo. Não dá para tentar reescrever o mesmo texto, aquele está perdido. Pode aparecer de novo em outros posts, mas tudo que tentar repetí-lo vai parecer um café requentado.
Estava falando da dificuldade de mudar. Qualquer coisa, mas principalmente, mudar nossos hábitos mentais. Podemos lutar todo dia para mudar o mundo, mas mudar nosso jeito de pensar ou agir, parece sempre um projeto fadado ao fracasso.
Temos hoje curso para quase tudo nessa vida. Os mais na moda começam com a palavra Gestão: "Gestão de Pessoas"; "Gestão de Projetos"; "Gestão da Indigestão"; Sempre procuramos pela Pedra Filosofal da capacidade de equilibrar e gerir processos para atingir objetivos. Há uma infinidade de MBAs que ensinam essas técnicas e cursos. Muitas palavras em inglês e muitas planilhas depois, as pessoas e as coisas continuam agarradas a seus velhos hábitos como à própria vida.
As psicoterapias sofrem também desse mal. Já ensinei em alguns cursos de formação o conceito spinelliano de Terapia Penico, uma modalidade muito comum em vários divãs. A terapia consiste em uma visita ao terapeuta (a sessão é presencial, ainda), o paciente se põe a vomitar toda a tensão de sua semana dentro do ouvido-penico do terapeuta, sem precisar ouvir nada. A sessão termina, o paciente sai aliviado de suas obstipações psíquicas e o terapeuta fica feliz com a qualidade de sua escuta, para tudo se repetir, ipsis literis, na outra semana. A terapia penico é uma embromação, como clamam vários cientistas? Não, não é. Muita gente vai cicatrizando velhíssimas feridas nessas sessões purgativas, depois de algum tempo passam a ter uma estrutura psíquica bem melhor. Mas mudar, ou mais do que isso, transformar essa ferida, deixar o Narcisismo primário por uma verdadeira capacidade de empatia pelo Outro, bem isso já são outros quinhentos.
Freud descobriu que as mudanças eram lentas e longamente trabalhadas. A Psique Humana e mesmo o Cérebro humano não gostam de mudanças rápidas. Mas isso não é desculpa.
Eu prometi que iria pelo menos passar um tempo sem falar no filme "A Origem". Isso está virando um Transtorno Obsessivo Cinematográfico desse autor. Mas vá lá, uma das coisas legais do filme é a noção, salvadora para as psicoterapias profundas, que uma mudança verdadeira de nossas programações neurais demanda um mergulho longo nas camadas mais profundas de um Inconsciente, onde uma nova programação vai ser inserida.
Dr Sócrates, grande ídolo do futebol de minha adolescência, foi internado nessa última semana na UTI por Hemorragia Digestiva, derivada de processo de Cirrose Hepática. O Dr jurou que já estava mudando a sua atitude e que agora superará de vez o abuso alcoólico. Isso vai depender da profundidade e do impacto psíquico que esse evento lhe trouxe. Se o impacto ficar na primeira ou segunda camada do Inconsciente, a chance de recaída será alta. Faço votos que o Dr tenha descido aos infernos para voltar renovado. Como dizia Cazuza: "Eu vi a cara da morte e ela estava viva". As mudanças, para poderem ocorrer, precisam vir de nossas camadas mais profundas, o que provoca um rearranjo em nossos softwares psíquicos. Podemos conseguir isso em nossas vidas e em nossos divãs, mas as técnicas de gestão de psicoterapia ou de mudanças pessoais, aqui, só servem para vender livros, apostilas e DVDs. As mudanças verdadeiras começam e terminam em nosso coração, e não vem pelo domínio de nenhuma técnica.
PS: não repeti o outro texto, mas esse também ficou legal. Vou postá-lo depressa.

sábado, 27 de agosto de 2011

A Verdade do Sofrimento (Amoroso)

Quando o príncipe Sidarta atingiu a iluminação, hesitou muito em contar para as pessoas algumas das coisas que teria visto em sua jornada interior. Após algum período de dúvida, dedicou a segunda metade de sua vida a tentar transmitir um pouco dessa nova visão. Não sei se tantos séculos depois tenhamos assimilado uma pequena parte do que ele viu, ou mesmo o que Jesus viu. Uma de suas leis foi transmitida pelas Quatro Nobres Verdades. A primeira das nobres verdades é da realidade do sorimento. Sofrer é uma condição básica da nossa experiência humana. Outra nobre verdade dizia que a causa do sofrimento é o desejo. Sempre achei que essa tradução não era boa. O desejo é uma condição fundamental da própria vida. A ausência do desejo está quase sempre associada à doença, não à vida. O que o Buda provavelmente estava falando é que a causa do sofrimento é essa sensação de oco, de vazio e de angústia que fazem parte da vida de todos, gerando sofrimento. Eu já atendi pessoas dos dois lados da pirâmide social e posso dizer que a sensação é compartilhada. Pode ser um playboy esmagando uma moça com seu carro a cento e cinquenta quilômetros por hora ou um moleque matando a própria avó para pegar o seu dinheiro, a sensação é a mesma: algo está faltando, algo está vazio dentro de sua alma. A moça acha que seu vazio vai ser curado por um príncipe encantado, o moleque quer ser o mais popular da turma, o executivo manda vários pais de família embora para atingir as metas de lucros, o outro compra um Porshe para se sentir vivo. Não é o desejo que provoca o sofrimento, antes é a busca permanente da fantasia de que essa fenda possa ser suturada por esse ou aquele objetivo conquistado.
As obsessões amorosas derivam dessa mesma fonte. As meninas são bombardeadas desde as histórinhas na cama, de que a sua longa busca amorosa vai terminar quando o homem certo finalmente transformar todos os seus sonhos em realidade. Depois de uma infãncia e adolescência e idade adulta repleta de contos de fada e comédias românticas com a Jennifer Aniston, as moças descobrem que os príncipes não estão mais lá. As relações humanas viraram um objeto de consumo, o consumo é rápido, as relações perdem a sua continuidade. No último post falamos de duas irmãs da Mitologia Grega, Ariadne e Fedra.
Ariadne é a virgem sem mácula, o feminino protetor e sábio que vai guiar o herói para fora do labirinto. Fedra é a sua irmã má, que desvia o herói de seu caminho e o leva à ruína, sempre manobrando para ser atendida em todos os seus desejos. Ariadne representa a moderação e a generosidade. Fedra representa o desejo insaciável, a necessidade de passar por cima de todos para conseguir o que quer, inclusive da própria irmã.
Muitas obsessivas amorosas se enxergam como Ariadne, dedicadas, desprendidas. Na verdade, o que assusta e afasta os homens é o desespero de Fedra, que se manifesta por uma lista de expectativas que o candidato a príncipe deve preencher. O que desde os tempos de Buda é uma fonte inesgotável de sofrimento.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Ariadne e Fedra

