sábado, 29 de junho de 2013

Efeitos Colaterais

Finalmente assisti ao novo filme de Soderbergh, “Side Effects” (título lamentável brasileiro- “Terapia de Risco”). Os pacientes trazem o filme para dentro do consultório, lá vou eu ver do que se trata. A impressão inicial é que seria um filme que levantaria o véu dos perigos dos psicofármacos e as relações igualmente perigosas entre psiquiatras e os laboratórios, que devem uma significativa fatia de seus lucros a remédios dessa linha.
Para quem não assistiu o filme, vou tentar não entregar o final, mas não posso garantí-lo. O filme começa com a saída de um rapaz, condenado por crime financeiro, da prisão. A sua saída, que deveria ser motivo de alegria, começa a provocar em sua jovem esposa um comportamento progressivamente autodestrutivo. Sem motivo aparente, ela acelera o seu automóvel contra o muro do estacionamento. No Pronto Socorro, ela é atendida por um jovem e atencioso psiquiatra, que opta por não interná-la em Hospital Psiquiátrico. Ela vai para seu consultório, onde o seu quadro depressivo vai se aprofundando em meio à má resposta aos medicamentos prescritos. Discutindo o caso com uma colega, psiquiatra que já havia atendido a paciente em crise anterior, ele menciona a má resposta da paciente ao IRSR (esqueçam a sigla). A colega sugere que ele teste a nova droga, Ablixa (nome fictício). A paciente melhora, mas continua apresentando episódios de agressividade, voltada a si própria e, tempos depois, contra o seu marido. Durante um episódios de sonambulismo, a moça esfaqueia e mata o seu marido, voltando a dormir em seguida. Pronto. Muito pano para manga. Medicamento novo com efeitos colaterais desconhecidos e subvalorizados pelo establishment dos laboratórios. Psiquiatra que testa medicamentos contra a ansiedade em seus pacientes particulares. Promotor que tenta obrigar o psiquiatra a depor contra a sua paciente para evitar ser responsabilizado pelo crime, já que ele prescreveu o tal do Ablixa. Muitos panos nessas mangas. A paciente vai até os programas femininos para denunciar a droga que provocou a tragédia. Muitas e importantes questões, algumas embaraçosas. Se a paciente tinha tendências autoagressivas, por que o médico não a internou? O fato de estar trabalhando demais prejudicou o seu julgamento? Como ele não valorizou os episódios anteriores de sonambulismo da paciente? Ele não estava atualizado sobre esses efeitos colaterais?
Para piorar o meu já avançado mal estar, a vida do bem intencionado psiquiatra se dissolve completamente: a mídia o persegue e ele não pode se defender, para não comprometer o Sigilo Profissional. Seus colegas o expulsam do consultório, seus pacientes desaparecem. Pensei em parar de ver o filme. Infelizmente, ou felizmente, para mim, o filme dá uma virada nesse ponto. As questões levantadas, tão importantes quanto delicadas, ficam meio largadas, para o filme virar uma investigação de uma teoria de conspiração. Que pena.
Algumas questões importantes que ficaram abandonadas nessa virada do filme: há uma excessiva ênfase na medicalização dos transtornos depressivos. A paciente pergunta em uma consulta se não haveria um caminho diferente, ou complementar ao medicamentoso, para conseguir a melhora. O cara disse que não. Não é verdade. Os medicamentos podem gerar efeitos imprevisíveis, aumentando a impulsividade dos pacientes. Geralmente, não a ponto de gerar uma tragédia, mas esses efeitos precisam ser monitorados e corrigidos pelo médico quando aparecem. Finalmente, uma Psiquiatria só baseada na coleta de sintomas pode fazer um Zé Mané ignorar um sinal claro que está diante de um caso de Simulação (em inglês, Malingering) e não diante de uma verdadeira alteração de humor. O sinal vem de dentro de seus intestinos (do médico), quando a Depressão se manifesta de forma não linear, bem como as alterações de sono.Fica faltando um pedaço, o que o rapaz ignorou por um bom tempo.
Finalmente, o psiquiatra tenta e deve tentar, sempre, evitar uma internação. Isso o expõe a riscos, assim como expõe o paciente. Uma internação psiquiátrica tem muitas implicações imediatas e tardias na vida de uma pessoa. É um procedimento guardado para proteção de vidas. O filme mostra um psiquiatra que decide correr o risco, pelo o que imagina ser o melhor para a sua paciente. Várias condutas médicas podem ter bons e maus resultados. A diferença está na Atenção Plena do médico aos mesmos, para poder corrigir ou mudar o curso das coisas, quando necessário.

