segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Dedilhar Sentimentos

Estava ouvindo um relato de uma cliente querida, uma narrativa gradualmente melancólica, sobre um assunto abordado em outro post, que é a Morte. Ou o processo de mudança inerente à própria vida. Ela estava concluindo um projeto longo e estafante, e terminava com um misto de cansaço e melancolia. Uma grande vantagem de associar a Psiquiatria com a Psicologia Analítica é que a tristeza pode ser ouvida e acolhida dentro da sala, em vez de ser abordada com golpes de Prozac, como um inseto que deva ser esmagado. Não só a tristeza, mas outros temas que as pessoas gostam de evitar, como Doença, Velhice, Mágoa... Tudo isso pode ser trazido e expandido, para falar do que, em situações menos intimistas, pode pegar mal ou quebrar o clima da conversa. Isso me lembra um verso antigo de Cazuza: “Outra vez vou me esquecer/ Pois nessas horas, pega mal sofrer”. Dentro do ambiente terapêutico não pega mal sofrer. Então aquele imenso cansaço foi virando uma tristeza de saber que as coisas acabam. Ela ía descrevendo a percepção de seus pais idosos, cada vez mais frágeis dentro do susto que é envelhecer. Um relacionamento curto também estava terminando. As lágrimas correram mansas para expressar a sensação de um pedaço da vida estava, diariamente, se apagando. Foi naquele ponto que foi ficando claro que a tristeza não era só tristeza e o cansaço não era só cansaço: aquele tipo de pensamento insidioso, que aos poucos vai tomando conta de toda a experiência do sujeito não era um pensamento comum: era um pensamento depressivo, aquela percepção da fragilidade era reflexo do estado de real fragilidade que ela atravessava. Mas aí vem o dilema: falar que os pensamentos derivam de uma espécie de esgotamento de neurotransmissão que chamamos de Depressão, também não é esvaziar a tristeza para depois medicá-la? Seria dizer algo como: “Você não está pensando o que está pensando, é a Depressão que está pensando dentro da sua cabeça, cabeção”. Onde termina o cansaço e começa o esgotamento?
Outra vantagem de ser terapeuta é que, quando não se sabe o que falar, é melhor não falar nada. Deixamos o silêncio pairando, até que algo ocorra para falar, ou continuar calado. O que me ocorreu foi um conto de Borges, um trecho curto e direto como toda a sua escrita. Nesse conto, alguém encontrava o relato de exploradores de alguma área desértica. Esses exploradores procuraram por muitos anos achar uma tribo perdida que tinha uma característica especial: esses homens haviam descoberto o segredo da Imortalidade. Como os exploradores do século XVI, que adentravam as selvas em busca do Eldorado ou da Fonte da Vida, esses homens buscavam a tribo dos homens imortais. Como seriam esses homens semi divinos? Quando a tribo foi finalmente descoberta, os aventureiros mal conseguiam crer em seus próprios olhos: Em vez de semi deuses iluminados, o que descobriram é que a Imortalidade tinha subtraído a humanidade daquela tribo. Eram todos humanídeos quase pré-históricos, vivendo no mais profundo e absoluto ócio. Não havia nada para buscar, nem salvar. O homem, sem a Morte, tinha virado uma besta. Uma besta sem propósito.
Ela sorriu e achou fantástico o conto. Nunca tinha olhado o assunto sob esse ângulo. A nossa capacidade única na Natureza de saber da nossa mortalidade é talvez uma de nossas maiores forças. E fraquezas. Tentar adiar ou barrar a Morte é tarefa de muitos buscadores, mas, aparentemente, ninguém descobriu qual é o truque, e se descobriu não está afim de contar para muita gente. Mas o conto deixa delineado, com a ironia borgeana, que nada nos torna mais humanos do que a nossa finitude. E nossos medos.