No filme "A Origem", que eu espero estar citando pela última vez, um personagem em busca de redenção, Cobb, interpretado por Leo Di Caprio, precisa entrar dentro do Inconsciente de um homem, herdeiro de conglomerado, para inserir uma idéia. Daí o título em inglês do filme, "Inception". Já falei sobre isso nos outros posts, se o leitor(a) se interessar. Cobb representa o herói decaído, aquele que teve o poder de mudar o mundo e usou esse poder de forma ilegítima, causando indiretamente a morte de sua esposa e o exílio, vivendo londe de seu país e de seus filhos. Para tentar a redenção, vai precisar da ajuda de uma menina, Ariadne, brilhante construtora de cenários e labirintos. Ariadne, no filme, representa a pureza da virgem, a capacidade de ajudar o herói decaído com o coração limpo e o desprendimento de quem entrega o seu amor e sua energia para conseguir curá-lo.
Na Mitologia Grega, Teseu é o herói que tenta salvar Atenas do domínio de um rei perverso, o rei Minos, também citado nos posts anteriores. Teseu precisa da ajuda da virgem Ariadne, filha do rei, que vai colocá-lo dentro do Labirinto onde vai matar o monstro, meio homem, meio touro, o Minotauro. Ariadne, a da Mitologia, entrega ao herói o seu amor e sua astúcia, ajudando-o a ludibriar o rei tirano e entrar no labirinto, onde finalmente consegue matar a fera. Mais importante do que entrar em um labirinto é sair de lá, o que o herói consegue com a ajuda do fio de Ariadne, um carretel de lã que o leva de volta para a saída.
O que Ariadne não contava é que o herói Teseu se apaixona por sua irmã, Fedra (bem que Nelson Rodrigues dizia que todo homem tem direito a uma cunhada por perto). Teseu trai o seu destino heróico, rapta as duas irmãs e larga Ariadne no meio do caminho na sua volta ao lar. Ariadne, traída e abandonada em seu amor, acaba se casando com Dionísio, o que não foi mau negócio. Mas não vamos falar nisso hoje. Vamos nos deter em Ariadne, a irmã boa e Fedra, a irmã má (tema de uma novela que a Globo refilmou há uns anos, "Mulheres de Areia", com as gêmeas Rute e Raquel). Fedra não hesita em tomar o homem da irmã. Incapaz de um amor verdadeiro, inferniza Teseu com suas variações de humor, seu egoísmo e seu comportamento inconstante. Durante a epopéia, vai acabar causando a derrocada final do herói, que vai ficar preso a uma pedra no reino dos mortos. Se eu fosse escrever um livro de Autoajuda, o título poderia ser: "Por que os homens preferem as malvadas?"( em inglês: Why do men love bitches?). Quantas vezes vemos homens passarem anos com as Ariadnes, que lhe dão apoio, ajudam a construir o seu sucesso e caminho e, quando chegam lá, abandonam a sua companheira como fez Teseu e vão gastar seus estoques de Viagra com as Fedras chorosas e carreiristas?
Ariadne representa o amor desprendido, a companheira que sacrifica tudo pelo outro, ajudando em cada passo rumo às vitórias, e derrotas, da vida. Os homens vão atrás das Fedras. Elas são donas de seu desejo e sabem usá-lo. Em nossa "civilização autoestima" parecem confiantes, siliconadas, bombadas, atrás dos seus machos-alfa.
Ariadne padece de excesso de bondade. Para o pensamento junguiano, os excessos, mesmo de bondade, produzem o desequilíbrio. As Ariadnes aprendem a tecer os seus carretéis para homens que sejam dignos de seu amor. É um caminho tortuoso, mas possível. Ariadnes passam a valorizar o homem que está lá. O homem que se mostra, com o tempo, digno de seu amor. Não se entregam para qualquer clava ou sandália de herói. Ariadne, quando desenvolvida, aprende que Narciso (e Teseu)acham feio o que não é espelho.