domingo, 23 de junho de 2013

Flash Mob

Nas longas horas que ficamos no trânsito aqui de São Paulo temos a oportunidade de ouvir muito rádio. Muita coisa ruim e muita coisa boa, se soubermos garimpar. Outro dia ouvi uma coisa boa, uma entrevista de Frei Beto na CBN. Entre outras coisas, ele lembrou que na década de 70, quando ele viveu seu sonho de juventude, havia uma farta oferta de drogas e uma juventude ávida em consumi-la, mas a Utopia libertava sua geração de se afundar, como hoje, no consumo regular e alienante de todo tipo de droga. Onde falta a Utopia, sobra o desespero. Querer salvar o Mundo, o Amor ou a conta bancária pode dar um sentido, um vetor para o sujeito diante do Devir. Falar em utopia hoje é resvalar no desespero, no vazio e na descrença pura e simples diante de tudo o que está aí. Quem leu o meu último post deve achar que estou muito feliz e esperançado com todas essas manifestações de rua que atravessam o país e, espero, devem perder força nessa semana. A minha leitura mais azeda do movimento é que se trata de um gigantesco Flash Mob. Flash Mob, para quem não sabe, são intervenções de grupos organizados nas Redes Sociais que produzem uma dança, uma cena, um pequeno joke urbano por alguns segundos, para depois cada um retomar a sua rotina no ciclo eterno de Nascer-Viver-Consumir-Morrer que vivemos no dia a dia. O Flash Mob pode reunir um grupo de fãs do Pica Pau para reproduzirem uma cena famosa desse desenho. Pode ser uma intervenção dessas, meio Sem Noção e meio Nonsense, que produz uma micro intervenção de uma tribo na paisagem urbana para depois, quase que imediatamente, retomar seu anonimato.
As passeatas como um Flash Mob gigante é a canalização de um sentimento coletivo de impotência e angústia diante dos descalabros e pataquadas que não cansam de serem produzidas por Executivo, Legislativo e Judiciário, não necessariamente nessa ordem. Uma republiqueta com Psique feudal e oito milhões de quilômetros quadrados de disputas por fronteiras, mamatas e propinas. As pessoas tomaram as ruas para mostrarem que sabem gritar. Alguns aproveitaram para depredação, manifestos políticos a apolíticos e antipolíticos com um discreto mas consistente ranço autoritário. Desqualificar todo o processo político é uma forma consistente de introduzir o Autoritarismo e o Totalitarismo, sempre com a premissa perigosa que “nós somos melhores do que eles”. Essa pressuposição é o estopim de guerras e perseguições de todos os tipos.
O que um junguiano não pode ignorar é a sensação clara da decadência, ou mutação profunda das imagens e funções paternas em nosso Ocidente e nossa Cultura. Esses agrupamentos e desagrupamentos instantâneos que são produzidos nas Redes Sociais permitem a essa legião de jovens que não acreditam em mais nada, se agruparem e saírem pelas ruas depredando placas e lixeiras, gritando contra autoridades e ordens de poder que eles pouco ou nada compreendem, mas que desqualificam pela ausência de uma força organizadora, aglutinadora que surgem nas lideranças. O Puer aeternus, a eterna juventude se manifesta nesse Flash Mob da Terra do Nunca, onde todos são adolescentes que não tem pressa nem vocação para crescer. Antes dizíamos da decadência do arquétipo do Pai. Hoje podemos falar na decadência do arquétipo do Herói, aquele que pega o cajado e conduz a massa faminta. O grupo dos Peter Pans pósmodernos não acreditam em ninguém com mais de vinte anos, não acreditam em nenhuma boa intenção e, pior, não fazem a mínima ideia do que fazer com esse gigantesco megafone que são as passeatas e as Redes Sociais. Como diria frei Beto, eles carecem de Utopia. Ou estão lambuzados de tantas Utopias que não sabem como agrupá-las e o que priorizar antes.
Pois é. Meninos, votem no tiozão aqui. Vamos colocar um pouco de Método nesse berreiro. Precisamos das linhas orientadoras do Pai para encontrarmos o caminho. Gritar é bom, ser ouvido é melhor ainda.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Um Filho Teu Não Foge À Luta