No outro retorno, aquela nuvem de pessimismo e medo tinha se dissipado. A tristeza não parecia tão funda, seus pais não pareciam tão velhos. A sessão, que parecia dedilhar sentimentos tão profundos, ficou para trás, também. A vida voltou ao seu ritmo, e pudemos prosseguir viagem sem tanto medo das coisas que terminam.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Significado

Há poucos anos estava com a minha família passando o final de ano em Florianópolis e, como costuma acontecer nessa época, presos em um dos imensos congestionamentos que se formam em suas vias de apenas uma pista, numa ilha que não foi projetada para receber tanta gente. Os carros avançavam muito devagar e notamos, eu e meu filho, uma moça correndo aflita atrás de um cãozinho minúsculo, uma espécie de miniatura de Fox Paulistinha cortando perigosamente a frente dos carros. Bendito congestionamento que permitia aos motoristas perceberem a movimentação para evitar que o bichinho estressado se pusesse sob algum carro. Ficamos torcendo silenciosamente pela moça e alguns voluntários que tentavam pegar o fugitivo. Foi quando ele entrou numa rua pequena e sem saída que eu acelerei o carro e resolvi entrar na perseguição. O pequenino ficou encurralado num muro, eu atravessei o carro como um tira americano e eu e meu filho descemos para a operação resgate. Fomos miseravelmente driblados pelo dog, que escapou entre nós em cena de comédia, só faltou batermos as cabeças. Felizmente, ele não passou pela segunda linha de pessoas que nos seguiram, que acabaram capturando o travesso. Voltamos para o carro e retomamos o caminho do congestionamento até a Praia dos Ingleses, quando meu filho comentou que sentia uma imensa alegria no coração, como se algo tivesse se abrido dentro de seu peito. Foi bom ele notar, porque eu também estava sentindo aquela coisa que era mais do que alegria, era uma espécie de expansão de sentimento, de ter saído de nossa costumeira apatia e medo de envolvimento para fazer uma coisa pelo Outro, mesmo que o outro tivesse cerca de 30 centímetros de comprimento.
Na web há um TED, para quem não conhece, uma pequena aula ou exposição de saber ou manifesto pessoal de no máximo 20 minutos que já comentei em posts anteriores. Um TED de 2014 foi apresentado por um sujeito chamado Dan Pacholke, que apresentou o seu trabalho de décadas com cadeias e Sistemas Prisionais americanos, com um título inusitado “Como viver uma vida com significado dentro de uma prisão”. A sua apresentação discorreu sobre as formas de repressão truculenta e força bruta dos presos, e como foram desenvolvendo projetos piloto de treinamento de guardas em suas capacidades de comunicação e contenção de conflitos de forma não violenta, melhorando significativamente o ambiente para os internos e a equipe. O próximo passo foi usar uma prisão agrícola para intervenção ecológica, plantando árvores e alocando espécies de plantas e animais em extinção, ou participando de pesquisas científicas. As pessoas ficaram inspiradas e se sentiram participando de algo maior do que a mediocridade de oprimir ou ser oprimido que caracterizam as instituições fechadas, um presídio acima de tudo. Um modelo fácil de se entender e aplicar seria um grande projeto de recuperação da mata ciliar que envolve o reservatório da Cantareira. São Paulo está à margem (sem trocadilho) de um colapso ecológico de esgotamento de recursos hídricos e as autoridades pedem para rezarmos para São Pedro. Pobre São Pedro, que já carrega a fama de ter negado Jesus três vezes, agora precisa sanar a monumental incompetência de nossos gestores. A mata que poderia e deveria proteger o reservatório está dizimada. A mão de obra institucionalizada em celas superlotadas talvez tivesse uma melhora em sua autoestima e senso de pertencimento de pudessem ajudar a proteger nossos reservatórios e áreas de mananciais. Ou participassem de feiras de adoção das centenas dos cães capturados e mortos em nossa cidade, muitas vezes abandonados pelas próprias famílias que os adotaram. Eles poderiam correr atrás desses bichos soltos como eu e meu filho tomando fintas do cachorrinho fugitivo.
Vivemos uma crise humana sem precedentes e em todas as áreas de nossas vidas. Talvez a crise mais profunda seja a de falta de significado. Sobretudo, a falta de significado do trabalho, da ação política ou mesmo do consumo. Muitas pessoas massacradas nos cubículos corporativos talvez invejassem os presidiários que podem tentar salvar rãs ou plantas ameaçadas de extinção. Um papel do trabalho de todos, inclusive e sobretudo dos profissionais de saúde mental, onde me incluo, devem começar a pesquisar e focar em projetos que conectem as pessoas com algo que não seja o próprio umbigo. Algo que forneça, minimamente, a noção de significado para nossa vida e ação.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Stay Hungry, Stay Foolish

Recapitulando os dois últimos posts desse mal teclado blog, o assunto foi o discurso de Steve Jobs em Stanford. Já fiz meus comentários sobre o expositor e o exposto e, sem propaganda indevida, sugiro ao leitor ou leitora incautos que adentraram esse blog agora, propositalmente ou não, que deem uma passada de olhos nos dois últimos textos. Por que o autor dessas linhas dominicais gosta tanto desse discurso? Tenho a impressão que nessa apresentação curta, Steve Jobs dividiu em três momentos, ou fases, de nossa odisséia humana, mesmo sem ter tido a intenção de fazê-lo. Eu dividiria essas fases em três arquétipos principais: A Ferida, A Jornada Noturna e o Significado.