domingo, 21 de agosto de 2011

Penélope

Hoje em dia os consultórios estão abarrotados de pessoas que vão chorar e trabalhar as questões amorosas. Se o leitor(a) acha que é uma queixa de mulheres, está enganado(a). A busca do encontro amoroso virou o Santo Graal da realização pessoal. A sensação de solidão\despersonalização de nossa vida moderna dá à relação à dois, ou à ausência dela, um peso colossal.
Os livros de autoajuda se multiplicam sobre o assunto. Todos enfatizam a busca, o que torna as pessoas, e aí eu tenho que reconhecer, o sexo feminino mais frequentemente, na tarefa de buscar, buscar, buscar na selva de sites de encontro e redes sociais alguém que encaixe (tem até um site de encontros que se chama match.com, que é uma palavra em inglês para algo que se encaixa). Poucos gurus e terapeutas frizam (e se o fazem não conseguem o sucesso desejado) a necessidade de um encontro com o silêncio ou com esses períodos de solidão para poder encontrar o "perfect match". Ouvi essa frase de uma terapeuta, há muito tempo, que a atribuiu a Jung: " Você só consegue mudar o que aceita"; ou uma variante dessa frase, que essa eu tenho mais certeza da autoria, que é "Você se transforma em tudo aquilo que combate". Essa é quase uma equação matemática, de tão precisa. Diariamente eu posso constatá-la. Quanto mais medo e mais se combate a solidão, mais ela se aprofunda. Devemos então nos acomodarmos à solidão e entendê-la como inevitável em nossa época? A bem da verdade não devemos nos acostumar com nada que nos cause sofrimento ou desconforto. Todo mundo que sente em seu íntimo que a sua vida vai ficar completa apenas se encontrar o Outro significante, e esse Outro significante desejado vem de uma relação a dois, quem sou eu ou qualquer outra pessoa para dizer que está errado?
Nesses últimos posts eu tenho falado muito da figura mitológica de Ariadne, a filha do rei Minos que ajuda a por fim ao reinado de tirania de seu pai, ajudando o herói Teseu a entrar e sair do Labirinto do Minotauro, matando o monstro que oprimia o povo de Atenas. Vou inclusive fazer um contraponto entre Ariadne e sua irmã, Fedra, mas isso no próximo post. A figura que me veio hoje aqui na cama onde estou teclando é a de Penélope, esposa de Ulisses. Na Odisséia, Homero inaugura as epopéias heróicas com a história da guerra de Tróia, na "Ilíada" e a volta da guerra de Ulisses, perdidos noa mares de Poseidon por vinte anos, na "Odisséia". Pois na Odisséia temos uma personagem extraordinária e meia deixada como coadjuvante por Homero, que é Penélope. Penélope era a esposa de Ulisses, que criou o seu filho sozinha e esperou todos esses anos pela volta do marido, dado como morto. Como era uma mulher muito bela e rainha de Ítaca, Penélope tinha a obrigação de escolher um novo marido para cuidar de seu reino. Vieram pretendentes de todo o Oriente buscando o amor e o dote da rainha. Para enrolar a galera, Penélope prometeu que quando acabasse uma fina tapeçaria que estava fazendo, escolheria o seu novo marido. Astuta como Ulisses, Penélope tecia a peça durante o dia e a desmanchava durante a noite, pois nunca perdeu a esperança na volta de seu amado. Acho que era nela que Chico Buarque pensava quando compôs "Mulheres de Atenas", mesmo que Penélope não fosse de Atenas.
A busca do ser amado de nossa época pode parecer com a espera e a paciência infinita de Penélope, que não abre mão da imagem interna que tem de seu amado e não faz por menos. O seu homem era Ulisses, ou Odisseu, que aliás dizimou a concorrência quando finalmente voltou para casa. Talvez a verdadeira figura heróica da "Odisséia" seja a maravilhosa Penélope e seu tear. Em vez de virar o mundo de pontacabeça, Penélope represente a virtude da paciência e da tecelagem fina de nosso destino.
Penélope tem, acima de tudo, um desejo inquebrantável de encontrar com o que manda a sua alma, mesmo que contra tudo e contra todo o pensamento do senso comum. Penélope não é razoável nem racional. E vai tecer a sua tapeçaria enquanto espera pelo seu amor verdadeiro. Custe o que custar.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