Há muitas décadas que eu sou leitor de jornais, aquela coisa que suja as nossas mãos de tinta e que tende a desaparecer, inexoravelmente, como as máquinas de escrever e os discos de vinil. Os sociólogos sempre anunciavam um país, o Brasil, às portas de uma convulsão social. Com as suas diferenças sociais, as hordas de excluídos tomariam as ruas e decapitariam as Marias Antonietas do Congresso e Palácio do Planalto. O país cresceu e continuou injusto, as hordas de miseráveis foram compradas e condenadas à miséria perene pelo Bolsa Família. Nos dez anos de PT no poder, os ricos ficaram mais ricos, os pobres passaram a comprar iogurte e bolachas recheadas, em vez das de maizena. A classe média pode se fartar de compras em Miami, em tempos de Real valorizado. Parecia a fórmula perfeita: altos ganhos para especuladores, duzentos mil “companheiros” e pelegos em geral aboletados na máquina no Estado, economia aquecida à custa de setores produtivos e ainda competitivos em tempos de dólar barato, a classe C e D visitando os aeroportos para viajar, não para ver aviões subindo e descendo. Não haveria a tal convulsão social. O paraíso do consumo nos libertaria de todas as angústias e pruridos de cidadania.
O preço da festança logo começou a se delinear: mensaleiros, dólares na cueca, sucateamento da indústria, paralisia das obras de infraestrutura, tudo era estampado nos jornais e nas mídias, diante do riso sardônico dos “companheiros”, que já haviam comprado a todos, então, como disse um deputado, estou cagando para a Opinião Pública. Os votos estão comprados, as eleições e as reeleições estão garantidas, quem se preocupa com o grupo da população que ainda lê jornais e ainda exercita alguma indignação? Dilma ainda ensaiou uma pretensa “faxina” no começo de seu governo tentando acenar para a Classe Média (tão obsoleta como nossas velhas Olivettis e vitrolas) que haveria algum controle da gigantesca putaria que desfilava diante de nossos olhos cansados. Que nada. Algumas figuras burlescas demitidas e a gigantesca avacalhação continua sólida, implacável, fazendo estádios com preços exorbitantes e materiais de segunda.
O movimento que agora toma as ruas de todo país não é da horda de miseráveis e famintos, como um dia pregaram os sociólogos. Os petistas foram expulsos da passeata de ontem, numa mais do que doce ironia. Os políticos continuam perplexos, balbuciando coisas como “as pessoas precisam ir trabalhar”; “Vou abrir as planilhas para explicar o aumento de 20 centavos”; “O que vocês querem, afinal, meu Deus?”. Quem está na rua está dizendo que sabemos, sim, o que está acontecendo. As ruas não estão sendo ocupadas para reduzir as tarifas, criar um novo partido político ou fazer uma pauta grevista. As pessoas estão nas ruas para dizerem que estão vendo o que está acontecendo e que podem desestabilizar o conluio perfeito de Direita e Pseudoesquerda que negam às pessoas o direito ainda mais importante do que a Liberdade, que é um respeito mínimo pela nossa inteligência. Não há uma pauta definida, não há um método de enunciação ou reivindicação. As pessoas só sabem de uma coisa: estão todas de saco cheio dos descalabros e das manipulações obscenas. Elas aprenderam a gritar. Pode ser que a maioria silenciosa e faminta continue votando nos currais do Bolsa Família. Mas a Classe Média passa a ser definida não pelo saldo bancário, mas pela capacidade de pensar e criticar. Existe um pouco de vida inteligente no país gritando, chega, meu Deus, chega. Um grupo ainda pensante. Pensante e gritante.