A primeira pequena história é sobre a epopeia da Infância, que desde tio Sigmund sabemos, um período desagradável de nossa vida. Steve Jobs descreve impassível a brincadeira do destino com o seu nascimento; foi recusado por sua mãe biológica, que o deu para adoção e pelo primeiro casal da lista, que na última hora preferiu trocá-lo por uma menina em bom estado. Terminou aos cuidados de um casal muito simples e amoroso que fez muito sacrifício para criá-lo. E não deve ter sido muito fácil, mesmo.
Steve Jobs nunca fez as coisas que idealizou. Sempre colocou gente talentosa e disponível a trabalho semi escravo para materializar os seus projetos. A sua juventude coincide com a fundação da Apple, a luta para sua sobrevivência como companhia e a criação de um destino heroico, como Édipo, que foi abandonado por seu pai para ser criado por pastores e pessoas muito simples e procurou suplantar a sua dor com uma inteligência muito superior. Édipo, digo, Jobs, suplantou as dores da passagem de infância, adolescência e pós adolescência tornando-se um milionário dono de uma empresa de computadores e visando, antes de tudo, mudar o mundo. Para isso, usou (e abusou) de uma Inteligência e Visão bem adiante de seu tempo. E o mundo mudou. Bastante, aliás. A sua trajetória de Herói Ferido culminou com o tema de nosso último post, a Tijolada, quando foi demitido de sua própria empresa e afastado de seu comando. Atordoado, passou alguns anos longe de seu bebê, a Apple, procurando por um caminho para voltar para o jogo. Ganhou muito dinheiro, continuou tentando mudar o mundo, mas passou esses anos andando no escuro, numa Jornada Noturna, sem saber o que procurava e para onde estava indo. Só sabia que precisava seguir andando, passo após passo, na direção que a sua Intuição mandava. Jung passou por uma profunda Depressão quando tomou a sua tijolada, sendo expulso da Psiquiatria por Bleuler e da Psicanálise por Freud. Passou alguns anos estudando textos ininteligíveis de Alquimia e vários outros livros empoeirados, até começar a entender o que estava descobrindo e legando em sua imensa obra. Foi a sua Jornada Noturna.
Recapitulamos então: A Ferida, A Tijolada, A Jornada Noturna. Por fim, a última jornada, a Morte.
Steve Jobs falou sobre a Morte em perspectiva. Na época, tinha recebido o diagnóstico recente de um tipo de Câncer raro de Pâncreas. Não era de um tipo particularmente letal de Câncer de Pâncreas, que costumam ser muito agressivos e letais. Na época ele se sentia curado. Infelizmente, a doença recidivou alguns anos depois em seu Fígado e a evolução da doença levou à sua morte, como sabemos.
Jobs falou da morte como uma grande invenção da natureza, pois ela permite que o novo suceda o velho e que as ideias avancem, sem os impedimentos dos poderosos que, como qualquer outro ser humano, acabam morrendo. A Morte permite a Renovação de nosso DNA e de nossa Psique Humana.
Jobs alertou que não havia como se revestir de autoimportância já que, diante da morte, já estamos todos nús. Não há também motivo para viver uma vida mentirosa, já que temos um tempo limitado para seguir viagem.
Gosto muito da descrição de Dumbledore para Harry Potter, que havia sido morto por Lord Voldemort e o local de passagem era uma estação londrina de trem. Essa cena é do último livro e filme da saga. Harry perguntou ao mestre: como era morrer, afinal? Havia algo que pudesse ser feito, ou alguma tarefa a se cumprir? Dumbledore, o Velho Sábio, falou para Harry que a Morte era simplesmente, seguir caminho, seguir o trem sem olhar para trás.