A Senhora do Labirinto 2

Estávamos falando de Minos, o chifrudo, que mandou construir um labirinto para encobrir a traição de sua mulher. Lá, ele prendeu a criatura monstruosa, o Minotauro (o original, não o lutador de UFC). Para manter o monstro, o rei de Creta colocava no labirinto jovens que lá ficavam perdidos e eram devorados todos os anos pela besta. Esse é o custo de nossas neuroses: elas fabricam nossos monstros e devoram nossos potenciais.
Um jovem príncipe, Teseu, filho de outro rei, Egeu, resolveu dar fim àquela situação. Pegou a sua clava, ganha em batalha contra outro bandido e figura monstruosa e foi para a ilha de Creta para a sua jornada heróica. Teseu teve a ajuda de uma filha do rei, Ariadne, uma virgem que se apaixonou pelo herói. Ariadne protegeu o valente, ajudando a enganar o seu pai e colocar Teseu e sua clava dentro do labirinto, onde ele finalmente domou e esmagou o Minotauro. A questão era como sair de lá. Como o cheque especial, entrar no labirinto era fácil, sair, nem tanto. Ariadne, sábia em sua juventude, deu a Teseu um novelo de lã bem resistente. Amarrou o novelo na entrada do labirinto e Teseu foi desenovelando esse carretel até o ponto de encontro com o monstro. Para voltar, foi só enrolá-lo de novo.
O fio de Ariadne representa a vitória da astúcia, do pensamento humano sobre a bestialidade. Uma idéia tão simples que resolveu um problema que parecia impossível de ser elaborado. Essa é a mágica de nossa consciência: descobrir a saída simples que está debaixo de nosso nariz. E não vemos.
No filme "A Origem" o Teseu é o líder do grupo, Cobb. Ariadne não vai apenas ajudá-lo a entrar e sair do labirinto do seu próprio Inconsciente, ela vai ser a própria construtora do labirinto. Como a Ariadne da Mitologia, ela é uma menina, sábia, que penetra naquele mundo com a tranquilidade de quem parecia ter sempre vivido por lá. A Ariadne do filme não ensina Cobb a sair do labirinto, mas a entrar cada vez mais fundo nele, até encontrar o ponto onde tudo estava preso. É como se o seu novelo de lã estivesse enroscado em algum lugar que Teseu\Cobb precisava encontrar. O amor da menina ajudou o herói a confrontar a sua Sombra: por seu desejo infinito de poder, Cobb tinha plantado uma idéia dentro das redes neurais de sua esposa. Essa idéia foi crescendo, crescendo, como um parasita, e acabou provocando o seu suicídio. Cobb é um herói decaído procurando por sua redenção. Ariadne representa o seu melhor lado, representa o amor que pode redimir as nossas culpas, abrir os caminhos fechados de nosso Inconsciente. Ariadne, do filme e da Mitologia, são boas terapeutas, mostrando o caminho que deve ser trilhado, os atalhos para chegar no miolo de nossos labirintos.
Vivemos numa época que tudo nos convida à superfície. Para que empreender uma jornada às nossas profundezas, se os livros de autoajuda nos prometem o sucesso com algumas fórmulas rápidas e definitivas? Para que enfrentar os nossos monstros, se o programador neurolinguístico promete consertar os nossas softwares mentais defeituosos?
Para um terapeuta junguiano, como eu, a nossa vida tem muitas metáforas arquetípicas, uma delas é que estamos aqui numa jornada interior e exterior, procurando por verdade e consciência. Podemos descer aos infernos ou subir aos céus, estamos na mesma jornada. Ariadne representa o bom senso, a modéstia, a justa medida que nos protegem da perdição, de ficarmos presos dentro do labirinto de nossos medos e covardias. Esse talvez seja um dos motivos de eu ter gostado tanto desse filme.
A psicoterapia profunda passa anos na tecelagem pacienciosa dos fios que vão nos levar a trazer de volta do labirinto de nossas dúvidas. Ariadne é a mão sábia que nos ajuda a tecer. E nunca paramos de tecer.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

A Senhora do Labirinto

Antes de Ariadne ser nome de Ex BBB (e que Ex BBB), havia uma outra Ariadne, a da Mitologia Grega. Esse post vai falar da Ariadne original e da personagem do filme "A Origem", que já andou aparecendo nos últimos posts. Sei que os leitores já devem estar um pouco cansados dessa quase obsessão do autor dessas mal tecladas pelo filme. Não gostei tanto dele assim. Vou dar uma aula sobre ele em Outubro, então aproveito para explorar as suas diferentes facetas nesse blog.
Para conhecer Ariadne,a da Mitologia Grega, precisamos conhecer o seu pai, o rei Minos. Minos era o rei de Creta, um tirano. A sua esposa, como acontecia com as esposas mortais de alguns reis, teve um filho ilegítimo com Poseidon, o deus dos Mares. O fruto do chifre foi um chifrudo, não o rei Minos, mas um monstro, o Minotauro, o touro de Minos. Para encobrir a sua vergonha, Minos ouve um astuto conselheiro, Dédalo, que sugere a construção de um labirinto perfeito, impossível de se sair, onde o rei deixa o monstro preso.
No filme, o personagem de Léo di Caprio, Cobb, é perseguido em seus sonhos pela imagem de sua esposa morta. Ele tenta lidar com isso construindo um labirinto de memórias, onde ela vai ficar presa, ou pelo menos, onde ela deveria estar. Como sabemos desde Freud, tudo o que é recalcado volta como sintoma.
O rei Minos mantém o Minotauro preso oferecendo a carne fresca de jovens atenienses, deixados no labirinto para serem devorados pelo monstro.
Cobb sacrifica também o seu bem mais precioso, os seus filhos, de quem ele é separado por ser o principal suspeito da morte de sua esposa. Ele foge do país e vive atormentado pela lembrança de seus filhos, a saudade de sua esposa e o labirinto de culpas que o impedem de viver. A sua esposa aparece em todas as suas tentativas de entrar nos sonhos das pessoas. Ela não fica presa no Labirinto. Mal, a sombra de sua esposa, é o monstro que habita a psique de Cobb. Ela possui o seu coração e sua mente. Para a libertação ele vai precisar matá-la, de uma vez por todas. É aí que entra Ariadne. É dela que vamos falar com mais vagar em nosso próximo post. Não percam.

