domingo, 15 de fevereiro de 2015

Significado

Há poucos anos estava com a minha família passando o final de ano em Florianópolis e, como costuma acontecer nessa época, presos em um dos imensos congestionamentos que se formam em suas vias de apenas uma pista, numa ilha que não foi projetada para receber tanta gente. Os carros avançavam muito devagar e notamos, eu e meu filho, uma moça correndo aflita atrás de um cãozinho minúsculo, uma espécie de miniatura de Fox Paulistinha cortando perigosamente a frente dos carros. Bendito congestionamento que permitia aos motoristas perceberem a movimentação para evitar que o bichinho estressado se pusesse sob algum carro. Ficamos torcendo silenciosamente pela moça e alguns voluntários que tentavam pegar o fugitivo. Foi quando ele entrou numa rua pequena e sem saída que eu acelerei o carro e resolvi entrar na perseguição. O pequenino ficou encurralado num muro, eu atravessei o carro como um tira americano e eu e meu filho descemos para a operação resgate. Fomos miseravelmente driblados pelo dog, que escapou entre nós em cena de comédia, só faltou batermos as cabeças. Felizmente, ele não passou pela segunda linha de pessoas que nos seguiram, que acabaram capturando o travesso. Voltamos para o carro e retomamos o caminho do congestionamento até a Praia dos Ingleses, quando meu filho comentou que sentia uma imensa alegria no coração, como se algo tivesse se abrido dentro de seu peito. Foi bom ele notar, porque eu também estava sentindo aquela coisa que era mais do que alegria, era uma espécie de expansão de sentimento, de ter saído de nossa costumeira apatia e medo de envolvimento para fazer uma coisa pelo Outro, mesmo que o outro tivesse cerca de 30 centímetros de comprimento.
Na web há um TED, para quem não conhece, uma pequena aula ou exposição de saber ou manifesto pessoal de no máximo 20 minutos que já comentei em posts anteriores. Um TED de 2014 foi apresentado por um sujeito chamado Dan Pacholke, que apresentou o seu trabalho de décadas com cadeias e Sistemas Prisionais americanos, com um título inusitado “Como viver uma vida com significado dentro de uma prisão”. A sua apresentação discorreu sobre as formas de repressão truculenta e força bruta dos presos, e como foram desenvolvendo projetos piloto de treinamento de guardas em suas capacidades de comunicação e contenção de conflitos de forma não violenta, melhorando significativamente o ambiente para os internos e a equipe. O próximo passo foi usar uma prisão agrícola para intervenção ecológica, plantando árvores e alocando espécies de plantas e animais em extinção, ou participando de pesquisas científicas. As pessoas ficaram inspiradas e se sentiram participando de algo maior do que a mediocridade de oprimir ou ser oprimido que caracterizam as instituições fechadas, um presídio acima de tudo. Um modelo fácil de se entender e aplicar seria um grande projeto de recuperação da mata ciliar que envolve o reservatório da Cantareira. São Paulo está à margem (sem trocadilho) de um colapso ecológico de esgotamento de recursos hídricos e as autoridades pedem para rezarmos para São Pedro. Pobre São Pedro, que já carrega a fama de ter negado Jesus três vezes, agora precisa sanar a monumental incompetência de nossos gestores. A mata que poderia e deveria proteger o reservatório está dizimada. A mão de obra institucionalizada em celas superlotadas talvez tivesse uma melhora em sua autoestima e senso de pertencimento de pudessem ajudar a proteger nossos reservatórios e áreas de mananciais. Ou participassem de feiras de adoção das centenas dos cães capturados e mortos em nossa cidade, muitas vezes abandonados pelas próprias famílias que os adotaram. Eles poderiam correr atrás desses bichos soltos como eu e meu filho tomando fintas do cachorrinho fugitivo.
Vivemos uma crise humana sem precedentes e em todas as áreas de nossas vidas. Talvez a crise mais profunda seja a de falta de significado. Sobretudo, a falta de significado do trabalho, da ação política ou mesmo do consumo. Muitas pessoas massacradas nos cubículos corporativos talvez invejassem os presidiários que podem tentar salvar rãs ou plantas ameaçadas de extinção. Um papel do trabalho de todos, inclusive e sobretudo dos profissionais de saúde mental, onde me incluo, devem começar a pesquisar e focar em projetos que conectem as pessoas com algo que não seja o próprio umbigo. Algo que forneça, minimamente, a noção de significado para nossa vida e ação.

2 comentários:

  1. Amo seus textos objetivamente inteligentes e suavemente sensíveis... Perfeito!

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  2. Mestre,
    Confesso que depois da aposentadoria, estou buscando algum "significado" para essa minha vida tranquila.
    Não quero ganhar dinheiro (seria bom!), mas preencher o tempo com algo que me dê prazer e satisfação, como vc escreveu...
    Continua buscando e vou encontrar esse caminho.
    Abraços.

    Edison

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