domingo, 16 de junho de 2013

Felicidade Compartilhada

Há uma cena de um filme já meio antigo, “Uma Mente Brilhante”, em que um jovem matemático, John Nash, tem uma inspiração que definiu o rumo de sua obra e um futuro prêmio Nobel, além de ter dado origem à Teoria dos Jogos. Estão todos os amigos em um bar nos arredores de Harvard, quando entra no recinto uma loira estonteante com algumas amigas. Mesmo entre gênios da Matemática o papo é quem vai chegar na moça e quem vai ficar com as outras, não tão bonitas. John Nash tem então o seu grande insight: se todos tentarem ficar com a gostosa, todos serão rejeitados; se, depois de tomar um fora, tentarem as outras, serão rejeitados novamente, já que as moças não vão topar serem uma segunda opção. A única forma de terem sucesso seria estabelecerem uma cooperação, ficando com as outras meninas e rejeitando a mais bonita. Com essa introvisão um tanto etílica, John Nash deu um petardo no Capitalismo e nem percebeu. Acertou também o darwinismo social. Toda concepção que somos seres eminentemente competitivos disputando, derrotando, prevalecendo. Dos anos 80 para cá o Capitalismo virou um supercapitalismo. Todos tem metas de produção, de vendas, de imposição da própria vontade sobre os outros. Mesmo na vida corporativa, quando se pedem que os grupos sejam cooperativos e interligados, essa cooperação é voltada a objetivos de derrotar a concorrência, a equipe da sala ao lado, os malditos chineses. Estamos sempre tentando ganhar de alguém.
Quando vemos a propaganda de uma operadora de celular, onde um simpático cachorrinho come bolhas de sabão e um bebê se desmancha em gargalhadas, a imagem deliciosa está lá para comprarmos mais celulares, ou trocarmos de operadora. Todos os recursos são voltados ao consumo e à realização do desejo de cada um. Não é à toa que batemos ano a ano todos os recordes de obesidade, já que estamos num mundo que estimula, o tempo todo, nossa voracidade, nossa fome e sede infinitas.
Um modelo de cooperação impensável seria um hipermercado comprar das pequenas quitandas para elas não irem à falência; uma rede de pequenas livrarias se unirem para vencerem as Bookstores gigantes; concorrentes colaborando entre si para uma distribuição justa de lucros. Alguém consegue imaginar o estabelecimento desses sistemas de colaboração e parceria? Cultivar sempre a capacidade de diálogo e auxílio mútuo?
John Nash mostrou, com equações complexas, que a única forma de se lograr êxito é combinando o interesse individual com o interesse do grupo. Todas as correntes místicas, de todas as religiões, partem do princípio de que somos todos interdependentes, não há nada que ameace a sobrevivência de um que também não ameace o grupo. Uma forma quase infalível de se atingira a infelicidade é a busca permanente e pós moderna de se encontrar a felicidade como uma realização pessoal, individual. É por isso que os consultórios vivem cheios de pessoas que buscam uma felicidade que não possa ser compartilhada.