domingo, 14 de agosto de 2011

Inserção ou Incepção

Aqui estou eu, escrevendo em primeira pessoa de novo. Escrever através de personagens e de diálogos é divertido e menos teórico, mas as pessoas estão acostumadas a um discurso mais linear para entrar dentro de uma idéia. Um tema importante dos últimos posts é a diferença entre Inserção e Incepção. O filme "A Origem", que nos serviu de base para várias discussões, não fa essa distinção. Vamos tentar clarificá-la.
Não há nenhum momento do dia que não recebamos alguma tentativa de Inserção. A Publicidade tem um prêmio, "Top of Mind" justamente para premiar as marcas que conseguiram se enfiar dentro da sua cabeça. Tente lembrar nesse momento as músicas, as imagens, os slogans que ficam na sua cabeça associadas a alguma marca. De cara já penso no comercial da Netshoes, com aquelas imagens radicais e "Born to be Wild" bombando por tráz das cenas. Os meus filhos cantam a música junto com o comercial. Sempre que cruzarmos na internet com um anúncio da Netshoes, as imagens e a música pode surgir. Essa é a Inserção: é uma disputa feroz pelos campos verdes de nossa Memória.
Há séculos que a Hipnose tenta fazer Inserções: baixar as defesas de nossa Consciência, induzir uma espécie de transe em que o Cérebro fica sugestionável e colocar lá dentro, uma idéia pronta. Os livros de Autoajuda também tentam novas Inserções. Uma senhora, amiga da família, fica alguns minutos por dia repetindo para si mesma que é uma gostosa e está pronta a ser amada. Ela está bem fora de forma e o seu penteado reforça o rosto muito redondo e, lamento dizer, feio. As Economia mundial está prestes a desmoronar, pelo mesmo princípio: se eu puser uma idéia de prosperidade na minha cabeça, ela vai se tornar realidade. Se eu colocar metas exorbitantes de vendas e produção, elas vão virar realidade. O que se consegue com esse "wishfull thinking" é empresas quebrando, produções mal feitas necessitando de recall e a senhora se entupindo de cremes e de sites e grupos de encontro. Se não operamos na realidade, a partir da realidade os resultados são muito ruins, às vezes catastróficos.
A Incepção, pelo contrário, não tenta enfiar nada goela abaixo de nossa memória. É um processo mais sutil e elegante. Um bom vendedor não é aquele que tenta enfiar uma idéia na cabeça de seu cliente. Um bom vendedor vai sugerindo o caminho, de uma forma que o comprador vai adotando a idéia como sua. O comprador compra a idéia e a emoção vinculada à idéia, depois pega a sua carteira.
No filme, a equipe penetra nos sonhos de um milionário,Robert Fischer. Sugerem que em algum lugar, muito profundo, há uma mensagem de seu pai, que acabou de morrer. Sucessivamente, eles vão penetrando em sonhos dentro de sonhos até chegar ao labirinto mais profundo. Lá, ele encontra o seu pai, no leito de morte, com a mensagem: "Beba Coca Cola". Estou brincando. A mensagem é "Você é meu filho amado, faça as coisas de seu jeito". Ele chora e se despede se seu pai. O Inconsciente produz a cura, normalmente através da Compreensão e do Perdão. Isso não é nem Inserção nem Incepção. Isso é a nossa capacidade de compreender a própria ferida e limpá-la, todo dia, até a cicatrização. É a boa e velha Psicologia Analítica, que vai nas profundezas de nossos labirintos. Como Ariadne.

sábado, 13 de agosto de 2011

A Origem: Epílogo

Estava mais alegre que o normal naquela manhã, sem saber que aquele poderia ser o seu último encontro.
- Bom dia, flor do dia!
- Oi, bonitinha.
- Adivinha?
- O que?
- Consegui acabar de ver o filme. E tem mais.
- Mais, ainda?
- Mais... Já tenho um tema para o meu trabalho. Ele vai se chamar "Ariadne, a Senhora do Labirinto".
Silêncio.
- Curtiu?
- Curti.
- O que você acha?
- Você vai se basear nas nossas conversas?
- Claro que vou. Mas preciso de uma coisa.
- Do que?
- Preciso de seu nome completo para te fazer um agradecimento e te citar como fonte.
Sorriu com um pouco de tristeza.
- Eu prefiro continuar sendo a Tata. Eu gostaria só de um favor.
- Qual?
- Quero que você me conte por que me deu esse apelido.
- Você quer a história toda?
- Quero.
- O meu pai é diretor dessa clínica. Já sabíamos disso, certo?
- Sim.
- A minha mãe não era muito feliz com ele. Digamos que ele não seja chato apenas com vocês. Ele é um chato full time. Do mesmo jeito que não deixa vocês terem as suas samambaias, também vivia controlando tudo em casa, inclusive a minha mãe. Eu era a primeira filha, ele mal permitia que a minha mãe me trocasse. Vivia dando palpites em tudo. Acho que foi nessa época que ela teve a sua primeira depressão. Foi aí que apareceu a Tata, eu acho. Ela cuidou de mim e de minha mãe. Ela ficou com a gente por muitos anos e era uma mulher tão impressionante que nem o meu pai conseguia estragar a nossa relação.
- E onde anda essa Tata?
- Não sei. Acho que ela era do Sul, quando viu que estávamos bem, que já conseguíamos, eu e minha mãe, enfrentar a barra, foi cuidar de sua vida. Quando ela foi embora, chorei uma semana sem parar... Eu chamei você de Tata porque ela vivia ralhando comigo, como você faz. Ela também me contava histórias, que eu lembro até hoje.
- Foi por isso que você foi fazer Psicologia?
- Eu nem sei por que fui fazer Psicologia. Todo mundo diz que é um curso para esperar marido. Mas sabe que, pensando bem...Tata pode ter tido uma grande influência, mesmo. Sabe do que eu gosto, mesmo?
- O que?
- Eu gosto do papel do psicoterapeuta de colecionador de histórias. Tinha uma história que a Tata me contava, do colecionador de sonhos. Era a história de um homem que passava no final do dia, recolhendo todos os sonhos não realizados, todos os planos, os projetos que tinham dado em nada. Ele limpava esses sonhos, enxugava as lágrimas e no dia seguinte levava-os de volta para as casas, para deixá-los nas portas das pessoas de novo, novinhos em folha. As pessoas teriam mais uma chance de recomeçarem a buscar os seus sonhos. Eu amava essa história! Acho que foi ela que me fez querer ouvir as histórias das pessoas. Lá na clínica eu atendi uma senhora, que eu também queria chamar de Tata, ela me contava as suas histórias, a de seus filhos, dos seus pais e parentes, era muito legal. Acho que é isso que eu queria virar, uma recolhedora de histórias.
- (Suspiro) Gostei muito dessa imagem que você fez.
- Você foi uma terapeuta, não foi?
- Eu fui muita coisa nessa vida, meu bem. Muita coisa.
- Você não gosta de contar as suas histórias, não é?
- Eu posso contar as minhas histórias, sim. Mas nesse lugar as pessoas ficam encharcadas do próprio passado. E o Passado pode ser uma prisão, meu bem. Eu prefiro estar em contato com o fluxo, com as emoções e as coisas do aqui\agora. Você veio aqui, nós falamos sobre um monte de coisas, amanhã você vai embora, as coisas prosseguem em seu fluxo, sempre com novas possibilidades. Mesmo aqui, numa casa de repouso, ainda temos possibilidades, sabia?
- Quem falou que eu vou embora?
- Você vai embora virar uma ótima terapeuta, meu bem. Isso vai levar alguns anos. Um dia você pode voltar e trabalhar nessa clínica, mas agora você segue.
- (Enxugou uma lágrima no canto do olho) Mas eu posso te visitar de vez em quando?
- Claro que pode. Claro que pode...
Colocou sem perceber sua cabeça em seu colo. Tentava controlar as lágrimas, sem muito sucesso. Foi preciso alguns minutos para conseguir falar:
- Você bem que poderia ser a minha Tata.
- E quem falou que eu não sou a sua Tata?