Steve Jobs terminou seu discurso citando uma frase de uma revista hippie de sua época “Stay hungry, stay foolish”, em tradução livre: “Continue faminto, continue sem saber”. Tomara que essa seja a minha estação de trem, quando vou encontrar o Velho Mestre, que vai me aconselhar a continuar aprendendo, e seguir viagem sem me levar muito a sério. Esse é um bom Significado para a Morte.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

A Tijolada

Para quem não teve a oportunidade de ler, o último post desse blog abordou mais uma vez o discurso de Steve Jobs em Stanford, que virou um clássico na Internet e já fora comentado aqui em postagens antigas. Neste discurso para uma turma de formandos, Steve Jobs fez algo muito esperto para um palestrante: esvaziou as expectativas e a auto importância logo de cara, dizendo que a sua apresentação teria apenas três pequenas histórias. A primeira, “Ligando os Pontos”, foi comentada no post anterior.
A segunda história foi sobre a tijolada que levou na cabeça, atirada pela vida. Também é uma história conhecida que Steve Jobs foi um dos criadores da Apple, que hoje é uma das maiores companias do planeta. Quando a empresa saía de sua infância e tentava atingir a adolescência, ele próprio contratou um grande executivo da Coca Cola para dirigí-la, o que se revelou catastrófico. Depois de uma guerra corporativa pelo poder e qual visão seria dominante sobre o futuro da Apple, Steve Jobs foi mandado embora da empresa que ele próprio havia criado. A decepção para si e toda a sua geração foi imensa, sua vida mergulhou num período de dúvida e silêncio. Ele tinha alguns milhões de dólares na conta para não precisar pensar com pressa. Isso pode parecer uma grande vantagem e de fato, é, Steve não precisou procurar emprego nem passar por entrevistas com head hunters para pagar o aluguel. Ele podia sentar encima do dinheiro e gozar de uma boa aposentadoria antes dos 30 anos. Mas continuou fazendo o que gostava, criando uma empresa para desenvolver um sistema operacional menos instável e mais inteligente que o Windows. A empresa ia mal das pernas, mas outro investimento, em uma empresa de animação chamada Pixar deixou-o bastante confortável. Alguns anos depois de ter sido chutado de sua empresa, Steve Jobs voltou para salvá-la e transformá-la no que hoje vemos e tocamos em quase tudo.
Em seu discurso, Steve alertou os formandos para o fato que a vida, um dia, iria dar uma tijolada na cabeça deles também. Alertou-os para não se acomodarem, continuando a fazer o que mais amam. Recomendou enfaticamente não deitar sobre as dificuldades e seguir atentamente a própria intuição (para quem acha que eu sou apenas uma fanzoca louca de carteirinha de Steve Jobs, em outro post eu comento a sua trajetória de herói ferido e trágico, como Édipo. Ele também tinha seus problemas com a própria ferida, como todos nós).
Esse discurso me é particularmente caro porque ele toca em pontos bem importantes do pensamento junguiano, muito provavelmente sem nunca ter sido apreciador da obra de Jung. Não é impressionante um patrono dizer para uma turma de formandos que, “em algum momento, a vida vai te dar uma tijolada”? Dante Aliguieri abre a sua Divina Comédia com o comentário que chegou à metade de sua vida e se descobriu perdido em uma noite escura. Jung tem um nome feio para isso, Metanóia.
Metanóia é a mudança profunda e muitas vezes desagradável que nossa Psique experimenta na metade da vida. A mesma sensação do poeta, de estar perdido no escuro, sem caminho e sem saída diante de um profundo silêncio de Deus, costuma aparecer nesse período da jornada. Quem está lendo pode localizar em sua vida várias pedradas, mas se examinar mais a fundo vai achar uma boa tijolada, daquelas que deixam tudo de cabeça para o ar em nossa vida. Procurar e reconstruir algum caminho e algum sentido após a tijolada não é para qualquer um. Conheço e atendo muita gente que nunca mais encontrou o caminho depois da tijolada. Sobretudo os que não param de falar sobre ela nem um minuto. A recomendação
de não se acomodar é a mais difícil, pois significa deixar a mágoa para traz e seguir caminho. Deixar o leite derramado como derramado e procurar por outras estradas. Seguindo a intuição e sua Voz Interior. Pode demorar muito tempo. E não é nada fácil, ao contrário do que falam os livros de autoajuda.