domingo, 9 de junho de 2013

IN - Sight

Insight é um termo psicanalítico pouco preciso, que significa um momento em que as coisas ficam claras e amplas. O que parecia obscuro fica por algum tempo nítido e a sensação é de alívio e clareza. Em tradução livre, Insight pode tanto ser uma Visão Interna como uma Introvisão. Pode parecer que trata-se da mesma coisa, mas não é o caso. Uma Visão Interna é a percepção de um funcionamento, uma dor, uma lembrança que estava lá, escondida sob o manto de nossas certezas: a moça que se julgava uma injustiçada, que faz tudo certo para construir a relação e é sistematicamente abandonada pelos candidatos a Príncipe Encantado. Um belo dia, meio da sessão, momento despretensioso, percebe em seu comportamento o software psíquico de sua mãe, num programa que eu chamaria de “Os Homens Não Prestam”. Tudo o que ela faz de bom, todo amor e toda dedicação terminam sempre na constatação, mais uma vez, de que “Os homens são assim, mesmo”. Cientificamente ela acumula evidências que comprovam a sua tese, e não faltam, nunca, evidências para nossas certezas neuróticas. Um Insight pode mostrar, com clareza, o quanto que esse software Inconsciente contribui para um padrão negativo de sentimentos com os Quase Príncipes. Isso contribui para a péssima seleção de candidatos e para repelir inconscientemente quem se aproxima.
Um Insight que seja uma Visão Interna vai permitir a percepção dessa animosidade inconsciente que afasta, num passe de mágica, todos os pretendentes. Uma boa psicoterapia é composta de uma longa coleção de micro visões para construir uma imagem mais ampla e completa de si e de suas instâncias neuróticas. Mas há um longo caminho para se chegar na Introvisão.
Acabei de ler em um pequeno manual de Alquimia uma ideia que de um jeito ou outro é muito repisada nos posts desse blog: o homem moderno, com a Psique ancorada no Ego, vive uma sensação quase permanente de insegurança. Essa insegurança se manifesta com um apego compulsivo às coisas relacionadas à Matéria: ter dinheiro, ter saúde, beleza, longevidade, essas coisas que somos os únicos bichos de Reino Animal que sabemos que vai acabar, se desvanecer, não importa aonde chegar a tecnologia. O domínio da matéria e da vida tem sido o grande babado de nossa civilização herdeira do Dr Frankenstein, obra de Mary Shelley que anteviu a busca desesperada em domar a Técnica e a Morte. Nossos laboratórios de Biologia Molecular, a Nanotecnologia, a busca do Bóson de Higss, todos esses bilhões de dólares investidos são no sentido de compreender e manipular a matéria e a energia que, desde Einstein, sabemos que são a mesma coisa. O Homem Moderno pensa que pode domar a Morte e Velhice, outra fonte permanente de angústia. Não pode, mas vai continuar tentando. Ao contrário da Introvisão, a procura é de uma Visão do que está fora, uma Exovisão. Logo teremos os pequenos óculos de Realidade Aumentada para enxergarmos cada vez mais o que está fora, muitas vezes em detrimento do que está dentro.
Um Insight que se torne uma Introvisão é a percepção do outro a partir de nosso mundo interno. Como seria construir um óculos de Introvisão? Para a moça que não cansa de constatar que os homens modernos são egoístas, covardes e meio deficientes de Testosterona, quem sabe ela poderia ter uma visão profunda das suas próprias deficiências, o que é melhor que depositá-las no Outro. Talvez essa Introvisão permitisse alguma compaixão, pelo homem egoísta e pela mulher carente. Introvisão é visão de si e do outro, com a mesma compaixão. Não adianta morrer de entender a demanda do Outro sem cuidar muito, muito bem, de nossas próprias demandas. Não é fácil juntar essa dupla, tão pósmoderna, de opostos. Isso demanda tempo, limpeza interna e entendimento, todas coisas meio fora de moda nesses tempos apressados. Queremos amores expressos, fortunas instantâneas e alívio imediato das dores que continuam a doer, não importa quantos aplicativos de busca da felicidade existam em nossos smartphones.