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

A Origem 5 Paradoxo

- Eu estava com vergonha de te perguntar isso.
- E agora você ficou sem vergonha?
- (Riso) Agora fiquei.
- Pode mandar ver, então.
Tomou fôlego, solene.
- O que significa aquele final?
- O Tótem, girando?
- No cinema, todo mundo suspira e pensa, mas que grande fdp esse filme.
- Pois é. Foi o que eu pensei.
- O que aquilo significa?
- Ora, aquilo é como um koan. Já ouviu falar de koan?
- O termo não me é estranho, mas não sei o que significa.
- (Suspiro) No Zen Budismo, o koan é uma intervençao que gera o paradoxo. Uma espécie de charada. Vai o aluno para o mestre e pergunta se o cachorro pode atingir o estado de Buda. O mestre responde dando uma latida. O que isso significa?
- (Dando de ombros) Sei lá.
- (Suspirou de novo)
- Você está impaciente comigo?
- Com você, não. Mas essa sua geração internet tem uma preguiça mental muito grande. Parece que tudo tem que estar na distância de um clique. Pense no que eu falei, meu bem. Pense.
- O aluno pergunta se o cachorro pode atingir um determinado estado.
- O estado de Buda. O estado da iluminação.
- Ok. E ele responde com um latido.
- Exato.
- Isso significa que o mestre está precisando ser medicado?
- Não vou suspirar dessa vez. Continue.
Mordeu os lábios.
- O mestre está dando uma resposta neutra. Quer dizer que a pergunta é um pouco idiota.
- Está melhorando. Mas nenhum mestre vai estimular um aprendiz a achar que suas perguntas são idiotas.
- Para que o latido, então?
- Para criar o paradoxo. Para criar um estado mental que ultrapasse as categorias de certo e errado. O latido pode ser o próprio Buda.
- Ok. Estou quase entendendo alguma coisa. Mas o que isso tem a ver com o filme?
Ajeitou-se na cadeira. O filme termina com a incerteza, certo?
- A incerteza se aquilo era um sonho ou realmente tinha acontecido.
- Exato. Deixa o espectador acostumado com happy endings em suspenso.
- Acho que sim.
- Mas não acho que a idéia é deixar o espectador frustrado, ou pensando.
- Estou ouvindo.
- A idéia, ao meu ver, é jogar o espectador para uma nova dimensão psíquica. Uma dimensão onde a realidade física e a realidade da psique se equivalem.
Balançou a cabeça, sem entender. A senhora levantou a sua mão, pedindo tempo para explicar.
- De uma forma ou de outra, todos os três sonhadores principais resgataram o que tinham para resgatar.
- Três sonhadores?
- Sim. O personagem do Di Caprio, Cobb. O herdeiro que era o alvo da Incepção, Robert Fischer. E o homem poderoso por trás de toda operação.
- O japonês?
- O japonês.
- Por favor, fale mais sobre isso.
- Cobb desce ao nível mais profundo do Inconsciente para acertar os ponteiros com a sua projeção. Olha no olho de sua esposa morta e finalmente vê que ela é uma peça de seu Inconsciente. Mal está morta, não adianta ele mantê-la viva em seu Inconsciente. Ele finalmente se despede e reconhece a culpa que levará nas costas por toda a sua vida.
- Os outros...
- Robert Fischer encontra com uma figura que representa o seu pai e finalmente ouve o que sempre quisera ouvir: seja você mesmo, seja diferente de mim, faça as coisas de seu jeito.
- E o japonês?
- O japonês, Saito, envelhece só e cheio de arrependimentos, no castelo de sua sede de poder. Ele representa nosso Ego, que acha que vai sempre controlar tudo e mexer no destino das pessoas. Saito vai precisar do amor que Cobb sente por seus filhos para sair dali. Cobb vai resgatá-lo e não fica preso, pois já se libertou de sua sede de poder, já recuperou a sua forma humana.
- Ok. Acho que estou entendendo. Mas aquilo tudo foi Real, ou não?
- Claro que foi Real. A descida ao Inconsciente e os resgates foram reais. A realidade psíquica interfere na realidade como nós a entendemos. Essa é a função da terapeuta: ajudar o sujeito em sua jornada, sem deixá-lo perdido pelo caminho.
Ficaram em silêncio por intermináveis minutos.
- E aí?
- Bom, eu vim para cá com uma dúvida e agora tenho uma dúzia de dúvidas.
- É sinal de que a conversa foi muito boa.
- (Coçando a cabeça) Acho que sim. Obrigada.

sábado, 6 de agosto de 2011

A Origem 4 Pensamento Viral

- Pode perguntar.
- Pode perguntar o que?
- Pode perguntar se eu assiti o filme inteiro, dessa vez.
- (Riso)Você assistiu o filme inteiro, dessa vez?
- Não! (Gargalhadas)
- Não vou mais lutar contra isso.
- Não?
- Não. Aprenda isso: quanto mais a gente briga com uma defesa, mais forte ela fica.
- Eu não assisto o filme porque estou me defendendo...
- Exato.
- A minha "defesa" é a seguinte, querida: eu vejo o filme sempre que vou fazer a minha bike. Como eu aguento pedalar uns vinte minutos, eu vejo o filme em partes.
- (Sorriso bondoso) E assistindo assim picado, a sua compreensão é melhor?
- (Olhar de dúvida) Você está me sacaneando?
- (Riso) Não. Você está?
- Também não.
- Então segue o enterro, minha filha. Qual é a sua pergunta do dia?
- Pergunta?
- Ai, meu Deus!
- Tá bom, tá bom... Eu quero falar um pouco sobre a Incepção, pode ser?
- Nossa, vejo sinais de vida inteligente! Prossiga.
- Você acredita que isso é possível? Dá para implanter uma idéia na cabeça de alguém e ela crescer como um vírus?
- Claro que isso é possível. Aliás, é uma das coisas mais legais desse filme. Dá para fazer o imprinting, mas ele não pode ser literal.
- Desculpe, eu...
- Eu sei, eu sei. Vou explicar melhor. Nós já conversamos sobre isso outro dia. Todos tentam fazer imprintings na sua cabeça. Faça isso, faça aquilo, beba Coca-Cola, não perca a promoção de lingerie sexy das lojas Marilda...Sempre esse tom de ordem, sempre essa imposição tentando fazer uma inserção. Concorda?
- Sim.
- Eu gosto ainda mais desse termo, então; fazer uma incepção é diferente de fazer uma inserção. Inserção é tentar colar em seu subconsciente uma idéia. Incepção é fecundar o seu Inconsciente com uma idéia que vai se desenvolver e desenrolar como um vírus, até virar um sistema de pensamento e de crença. Dá para perceber a diferença?
- A diferença é de profundidade e de atitude.
- Isso! Em estados cada vez mais profundos de inconsciência as idéias podem ser colocadas e criar vida. Mas, se você usar um comando, tipo faça isso, faça aquilo...
- Vai ativar as defesas.
- Vai ativar as defesas. Imagine uma inserção de uma idéia: "Espelho, espelho meu, não existe alguém mais bonita do que eu".
- Uma inserção clássica.
- Sim. Clássica. As defesas ficam reagindo à essa idéia. Em nosso caso, para evitar a gênese de uma idéia delirante em nossa cabeça (risos).
- Fale por você (risos).
- A incepção é mais sutil e mais viral. É algo como: "Eu conseguiria me tornar uma mulher muito bonita". Mas aí entra o condicionante.
- Como assim?
- Caramba. Demorou quase meia hora de conversa para o primeiro "Como Assim?".
- (Sorriso amarelo)Não zoa. Como assim?
- O condicionante é uma coisa do tipo: "Eu conseguiria me tornar uma mulher bonita SE eu emagrecer doze quilos".
- Mas isso é um dado de realidade.
- Não meu bem. É um condicionante e um impeditivo. Na hora que você coloca o SE, o resto se desmancha. Aparecem os arquivos de regimes que fracassaram, o marido te chamando de gorda e a calça que não entra mais, de jeito nenhum. A Incepção é uma sugestão, uma idéia que pode se multiplicar. Não é um Se, mas é um E Se? E se eu deixasse a beleza fazer parte da minha vida? E se eu parar de xingar o espelho? E se as coisas começassem a realmente dar certo para mim?
- No filme, eles querem fazer a Incepção da idéia: "O meu pai quer que eu siga o meu caminho".
- Só que o que eles conseguem é algo muito mais profundo.
- Como ass...?
- Ele chega diante de seu pai moribundo, cheio de dor e amargura, esperando ser censurado ou diminuído mais uma vez, mas ouve algo completamente diferente: o pai se arrepende de não ter sido um bom pai, não ter permitido que ele, Robert Fischer, encontrasse o seu caminho.
- Eles se encontram e se unem.
- Eles se unem em um perdão mútuo. Aí que pode ser feita a Incepção: quando os programas condicionantes são dissolvidos no perdão.
- Parece complicado.
- Por isso que não é para qualquer um. Por isso que não adianta comprar um livro de programação neurolinguística para tentar ser uma pessoa "mais positiva".
- A Incepção precisa ser profunda.
- A Incepção precisa ser profunda e a pessoa precisa cultivar esse sistema de novas idéias para elas crescerem.
- Não entendi nada. Não basta fazer a Incepção?
- Não. Vamos pegar o tal exemplo: "Eu poderia ficar bem mais bonita". Se quer deixar a idéia se multiplicar como um vírus, eixe ela se espalhar pelo seu dia: embeleze a sua roupa, o seu cabelo, tenha nojo dos alimentos que te fazem sentir-se gorda. Essas coisas. Como aquela música gospel antiga: "Essa pequena luz que eu tenho, vou deixá-la brilhar".
- Isso pode virar um sistema que se multiplique sozinho?
- Pode. Requer muita prática, mas pode.
Sorriu, mordendo o lábio.
- Engraçado.
- O que?
- Pensei que você fosse uma junguiana.
- Eu sou. Junguiana de carteirinha.
Os sorrisos das duas se encontraram no final da frase.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A Origem 3 - O Fio de Ariadne