domingo, 2 de junho de 2013

A Forca (não a Força) do Hábito

Uma piada antiga entre especialidades médicas, muito provavelmente feita por um cirurgião, é que o clínico sabe tudo mas não resolve nada, o cirurgião não sabe nada mas resolve tudo, o legista sabe tudo mas chega sempre atrasado. E o psiquiatra? O psiquiatra não sabe nada e não resolve nada. Até passar pela primeira crise de Pânico os cirurgiões podem dar boas risadas dessa piadinha.
No livro de José Saramago: “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, um livro profundamente cristão escrito por um ateu anticlericalista, Jesus cura as pessoas e pede para elas não pecarem mais, mas suspira com tristeza ao saber que as pessoas vão repetir exatamente os mesmos erros que causaram suas doenças e logo vão estar precisando de novos milagres. “People don´t change”, diria o Dr House (“As pessoas não mudam”, em tradução livre). Vários estudos demonstram que as pessoas que passam por um evento cardiovascular grave, como um Infarto do Miocárdio, podem ter dois cursos diferentes: mudar radicalmente os seus hábitos alimentares e seu estilo de vida, ou se propor a fazer isso, mas, como as pessoas vistas pelo Dr House, fingir que mudam mas fazem tudo exatamente do mesmo jeito. Não é preciso ser um gênio em estatística para saber que o grupo que se propõe a mudar tem uma sobrevida muito maior do que o grupo que repete os mesmos erros. Tenho um amigo que trabalha no INCOR e me dizia que podia prever o prognóstico dos pacientes observando-os na pista. Aqueles que faziam os exercícios pendurados no celular não demorariam a reinfartar, os que faziam tudo rapidinho para se livrar da tarefa e voltar para a correria também voltariam logo para o cateterismo. Aqueles que começariam a curtir o momento, bater um papo relaxado com os colegas e cumprimentando os funcionários como velhos amigos, esses iriam passar um bom tempo sem dar trabalho. Provavelmente teriam alta. Isso me traz à lembrança uma frase terrível em um livro budista: “as pessoas podem morrer por uma causa mas não abrem mão das causas de seu sofrimento”. (Esse blog anda muito budista ultimamente, o que tem derrubado bem os Page Views. Compaixão, relação com a Morte e outros assuntos espinhosos tem derrubado o Ibope dessas mal traçadas linhas). A frase é uma porrada porque muito verdadeira. Levanta uma lebre ainda mais doída, que é a hipótese que nos agarramos ao sofrimento como se ele fosse o nosso maior patrimônio. A Psicanálise apontou muito bem: a vítima está sempre no poder. Fazemos vários e repetidos concursos para apurar quem sofre mais, quem passou pela infância mais terrível. Mais um dado estatístico: as pessoas que passaram pelos campos de concentração e sobreviveram ao Holocausto tiveram um índice de suicídio e de Câncer bem maior do que a população em geral. As explicações são várias e sempre multifatoriais, mas eu arriscaria dizer que ficar rememorando, ruminando e revivendo as perdas e os abusos impensáveis dos anos de campo de concentração levaram inevitavelmente ao desejo de morrer e se juntar aos que pereceram na insanidade nazista. Borges escreveu que não há perdão, só esquecimento. Ele estava pra lá de certo: quem pode deixar as lembranças se diluindo nos anos que vieram, sobreviveu. Quem ficou rememorando, não. A identificação com o papel de Vítima, sobretudo quando, de fato, a pessoa foi vítima de um abuso impensável, multiplica o sofrimento. E o sofrimento, como já descrito em outros textos desse blog, pode virar uma droga pesada e causadora de dependência.
Não adianta o clinico diagnosticar corretamente, o cirurgião corrigir com seu bisturi, nem o psiquiatra medicar com precisão: modificar os hábitos de sofrimento é sempre o x da questão. A Psiquiatria, que bate de frente com esses hábitos todo dia, é a mais sublime das medicinas (forcei um pouco nessa, não foi?).