- E aí?
- Aí o que?
- Assitiu o filme?
- Quase inteiro.
Risos.
- Eu sei. Eu sei.
- É isso que você diz em sua defesa?
- Fiquei até de madrugada fazendo um trabalho.
- Sobre o que?
- Sobre terapeutas como facilitadores do processo, o terapeuta é alguém capaz de ser uma enzima que cataliza o ganho de consciência...
Notou que a velha senhora olhava com ar divertido.
- O que foi?
- Não sei se gosto dessa história de terapeuta-enzima, meu bem.
- E Vossa Excelência prefere o que?
- Vamos voltar ao filme?
- Não vai responder à pergunta?
- Vamos voltar ao filme, que eu respondo. Fique fria. Eu respondo.
Olhou com ar divertido.
- Voltando ao filme.
- Ok.
- Onde está o terapeuta no filme?
Mordeu os lábios.
- Você entendeu a pergunta?
- Acho que não sou tão burra assim. O filme é sobre pessoas que entram nos sonhos alheios para obter informações.
- Na prática clínica, os sonhos são daquele jeito?
- (Fez careta) São?
- Claro que não. Aqueles sonhos tem roteiro, diálogos e personagens fixos. Não são assim na vida real, nem à beira do divâ.
- Mas o terapeuta não é o extrator, não é a pessoa que vai entrar nos sonhos em busca dos conteúdos reprimidos?
- (Sorriu) Olha que é uma visão interessante. O terapeuta é o ladrão de sonhos.
- Vai ficar zoando?
- Não estou zoando. A idéia é interessante. Eu tinha outra, mas a sua não é ruim.
- E a sua idéia, qual é?
- Quando os extratores entram nos sonhos, são perseguidos, não sâo? Seguranças, bandidos, militares, eles são perseguidos o tempo todo para não chegar a níveis mais profundos do Inconsciente. Essas são as defesas. O terapeuta tem que contornar as defesas, mas também trazê-las à luz. Não dá para matá-las. Você está acompanhando?
- Estou.
- Quem é que cria o cenário e defende todos nesse percurso?
- A menina?
- (Bateu na cadeira) Isso! A menina. Ariadne. Você lembra quem é Ariadne?
- Da mitologia?
- Da mitologia.
- Por favor, refresque a minha memória.
- Ariadne tem o fio que possibilita a Teseu sair do labirinto. Ele pode entrar, matar o Minotauro e sair do labirinto graças ao fio de Ariadne. Ela sabe entrar e sair de lá.
- Mas no filme ela constrói o labirinto.
- Pois é. Ela constrói o labirinto, sabe entrar e sabe sair. Ela cria as armadilhas para pegar as defesas, para driblar as resistências dos pacientes, digo, do inconsciente que estão tentando invadir.
- Ela é a terapeuta?
- Ela é a terapeuta e a terapia.
- Você está dizendo...
- (Interrompendo) Eu estou dizendo que o terapeuta, através da sua escuta e atenção plena, cria o cenário onde o paciente vai colocar as suas memórias, fantasias e sonhos. Essa é a primeira qualidade que um terapeuta deve ter: ser um bom construtor de labirintos.
- E saber sair dele.
- Esse pedaço então...Não é tão fácil.
- Imagino que não.
- Ariadne percebe que o líder, Cobb, tem um problema. Quando ele está chegando perto do que procura, aparece a sua esposa, Mal.
- A que morreu.
- Ela não sabe que Mal morreu. Ela só percebe que Mal representa um problema, uma dificuldade de Cobb. Ela sabe que tudo pode dar errado por conta desse conteúdo não elaborado. No filme ela vai tentar ajudá-lo a resolver isso. É uma grande terapeuta.
Ficou um tempo em silêncio, até soltar uma risada.
- O que foi?
- Você acabou de estragar o meu trabalho.
- Que bom, meu bem.
- Você não gosta dessa história de terapeuta-facilitador, não é?
- O terapeuta é um facilitador, querida. Claro que é. Mas o serviço é bem mais do que isso.
- Vou para meu lap top, consertar o trabalho.
Risos.
- Até amanhã...
Não deu tempo. Já tinha saído.