sábado, 1 de junho de 2013

O Herói e o Trickster

Ontem estava me perguntando ao final do terceiro episódio da franquia “Homem de Ferro” (filmes não são mais filmes, mas franquias em vários episódios e possibilidades de consumo), o que eu estava fazendo lá e como gastei mais de duas horas da minha vida com aquilo. Além da falta impressionante de opções, acho que estava afim de ver Robert Downey Jr e sua perspectiva torta/irônica que nos salva dos heróis musculosos e inquebrantáveis do cinemão americano. Olhando para ele sem pressa, podemos notar que é o completo antiherói: não é musculoso como o Capitão América, não é indestrutível como o SuperHomem, não tem a beleza nórdica do Thor.
Robert Downey Jr é um cinquentão bonitão e malhado, mas está longe da Testosterona exigida para ser um superherói. Ele tinha tudo para ser tragado, como tantas jovens promessas, pelo labirinto de drogas, escândalos e prisões que tornou-o personagem mais comum em páginas policiais do que nos cadernos de Cinema ou Entretenimento. Depois de muitos anos lutando contra a dependência química e os problemas com a justiça, que lhe valeram alguns períodos na prisão, Robert voltou com o dobro do ímpeto para virar um ator de um tipo só: o Tony Stark do Homem de Ferro muito se parece com o Sherlock Holmes, que se parece com o bonitão folgado de outros filmes que eu não vou citar porque não merecem ser recordados. Os personagens de Robert Downey Jr são viris, mas desengonçados com as mulheres, são inteligentíssimos, mas temerários e sempre fazem lambanças por desconsiderarem qualquer norma de segurança. Na Mitologia Grega, que talvez seja a maior base arquetípica do Inconsciente Holywoodiano, seus personagens significam a troca do modelo apolíneo por um herói mais dionisíaco. Isso significa a troca do herói reto e proporcionado pelo herói dado a excessos e erros, sempre pronto a enxergar a verdade na franja desses erros e derrotas. Parece pouco, mas representa a troca do indestrutível Aquiles pelo safo e não tão belo Ulisses, que tira da astúcia mais vitórias do que da força física. Para quem não sabe, na Guerra de Tróia, Aquiles era o mais forte e imbatível dos guerreiros, mas sua condição humana lhe reservava uma fragilidade, que era no seu calcanhar. Os heróis fortões sempre vão ter essa fragilidade oculta, que vai ser mais perigosa na medida que não for considerada. Quando Aquiles foi morto em batalha, Ulisses se aproveitou da sensação de vitória dos troianos para fazer o Cavalo de Tróia. Venceu a guerra com um artifício pouco heróico, mas muito malicioso.
Vivemos num mundo em que a padronização da subjetividade humana é atroz. Os filmes que os cinemas de circuito passam, as cores das roupas que a moda impõe, os check lists de procedimentos em todas as profissões obrigam as pessoas a essa passividade bovina diante do que é ditado pelo “Grande Irmão”. Pouco nos apercebemos, mas vivemos sob a bota dessa subjetividade. Robert Downey Jr voltou das cinzas para ser o herói manhoso, o Trickster arquetípico porque provou do sucesso, do ocaso, da derrota e da tragédia pessoal para voltar pleno de sua capacidade de ser o bom ator que é, mas capaz de traduzir com malícia o cara que aparentemente se rende e representa o Sistema, ao mesmo tempo que ri e despreza os cordeiros que acreditam nesse mesmo Sistema.
O filme começa com um aforisma que caberia muito bem em um texto junguiano: Tony Stark,o bilionário do bem que é assumidamente o Homem de Ferro, afirma que somos sempre os criadores de nossos próprios monstros. Nossa vaidade e nossos medos produzem as dificuldades que teremos que enfrentar todo santo dia. Sua necessidade de multiplicar a força humana através da estrutura de metal vai produzir um inimigo criador de aberrações em sua busca pelo superhumano. O Herói brincalhão vai demorar muito para ele descobrir que o que nos torna superhumanos é nossa própria fragilidade. Aquiles não sabia disso e se deu mal.